O ROUXINOL DE BORGES
Na sua conferência sobre “O rouxinol de Lacan”, importante orientação para o argumento do
3º Encontro Americano e XVI Encontro Internacional do Campo Freudiano, Jacques-Alain
Miller faz referência a um texto de Jorge Luis Borges que, por sua vez, é um elemento decisivo
para as elaborações desse psicanalista a propósito da “arte do diagnóstico”. Trata-se de um ensaio
publicado em Otras inquisiciones (1952), intitulado “O rouxinol de Keats”, transcrito a seguir
como uma primeira referência ao “rouxinol de Borges”. Entretanto, essa referência,
especialmente por sua convocação de Keats, evoca uma segunda, publicada em El oro de los
tigres (1972), na forma de um poema – A John Keats (1795-1821) –, também disponível neste
site em uma tradução realizada por Augusto de Campos.
O ROUXINOL DE KEATS1
Jorges Luis Borges
Aqueles que freqüentaram a poesia lírica da Inglaterra não esquecerão a “Ode a um
rouxinol”, que John Keats, tísico, pobre e talvez desafortunado no amor, compôs em um jardim
em Hampstead, à idade de vinte e três anos, em uma das noites do mês de abril de 1819. Keats,
no jardim suburbano, ouviu o eterno rouxinol de Ovídio e de Shakespeare, e sentiu sua própria
mortalidade, e contrastou-a com a tênue voz imorredoura do invisível pássaro. Keats escrevera
que o poeta deve dar poesias naturalmente, como a árvore dá folhas; duas ou três horas bastaramlhe para compor essa páginas de inesgotável e insaciável beleza, que ele poliria muito pouco; sua
virtude, que eu saiva, não foi discutida por ninguém, mas sim sua interpretação. O nó do
problema está na penúltima estrofe. O homem circunstancial e mortal dirige-se ao pássaro, “que
não abatem as famintas gerações” e cuja voz, agora, é aquela que, em campos de Israel, em uma
antiga tarde, ouviu Rute, a moabita.
Em sua monografia sobre Keats, publicada em 1887, Sidney Colvin (correspondente e
amigo de Stevenson) percebeu ou inventou uma dificuldade na estrofe em questão. Transcrevo
sua curiosa declaração: “Com um erro de lógica, que, a meu ver, é também uma falha poética,
Keats opõe-se à fugacidade da vida humana, em que entende a vida do indivíduo, a permanência
da vida do pássaro, em que entende a vida da espécie”. Em 1895, Bridges repetiu a denúncia;
F.R. leavis aprovou-a em 1936 e acrescentou o escólio: “Naturalmente, a falácia incluída nesse
conceito prova a intensidade do sentimento que a acolheu…”. Keats, na primeira estrofe de seu
1
Texto extraído de Outras inquisições (1952), Tradução de Sérgio Molina. Cf.: BORGES, Jorge Luis. Obras
Completas. Volume II. Rio de Janeiro: Globo, 1999, p. 103-106.
poema, chamou o rouxinol de dríade; outro crítico, Garrod, com toda a seriedade, alegou esse
epíteto para sentenciar que, na sétima, a ave é imortal porque é uma dríade, uma divindade dos
bosques. Amy Lowell escreveu com mais acerto: “O leitor que tenha uma centelha de sentido
imaginativo ou poético logo intuirá que Keats não se refere ao rouxinol que cantava nesse
momento, e sim à espécie”.
Cinco pareceres de cinco críticos atuais e passados recolhi; entendo que, de todos, o
menos vão é o da norte-americana Amy Lowell, mas nego a oposição que nele se postula entre o
efêmero rouxinol dessa noite e o rouxinol genérico. A chave, a exata chave da estrofe, está,
suspeito, em um parágrafo metafísico de Schopenhauer, que nunca a leu.
A “Ode a um rouxinol” data de 1819; em 1844 apareceu o segundo volume de O
Mundo como Vontade e Representação. No capítulo 41, lê-se o seguinte: “Perguntemo-nos com
sinceridade se a andorinha deste verão é outra que não a do primeiro e se realmente o milagre de
tirar algo do nada ocorreu milhões de vezes entre as duas para ser fraudado outras tantas pela
aniquilação absoluta. Quem me ouvir assegurar que este gato aqui brincando é o mesmo que
saltitava e traquinava neste lugar há trezentos anos pensará de mim o que quiser, mas loucura
mais estranha é imaginar que é fundamentalmente outro”. Ou seja, o indivíduo é de certo modo a
espécie, e o rouxinol de Keats é também o rouxinol de Rute.
Keats, que, sem exagerada injustiça, pôde escrever: “Nada sei, nada li”, adivinhou o
espírito grego nas páginas de algum dicionário escolar; sutilíssima prova dessa adivinhação ou
recriação é ele ter intuído no obscuro rouxinol de uma noite o rouxinol platônico. Keats, talvez
incapaz de definir a palavra arquétipo, antecipou-se em um quarto de século a uma tese de
Schopenhauer.
Esclarecida assim a primeira dificuldade, falta esclarecer uma segunda, de índole muito diversa.
Como é possível que Garrod, Leavis e os outros2 não tenham chegado a essa interpretação
evidente? Leavis é professor de um dos colégios de Cambridge — a cidade que, no século XVII,
congregou e deu nome aos Cambridge Platonists —; Bridges escreveu um poema platônico
intitulado “The fourth dimension”; a mera enumeração desses fatos parece agravar o enigma. Se
não me engano, sua razão deriva de algo essencial na mente britânica.
2
A essa lista dever-se-ia acrescentar o genial poeta William Butler Yeats, que, na primeira estrofe de “Sailing to
Byzantium”, fala em “morrentes gerações” de pássaros, em unia alusão deliberada ou involuntária à “Ode”. Ver T.
R. Henn: The Lonely Tower, 1950, p. 211.
Coleridge observa que todos os homens nascem aristotélicos ou platônicos. Os últimos
sentem que as classes, as ordens e os gêneros são realidades; os primeiros, que são
generalizações; para estes, a linguagem não passa de um aproximativo jogo de símbolos; para
aqueles, é o mapa do universo. O platônico sabe que o universo é de certo modo um cosmos, uma
ordem; essa ordem, para. o aristotélico, pode ser um erro ou uma ficção de nosso conhecimento
parcial. Através das latitudes e das épocas, os dois antagonistas imortais trocam de dialeto e de
nome: um é Parmênides, Platão, Spinoza, Kant, Francis Bradley; o outro, Heráclito, Aristóteles,
Locke, Hume, William James. Nas árduas escolas da Idade Média, todos invocam Aristóteles,
mestre da humana razão (Dante, Convivio, IV, 2), mas os nominalistas são Aristóteles; os
realistas, Platão. O nominalismo inglês do século XIV ressurge no escrupuloso idealismo inglês
do século XVIII; a economia da fórmula de Occam, “entia non sunt multiplicanda praeter
necessitatem”3 permite ou prefigura o não menos taxativo “esse est percipi”4 Os homens, disse
Coleridge, nascem aristotélicos ou platônicos; da mente inglesa cabe afirmar que nasceu
aristotélica. O real, para essa mente, não são os conceitos abstratos, e sim os indivíduos; não o
rouxinol genérico, e sim os rouxinóis concretos. E natural, é talvez inevitável, que na Inglaterra a
“Ode a um rouxinol” não seja bem compreendida.
Que ninguém leia reprovação ou desdém nas palavras acima. O inglês recusa o genérico
porque sente que o individual é irredutível, inassimilável e ímpar. Um escrúpulo ético, não uma
incapacidade especulativa, impede-o de transitar por abstrações, como os alemães. Não entende a
“Ode a um rouxinol”; essa valiosa incompreensão permite-lhe ser Locke, ser Berkeley e ser
Hume, e escrever, há cerca de setenta anos, as não escutadas e proféticas advertências do
Indivíduo contra o Estado.
O rouxinol, em todas as línguas do orbe, desfruta de nomes melodiosos (nightingale,
nachtigall, usignolo), como se os homens instintivamente tivessem querido que esses não
desmerecessem o canto que os maravilhou. De tão exaltado pelos poetas, ele agora é um tanto
irreal; menos afim com a calhandra que com o anjo. Dos enigmas saxões do Livro de Exeter (“eu,
antigo cantor da tarde, trago aos nobres alegria nas vilas”) à trágica Atalanta, de Swinburne, o
infinito rouxinol tem cantado na literatura britânica; foi celebrado por Chaucer e Shakespeare,
3
4
“Os entes não devem ser multiplicados além do necessário.” (N. da T.)
“Ser é ser percebido.” (N. da T.)
por Milton e Matthew Arnold, mas é a John Keats que fatalmente ligamos sua imagem como a
Blake a do tigre.
A JOHN KEATS (1795-1821)**
Jorge Luis Borges
Desde o princípio até à jovem morte
A terrível beleza te espreitava
Como a outros tantos a propícia sorte
Ou a má. Nas auroras te esperava
De Londres, entre as páginas casuais
De um dicionário de mitologia,
Nas mais humildes dádivas do dia,
Em um rosto, uma voz, ou nos mortais
Lábios de Fanny Brawne. Ó sucessivo
E arrebatado Keats, que o tempo cega,
Esse alto rouxinol, essa urna grega
São tua eternidade, ó fugitivo.
Foste o fogo. Na pânica memória
Já não és mais a cinza. És a glória.
Tradução: Augusto de Campos
**
Poema publicado por Borges em El oro del tigre (1972). A tradução apresentada aqui foi realizada por
Augusto de Campos que, gentilmente, autorizou sua publicação neste site. Cf. CAMPOS, Augusto.
Línguaviagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 131.
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O ROUXINOL DE BORGES - 4° Encuentro Americano