1 PAISAGENS NOTURNAS PRIMEIRA AVENTURA DO DETETIVE ALYRIO COBRA Vera Carvalho Assumpção “O que foi, isso é o que há de ser, e o que se fez, isso se tornará a fazer; de modo que nada há de novo debaixo do sol.” LIVRO DO ECLESIASTE 2 1. - Nós, detetives particulares, somos os termômetros da moral estabelecida. Como representante da classe, afirmo que nossa sociedade está esfacelada, podre. Não acredita em mais nada além de grana! - As palavras rolaram pela sala junto com a fumaça das últimas tragadas que Alyrio Cobra dava em seu cigarro. George abriu os braços num gesto que lhe dava razão, não só porque soubesse que o amigo estava bêbado, mas também porque passava as noites solitário e estava sempre disposto a se deixar fisgar por assuntos que ocupassem muitas horas. - Nosso trabalho anda fraquíssimo! - Alyrio tomou novo fôlego. - Aliás, o meu, porque você que investiga golpes nas companhias de seguro está sempre na ativa. A vida do país transformou-se em planejar e executar golpes! A começar pelos senadores da república e magistrados, ninguém pensa em outra coisa que não sejam golpes para conseguir mais grana! - Como você falou, é a moral estabelecida! - George se empolgava. - Os mais altos cargos do país se criaram exatamente para planejar golpes e enriquecer sem nenhum constrangimento diante da miséria e da violência que deixam no seu rastro. - No caso de um detetive como eu, já não há pais procurando filhas desaparecidas. Nenhum corno querendo a prova do adultério. Será que as mulheres não corneiam seus maridos? Será que as meninas não somem de casa, não se mudam para a casa de sujeitos imprestáveis? - Alyrio esmagou o cigarro no cinzeiro. Corneiam, trepam e se drogam mais do que nunca! Mas hoje os maridos e pais não querem nem saber! Desde que não amolem e não tirem a concentração do ganhar dinheiro, deixam que trepem e desmoralizem seus lares! Hoje, ver a própria esposa, com o corpo nu exposto em bancas de jornal transformou-se em motivo de orgulho. 3 Os valores fundamentais estão perdidos! George ia dizer alguma coisa que confirmasse o discurso de seu amigo e vizinho de escritório, mas percebeu que Alyrio não falava com ele. Interrogava as paredes amareladas. No afã de encontrar respostas adequadas para todas aquelas questões, os dois levantaram seus cálices de vinho tinto numa forma de brinde e os esvaziaram de um gole. George reencheu os copos e os dois mais uma vez os esvaziaram, brindando a penumbra que adentrava pela janela. - Como a agência Cobra de detetives está devagar, vamos tomar um pouco de ar e comprar queijo e pão para que o estômago tenha algo com que se divertir além do vinho. Os dois saíram do escritório e caminharam pelo corredor. No patamar, o piso era de mármore e as escadas dignas de um palácio. O elevador funcionava como uma gaiola móvel no poço da escadaria. Enquanto o esperavam, deixaram-se invadir por ruídos e odores do antigo prédio. O elevador parou lotado. O ascensorista fez um sinal e Alyrio se espremeu entre os outros ocupantes. George sentou-se num degrau da suntuosa escada de mármore e acenou com um falso desânimo. Alyrio sabia que o amigo ficaria feliz observando a última claridade do dia que adentrava por um vitral que ali se mantinha por algum milagre indecifrável e criava uma luminosidade colorida no piso de mármore claro. O vinho exacerbava a veia poética de George, acentuando-lhe a capacidade de ficar por horas observando aqueles detalhes de cores inacreditáveis refletidas no chão. Em prédios antigos do centro de São Paulo ainda se viam tais aberrações. E era ali, com o olhar perdido naquele mosaico colorido oscilante ao sabor da caminhada do sol, que ele decifrava o emaranhado de confusões que envolviam as seguradoras e conjeturava sobre os bons tempos em que São Paulo era uma cidade mais humana. 4 Alyrio saiu do elevador empurrado pela energia do álcool. O fim de inverno naquele entardecer de agosto trazia um ventinho gelado. Alguns passos e respirações profundas ajudaram seu cérebro embotado e o fígado intoxicado. A rua Sete de Abril estava enlouquecida. Camelôs enchiam as calçadas tornando quase impossível caminhar por elas. O som alucinado das lojas de CDs se melava nos cheiros de pastéis, Macdonalds, hot dogs e churrascos gregos. Ele seguiu para o meio da rua onde uma multidão, que terminava a jornada de trabalho, caminhava em retorno ao lar. Era uma multidão de gente com o visível cansaço do final do dia, intercaladas de assaltantes e assassinos. Alguns agiriam ali, pegando o dinheiro de um distraído que trabalhara o dia todo para ganhá-lo. Era a crise. Não tanto econômica como moral. Deixando-se levar naquela maré de gente, conseguiu entrar na única padaria decente que restava no meio daquelas fábricas de fast-food. De acordo com o próprio gosto, mas especialmente pelas manias gastronômicas de George, escolheu alguns queijos importados, o balconista trouxe um pão quentinho, cortou a mortadela de sempre e o salame. Alyrio saiu com o pacote de comida e mais três garrafas de vinho chileno para beber à vontade e uma de um vinho português, muito especial, caso houvesse algum momento mais intenso em que era preciso algo um pouco mais etéreo. Quando Alyrio inaugurou a agência Cobra de detetives, George já possuía o escritório no mesmo corredor do prédio e era viúvo. Atento aos rumores que corriam pelo edifício, Alyrio soube que sua esposa, em vida, havia sido uma megera. Sabia também que, depois de viúvo, nos dias mais frios, George gostava de beber vinho tinto e ia recriando a mulher com quem estivera casado por trinta anos como se fosse a criatura mais terna e adorável deste mundo. Talvez sua dor tenha sido tão grande pelos destratos que ele preferia desabar para a fantasia. E era quando a idealizava em noites de amor que jamais existiram, que precisava de um vinho mais 5 etéreo para que o fígado não desmascarasse seus sonhos. Ao retornar, encontrou George no exato degrau da escada em que o deixara. Só que já não havia reflexos coloridos no mármore do chão. George se apressou em pegar o pacote e os dois entraram no escritório. A secretária eletrônica estava piscando. Havia uma voz ditando um número de telefone a ser chamado com urgência mesmo após o horário comercial, e em nome dele abriram mais uma garrafa. Depois do brinde e de sentir o rascante do vinho determinar cada centímetro do tubo digestivo até o estômago, Alyrio respondeu ao chamado. Uma secretária e o tempo de espera deram a medida da distância e da importância do interlocutor. Finalmente entrou na linha uma voz com o porte de lorde inglês e um sotaque afetado. - É um assunto muito delicado. Temos de tratá-lo pessoalmente. - Amanhã às nove estarei aí. Alyrio anotou o endereço, dobrou e enfiou no bolso o papel. Em seguida reencheu os cálices. George estava organizando os petiscos. Apesar de mais um período de crise financeira pela qual passava o país e seus habitantes, ele fazia questão de refeições com requinte, mesmo que fosse um simples petisco. Alyrio mantinha uma minúscula cozinha em seu escritório, onde tinha pratos, cálices e talheres apropriados para qualquer eventualidade. Em pouco tempo a escrivaninha estava coberta por uma toalha, sobreposta de tábuas e pratos necessários. Brindaram à perspectiva de um novo caso a ser solucionado e da grana que geraria. Quando abriam a segunda garrafa de chileno, depois das habituais duas leves batidas na porta, entrou Jéferson. George sorriu e imediatamente providenciou outro cálice. Jéferson franziu o nariz. - Se me permitem... 6 Depositando o capacete e a mochila sobre uma cadeira, Jéferson foi até a mini cozinha e retornou emborcando uma lata de cerveja. - Depois de mais um dia de trânsito infernal, precisava molhar a goela! Falou depois de vários goles e um suspiro de satisfação. - Acho que hoje ninguém vai querer saber das novidades! - continuou percebendo que os dois já haviam bebido o suficiente para não se interessarem pelas fofocas frescas sobre os outros escritórios do prédio. - Se você teve notícias da nova advogada do quinto andar... - Alyrio levantou o copo. - Hoje não vi a doutora. - Jéferson coçou a cabeça e foi buscar mais uma lata de cerveja. Ao retornar fez um sanduíche de tudo o que havia, especialmente mortadela. George balançou a cabeça. Jamais iria fazer aquele motoqueiro aprender a apreciar iguarias e comê-las nas devidas combinações. Mas ninguém era perfeito. A presteza e a eficiência com que ele resolvia todos os problemas superavam sua ignorância sobre a boa mesa. Com certeza, em sua mochila estavam todos os recibos e documentos de que fora incumbido. Pensando nisso George levantou seu cálice e os três seguiram bebendo e conjeturando sobre as sucessivas crises do país e as possibilidades de solucioná-las. 7 2. Gastão Ferraz Bastos trajava um terno com colete e abotoaduras de ouro fixadas em punhos engomados. Era impecável até na cabeleira grisalha aparada e tratada pelo melhor “coifeur” da cidade. Após as apresentações, indicou a cadeira onde Alyrio deveria se sentar e ele foi para a poltrona atrás da escrivaninha de aço escovado, aonde não se via um único papel além da pasta de couro. Atrás dele, um vidro “fumê” deixava entrever os contornos da cidade um pouco borrados pela névoa da manhã associada à poluição. - Já ouviu falar em Rita Bastos? - O nome me diz algo... - Alyrio tentou ativar a memória, repassando no cérebro as páginas policiais. Ao sentir que as imagens se aclaravam, estalou os dedos. - A professora encontrada assassinada e violentada nos arredores da escola em que trabalhava! - Era minha irmã. Sua voz saiu pesarosa enquanto abria uma pasta e expunha uma série de reportagens de jornal: Professora de periferia é encontrada morta. Detido de 18 anos afirma que matou por vingança. Professora perseguiu e expulsou traficantes da escola. Antes que Alyrio expressasse a pergunta que lhe vinha à mente: Como uma professora de periferia era irmã de um ricaço como ele, Gastão resumiu a situação juntando as pontas dos dedos de mãos muito bem tratadas. - Minha irmã sempre foi uma desequilibrada! – Ele franziu a testa. Tinha uma crença inabalável de que viera ao mundo com a missão de ensinar alguma coisa às novas gerações. Começou dando aulas em boas escolas. Nos últimos anos achou que sua missão ia um pouco além e era preciso se embrenhar por escolas de crianças e adolescentes remelentos, pois eram exatamente eles que necessitavam de 8 sua ajuda. Vivia lendo histórias de santos e mártires que sacrificavam a vida em prol dos carentes. – Sua boca se retorceu mostrando o quanto aquilo tudo lhe causava nojo.Depois de um profundo suspiro, ele continuou: - Ela queria abandonar tudo, ou seja, as idéias, não o dinheiro da família, e partir para uma missão onde se doava por inteiro. Eu e meu irmão fizemos de tudo para que ela trabalhasse em uma de nossas empresas. Claro que num determinado momento paramos de nos preocupar, ou simplesmente desistimos de remar contra a maré. - Com um suspiro que revolveu o ar da sala, concluiu: - Bem, aí está tudo o que foi publicado sobre o caso. Alyrio debruçou-se sobre a mesa e observou: Dois rapazes de dezoito e dezenove anos, ou seja, maiores, haviam confessado o crime. Ali estavam os culpados. Havia um motivo: a professora estava forçando a expulsão de ambos da escola por participarem da distribuição de maconha na própria escola. Estuprá-la ia por conta da onda de violência que assolava o mundo. - O caso não é tão simples como parece. – A voz de Gastão era soturna. Como já disse, minha irmã era uma desequilibrada. No entanto, sua intenção era boa, e uma pessoa nesse estado é presa fácil para qualquer um! Logo após sua morte, alguém entrou no seu apartamento e revistou-o minuciosamente. Alguém está procurando algo que ela possuía e eu não faço idéia do que seja. Só posso afirmar que esta pessoa tem a chave do apartamento, pois não há sinal de arrombamento. Não tenho a menor idéia de quem seja, nem mesmo quantas pessoas são! Como não sei o que procuravam, naturalmente não faço idéia se encontraram. Alyrio estava tentando entender quando o indicador de Gastão pousou sobre um dos recortes. - Observe esta menina, Melanie! Foi acusada de saber mais do que informou à polícia e em seguida os dois pivetes confessaram o crime e ela saiu de cena. 9 Ele voltou a bater o indicador sobre a foto da menina. - Esta menina, de alguma forma, está envolvida, e é por ela que você tem de chegar às pistas e descobrir quem está por trás deste crime. Ela era amicíssima da minha irmã. Amiga demais! Estavam o tempo todo juntas! - Ele suspirou, seus olhos demonstraram a impotência da maioria das pessoas diante de mistérios. - Tenho certeza de que não foi mais um destes assassinatos que tem ocorrido com freqüência nas escolas. Violência pelo controle do tráfego de drogas que minha irmã tentava obstruir. - Já tentou a polícia? - Alyrio perguntou o óbvio. - Tudo o que eles fizeram está nos jornais. O caso está encerrado. Prenderam os supostos assassinos. Eles tinham um motivo muito forte. – Sua testa enrugou e ele piscou com vagar. - Não pretendem reabrir o caso por que eu, irmão da vítima, não estou satisfeito com a conclusão mais do que óbvia! - Existe dinheiro envolvido? Alguma herança? Mais uma vez Gastão suspirou: - Não! - Seus olhos pousaram na parede atrás de Alyrio. - Tudo o que era dela está retornando para mim e meu irmão, dois únicos herdeiros, uma vez que ela não era casada e não tinha filhos. Nossos pais estão mortos. A parte dela que está retornando é uma questão de formalidade. Nós já administrávamos tudo. Aliás, se quiséssemos suas ações das nossas empresas, não precisaríamos matá-la, bastariam algumas manobras administrativas! Enquanto Alyrio tentava entender, Gastão Ferraz Bastos reafirmou: - Existe alguma coisa por trás disso tudo. Além de uma intuição fortíssima, existem algumas pontas soltas. Estou contratando a agência Cobra porque preciso desvendar o mistério. Preciso saber quem revistou o apartamento dela de uma forma que não deixou uma gaveta sem que o fundo fosse retirado, uma caixa de 10 eletricidade que não estivesse com a tampa solta. Foi uma trabalheira para pôr ordem naquilo. Aliás, foi a menina Melanie quem sabia o lugar das coisas e recompôs o local de modo que não se percebe que foi revistado. Segundo ela, não levaram coisa alguma. Jurou que não sabia o que estavam procurando. Minha intuição diz que é mentira. Desta vez foi Alyrio quem suspirou. Afinal nem tudo estava perdido! Alguém se preocupava, queria saber, desvendar os meandros do crime. - Bem, vou começar por Melanie, mas também gostaria de conhecer o local onde vivia sua irmã. Gastão abriu uma gaveta, pegou um molho de chaves. - Ela morava num apartamento em Higienópolis. Apertando um botão, falou com a secretária. Pediu que escrevesse uma carta ao zelador para que permitisse a entrada de Alyrio. - Bem... Quanto aos meus honorários... - Se estou contratando a sua agência é porque tive informações de que o senhor é competente. Dinheiro não é problema, minha secretária fará o cheque. Quero soluções! Alyrio sentiu que suas palavras eram uma ordem. Despediu-se com um sorriso e um aperto de mão. Enquanto esperava que a secretária digitasse e imprimisse a carta, abriu seu micro e digitou os tópicos da conversa. Gostava de anotar tudo no calor da hora. Pegou a carta para o zelador e o primeiro cheque e seguiu para a delegacia que atendeu a ocorrência. Talvez os assassinos ainda estivessem lá ou seria informado para onde haviam sido transferidos. Era preciso interrogá-los, no mínimo ouvir suas versões. 11 3. - É a coisa mais comum que existe! - os olhos cansados do delegado levantaram-se por trás dos óculos. Seus cabelos eram abundantes e ele os usava muito curtos, a camisa sem gravata e mangas arregaçadas, o paletó pendurado no encosto da cadeira. Suas mãos esfregavam-se e abriram-se para demonstrar o quanto era impotente. - A população em volta das delegacias vive apavorada com os motins e os presos que fogem. Em todas as delegacias e cadeias ocorrem fugas! Os problemas são os mesmos: celas superlotadas, local inadequado. Hoje em dia ocorre com muita freqüência dos presos serem resgatados por bandos fortemente armados! - Quer dizer que um dos assassinos da professora se enforcou na cela com um par de meias amarrado na grade de ferro e o outro desapareceu! - Alyrio tentou sua melhor cara de indignação. - É o que diz o relatório! - O delegado tirou os óculos, recolocou-os, revirou alguns papéis. - Morte por enforcamento. Suicídio! - E isto numa cela superlotada! - Não é bem assim. - O delegado desculpava-se num suspiro impotente. Os presos haviam saído para o pátio, ao retornarem encontraram o cara enforcado. Ninguém viu como ele se matou ou se alguém o matou! As testemunhas ouvidas confirmaram o suicídio. É muito difícil um preso acusar outro! - E quanto ao desaparecido? - Durante um motim, alguns escaparam. Foi dada a ordem de prisão. Qualquer hora ele aparece. O mais comum é ser pego em outro delito. Alyrio abriu o micro, anotou o nome dos rapazes e o endereço de quem reclamou o corpo do enforcado. Pediu ao delegado que o informassem caso o fujão 12 fosse recapturado, agradeceu e saiu. Gastão Ferraz Bastos tinha razão! Aquela história encobria mistérios e, não fosse sua curiosidade, a coisa iria se perder. Aliás, já estava perdida, com a professora enterrada, um dos assassinos confessos enforcado e o outro desaparecido. 13 4. Alyrio estacionou o carro, atravessou a rua em direção ao prédio aonde residira a professora assassinada. Ainda era inverno e fazia frio, mas o sol brilhava e o céu estava azul. Após a delegacia malcheirosa, a chegada a um belo edifício no bairro de Higienópolis foi uma agradável mudança! O zelador uniformizado leu a carta como se precisasse decifrar cada letra e depois perguntou se ele estava com as chaves. Alyrio levantou o molho e balançou-o. - Nós aqui não temos a chave dos apartamentos. É uma norma. - O zelador informou enquanto encaminhava Alyrio ao elevador e apertava o botão para chamá-lo. - Sempre desaparecem coisas e os empregados levam a culpa! - A voz do zelador estava mais para uma advertência. - Soube que o apartamento de dona Rita foi revistado sem que ninguém notasse gente estranha no prédio! - O olhar de Alyrio caiu no zelador como uma intimidação. - Isto realmente ocorreu, mas a pessoa tinha a chave. - O zelador pigarreou, coçou a cabeça. - Logo depois deste fato o síndico resolveu instalar câmaras de TV. E já estão funcionando! - Sua voz denotava orgulho. Alyrio fechou a porta do elevador encerrando a conversa. Usou a chave e entrou. Se o prédio não condizia com uma professora de periferia, o apartamento estava mais para um seqüestro que exigisse um resgate de alguns milhões! À primeira vista, não se notava que alguém revistara o apartamento. Tudo parecia em perfeita ordem. Era uma primeira visita e ele não tinha elementos para descobrir o que procuravam ali. Queria simplesmente saber um pouco sobre a vida da finada. A decoração, os quadros, os livros, as roupas, as músicas que ouvia. 14 Atravessou a sala e começou pelo escritório. Examinou os livros. Havia de tudo, uma biblioteca eclética, mais voltada para as idéias de esquerda. Havia também muita poesia dos românticos do século dezenove. Nas prateleiras, afixados por percevejos, havia recortes de jornal. Alguns eram novidades literárias resenhadas. Outros eram notícias curiosas. Por exemplo, as declarações de Fidel Castro quando o Papa visitou Cuba ou notícias da vida da princesa Diana até fotos de sua morte. Aqui e ali, espetados nas prateleiras, cartões postais com estampas das maiores cidades do globo. Melanie fizera um trabalho excelente recolocando cada recorte em seu local sem que se visse um único furo que não estivesse preenchido por seu respectivo percevejo. Sobre uma escrivaninha de um estilo que Alyrio não conseguiu decifrar, mas podia afirmar que os antiquários a disputariam com altos cacifes, muito material escolar: borrachas de diversas formas, lápis e canetas esferográficas de todas as cores e formatos, pincéis, bicos de pena, lapiseiras. Tudo separado e organizado. Nas poucas gavetas, muitos recortes de jornal ou revista, a maioria deles com poemas em que alguns versos estavam demarcados com cores hidrográficas. No quarto onde Rita dormia havia uma cama de casal de ferro dourado e o colchão, sem roupas de cama. Nas gavetas laterais, mais versos e alguns livros de auto-ajuda. Na penteadeira vários tipos de cremes e escovas para cabelo. Alyrio sentou-se na banqueta e abriu a gaveta. Contas pagas organizadas em pequenos maços. Andou até o armário e abriu a porta. O roçar das roupas penduradas deixou escapar um odor que evocava outras buscas, outras vítimas, outros quartos. Por uns momentos, ele voltou o olhar para a claridade da janela a fim de impedir a entrada de pensamentos sombrios. Remexeu as roupas e o cheiro de bolor se dissipou em seguida, ou talvez tivesse sido somente uma lembrança de outras buscas em locais 15 mais sórdidos. Ali tudo denotava dinheiro e cheirava bem. A roupa que havia era de grife. Mesmo os jeans e as camisetas possuíam etiquetas caras. Alyrio não encontrou nada além de uma personalidade que gostava de vestir roupas caras sem conotações de perua. Na cozinha, a geladeira estava funcionando, porém vazia. O que fez com que ele imediatamente começasse a sentir fome. Abriu os armários sobre a pia e constatou estarem também vazios. Com certeza, quem pôs ordem no apartamento aproveitou para jogar a comida fora. Ele fez uma leve massagem sobre o estômago e foi para a sala. Examinou os aparelhos audiovisuais. Som de alta fidelidade e potência. Um televisor grande e moderno com som estéreo. Uma secretária eletrônica com fax acoplado. Nenhum fax recebido, nenhuma mensagem na secretária. Examinou os CDs de música clássica e de músicas brasileiras derivadas do MPB. Nenhuma pista. Num dos armários encontrou um bar bem servido. Pelo menos a finada gostava de boas bebidas! Pegou um cálice e abriu uma garrafa de vinho do Porto dez anos. Deixou-se afundar num sofá e degustou a bebida com vagar. Enquanto o vinho descia de uma forma muito agradável por seu tubo digestivo, Alyrio conjeturou que o caso estava tomando o rumo que apreciava. Pontas soltas sem pista alguma. Ninguém sabia quem revistara o apartamento e muito menos o que buscavam. Os assassinos haviam desaparecido. Correu os olhos pela mobília e tentou relembrar as primeiras lições de sua formação de detetive: conheça a vítima! Toda vítima morre devido a quem ela é, o que ela é, onde ela está em determinado momento. Quanto mais se sabe sobre a vítima, mais perto se está do assassino. Havia deixado o micro no carro, mas tentou gravar na mente tudo o que via enquanto esforçava-se por formar uma idéia da vítima associando a imagem de suas fotos com a decoração do apartamento. Rastreou as paredes e gravou os quadros e alguns dos pintores. Havia uma paisagem mais escura que lhe chamou a atenção. 16 Firmando melhor os olhos conseguiu identificar a assinatura no canto do quadro: Domitila. No meio do fluxo mental a que este caso o conduzia, deparar-se com um quadro de Domitila era surpreendente. Levantou-se reencheu o cálice e mais uma vez deixou-se afundar no sofá. Domitila era uma pintora que conhecera há pouco e que lhe dissera coisas incríveis. Uma delas foi a explanação sobre as coincidências que regiam nossa vida. Ele, que não punha muita fé nestas idéias, estava diante de uma coincidência de tirar o fôlego. Degustou o resto do vinho divagando sobre o fato de encontrar aquele quadro exatamente ali, naquela sala. Quando terminou a bebida, levantou-se, guardou a garrafa e fechou o bar. Repassou mais uma vez cada cômodo. Era preciso saber mais sobre o caso e então talvez encontrasse objetos que fizessem sentido. Com certeza voltaria para conhecer um pouco mais da vítima e, claro, para mais umas doses de Porto dez anos. Antes de sair, lavou o cálice e guardou-o para a próxima visita. 17 5. Depois de dirigir por um trânsito bem pesado até a zona sul da cidade, Alyrio parou o carro em frente à escola em que Rita lecionara. Era um muro de blocos cinzentos tão pichados que já não se distinguia desenho algum. No portão, os mesmos hieróglifos indecifráveis de um presente de insatisfações e revoltas. Por um instante, ele viu-se criança, num tempo em que freqüentava a escola primária. Era inegável que o mundo mudara. Estudara numa escola pública em que os muros eram baixos, mostrando plantas que floriam. A diretora e as professoras se vestiam decentemente e eram respeitadíssimas. Era de um tempo em que a limpeza da escola e a ordem entre os alunos eram muito bem cuidadas. Embora houvesse insatisfações, elas não transbordavam numa agressão tão escandalosa ao mundo inteiro. Empurrou o portão e entrou. Alguém próximo tomou tal susto que fez com que Alyrio se assustasse com o susto do outro. Custou a acalmar o porteiro informando que estava ali somente para conversar com a diretora. Não era assaltante nem baderneiro! Por fim atravessou um pátio vazio, caminhou por corredores tranqüilos e bateu na porta da sala da diretoria. Uma jovem de cabelos cacheados e pintados de vermelho abriu a porta. Usava brincos enormes pendurados nas orelhas, um decote que deixava aparecer um vislumbre dos seios e era explicitamente sexy. - Gostaria de falar com a diretora. - Sou eu! Mariana. – Ela sorriu e estendeu-lhe a mão. Alyrio esperava encontrar uma mulher de pelo menos uns cinqüenta anos, vestida num tailleur cinza e uma blusa branca fechada no pescoço por um camafeu. A visão daquela exuberância ruiva o deixou sem reação por alguns segundos. Ainda mais que ela lhe pareceu assustada com sua presença. Assimilada a surpresa de 18 ambos, ele foi explicando que estava investigando a professora assassinada. Aos poucos os olhos assustados e maquilados de Mariana foram perdendo o ar de espanto e ela convidou-o a se sentar e falou sobre o brutal assassinato. Rita era uma das melhores professoras. - Ela era muito querida pelos alunos exceto pelos marginais e traficantes que se infiltravam na escola a fim de vender cigarros de maconha, desestabilizando nossa juventude! Eu e todos os professores temos certeza de que os pivetes a mataram por ela ter tentado expulsá-los da escola. Enquanto ela falava, Alyrio observava sua escrivaninha muito simples. Nem havia como compara-la a que vira no apartamento de Rita. - Hoje em dia já não bastam os perigos de fora! – Os olhos de Mariana se arregalaram. – É aqui, dentro da escola que os marginais instalam seus braços. Estudantes são convencidos a vender maconha e outras drogas! É muito dinheiro envolvido! Os rapazes se deixam convencer com facilidade. Enquanto a diretora explicava o pavor que dominava alunos e professores por causa de marginais, verdadeiros vândalos que passeavam pelo bairro disparando tiros que muitas vezes atingiam alvos errados, soou a campainha que anunciava o final das aulas do período da tarde. A diretora caminhou até a janela e chamou Alyrio. Os dois observaram pelo vidro. - Nossa juventude não merece viver o terror que os marginais e traficantes lhes impõe! – Ela falou Apesar dos olhos de Alyrio estarem mais voltados para o palpitar dos seios da diretora, ele concordava com ela. Havia jovens de todas as idades que não se vestiam com roupas de grife, mas que se mostravam limpos e saudáveis. Segundo a diretora, a maioria com grande interesse pelos estudos. 19 Como no tempo de sua infância, Alyrio observou crianças e adolescentes eufóricos pela liberdade. Sair da escola, percorrer as ruas, chutar bolas, brincar nas calçadas. - Quando vejo meus alunos saindo, sempre me preocupo com o que vão encontrar do lado de fora. - A diretora fez um ar apreensivo enquanto outros professores entravam na sala. Houve as apresentações. Em poucos minutos todos eles repetiram as palavras da diretora, afirmando que Rita era uma professora excelente e que era até enérgica demais na sua guerra contra as drogas. Não que eles desaprovassem, mas ela acabou tendo o final previsível a todos os que chegam perto da droga. Especialmente quando o objetivo é combatê-la. Alyrio reparou que cada professor tinha um escaninho num armário. Era onde guardavam livros de chamada, cadernos e outras coisas pertencentes à classe. - Rita tinha um armário? - ele quis saber. - Claro! - a diretora caminhou até o armário que fora de Rita e o abriu. Cada professor tem o seu. O dela, a polícia abriu e encontrou somente o livro de chamada que está com a nova professora. Alyrio examinou o armário que era grande e caberia até uma pilha de cadernos. Aquele estava vazio. - Os professores deixam de tudo dentro dos armários. Alguns até de uma forma bastante desorganizada. - Mariana segredou-lhe com tanta intimidade que Alyrio sentiu o roçar de seus seios. Um frêmito de excitação sexual percorreu-lhe a espinha. - Até a polícia estranhou o fato de o armário estar vazio. Rita com certeza era mais organizada do que se poderia imaginar. - Mariana continuou afastando-se e ele se perguntou se ela realmente encostara seus seios ou ele simplesmente imaginara. Alyrio agradeceu pela atenção dispensada e, ainda perturbado pelas 20 emanações sexuais daquela mulher, despediu-se. Saiu do prédio da escola. Parou próximo à barraca montada numa kombi estacionada e pediu um hot dog. Não havia almoçado, estava faminto. Enquanto observava o homem preparar o sanduíche, perguntou-lhe se conhecia a professora que fora assassinada. O homem olhou-o com desconfiança. - Sou detetive particular, - ele informou: - Mas a polícia já não descobriu e prendeu os assassinos? Quem a matou foram os próprios alunos da escola! - A família da moça quer mais informações e me contratou. Por um momento o homem parou de fazer o sanduíche e levantou os ombros. - Ela lecionava na parte da manhã e muitas vezes na saída parava aqui e comia um hot dog. Era muito simpática, sempre me dava gorjeta e os alunos pareciam gostar muito dela. É a única coisa que posso dizer. Alyrio recebeu o sanduíche e colocou vinagrete, maionese, ketchup e mostarda. Deu a primeira mordida, mastigou, engoliu e perguntou: - Nunca viu ninguém suspeito esperando por ela? Ela ia embora sozinha? O homem pensou um pouco, abanou as moscas que voavam sobre o vinagrete. - Ela andava por aí pedindo dinheiro nas firmas do bairro e diz que melhorava a merenda dos alunos. Eu mesmo uma vez fui contratado para servir sanduíches numa festa de aniversário da escola patrocinada por um dos amigos da professora assassinada. - E você conheceu o tal amigo? - Se ele estava na festa não sei lhe dizer, havia muita gente de fora, pais e amigos dos alunos. Só sei que servi sanduíches para todos e recebi meu dinheiro sem 21 problemas. Alyrio mastigava e o homem passava um pano sobre o pequeno balcão. - Estou tentando me lembrar, - ele continuou falando: - Acredito que jamais a vi com outras pessoas que não os professores ou alunos daqui. Ultimamente havia uma menina que era sua amiga e que às vezes vinha na hora da saída. Era uma menina loura muito bonita e com cara de grã-fina. Fora esta menina, nunca vi ninguém estranho ao lado da professora. - Você não tem medo de ficar exposto assim, aqui na porta? O homem abriu os braços numa demonstração de que não havia o que fazer: - Todo fim-de-semana, especialmente nas madrugadas, tem matança pelos botecos da região. Aqui em frente da escola ainda não mataram ninguém. A professora mesmo não foi baleada aqui na porta, mas estrangulada aí pelos matos. Ele fez um gesto que abarcava os arredores da escola. Alyrio terminou o sanduíche, olhou para o prédio da escola numa despedida dos peitos ardentes da diretora, e se foi. 22 6. Já não havia tempo para passar no escritório. Alyrio foi direto para sua casa, um pequeno sobrado geminado, na Rua Frei Caneca, a umas cinco quadras da Paulista. Estacionou na garagem, fechou os portões e abriu a porta da frente. Não acendeu as luzes da sala. Gostava da penumbra, de ir tateando as coisas até que os olhos se acostumavam à luz do ambiente. Era na solidão e no silêncio que sua mente atinava com as melhores deduções. Era também no escuro que as imagens de sua própria vida se mantinham na penumbra. Fora casado e quando voltava para a casa todos os dias havia duas crianças correndo para abraçá-lo. Como eram felizes aqueles momentos e, com certeza, mais ainda a lembrança deles. Depois que sua ex-esposa se cansara dele e se juntou a um aventureiro que a levara para viver em Miami, os filhos foram com ela e ele tinha a oportunidade de vê-los uma vez por ano. A cada encontro ficavam maiores e mais distantes. Um casal de quase adolescentes que ele sabia estarem crescendo, sem ter idéia do que faziam, do que gostavam, quem eram seus amigos. Até a língua em que se comunicavam, que era o português, estava ficando difícil de manter. Restava o micro. Pelo correio eletrônico trocavam mensagens amistosas, beijos e abraços que jamais se davam pessoalmente. Serviu-se de uma dose do vinho do Porto que não era de tão boa qualidade como o que ingerira no apartamento da finada e sentou-se em frente ao micro. Tinha um caso e era sobre ele que seus pensamentos deviam fluir. Pelo que pudera averiguar nas investigações do dia, concordava com Gastão, seu contratante, o caso não era óbvio como parecia. Por enquanto só encontrara pontas soltas. Abriu o micro e escreveu detalhadamente sobre a delegacia e a visita ao apartamento da finada. Escreveu sobre a escola. Então seu pensamento divagou por tudo o que fizera e 23 tomou um rumo bem específico: Domitila. No meio do intrincado caso, havia uma pintura assinada por ela na casa da professora assassinada. Era um bom motivo para ir vê-la! Foi até o telefone e discou seu número. A resposta veio da máquina e ele preferiu não deixar mensagem. Voltou a se sentar na penumbra e tentou raciocinar sobre o caso, mas seu pensamento não conseguiu outro rumo que não fosse Domitila. Vivia com ela uma amizade que ainda não havia se consumado num ato sexual. Conhecera-a fazia poucas semanas numa galeria de pintura, onde entrara por acaso, impressionado com os quadros expostos. Eram mulheres exuberantes que ela nomeava sacerdotisas. Suas expressões alucinadas não pareciam feitas de elementos retirados do belo, mas especialmente daqueles que se encontra em demônios e feiticeiras, matéria mais alquímica do que estética. Eram quadros que transmitiam, quase sem querer, uma força que não deixava ninguém indiferente e que atraíram Alyrio para dentro da galeria. Tampouco a figura da pintora o deixou indiferente. Ela era daquelas mulheres que não são bonitas, mas que possui uma luz vinda sabe-se lá de onde. Alta, discretamente roliça, cabelos longos e morenos e uns olhos amarelos de cadela brava que eram o detalhe mais marcante de sua figura. Observou-a zanzando pela galeria com cara de entediada, de já não estar se sentindo envolvida com a própria pintura e muito menos com os comentários que ouvia. Embora não usasse o estratagema de olhar o relógio, percebia-se que contava os minutos para a festa acabar. Alyrio sentiu vontade de dirigir-lhe a palavra, mas não lhe vinha um único comentário razoável. Então se pôs a analisar cuidadosamente aquelas pinturas que traziam um claro-escuro atordoante, retratando mulheres atormentadas, que ao mesmo tempo tinham no olhar a determinação de quem sabe o que quer. Quando se 24 aproximou da pintora, ficou sem saber o que dizer. Foi ela quem sorriu e perguntou: - Está assustado? - Acho que já tive algum sonho com uma destas mulheres! Ou será que foi pesadelo? Ela sorriu e ele, num ímpeto estranho até para si próprio, convidou-a para jantar. Naquela noite ela tinha de ficar na galeria até o último convidado. Marcaram para o dia seguinte. Ele passou pelo ateliê e ficou impressionado. Foi lá que, além de ver outras sacerdotisas, conheceu a série de pinturas que retratavam as paisagens noturnas. Talvez tivesse sonhado com as sacerdotisas, ou elas poderiam se confundir com qualquer das mulheres que perambulavam por suas noites. As paisagens noturnas pareciam sair diretamente de alguma vivência de que não se recordava. Eram-lhe tremendamente familiares ao mesmo tempo em que não lhe mostravam nenhuma referência. Naquela noite, aquele não foi o único fato surpreendente. No restaurante, enquanto bebiam chope e comiam pão com manteiga para esperar a macarronada do jantar, ela falou das tantas vivências pelas quais uma alma pode passar, ou seja, suas vidas passadas. Falou da Inquisição, das tantas mulheres mortas nas piras por serem hereges ou bruxas, e no tanto do conhecimento que, junto com elas, virou cinza. Alyrio estava especialmente impressionado com a mulher à sua frente, com o que ela falava, com as chispas amareladas de seu olhar e limitava-se a concordar. Embora as teorias sobre vidas passadas sempre lhe parecessem absurdas, mais absurda ainda lhe pareceu a continuidade da conversa. Partindo da possibilidade de ter vivido diversas vezes conectada a um sexto sentido, Domitila tentou demonstrar que nos últimos séculos, podia-se notar que esse sentido extra sensorial vinha-se perdendo. O que era uma tremenda perda para toda a humanidade! Desde o final do século passado e agora na entrada do novo 25 milênio, quanto mais alienado se fosse, melhor! As pessoas viviam soltas no mundo, desligadas das raízes! Desligadas do sentido da vida que não fosse dinheiro e poder. O pior era que a maioria dos jovens preferia se drogar e se alienar a ter de lutar. A macarronada chegou fumegante e eles se distraíram enquanto o garçom servia. Pediram mais chope e por alguns momentos se dedicaram à mastigação. Quando a fome arrefeceu, Alyrio voltou a pensar no que ela dissera sobre o conhecimento ir se perdendo. A princípio com timidez e depois dando ao assunto a devida importância, afirmou que desde as primeiras lições da escola, tínhamos a impressão de que nossa cultura se definia por uma acumulação de conhecimentos, ao invés de uma perda. Aprendíamos o sistema solar de Ptolomeu, em seguida o de Galileu, depois as leis de Kepler, etc. Ela rebateu sem hesitar que não era bem assim! Na Grécia antiga já haviam teorias muito acertadas sobre o sistema solar. No entanto a Igreja Católica, em nome de Deus, apoiou sistemas que tinham a terra e os dirigentes da sua seita como centro do Universo! E, com o poder que adquiriram, não hesitaram em colocar na fogueira qualquer pessoa que apresentasse teorias mais próximas da realidade. Entre goles de chope, ela reafirmava que a história das civilizações era uma sucessão de abismos onde toneladas de conhecimentos desapareciam! Quando Alyrio observou-a com certo pasmo, ela continuou afirmando que os gregos foram incapazes de recuperar os conhecimentos matemáticos dos egípcios. A idade média permitiu que toda a ciência grega se perdesse. A biblioteca de Alexandria ardeu em chamas e as piras da Inquisição queimaram pessoas, bruxas, que na realidade eram sacerdotisas, pulverizando com elas toda a sabedoria adquirida até então. Depois de vários chopes, ela fez uma preleção sobre a memória social e 26 cultural que tinha por função filtrar e não conservar o conhecimento. E o pior era a sociedade inteira aprovar estas filtragens e aderir com muita facilidade às censuras! - Quer um exemplo prático? - Seus olhos tornavam-se muito sérios. Veja, sabemos que a lua gira em torno da terra e sua órbita varia numa inclinação de cinco graus. Por isso não ocorre um eclipse solar ou lunar a cada lua nova ou cheia. Desde que mundo é mundo, a geometria que provoca um eclipse lunar se repete a cada dezoito anos e dez dias. Ou seja, cada eclipse que ocorre hoje, já ocorreu exatamente igual há dezoito anos e dez dias. Na Antigüidade, na Mesopotâmia já se sabia disso! Hoje, cada vez que se anuncia um eclipse lunar visível, jornais e telejornais sérios, aventam a possibilidade do fim do mundo! E todo o mundo leva a sério! Se algum cientista se der ao trabalho de ir à telinha explicar a geometria da órbita da lua ao redor da terra, as pessoas pegam o controle remoto e mudam de canal. E ela continuou falando que a perda do conhecimento era uma constante, tanto fazia se na época da Inquisição, dos estalinistas ou dos atuais sectários do politicamente correto americano, que procuravam eliminar dos manuais de história tudo o que pudesse aparecer como um atentado a esta ou aquela minoria racial, ou simplesmente o que não lhes convinha! Alyrio estava surpreso pelas idéias dela, e mais ainda com o fato de que ele aceitava tudo sem escárnio. Não fizera um único comentário jocoso. Começava a pensar em suas vidas passadas e na possibilidade de ter na memória da alma aquelas paisagens noturnas que tanto o impressionaram. Ela seguiu falando das buscas e pesquisas sobre as sacerdotisas. Era uma das suas paixões! A Inquisição era realmente um abismo onde toneladas de conhecimento desapareceram! As mulheres que pintava eram imagens vindas de lá. Com certeza, havia tido uma ou várias de suas vidas naquela época. Concentrava-se e captava as imagens. Eram aquelas sacerdotisas que transpunha para a tela. 27 Infelizmente conseguia captar somente a imagem. O conhecimento, sabe Deus em que abismo se abrigava! Já no final do jantar, ela falou de um casamento fracassado e comentou que ao invés de freqüentar um psiquiatra, ela pintava. Pessoas com grana se deitavam no sofá do analista para compreender o que tornava a vida insuportável. Domitila gostava de se deitar no próprio sofá e divagar, deixar o pensamento dar voltas e mais voltas pelo mundo e pelas tantas vidas que vivera. Era nesses momentos que a vida deixava de ser insuportável. E ainda conseguia melhorar quando começava a pintar! Desde aquele jantar, encontraram-se outras vezes. Aos poucos iam se enredando pelas autobiografias. Obviamente a vida a tinha feito engolir muitos sapos, mas Alyrio acreditou que, longe de querer fugir, ela tirava daí força para transpor para as telas suas neuras e para ser uma mulher interessante e atraente. Levantando do sofá, Alyrio se espreguiçou, bocejou. Era bom pensar em Domitila e deixar os próprios demônios num canto escondido da alma. Também era preciso dormir um pouco, pois o dia seguinte seria cheio. Olhou para seu micro. Não chegara a usá-lo, mas ele lhe fez companhia. Sua luz azulada indicava uma presença amiga. Fechou-o e foi para a cozinha. Pegou umas frutas da geladeira, bateu-as com leite no liquidificador e bebeu. Um copo de vitamina sempre o livrava da culpa dos tantos alimentos pouco recomendados pelos politicamente corretos e especialmente pela quantidade de álcool que ingeria diariamente. No dia seguinte, seguiria as ordens de seu contratante e começaria pela menina Melanie. Tinha a esperança de que ela lhe desse elementos mais palpáveis para a investigação. 28 7. Depois de procurar no guia uma rua escondida no miolo do bairro do Morumbi, Alyrio dirigiu-se para a casa de Melanie. Havia telefonado e conseguido agendar a visita ainda na parte da manhã. Ao chegar, assustou-se com a grandiosidade dos muros e portões de entrada. Foi anunciado por um guarda e os portões se abriram. Penetrou com o carro num pátio ajardinado digno de cenários holywoodianos. Estacionou e foi recebido por um mordomo que vestia calças pretas e camisa branca impecável. Notava-se que ainda não havia colocado a gravata e isto, ao mesmo tempo em que lhe trazia alívio, lhe fazia falta, pois ele passava a mão pelo pescoço como a buscá-la. O mordomo seguiu na frente e atravessou o portal envidraçado, percorreu um hall e indicou-lhe uma poltrona com uma mesura que poderia ser confundida com um pedido para dançar. Como se entrasse em um baile da época dos anos loucos, antes de se sentar, Alyrio percorreu a sala em ritmo de valsa lenta, extasiado com a pompa do ambiente. Por fim, seu corpo acomodou-se à poltrona e ele pôde observar o bom gosto da decoração. Quase de imediato uma porta se abriu e entrou na sala uma mulher com a aparência de uns quarenta e poucos anos que balançou o coração de Alyrio. Entrou sem olhar para ele e impôs sua esbelteza madura como se fosse a única presença digna de atenção. O fato de dizer seu nome e a que vinha apenas serviu para que a mulher, no esplendor da maturidade, se distanciasse ainda mais de Alyrio. - Um detetive da polícia já esteve aqui e tenho certeza de que ficou muito claro que minha filha não tem coisa alguma a ver com a morte da professora Rita! - A voz era enérgica. Seus olhos que estavam voltados para diferentes pontos no além, fixaram-se nos dele com muita intensidade. 29 - A senhora a conhecia? - Claro! Rita era a grande amiga de minha filha e freqüentava nossa casa! Melanie tinha o hábito de todas as segundas-feiras passar o dia e dormir na casa da professora. - A senhora não acha estranha uma amizade de uma menina de dezesseis anos com uma mulher de trinta e cinco? - Já estou numa idade em que o mundo não oferece nada de estranho. Ela fixou-o com um ar de surpresa fingida. - E acho que o senhor também! Alyrio sentiu-se de tal forma aturdido com o comentário que respondeu olhando obsessivamente para seus seios, até que ela se viu forçada a apalpar o busto, procurando uma possível indiscrição na roupa. - Minha conversa com sua filha pode ser com a sua supervisão. Não vou lhe causar nenhum constrangimento. A família de Rita não está satisfeita com as conclusões da polícia. Acreditam que o caso foi abandonado com muita rapidez. Querem uma investigação mais detalhada. Tenho certeza que sua filha pode me dar informações sobre os amigos em comum. Enfim, alguma pista que não tenha sido explorada. Além do mais, sendo uma amiga tão íntima, vai ficar feliz em poder ajudar! - Ela está no escritório. - A mulher fez algum gesto imperceptível e o mordomo reapareceu. - Que deseja dona Sônia, - o homem falou entredentes, mas foi suficiente para que Alyrio se fixasse no nome da mulher que lhe balançara o coração. - Acompanhe este senhor ao escritório. Ele quer falar com Melanie. Hoje ela não foi à escola e deve estar fazendo seus deveres escolares! Alyrio lamentou ter de deixar a companhia de Sônia. Ela já estava em pé como se tivesse muita pressa de se desvencilhar daquilo. Despediu-se com um leve 30 oscilar da cabeça, seguido de um fechar de olhos. O mordomo embrenhou-se por um corredor e abriu uma porta. Alyrio entrou. Melanie não estava envolvida com deveres escolares. Estava de costas para a porta, com o olhar perdido na claridade da janela. Toda a esbelteza de sua juventude era bem demarcada por uma calça jeans e uma camiseta de uma malha colante. Sua figura era esguia e delicada, chegando até uma cabeleira loura com mechas que caíam do alto de uma cabeça lançada para trás a fim de que a visão alcançasse mais longe a paisagem da janela. Alyrio pigarreou e ela voltou-se lentamente. Ele inspirou o ar e uma baforada acre penetrou-lhe as narinas. Não havia dúvidas quanto ao cheiro da maconha. Com certeza ela estivera fumando um baseado. Ele observou-a de frente. Ela era magra e sardenta. Tinha um brilho excessivo nos olhos, o nariz bem feito e a boca carnuda e bonita. Seus cabelos alourados e esvoaçantes reforçavam-lhe a candura de virgem de olhos grandes e verdes, cercados por uma pele clara que raramente via o sol. Talvez pela beleza da adolescente ou pelo odor forte da maconha, Alyrio foi subitamente possuído por uma insensatez que não sentia desde os dezoito anos. Um impulso de arrebatar aquela menina nos braços, levá-la até a monumental sala e dançar com ela valsas e mais valsas até sair pelo jardim e envolver-se pelas árvores e flores. Ele se demorou alguns momentos saboreando essa centelha insana que, para ele, nada tinha a ver com sexo, mas com a necessidade de manter destilada uma lembrança da juventude, de amores antigos, de riso, da liberdade de qualquer responsabilidade, de puro e animal deleite no mundo dos sentidos. Há muito, tudo isso deixara de fazer parte da sua vida, se é que algum dia realmente executara algum destes atos que não tivesse sido em sua fantasia. Então foi ele quem pigarreou e retomou a investigação. Viu-se sob a mira 31 do olhar da menina. Sentiu-se estudado, porém não parte por parte como ele havia feito, e sim globalmente. - Alyrio. - Ele chegou-se a ela estendo a mão, apresentando-se. O odor se intensificou. - Sou detetive particular. - Ah!... É por causa de Rita. - Sua voz estremeceu e seus olhos brilharam lacrimosos. - Isso é coisa daquele doutorzinho, irmão dela! Será que não vai deixá-la descansar em paz? - A família de Rita está intrigada. Acreditam que há algum mistério por trás deste assassinato. - E eles têm alguma idéia do que seja? - Não! Por isto me contrataram! - Alyrio percebeu um leve ar de alívio na expressão da menina. Ela foi até a escrivaninha e pegou uma foto. - Rita era uma pessoa maravilhosa. A sala cheirava a maconha e ela também. Com a foto na ponta dos dedos, Melanie fechou os olhos e sorria como se estivesse em êxtase diante do espetáculo interior a que seus olhos assistiam. - Me fale dela! - Alyrio pediu. Lentamente Melanie abriu os olhos e voltou-se para ele. - Não há muito mais além do que os jornais publicaram. Éramos amigas, muito amigas. E ela morreu por causa de dois pivetes que queriam se vingar. Tudo aconteceu exatamente como está nos jornais. - Você conheceu os assassinos? - Rita havia me falado sobre eles. Ela tinha o hábito de expulsar da escola os alunos envolvidos com drogas. Ele aspirou fundo o cheiro da maconha do aposento e não conseguiu 32 encaixar a professora sendo assassinada numa luta ferrenha contra alunos que vendiam baseados na escola. - Havia outros inimigos? Alguém que instigasse os rapazes? - Ele perguntou e notou que ela voltava a se perder na paisagem da janela. Alyrio deixou-se cair no sofá de couro acolchoado, onde afundou num conforto que lhe permitiu contemplar tranqüilamente a garota deslumbrada pelo que via além da janela ou dentro da própria alma. Os jeans mostravam as pernas torneadas, e a blusa de malha colante evidenciava os seios pequenos de mamilos inacabados. O colo e o pescoço eram cobertos por uma penugem. Ocorreu-lhe que nem a mãe, nem os empregados percebiam aquela menina completamente chapada pela maconha! Ou será que percebiam e já não havia muito que fazer? Depois de algum tempo, ela se voltou para Alyrio adivinhando a contemplação. Ele não desviou o olhar. Olhos nos olhos, observaram-se até que ela se chegou ao sofá, sentou-se ao seu lado e pousou a cabeça contra o seu peito. Depois de alguns suspiros entediados, ela começou a apalpar Alyrio. Palmilhou-lhe o peito como se o tacto fosse o sentido que lhe recuperava a realidade. Numa reação involuntária, ele retesou os músculos. Se fosse Sônia ao seu lado, haveria uma conquista lenta, cheia de revelações. Se ela entrasse naquele momento e visse a filha tão naturalmente recostada sobre ele e acariciando-o, com certeza ficaria enfurecida. Quando conseguiu controlar os músculos, Alyrio revirou-se na poltrona e insinuou um abraço, que era alguma coisa que protegia a garota de seus temores secretos. - Deixe Rita dormir em paz. - A voz de Melanie era uma súplica pastosa. - Sua família a perseguia viva e vai continuar a persegui-la porque sentiam muita inveja, continuam a sentir inveja! Ela era uma mulher maravilhosa! Lutava por um mundo melhor! Melhor para todos! Se eu pudesse iria sugerir que a canonizassem. 33 Poucos santos se dedicaram tanto à humanidade como ela. Ela sorria, os olhos fechados, as mãos largadas sobre o assento. - Estou tão leve... Se você visse o que eu vejo! Sei que o espírito de Rita está pairando por uma estrela cheia de luz. De lá ela vai continuar a missão de melhorar este mundo que não passa do nosso inferno! Alyrio percebeu que não iria conseguir nada além de saber que não era a primeira vez que ela se drogava. O que era mais um dado a não fazer sentido na luta da professora e muito menos na sua investigação. Ele se desvencilhou de Melanie e dirigiu-se para a porta. Antes de sair voltou-se. - Quando a maconha desaparecer da sua cabeça, gostaria de conversar com você, - falou e estendeu-lhe um cartão com seu telefone e endereço. Esparramada no sofá, ela esticou o braço e pegou o cartão, na mesma atitude extasiada. Ele saiu devagar, com os olhos rastreando toda a casa na esperança de reencontrar Sônia, mas foi inútil. O mesmo mordomo o esperava na sala e o acompanhou a passos marciais até o carro. Bateu a porta com firmeza e acompanhou o carro com o olhar até que os portões se fechassem. 34 8. Ir do Morumbi ao centro da cidade requer um bom tempo no trânsito. Alyrio ligou o radio. Por coincidência estava na hora das principais notícias do dia fornecidas a cada meia hora. Normalmente, ele ouvia com muita atenção e naquela hora chegou a aumentar o volume do radio, mas não conseguiu fixar nenhuma das palavras ditas. Sua atenção não se concentrava no que ouvia. Estava nas pontas soltas daquele caso. Os dois assassinos, um estava morto e o outro desaparecido. Os jornais noticiaram que o assassinato tinha como motivo o fato da professora perseguir os alunos envolvidos com drogas, mais especificamente os que vendiam drogas dentro da escola. No entanto, sua melhor amiga era uma menina rica que ele encontrara completamente chapada, recendendo a maconha. Na escola em que lecionava todos os professores e a diretora confirmaram o que estava nos jornais: Rita era uma ferrenha combatente da droga. Afirmaram que era uma batalhadora, que tinha como meta melhorar o nível dos alunos. Sistematicamente fazia campanhas nas empresas da região angariando fundos para a escola. Deviam a ela diversas melhorias! No entanto, não só a diretora, como os professores seus colegas, estranhavam que ela não guardasse coisa alguma no armário além do livro de chamada. Alyrio enfrentava o trânsito pensando nos magníficos salões da casa que acabava de sair e numa valsa dançada ora com a filha e ora com a mãe. A figura de Sônia apareceu e firmou-se em sua cabeça. Aquela mulher cheia de classe, que deveria ser uns poucos anos mais velha do que ele, alvoroçara-lhe os instintos. Enquanto ele sentira-se aturdido pela mãe, a menina atirara-se em seu colo e deixou-o constrangido. A juventude era assim. Os jovens da modernidade tinham a liberdade de 35 viver se esfregando uns nos outros e fazendo sexo como os cachorros de rua. Na falta, ou mesmo diante da efemeridade do prazer, entregavam-se à droga! Terminou o trajeto intrigado com a lembrança da visita ao apartamento da finada. Descobrira muito pouco sobre sua vida, mas encontrara um quadro pintado por Domitila. Era uma coincidência de tirar o fôlego. Iria passar por seu ateliê logo depois do almoço. Seu pensamento já enveredava pela figura de Domitila quando se viu entrando no estacionamento. Deixou o carro com o manobrista e andou até o prédio onde era seu escritório. Os prédios antigos do centro de São Paulo não possuíam garagens subterrâneas. Há poucas décadas ninguém poderia prever que os autos seriam tantos que não caberiam nas ruas! Tomou o elevador e subiu. No seu andar, o sol ainda não estava em posição de refletir o vitral, limitava-se a iluminá-lo. A porta do escritório de George estava fechada, sinal de que havia algum de seus clientes lá dentro. Alyrio deu três batidinhas leves na porta, que eram um código a informar que havia chegado e que estava esperando para a próxima refeição que, no caso, seria o almoço. Afinal em Sampa, uma das grandes atrações era os bons restaurantes! Ele e George tinham em comum, além da amizade, o gosto pelos bons pratos e pelas boas bebidas. Enquanto esperava, ligou o micro e escreveu sobre a visita a Melanie. Escrevia as últimas frases quando Jéferson entrou. - Dá para perceber que há um novo caso! - Jéferson colocou o capacete sobre a cadeira, revirou a mochila e separou os papéis a serem entregues ali na agência Cobra. - Tenho trabalho para você. - Alyrio desligou o micro. - Vai pagar quanto? - Jéferson esfregou as mãos. Sem demonstrar ter ouvido a pergunta, Alyrio remexeu os bolsos e tirou o papel que o delegado havia lhe dado com o endereço de quem reclamou o corpo do 36 suposto assassino que se suicidara. - Assassino que se suicida na cela? - Jéferson franziu a cara esboçando uma careta. - Quero que você faça amizades na área e descubra alguma coisa. - O que exatamente? - Não sei! Coisas como o tipo de pessoa, se foram familiares que reclamaram o corpo, se o cara realmente estava envolvido com drogas. Se estava, o que fazia, a quem estava ligado. - A biografia completa! - Jéferson andou até a mini-cozinha, abriu a geladeira e pegou uma lata de cerveja. Mostrou-a ao mesmo tempo pedindo permissão para pegá-la e oferecendo uma para Alyrio. - Não vou beber. Acho que nem vou esperar George para o almoço. Vou comer um sanduíche e continuar. - Alyrio pensou na visita a Domitila. Naquele momento pareceu-lhe a coisa mais importante saber por que havia uma pintura dela na casa da professora assassinada. - Você sabe que é perigoso se aproximar de traficantes e seus servidores! - Jéferson deu um gole direto na latinha e suspirou em deleite. Olhou para Alyrio, mas não conseguiu demovê-lo da idéia de não beber uma cerveja. - Diga quanto você quer, que falo com meu cliente! - Vou dar uma olhada na área e te falo! – Jéferson terminou a cerveja e em seguida informou: - O cliente de George chegou há pouco. Acho que não vai sair tão cedo. Passei pela porta e a conversa ainda está animadíssima. Alyrio sabia que Jéferson havia ficado ouvindo na porta e suas informações jamais falhavam. Tinha faro para perceber as conversas longas. Era melhor mesmo deixar o almoço para outro dia. Desceu com Jéferson e os dois entraram numa lanchonete. 37 Enquanto comiam um sanduíche, Alyrio comentou o quanto achara estranho encontrar uma menina rica e drogada como a melhor amiga da professora assassinada. - E na casa ninguém sente o cheiro da maconha? - Aparentemente não! - Por isso que é bom viver em bairro pobre. Se alguém puxa fumo, a vizinhança toda sente o cheiro e sabe de onde vem. Nessas mansões, onde cada um vive a sua vida, ninguém sabe o que está ocorrendo no quarto ao lado! - Jéferson balançou a cabeça. - Ou se sabe, prefere pagar um psiquiatra ao invés de ter de lidar com o problema. Alyrio mastigou o sanduíche com pressa. Tinha urgência de falar com Domitila. Saber o que fazia seu quadro na sala da professora, ou simplesmente continuar um relacionamento que começava de uma forma bastante agradável e ele conseguia pressentir que havia muito pela frente. Despediu-se de Jéferson e dirigiu até sua casa pensando na pintora. Desde a primeira exposição de pinturas em que entrara por puro acaso, Domitila o fascinava. Não se tratava simplesmente de uma atração sexual, embora ela existisse e fosse bastante nítida. Tampouco Domitila se oferecia como uma resposta aos seus desejos de um dia talvez reconstruir sua vida. Com todos aqueles assuntos mirabolantes de conhecimentos perdidos ao longo da História e sua cultura incomum, ela era uma pergunta que o convocava sem que soubesse exatamente a quê. Diante daquela investigação, tinha uma pergunta muito clara em mente. O que fazia um quadro que retratava uma paisagem noturna na sala da professora assassinada? Seriam amigas? Ou mesmo conhecidas? Precisava de respostas com urgência! 38 9. No tempo em que era casado, ao entrar em casa, Alyrio era recebido pela mulher e pelos dois filhos. Depois da separação era recebido pela secretária eletrônica. Era como se ela pudesse pressentir sua chegada, ouvisse seus passos pela garagem, reconhecesse o barulho das chaves destrancando a porta, e a única coisa que sabia fazer era piscar sua luz vermelha. E pelo tanto que piscava naquele momento, como uma esposa carente, parecia exigir urgência. Era a voz de Melanie. Estava ofegante, precisava falar com ele. Era urgente, era urgentíssimo! Ele se perguntou se ela resolvera revelar alguma prova ou simplesmente estava entediada da vida. Vacilava entre ir para o banho ou ligar para Domitila quando o som estridente da campainha perpassou por seu corpo como uma corrente elétrica. Olhou pela janela e viu uma garota de cabelos louros esvoaçantes do outro lado do gradil. Nem tivera tempo de responder ao recado e ela já estava na sua porta. À medida que se dirigia ao portão foi se concretizando a imagem de Melanie. - Posso entrar? - Sua candura de virgem se acentuava com o tom de súplica. Com o gesto de destrancar e abrir o portão ele a convidava. Ela entrou e esquadrinhou a casa item por item, admirando-se com tudo o que via. Era como se em sua vida jamais tivesse visto sofás ou cadeiras semelhantes as que via naquela sala. Por fim sentou-se e seu cabelo caiu como uma camada de mel sobre as feições sombreadas. Ele percebeu que ela chegara para ficar e sentiu uma pontada de decepção por seu encontro com Domitila ter de ser postergado, mas afinal fora contratado para uma investigação. Precisava saber mais sobre aquela menina e sobre a professora 39 assassinada! Alyrio não sabia bem o que fazer e resolveu desarrolhar uma garrafa de vinho. Serviu duas taças e estendeu-lhe uma delas. - Não bebo, sou naturalista e vegetariana. Na tentativa de atinar como uma excelente bebida, cuja matéria prima era uva, uma fruta nascida da terra, poderia deixar de ser natural ou vegetal, ele emborcou o vinho de sua taça e sentou-se com a outra nas mãos. - Queria te dizer que de alguma forma preciso ajudar. - A voz de Melanie era uma súplica. - Desde que vi o cadáver de Rita, tudo o que sinto é dor e tristeza. Sabe, gostei de você! Gostei e estou gostando cada vez mais. Talvez por isso sinta vontade de te dizer tudo o que sei. - Isto vai ser muito bom para as investigações. - Alyrio fixou os olhos nos dela. Ela abriu a mochila que trazia nas costas e tirou uma agenda. Abriu-a numa página e deu para que Alyrio lesse. Depois de alguns versos que ele pouco entendeu, abaixou a agenda e comentou: - Nada mal. - Não estou pedindo uma opinião literária! Estou lhe dando para que você sinta o grau de amizade. Rita escrevia em minha agenda! Será que você entende! Ela era a única pessoa do mundo a escrever na minha agenda! Fazia versos para mim. E eu também compunha muitos versos para ela. Fazendo uma careta, ela tomou a agenda de suas mãos e guardou-a na mochila. Alyrio sentiu uma imensa curiosidade em ler tudo. Naquela agenda deveria ter algo mais do que versos disparatados e apaixonados. - Sou um detetive particular e não um psiquiatra. Gostaria de saber o que 40 vocês duas faziam juntas, as pessoas que conheciam e com as quais saíam. E especialmente as que não gostavam de Rita. Melanie fez que não ouviu. - Liga o som. - Ela pediu num tom de ordem. Ele se levantou pensando que som uma menina daquelas gostaria e encontrou um CD para meditação. Talvez fosse o ideal para meninas naturalistas vegetarianas! Imediatamente percebeu que ela se dispunha a uma meditação metafísica. Cruzava as pernas em posição budista, retesava a coluna, desentorpecia os braços fixando as mãos sobre os joelhos. Por fim fez alguns movimentos para se certificar de que a cabeça e os ombros estavam perfeitamente relaxados. - Que bom ficar aqui deste jeito! Se você morasse na tumba em que eu moro, daria valor a esses momentos. - Ela pronunciou sem abrir os olhos. - Tumba... - Alyrio repetiu mentalmente e relembrou a mansão com salões magníficos, rodeada por jardins esplendorosos e com Sônia circulando por eles. - Lá dentro tudo é frio, rígido. Uma tumba! - Melanie entreabriu os olhos e encarou Alyrio disposta a dizer algo transcendental. - Quero ir embora da minha casa. Não vou mais morar lá! Enquanto ele esperava o choque passar, ela voltava ao estado de relaxamento meditativo e repetia o desejo de desaparecer da vida de seus familiares. - Não sei onde eu me encaixo nessa história. - Ele arriscou timidamente. Fui contratado para descobrir o que realmente ocorreu no assassinato de Rita. Pensei que você viesse me dar informações. A menina descruzou as pernas, deslizou pelo sofá e repousou a cabeça em seu colo. Lentamente levantou os braços e sem deixar de fitá-lo acariciou-lhe o rosto. - Quero ficar aqui na sua casa. Deixa... Por favor... - NÃO! - O não foi dito num ímpeto, e Alyrio se assustou que aquela 41 decisão saísse com tamanha fúria pela sua garganta, sem passar conscientemente pelo cérebro. - Ao menos esta noite... - Seus olhos de súplica perturbavam-lhe os sentidos. Ela colocou as mãos sobre seu peito. Deixou-as entrarem pela abertura da camisa. Acariciou levemente seus pelos do peito. A figura de Sônia montou-se com nitidez na mente de Alyrio. Aquela mulher o impressionara e sua filha, uma adolescente egocêntrica e frágil, estava ali se oferecendo a ele. Tudo o que ele precisava eram informações sobre a professora assassinada. Não queria aquela menina enfiada em sua casa! Sabia que o menor envolvimento traria problemas e dos grandes. Como uma gata, Melanie foi se enroscando nele e acariciando-o. Alyrio não tinha a menor intenção de levar aquilo adiante e tampouco sabia como pará-la. Num determinado momento, como se lembrasse de algo muito importante ela recolheu as mãos. Fitou-o com um estranho sorriso, levantou-se do sofá e sentou-se numa posição budista ao lado da mesinha de centro. Abriu a mochila, revirou-a e tirou alguns objetos. Abriu espaço entre a garrafa de vinho e as taças, depositou o espelho com um cuidado especial e em seguida abriu lentamente um papelote, do qual fez escorrer um pozinho branco desenhando listas sobre o espelho. Tornou a revirar a mochila e tirou uma esferográfica de plástico transparente. Retirou-lhe a carga e depositou o canudo cristalino junto ao espelho. Só então se lembrou da existência de Alyrio e pegou-o pela mão obrigando-o a sentar-se ao seu lado. Ele sentia a cabeça vazia. Não lhe ocorria uma única reação que não fosse obedecê-la. Tudo aquilo acontecendo na sua casa! Não que ele fosse um puritano, mas jamais se envolvera com drogas e muito menos com adolescentes drogadas! Como se executasse um ritual sagrado, ela apertou uma das narinas com 42 um dedo e encaixou na outra o canudinho da esferográfica para aspirar a cocaína. Com um sorriso de outra galáxia, ofereceu o dispositivo a Alyrio. Recebeu com um sorriso calmo sua recusa e voltou a aspirar a outra linha. Ele reencheu a taça de vinho e bebeu enquanto ela terminava a ração de pó branco. Mais uma vez ele reencheu a taça e emborcou. Bebia não pelo prazer de degustar o vinho, mas precisava de um pouco de aturdimento para enfrentar aquela situação. - Você faz isso com freqüência? - Foi a pergunta que lhe ocorreu, embora conhecesse muito bem a resposta. Muito lentamente ela fechou e abriu os olhos. Como se retornasse de um sonho maravilhoso, sem requinte algum, tirou toda a roupa até ficar nua. Então tomou as mãos de Alyrio e atraiu-o para ela. Ergueu-o, ajudou-o a se livrar das roupas e colou seu corpo alvo e cheio de juventude junto à pele surpresa do homem. Alyrio teve de exigir-se o desejo. Deixou-a por uns segundos para ir ao seu quarto buscar um preservativo, as palavras gravidez e AIDS conseguiram se sobrepor a toda aquela loucura. Retornou tendo que se exigir mais desejo. Ela colava-se à sua pele e fazia-lhe todo tipo de carinhos sem que fizesse diferença quem era o parceiro e sem que ele se sentisse excitado. Por fim as mãos de Alyrio foram se embrenhando pela farta cabeleira e envolvendo-se em carinhos mais ousados. Fizeram sexo a uma distância de órbitas. Quando recuperaram a visão das paredes, ela pareceu sair do sonho. Segurou a mão de Alyrio e com os olhos afogueados dos lobisomens, afirmou que quando cheirava cocaína, sentia-se uma adivinha, vinham-lhe impressões do futuro próximo. Naquele momento, o fato dele ter surgido em sua vida e de terem-se amado dava-lhe a certeza de que sairia da própria casa e viria viver com ele. Alyrio ouviu sua voz pastosa sem ter o que responder. Não se sentia bem 43 consigo mesmo. Mesmo sem ter se servido da cocaína ele tinha uma pista bem nítida para os próximos acontecimentos e uma coisa ele tinha certeza: ela não se instalaria em sua casa. Levantou-se do emaranhado do sofá e buscou a cueca. Depois foi catando as roupas e se compondo. O silêncio da menina fez com que se voltasse. Ela dormia profundamente. Ele foi ao seu quarto, trouxe um cobertor e cobriu-a. Foi até a geladeira e pegou uma garrafa de água. Emborcou muitos goles até que conseguiu parar com as reflexões pegajosas sobre o que acabava de fazer. Era preciso agir. Pegou a mochila, abriu-a e revirou-a. A única coisa importante era a agenda. Ele levou-a para a mesa da cozinha, sentou-se e enquanto encharcava-se de água, leu. Não precisou de muitas páginas para perceber que Rita e Melanie eram apaixonadas uma pela outra e transavam entre si e com outros parceiros e parceiras. Também ficou muito claro que as duas se drogavam. Tudo indicava que levavam uma vida desregrada, mas não havia coisa alguma que indicasse grandes inimigos ou um assassinato, nem mesmo algo que Rita escondesse e que alguém buscasse em seu apartamento. Havia o endereço de pessoas que participavam de festinhas e do uso de drogas. Alyrio anotou no micro tudo o que havia de importante e todos os nomes e telefones. Pelo menos havia por onde começar. Numa segunda leitura, um pouco mais cuidadosa, percebeu que as páginas referentes às segundas-feiras eram marcadas por palavras soltas e versos, mas nenhuma descrição do que fora feito durante o dia. Havia versos sobre terra e luar e especialmente a menção do barulho das águas. Vieram-lhe à mente as palavras de Sônia contando-lhe muito naturalmente que Melanie dormia na casa de Rita todas as segundas-feiras. Talvez fosse o dia da semana em que, sem deixar suspeitas, as duas se drogassem à estupefação. Daí os versos! Alyrio passou boa parte da noite analisando, lendo e relendo aquela 44 agenda. De qualquer forma, ler tudo aquilo fez com que se sentisse menos culpado. Afinal a candura de virgem de seus olhos, disfarçava muito bem as orgias a que Melanie se dedicava. Também ajudava a não deixar que fragmentos da própria vida aflorassem. Quando o dia clareou, ele foi para a cozinha e preparou café, esquentou leite e fez torradas. Então voltou para a sala e sacudiu-a até que ela voltou de um mundo de onde chegava desgrenhada, com os olhos fosforescentes dos lobisomens dentro de órbitas arroxeadas e com a alma sabe Deus aonde. Alyrio começou por um café bem forte, depois fez com que ingerisse torradas cheias de manteiga e geléia com várias xícaras de café com leite. Ajudou-a a se vestir, chamou um táxi e levou-a até a porta. Ela fez tudo com gestos mecânicos e obedientes. No entanto, ao se ver do lado de fora da casa, ela retesou o corpo e tentou retornar. Tentou afastá-lo da sua frente e abrir caminho de volta, mas Alyrio foi muito firme. Usando de toda a força física que possuía, colocou-a dentro do táxi que acabava de estacionar, deu ao chofer o endereço e fechou a porta. Ordenou que o chofer trancasse as portas e, por nada deste mundo, a deixasse sair antes do endereço fornecido. O carro partiu e ele entrou em casa. Com as forças que lhe restavam fechou o micro e foi para o quarto. Precisava dormir um pouco, antes de começar a investigar os nomes da agenda. 45 10. Alyrio despertou na hora do almoço. Estava atordoado e faminto. As imagens do que ocorrera entre ele e Melanie vieram-lhe à mente e tentou afastá-las. Precisava tratar primeiro da fome. Tirou do congelador um pacote de Chopp Suey de frango. Seguiu as instruções, colocando o conteúdo numa panela de teflon com um pouco de água, deixando cozinhar por oito minutos. Estava farto das lasanhas e outros macarrões congelados que colocava no microondas e comia como os cachorros e os gatos comem suas rações. Estava numa fase em que cozinhar, ver o alimento borbulhar na panela parecia-lhe mais saudável. Passou os oito minutos mexendo o alimento, observando o borbulhar e concentrado na transformação das cores dos ingredientes à medida que se hidratavam. Deixou o vapor chegar-lhe até o rosto e molhá-lo. Desligou, esperou esfriar e comeu com vagar. Uma massa pesada inundava-lhe o cérebro e ele não deixava um único pensamento aflorar. Quando terminou, colocou o prato e a panela na pia, junto com as xícaras que já haviam ficado do café e em seguida telefonou para Domitila. Desta vez o telefone atendeu e ela ficou muito feliz que ele tivesse tempo de passar por sua casa. Alyrio ligou também para o primeiro nome da lista da agenda de Melanie que era o doutor Maurício Penna Moreira. Conseguiu falar com sua esposa. Ao mencionar o assassinato de Rita, ela mostrou-se bastante interessada no assunto e marcou um encontro para aquela noite, em sua residência. Antes de sair para a casa de Domitila, Alyrio tomou um banho e esfregou-se com bucha e sabonete até a pele arder e ficar vermelha. Sentia que sua pele havia servido de superfície de aderência para os maus fluidos que aquela menina trazia no rastro da droga. Sentir a água lavar-lhe o corpo e escorrer pelo ralo trazia-lhe alívio. Era como se visse escorrer junto com a água um pouco da mágoa e da culpa 46 que lhe ficara de ter se deixado envolver num ato sexual com uma guria drogada que não lhe despertava o menor desejo. E pior, filha de uma mulher que lhe pusera os instintos em polvorosa. Vestiu-se com capricho. Domitila vivia numa casa a algumas quadras da sua, e ele resolveu caminhar até lá. Nas proximidades de Avenida Paulista, as dificuldades para estacionar o carro eram tantas que talvez tivesse de deixá-lo a uma distância maior do que sua própria casa. E também porque sair pelas ruas e sentir o ar frio perpassar-lhe o corpo ajudava a desvanecer a impressão da noite anterior. Incrível que em São Paulo, na região da Paulista, precisamente na rua Padre João Manuel ainda existissem vilas, não condomínios fechados tão em moda, mas vilas antigas, com casas simpáticas e rodeadas de edifícios. Era num dos sobrados da vila que vivia Domitila. Ela recebeu-o e levou-o para o andar de cima. O sobrado fora inteiramente reformado para atender as necessidades da pintora. No andar térreo ficava a moradia e o andar superior era o ateliê. As paredes dos três dormitórios haviam sido derrubadas formando um único e espaçoso ambiente todo pintado de branco. O cômodo fechado que restava ao lado da escada era o banheiro. Na parede do fundo havia uma ampla janela dando para o minúsculo quintal e o fundo de outras casas. Da janela também se podia ver diversos edifícios e algumas torres com as antenas da Avenida Paulista. Controlando a emoção de revê-la, Alyrio se sentou e aceitou um café. O ateliê era suficientemente amplo para conter alguns cavaletes, uma mesa de trabalho e um sofá. As paredes estavam cobertas por quadros sem moldura. Havia também uma estante repleta de revistas e livros de arte. Enquanto Domitila acionava a cafeteira elétrica, Alyrio resumiu o caso que mal começava e já se mostrava bastante intrincado. Falava observando seus contornos delineados na luz da janela e sentia uma poderosa alquimia agindo sobre 47 seus sentidos. - A gente lê e assiste na TV tantos assassinatos que já não se importa, a menos que se conheça algum dos envolvidos. No caso de Rita, ela esteve aqui acompanhando dois compradores de meus quadros, e acabou comprando um para ela. Ao ler a notícia no jornal, claro que me lembrei! Depois de analisar os nomes que Alyrio coletara da agenda de Melanie, ela voltou a falar: - Destes nomes que você tem na lista, conheço Maurício Penna Moreira e Lúcio Guimarães. Foram a uma das minhas exposições e depois vieram aqui. Na época eu estava expondo as paisagens noturnas. A fase das sacerdotisas estava em execução. Aliás, não é fase, é o trabalho da minha vida que intercalo com algumas outras fases! Ela caminhou até uma estante, revirou alguns álbuns, tirou um deles. Aproximando-se de Alyrio, virou algumas páginas e apontou: - Maurício comprou este. - Ela marcou a página e continuou virando, Lúcio, este. O que você viu na casa de Rita é este! Costumo anotar o nome e o endereço das pessoas que compram meus quadros. Alyrio notou que os endereços coincidiam com os que anotara da agenda de Melanie. Observou, com minuciosa atenção, cada uma das fotos que reproduziam as pinturas. Aquelas paisagens a princípio pareciam pacatas cenas escurecidas pela noite, mas olhando-se com mais vagar, ficava claro que a tranqüilidade abrigava trágicos acontecimentos. Voltando o olhar para a janela do ateliê, teve a certeza que os fundos de quintal e janelas de apartamentos vistos dali não eram a fonte de inspiração para Domitila. Aquelas paisagens vinham do fundo da sua alma, faziam parte dos seus sonhos e da sua personalidade. 48 Um cheiro bom de café invadiu o ambiente e o barulho da água em ebulição cessou, o que indicava que o café estava pronto. - Maurício e Lúcio estiveram aqui no meu ateliê com Rita e Melanie. Eles me pareceram amigos bastante íntimos. - Domitila falava enquanto chegava-se à cafeteira e servia o café. - Eram pessoas bem interessantes e conversamos um bom tempo. Contaram muitos casos extravagantes como jantar com figuras que se tornaram importantes, no tempo em que era chique fumar baseados com poetas de esquerda. Todos eles eram muito divertidos, talvez porque pessoas ricas sempre possam se dar ao luxo de coisas boas. Como comprar meus quadros! - Ela lançou-lhe um olhar maroto. - Naquela noite compraram três quadros e pagaram com grana! Dinheiro vivo! Estas coisas são raras de acontecer e a gente não esquece! Em geral as pessoas pechincham ao máximo e depois ainda pagam com cheques a serem descontados por diversos meses. Ela entregou-lhe a xícara com o café e Alyrio sentiu o contato de seus dedos. O desejo manifestou-se como um pulsar da nuca que foi descendo pela coluna e ele sorveu um gole bem quente do café. - Eles examinaram meus quadros com vagar, fizeram perguntas. Estavam interessadíssimos em saber de onde eu tirava inspiração para pintar as paisagens noturnas. - Aparentemente indiferente ao seu desejo, Domitila continuava falando: Afirmaram que essas paisagens lembravam fatos que ocorreram na cidade de São Paulo quando foi fundada a escola de direito do Largo de São Francisco. Ao ver minhas pinturas, tiveram a nítida sensação que eu vivi aqui na cidade de São Paulo no século dezenove e o que retrato vem do fundo da minha alma. São lembranças de outras vidas! Alyrio suspirou. Não porque achasse bobagem o que ela estava falando, mas porque atingira um ponto da vida em que tudo poderia ser, ou mesmo não ser. 49 - Você sabe como me interesso pela história da minha alma, - ela continuou. - Quando eles mencionaram vidas passadas, fiquei curiosa. Afinal, não vi em lugar algum essas paisagens. Elas surgem na minha imaginação e eu as retrato. Ela ficou um tempo pensativa, depois falou: - Você, que é detetive, pode investigar minha alma e descobrir! - Já faço muito investigando fatos... Almas são de outro departamento! Ele sorriu. Por um momento pensou no tempo em que investigava a própria alma, mas não deixou que aquilo viesse à tona. - Na noite em que estiveram aqui, Maurício e Lúcio me deram uma aula sobre os poetas românticos. A maioria deles cursou a primeira escola de direito que existiu em São Paulo. Na época, os moços imitavam Byron, o poeta inglês, promovendo orgias sem fim pela cidade. E São Paulo se prestava a isto, pois era cheia de garoas e nevoeiros. Alyrio escutava-a enquanto se lembrava da grande quantidade de livros de poetas da fase do romantismo no apartamento de Rita. - Sabe que depois disto eu até comprei alguns livros sobre a história de São Paulo, especialmente sobre a escola de direito do largo de São Francisco que hoje é parte da Universidade de São Paulo. - Ela sorriu. - Talvez eles tenham razão e eu tenha mesmo vivido naquela época. A história me pareceu muito familiar. Ocorreu a ele que o nome dela era familiar à época. - O salão mais badalado, talvez único na cidade daquela época, era o da sua xará, dona Domitila de Castro e Canto, Marquesa de Santos, que era ex-amante do imperador! Aqui em São Paulo, ela vivia com a maior fortuna da área, o Brigadeiro Tobias. Recebia as pessoas mais importantes da cidade para saraus em sua casa e dava o maior apoio para os estudantes! Afinal eles faziam parte da elite não só da cidade, mas muitos deles pertenciam às famílias ricas de outros Estados. 50 - Por algum motivo minha mãe escolheu para mim este nome famoso naquela época. Não posso ter certeza se minha mãe conhecia a história ou simplesmente gostou do nome: Domitila! - Ela ficou pensativa. – Depois que o Dr. Maurício e o Dr. Lúcio compraram meus quadros e falaram tanto sobre a época, concentrei-me no assunto. Já havia tentado algumas regressões a vidas passadas, mas sempre me concentrava nas sacerdotisas. Depois daquela conversa voltei meu pensamento para a história de São Paulo na época da fundação da Faculdade de Direito. - E conseguiu alguma coisa? - Alyrio levantou-se e foi até a cafeteira. - Talvez... - ela falou enquanto servia-se de mais um café. – Mas nada muito nítido. Alyrio observou o quadro que Domitila estava pintando. Diante de mais uma de suas sacerdotisas alucinadas, perguntou-se que conhecimentos supranormais aquela mulher possuíra e que se perderam em abismos quando um raio riscou o céu e um trovão estremeceu a terra. Ela se encolheu um pouco, olhou pela janela, e falou como se estivesse lendo seus pensamentos: - A história das civilizações é uma sucessão de abismos onde toneladas de conhecimentos desaparecem! Por vezes, quando me deito no sofá e penso na vida, acabo achando mais interessante a memória biológica dos animais do que a memória histórica dos homens! Qualquer pessoa que viva nos dias de hoje e tenha um mínimo de consciência, vai perceber, ao longo da própria vida, o tanto que vai se perdendo de conhecimento para se atender ao politicamente correto do momento. E hoje que se tem toda a mídia e os canais de informação! Imagine no tempo da Inquisição ou mesmo quando a Marquesa, minha xará, vivia em São Paulo! Ele ia dizer que os canais de comunicação eram os principais responsáveis pela tal filtragem em que se perdia o conhecimento, mas não pôde 51 prosseguir, porque uma trovoada extemporânea ao inverno retumbou na casa e saiu rolando pela cidade. As luzes se apagaram. Um calafrio sobrenatural estremeceu a terra. Um aguaceiro bíblico os afastou do resto do mundo. Os dois se aproximaram da janela. Contemplando por cima dos telhados havia a escuridão e folhas revoando, enlouquecidas pelo vento. Ela abaixou a vidraça e avisou que iria buscar uma vela. Enquanto ouvia o ruído dela remexendo alguma gaveta, Alyrio sentia o poder de sedução daquela mulher como um fluído material que se espalhava pelo ar. Depois de encontrar a vela, ela retornou e viu os olhos de Alyrio fosforescentes de desejo, alheios aos sortilégios da falsa noite. Acendeu a vela e colocou-a num suporte. A chama trêmula criou um clima de claridades e sombras. O estalo de um relâmpago fez com que ela se encolhesse e ele abraçou-a. Ela não se mostrou sensível à audácia e envolveu-o com seu feitiço. Seus corpos se buscaram. Deixaram que o desejo irrompesse como um vendaval de novidade. Era a memória biológica agindo e, sem que tivessem de fazer qualquer esforço em busca de conhecimentos perdidos, indicava-lhes o que fazer. Só se deram conta da extensão e da intensidade da alquimia quando a chuva passou: corpos entrelaçados, roupas espalhadas, luz do final de tarde entrando pela janela. A luz da vela ainda tremulava num canto do ateliê. Os dois se vestiram. Ela foi buscar duas garrafas de cerveja que beberam num silêncio cheio de sorrisos. Estavam mortos de fome. Caminharam até uma padaria e comeram um sanduíche. Ele marcara encontro com Dr. Maurício Penna Moreira mais à noite e não podia convidá-la para jantar. Antes que Alyrio se despedisse, ela entregou-lhe o convite para a nova exposição. Era uma coletiva com outros pintores, ela exporia paisagens noturnas e sacerdotisas. Iria enviar convites a todos os conhecidos. Especialmente aos potenciais 52 compradores de quadros! Com certeza os amigos de Rita viriam. Alyrio foi para a casa com a certeza de que amava aquela mulher e naquele momento teve um lampejo que seria interessante tê-la vivendo ao seu lado para toda a vida. Sorriu da sua ingenuidade. 53 11. - Ah... O senhor é o detetive que ligou... A porta do luxuoso apartamento foi aberta e Alyrio viu-se diante de uma mulher com ares muito sérios, vestida num elegante tailleur, como se estivesse pronta para sair. Ele estendeu-lhe a mão e ela retribuiu o cumprimento. Antes que dissesse qualquer coisa ela esclareceu que Maurício, seu marido, o esperava na biblioteca. Atravessando a imensa sala, ela abriu uma porta e fez um gesto que Alyrio entendeu que era para que a seguisse. Ele entrou, ela lançou-lhe um sorriso de cortesia e fechou a porta. Alyrio viu-se numa biblioteca com uma mesa de escritório que parecia um trono isabelino para os cotovelos de um intelectual que escrevesse com pena de ave. Os tapetes eram tão aconchegantes que acariciavam os pés mesmo dentro de sapatos. Por todas as paredes havia armários carregados de livros. Somente em frente à escrivaninha, havia uma parede parcialmente sem prateleiras onde se alojava um quadro de Domitila. Quem se sentasse na poltrona da escrivaninha podia ver à sua frente uma das paisagens noturnas. A imagem da foto daquela paisagem noturna no álbum de Domitila veio-lhe à mente. No entanto, ao vivo, a pintura era muito mais expressiva. Mais uma vez, Alyrio sentiu que aquela cena tranqüila abrigava alguma coisa trágica. Jamais pensava em vidas passadas ou coisas do gênero, mas diante daquelas imagens, suas convicções realmente se abalavam. Domitila tirava as cenas que pintava de algum ponto do próprio inconsciente e só Deus para saber o que ativava o tal ponto. Enquanto aguardava, observou as prateleiras repletas de livros, analisou cada detalhe dos móveis, sentiu a maciez do tapete e seus olhos voltaram a estacionar 54 na paisagem noturna. Era marcante a energia que emanava daquela pintura. Domitila havia-lhe falado sobre a percepção da beleza e a energia que cada coisa emanava. Segundo ela, a energia era a continuação da beleza. Perceber a beleza, sentir o brilho de um quadro era um tipo de barômetro que dizia a cada um de nós a que ponto estávamos de perceber realmente a aura viva que ele possuía e emanava. Naquele quadro, até o escuro da noite tinha um brilho especial. Alyrio estava apreciando a pintura quando a porta se abriu e entrou um homem de tamanho considerável, um peso médio com o peito muito largo, destes que praticou alterofilismo ou simplesmente continua moldado em academias. Com um rosto astuto e moreno, e a aparência venerável de alguém de bem com a vida, o homem caminhou na direção de Alyrio com a mão estendida e um sorriso aberto. - Minha esposa comunicou-me que um detetive está me procurando! Sua voz saiu em tom de brincadeira. - Por quem estou sendo investigado? - Não diria que o senhor está sendo investigado. Estou lhe tomando o tempo para que me ajude numa investigação! – Alyrio esboçou seu melhor sorriso. - Vamos a ela! - ele acomodou-se na poltrona da escrivaninha e indicou uma cadeira para que Alyrio se sentasse. Olhou o relógio de pulso para se certificar da hora e informou que seu tempo disponível naquele momento não era muito, pois ainda tinha um compromisso. - A família de Rita Bastos me contratou. - Alyrio informou: - A conclusão da polícia não os convenceu, especialmente porque depois que ela estava enterrada alguém entrou no seu apartamento e fez uma revista geral. Então me contrataram para que descubra novos detalhes. Especialmente quem entrou no apartamento e o que buscava! - E aonde eu me encaixo? - seu rosto fez o melhor ar de surpresa fingida. - O senhor a conhecia, talvez tenha alguma informação que não foi dada à 55 polícia, - e voltando-se para o quadro, apontou-o. - Além do mais, sou amigo de Domitila e gostaria de saber por que os conhecidos de Rita apreciam tanto seus quadros! - Bem, quanto a Rita não posso lhe dar muitas informações. Trabalho numa construtora e ela era professora de uma escola próxima à empresa. Não só a minha, mas diversas empresas do bairro foram solicitadas e ajudamos a escola. Rita era a professora que mais trabalhava em prol da escola e por isto nos conhecemos. Posso afirmar que ela era uma pessoa que batalhava muito pela comunidade e para melhorar o nível dos estudantes. Quanto ao quadro, é uma longa história... Ele fez uma pausa, seus olhos voltaram-se para o quadro e Alyrio percebeu que, embora tivesse um compromisso inadiável, Maurício tomava fôlego para contar a longa história. Jamais uma pintura o impressionara tanto como aquela paisagem noturna. Aliás, todas as paisagens noturnas que vira na exposição de Domitila o impressionaram. Admirá-las era transportar-se no tempo! Comprara aquela, mas tinha a intenção de ir comprando outras para colocar no escritório da construtora. Havia se formado advogado pela São Francisco. Na época em que era estudante apaixonou-se pelo Direito, mas especialmente pela história da escola que se misturava à da cidade de São Paulo. Desde então, fazia uma pesquisa sobre a história da escola que para ele também era muito familiar. Foi a partir daí que havia descoberto em si próprio uma percepção além dos sentidos. Maurício ficou absorto, com os olhos fixos no quadro. Alyrio respeitou sua pausa. - A pintora Domitila tem uma percepção extra sensorial. - Seus olhos azuis voltaram-se para Alyrio e brilharam. - Não sei até que ponto se pode acreditar nestas coisas. Mas sem que ela tivesse um real conhecimento das orgias dos 56 estudantes da época da fundação da São Francisco, pintar a paisagem do cemitério em que eles compunham e declamavam versos e tomavam suas esbórnias é realmente impressionante! Seus olhos muito claros estavam fixos em Alyrio. Talvez para averiguar o efeito de suas palavras. Como Alyrio esboçasse um leve ar de surpresa, ele continuou: - Nem eu mesmo sei se acredito nisto. Talvez existam diversas encarnações, pois uma vida é muito pobre para não ser imortal! Tenho a sensação de que Domitila teve uma vida naquela época e lhe restaram imagens muito precisas de certos fatos ocorridos com os estudantes! Eles viveram orgias que se transformaram em verdadeiras lendas. Os rapazes vinham de diversos estados e, em São Paulo, talvez porque o clima fosse nevoento parecido a uma cidade mal assombrada, eles se sentissem na mesma atmosfera dos românticos europeus! Domitila consegue trazer à tona essas imagens e transforma-as em pinturas. Os olhos dos dois se voltaram para a magia do quadro. - O que ocorreu com Rita foi terrível! - Maurício mudava o assunto e sua expressão recuperava o quanto estivera consternado. - Vivemos num mundo violento. Já estive em inúmeros congressos sobre como acabar com a violência e ninguém apresenta soluções palpáveis. A desigualdade social já não é o grande motivo desde que os traficantes passaram a ser tão ou mais ricos e poderosos que os senadores da república e os grandes empresários! A molecada que vende a droga tem mais grana que muito filhinho de papai. Ao invés de perseguir os drogados de sua escola, com o dinheiro e a posição de sua família, Rita deveria se dedicar ao fim da violência nos meios de comunicação. Toda a programação televisiva que compramos do hemisfério norte é um festival de violência! Quando os irmãos Lumière criaram a arte cinematográfica, jamais imaginaram que seu fim maior seria a banalização do ato de matar. 57 A maneira com que falava era comovente. Alyrio lembrou-se de que ele era advogado e que era preciso não deixar que enveredasse por um discurso para convencer jurados. Mencionou a agenda de Melanie e os nomes lá encontrados. Sua percepção captou um leve tremer de pupilas, mas Maurício levantou-se e afirmou que Lúcio Guimarães era seu sócio. Sobre os outros nomes, jamais ouvira falar. Já com a mão estendida, ofereceu-lhe um cartão de visitas afirmando que não podia se atrasar para o compromisso daquela noite. Iria esperá-lo na manhã seguinte na sua construtora para um café e seu sócio teria imenso prazer em dar as informações que possuía. Seu único receio era que, como ele, Lúcio não tivesse nenhum relacionamento mais íntimo com a finada. Com certeza iria lhe falar sobre o empenho da professora em melhorar o nível de seus alunos e da própria escola. Ao passar novamente pela sala, Alyrio mais uma vez encontrou dona Maria Amélia vestida no elegante tailleur. Diferente do que o recebera, ela tinha um sorriso nos lábios e os olhos muito acesos, na expectativa de novidades. Sem que ele mencionasse coisa alguma ela falou: - Fiquei muito chocada com a morte da professora. Se o senhor tiver novidades, por favor, nos informe! Ele notou que os olhos da mulher tinham um brilho conhecido. Mais do que ser informada, ela gostaria de informar. Ele tratou-a com muito carinho e extrema discrição, pois Maurício estava atento. Despediu-se agradecendo pelo esforço deles em ajudá-lo na investigação. Enquanto dirigia para a casa, Alyrio pensou em dona Maria Amélia. Com certeza ela tinha algo a lhe dizer, mas não na frente do marido. Sabia que esposas traídas ou mal amadas eram uma fonte de informação muito eficaz. Bastava um jogo de sedução, uns poucos elogios para que se abrissem. Perguntou-se o que um casal como aquele tinha a ver com o assassinato? A única ligação era o gosto pelas 58 paisagens noturnas que Domitila pintava. Maurício possuía uma delas, seu sócio Lúcio possuía outra e vira uma no apartamento da finada professora. Maurício afirmara ter uma percepção extra sensorial. Afinal reconhecia aquelas paisagens como sendo do tempo em que a escola de direito foi fundada sem jamais ter estado lá, a não ser em sua imaginação ou em vidas passadas. A própria pintora não sabia que pintava cenas de um local que existira há mais de um século. As cenas vinham em sua imaginação e ela as retratava. As farras dos estudantes iam-se tornando lendas para as gerações seguintes, mas há muito haviam se perdido da memória. Só existiam nas crônicas da época, em pouquíssimos livros que resgatavam a História da cidade de São Paulo! Pelas palavras, por tudo o que vira, nada indicava qualquer relação com o assassinato, mas sua intuição se alvoroçara. Será que também ele tinha a tal percepção extra sensorial? Era como um arrepio a percorrer-lhe a espinha. Era preciso ir mais fundo. Afinal um arrepio na espinha não era argumento para tribunal algum. E, claro, havia a ligação com a menina Melanie. Afinal chegara ao apartamento do Dr. Maurício por seu nome estar na agenda dela! Alyrio chegou em casa bastante cansado. Foi para a cama, deitou-se e se deixou envolver pela sensação de ter Domitila ao seu lado. A chuva da tarde, extemporânea no inverno, foi o estopim para o amor. Há muitos anos ele não fazia amor com uma mulher pela qual sentisse carinho. Até seu divórcio, jamais fora um conquistador. Quando se viu sozinho, sentia-se traído e passou a sair com todas as mulheres com quem mal conversava e levava para a cama. Era como uma desforra pelos anos que se sentiu feliz ao lado de uma mulher que não era feliz! Não havia uma noite em que não estivesse bêbado e na manhã seguinte acordava ao lado de mulheres que nem se lembrava como as levara para a casa e muito menos se havia realmente praticado algum ato sexual ou 59 simplesmente dormido. Tinha horror das que, ao acordar, queriam recomeçar as carícias. Vivia há anos trepando, sem conseguir uma aproximação amorosa. E agora Domitila surgia em sua vida e provocava-lhe aquela sensação muito boa de se apaixonar! Adormeceu flutuando numa nuvem de felicidade. 60 12. Alyrio parou o carro num pátio e caminhou até a recepção da Construtora Moreira Guimarães. A recepcionista parecia esperá-lo e a solicitação para falar com um diretor-presidente não provocou nenhuma surpresa. Sentiu como se tivesse uma entrevista com hora marcada. - Doutor Lúcio já vai recebê-lo. Aguarde um instante, - ela bateu os cílios a intervalos maiores. Antes mesmo que afundasse de verdade numa poltrona de couro preto, a secretária do doutor Lúcio veio buscá-lo pessoalmente. Não era uma mulher exuberante como se imagina que sejam as secretárias de importantes diretorias. Mais parecia uma freira de clausura que vivesse seu primeiro dia sem o hábito. - Bom dia, - ela abriu o sorriso que poderia fazer no confessionário para afirmar que pecara por não fazer as orações com a devida freqüência. - Tenha a bondade de me acompanhar. Enveredaram por um corredor, atravessaram uma ante-sala que deveria ser a da secretária e ela abriu-lhe uma porta. Lúcio Guimarães estava sentado atrás da escrivaninha. Levantou-se e estendeu a mão esboçando seu melhor sorriso para cumprimentar Alyrio. - Bom dia! O senhor é o detetive que está investigando a morte de Rita. Pobre moça! - ele fez uma pausa e amainou o entusiasmo com que recepcionava Alyrio. - Espero que tenha alguma notícia esclarecedora! Aliás, tinha como certo que a polícia já houvesse resolvido o caso! - Lamento, mas a família dela não se contentou com a versão da polícia e estou recomeçando a tarefa. Vim pedir sua ajuda. 61 Alyrio sabia que não precisava mencionar sua conversa com Maurício na noite anterior. Os dois, com certeza, haviam trocado todas as confidências necessárias. - Fale-me sobre Rita. Qualquer coisa que, em sua opinião, possa ter relação com o crime. Lúcio Guimarães falou durante vinte minutos, com uma oratória digna de uma platéia de congressistas. Contou como ele e o sócio Maurício haviam criado a empresa, desde o tempo em que eles próprios passavam os fins-de-semana trabalhando braçalmente em cada obra até os grandes empreendimentos na construção de estradas estaduais e federais. Contou como as respectivas esposas se davam magnificamente bem e estavam empenhadas em ações beneficentes junto a comunidades carentes, desde angariar fundos, ajudar nas campanhas de vacinação até os mutirões para a construção de casas populares. Falou sobre a dedicação recíproca deles para com os funcionários e vice versa, desde os mais humildes até os diretores e finalmente, mencionou Rita. Também ela estava empenhada em uma ação comunitária. Queria acabar com a miséria e a droga na escola em que trabalhava e se possível no mundo inteiro. Era uma heroína! Seu nome deveria estar nos jornais não mostrando seu corpo mutilado por aqueles dois pivetes, mas com a grandeza do seu trabalho. De onde a conhecia? Tudo tinha a ver com os quadros! Alyrio era amigo de Domitila e com certeza também se impressionara com aquelas pinturas. Ele era engenheiro, mas seu sócio era advogado. Formara-se pela escola do largo de São Francisco e tinha verdadeira veneração pelos estudantes da época de sua fundação, uns românticos incuráveis! Embora nesta vida nenhum dos dois jamais tivesse visto o cemitério que já havia se transformado e era outro, sabiam que Domitila pintava quadros com paisagens daquela época. Particularmente, ele acreditava em reencarnação. Uma vida era muito curta para a grandeza de um espírito! Com certeza 62 Domitila vivera naquele tempo e pintava recordações de lá. Sua esposa era amiga da dona da galeria aonde Domitila expunha e costumavam ir às inaugurações. Freqüentavam a galeria para agradar as esposas, mas ao entrarem na exposição de Domitila sentiram o impacto da obra de arte, apaixonaram-se pelos quadros a primeira vista. Rita acompanhou-os na compra dos quadros, não porque fossem realmente amigos. Mas porque tinham em comum o fascínio pelas pinturas. No dia em que foram ao ateliê de Domitila, Rita estava em uma de suas campanhas a fim de angariar fundos para a escola. Melanie estava com ela. Ao ouvir o nome Melanie, Alyrio ia fazer algumas perguntas, mas Lúcio se adiantou explicando que a menina Melanie era amiga íntima de Rita. Ajudava-a em suas campanhas e depois de terem adquirido os quadros, mesmo sem ter idéia do que fossem poetas românticos, também se apaixonou pelas paisagens noturnas. Em tom de segredo, Lúcio afirmou que comprara um quadro para sua casa, mas que o próximo passo seria comprar outro para colocar ali na sua sala e indicou com o dedo a parede atrás de Alyrio. Pronta para receber a obra de arte! Então abriu os braços e afirmou que sentia muitíssimo a morte de Rita. Ela era uma mulher batalhadora! Uma verdadeira cidadã buscando a melhoria da comunidade! Ainda bem que os pivetes que a mataram estavam presos. Alyrio nem mencionou que um morrera enforcado e outro fugira da cadeia. Estava atordoado. Precisava de algum tempo para deixar assentar os miolos depois de ouvir tanta coisa de onde pouco ou nada se aproveitava. Era como se aquele homem levantasse uma cortina de fumaça. Não somente a figura de Rita havia se diluído no meio de tanto palavreado e ações beneficentes, como ele mesmo não conseguia distinguir a construtora Moreira Guimarães da vida privada dos dois sócios e das sucessivas crises pelas quais o país passara. A habilidade de Lúcio para não 63 dizer nada era surpreendente. Antes que a secretária viesse acompanhá-lo até a porta de saída, Alyrio perguntou se poderia falar mais uma vez com Maurício. Lúcio concordou um tanto contrafeito, devia achar que, após sua fala, não caberia a mais ninguém dizer coisa alguma. Com alguns toques de botões e o telefone, providenciou para que Maurício recebesse Alyrio. A secretária conduziu-o por um corredor que desembocou na sala de Maurício. Ele estava na porta, esperando-o com um ar de reprovação. - Meu interesse é especialmente na história dos estudantes. Se for sua paixão não vai se aborrecer em me contar! - Alyrio falou ao estender-lhe a mão. Maurício sentiu-se mais à vontade. Mandou vir café e água. A secretária providenciou rapidamente. Ele sentou-se atrás da escrivaninha e indicou a cadeira para Alyrio. Bebeu o café de um gole e colocou a água no copo, como os palestrantes. Sobre a mesa de madeira, havia uma caveira e o olhar dos dois pousou nela. Alyrio não tinha certeza se era um crânio humano ou uma reprodução em plástico ou porcelana. Maurício fitou-a com carinho. Exalou um suspiro e, num tom soturno, falou que aquela caveira tinha o dom de transportá-lo no tempo. Era olhando para ela que revia as paisagens noturnas pintadas por Domilita com tanta nitidez que chegava a ouvir o pio de uma coruja que vivia numa das árvores da pintura. Ele havia estudado cada detalhe da história da cidade e da escola de Direito do Largo de São Francisco. Cada geração de estudantes era sucedida por outra que lhe escrevia a História criando uma nova lenda. No entanto, por volta de 1850, pouco antes da morte de Álvares de Azevedo, existiu um apogeu de sociedades secretas que absorviam as idéias mórbidas do romantismo europeu e o transportavam para São Paulo. Talvez por ser o clima da cidade garoento e cheio de neblinas, combinasse com vidas envolvidas nas neblinas da melancolia e do sonho dos românticos! As poucas figuras que existem desses jovens mostram rapazes magros e 64 olheirentos. O estudante da época era uma figura romântica que se acentuava ainda mais quando vestia a capa preta que usavam à moda de Coimbra e dos românticos imitadores de Byron. Na época, a maçonaria era politicamente muito importante em todo o Brasil e no afã de imitá-la os estudantes criavam suas sociedades. Porém o ponto comum das sociedades estudantis eram rapazes que viviam empolgados e arrebatados por amores impossíveis e pela idéia da morte. Faziam orgias no cemitério dos pobres e revolviam a terra das covas recém ocupadas para conseguir a cabeça de uma caveira. Esse era um desafio pelo qual cada um tinha de passar. - Daí vem a percepção extra sensorial da pintora Domitila que retrata exatamente o cenário das noites de orgia da época! – Maurício falou fitando Alyrio muito fixamente. - O estudante Álvares de Azevedo também possuía percepção extra sensorial! – Maurício continuava fitando Alyrio como se lhe revelasse um segredo. – Ele morreu muito jovem e conseguiu prever a própria morte e a de dois colegas! Escreveu na parede da república em que vivia o nome dos dois estudantes quintanistas que morreram em 1850 e 1851, e fixou seu nome no ano de 1852. Quando os dois primeiros realmente morreram, criou-se à sua volta uma atmosfera de presságios. - Você tem certeza de que isso realmente ocorreu? – Alyrio movia o olhar da caveira para Maurício e vice-versa. Tudo aquilo lhe parecia muito mórbido. - O que é lenda, o que realmente ocorreu? Difícil dizer. Mas até essa dúvida pode ser classificada como a mais sonora e autêntica voz do byronismo no Brasil! - Maurício voltava a ser o discursante. - O livro de Álvares de Azevedo que já reli muitas vezes é Noite na Taverna. – Maurício afirmou abrindo uma gaveta e tirando dela um livro bastante gasto. - Por aqui perpassam, como por um cinematógrafo macabro, todos os excessos que se possa imaginar. Numa noite na taverna, não se esqueça de que em 1850, personagens libertinos que se apaixonam por 65 mulheres perdidas, entre baforadas de seus cachimbos e muita bebida, contam histórias ditas românticas, ou seja: incestos, defloramentos, adultérios, envenenamentos, suicídios, degolamentos, infanticídios! É realmente de uma imaginação fantástica para quem viveu somente vinte e um anos! Maurício devolveu o livro à gaveta e se levantou. - Acho que por hoje já dei uma aula muito boa sobre os estudantes paulistas ou que estudavam em São Paulo, pois a maioria vinha de outros Estados. Alyrio despediu-se sem ter ouvido uma única vez o nome da finada professora. A preleção, igualmente longa, feita por Maurício não fez mais do que tornar mais familiar a suposta história dos quadros de Domitila. Precisava de provas, checar outros nomes, buscar novas pistas. Pontas soltas que realmente levassem a algum dado que não fosse aquela história maluca do passado da cidade numa época de garoas e poetas ensandecidos que tinham de passar pela prova de conseguir sua caveira nos cemitérios para melhor se parecerem a Byron, o poeta inglês! 66 13. De volta para a casa, Alyrio passou a tarde ligando para todos os telefones da agenda de Melanie. A maioria era de colegas de classe. Estudavam não na escola de periferia, mas num colégio de classe média alta. A medida do possível, todos eles freqüentavam as mesmas festas e barzinhos. A maioria conhecia Rita que estava sempre com Melanie. Também eles todos ficaram chocados com a morte da professora e foram unânimes ao afirmar que Melanie estava inconformada. Todos eles estavam preocupados com a saúde mental de Melanie, tal era seu estado de depressão. Falaram muito, mas não acrescentaram nada de novo à investigação. De tudo o que disseram, o que chamou a atenção de Alyrio foi que uma das meninas da classe, muito amiga de Melanie havia morrido em condições bastante estranhas. Ela saíra normalmente da escola e seu corpo apareceu dois dias depois nas margens do rio Tietê, numa cidade já bastante afastada de São Paulo. Ninguém soube como fora parar lá. Por mais que a polícia investigasse, não chegou a pista alguma que esclarecesse o caso. O fato ocorreu poucas semanas antes do assassinato de Rita. Tanto Rita como Solange eram amigas de Melanie, e segundo os colegas, as três costumavam sair juntas com bastante freqüência. Alyrio não poderia deixar de concordar com seu contratante, Gastão Bastos, que a menina Melanie estava muito mais envolvida do que se poderia imaginar! Na tentativa de encontrar algum fiozinho solto, Alyrio ligou para dona Laura, mãe de Solange. A princípio ela não quis dar informações, afirmando que a polícia já estivera revirando as coisas de sua filha e apesar de toda a amolação não tinham a menor idéia de como ocorrera a morte. Ela e o marido estavam arrasados e não queriam falar no assunto. 67 Com muito jeito, Alyrio foi explicando que era um detetive particular, contratado pela família de Rita, e que os dois casos, talvez tivessem alguma ligação. Dona Laura não conhecia Rita e desde a morte da filha que não assistia aos noticiários policiais. Não conseguia ver uma ligação entre um corpo que aparecera numa barranca de rio na cidade de Salto e outro jogado numa periferia de São Paulo. Depois de Alyrio esgotar quase todos os argumentos possíveis ao caso, dona Laura concordou em atendê-lo. Mais uma vez Alyrio dirigiu-se para o bairro do Morumbi. A casa de dona Laura, mãe de Solange, não possuía o mesmo requinte da de Sônia, mas era um sobrado muito bom, tendo à frente um jardim bem cuidado. Enquanto ficou em pé no hall de entrada esperando que a empregada fosse chamar a patroa, surgiu em sua mente a figura de Sônia. Aquela mulher continuava a perturbá-lo. Era a sensação de se ver ainda garoto apaixonado pela professora, uma paixão impossível, fora de tempo e de lugar. Na seqüência de imagens, veio a figura de Melanie. Já ia mergulhar no ranço deixado por uma trepada disparatada, quando dona Laura apareceu se desculpando porque a empregada não o acomodara num dos sofás. Ele conjeturou que se ela tivesse o mesmo mordomo de Sônia, com certeza ele teria sido tratado de uma forma mais profissional. Enquanto a seguia até a sala e os dois se sentavam, percebeu que dona Laura não era mais velha do que Sônia e seria considerada bonita caso não estivesse tão afastada de qualquer cuidado consigo mesma. Até as roupas estavam negligenciadas e davam a nítida impressão de terem sido usadas seguidamente pela última semana. Apesar de esguia, o corpo lhe pesava e o olhar era cheio de amargura. Alyrio falou de sua agência com tanto entusiasmo que ninguém poderia supor que ela se limitasse a uma sala e um micro. Cheio de orgulho, informou que a agência Cobra havia sido contratada pela família de Rita para esclarecer pontas soltas 68 no assassinato. Explicou exatamente o que vinha investigando e a ligação dos dois casos com a menina Melanie. Tanto Rita como Solange tinham em comum o fato de serem muito amigas de Melanie. Talvez ali existisse um elo que o levasse a desvendar alguma ponta solta que chegasse até o fundo do mistério. Enquanto ouvia, a figura de dona Laura foi se dobrando um pouco mais, como se as palavras de Alyrio lhe trouxessem a lembrança de um luto carregado de ressentimentos e incertezas. Quando ele terminou, num jorro desordenado, ela se pôs a falar sem trégua. Começou exatamente pelo cadáver. - Por sorte o corpo apareceu! Estava parado numa barranca do rio Tietê, próximo à cidade de Salto. Embora bastante deformado pelo tempo que ficou naquela água imunda, eu a reconheci! Para tirar qualquer dúvida, como usasse aparelho dentário, o dentista reconheceu o aparelho e a arcada dentária. - Com certa morbidez, dona Laura descreveu cada detalhe do corpo da filha morta até que Alyrio a interrompeu: - Me fale da amizade dela com Melanie. As duas se encontravam regularmente, enfim o que faziam juntas além de freqüentar a mesma sala de aula? Dona Laura punha toda a atenção na pergunta de Alyrio. Era como se precisasse de um esforço extra para se concentrar. - Melanie vinha aqui em casa muitas tardes. As duas faziam juntas os deveres de casa, estudavam para as provas. Se a tal professora assassinada fazia parte do grupo, ela jamais veio aqui em casa. Se falaram nela, talvez eu não tenha prestado a devida atenção. Elas mencionavam muitos colegas. Quando estavam aqui fazendo lições ou estudando, as duas ficavam no quarto de Solange. Às vezes saíam e iam ao centro comercial próximo. Coisas normais. Telefonavam para os colegas, namoradinhos, coisa de adolescente! Solange não tinha namorado fixo. Tinha amiguinhos. Ultimamente, a única coisa diferente da nossa rotina, foi ela ter adquirido 69 o hábito de todas as segundas-feiras ir dormir na casa de Melanie. Ela ficou uns momentos em silêncio enquanto uma campainha soava na mente de Alyrio. Segunda feira à noite acontecia alguma coisa especial! Ele pensou enquanto observava a mulher a sua frente tomar fôlego e continuar: - O que me deixa maluca é pensar que minha filha morreu de overdose de cocaína e álcool ou sabe-se lá que outras drogas! Ela jamais fumou, não tinha o hábito de beber. Eu e meu marido, nós temos certeza de que ela foi raptada. Talvez um seqüestro relâmpago que não tenha dado certo. Drogá-la foi uma forma de matá-la sem deixar pistas! - E sua filha tinha amigas que morassem próximo de onde foi encontrado o corpo? - Solange tinha diversas amigas, mas nenhuma que vivesse em Salto ou pelas imediações. Ela jamais viajou para qualquer uma das cidades próximas a Salto. Não costumava ir a sítios. Alyrio começava a sentir-se constrangido diante do sofrimento que observava na mulher à sua frente. Cada palavra que ela dizia vinha carregada de uma amargura que contaminava a atmosfera. - Na última segunda-feira em que esteve com vida, ela saiu de casa logo cedo como fazia todas as manhãs. Foi para a escola e não retornou. Mas ligou avisando que ficaria na biblioteca para fazer um trabalho de grupo e depois dormiria na casa de Melanie. Como ela havia feito isto nas semanas anteriores, concordei sem dar muita atenção. Porém no dia seguinte, quando depois da aula ela não apareceu, comecei a ligar para as colegas. - E o que foi que Melanie lhe falou? - Melanie afirmou que, naquela segunda-feira, ela não dormiu em sua casa e que não a encontrou depois da aula. Todas as outras colegas foram contatadas e 70 ninguém sabia da minha filha! Inclusive me informaram que ninguém ficou fazendo trabalho na biblioteca depois da aula. Foi então que comecei a me apavorar. Fui para a escola e em pouco tempo alunos, professores e até a diretora estavam em polvorosa. Todos, inclusive a família e os amigos contataram delegados e policiais conhecidos. Fui à delegacia fazer o BO do desaparecimento. No dia seguinte, a polícia avisou que o corpo fora encontrado na margem do rio Tietê, numa cidade em que ela jamais fora e sem que ninguém tivesse uma explicação razoável a dar. - Dona Laura, a senhora sabe se sua filha escrevia um diário? Em geral as adolescentes têm diários, escrevem coisas em cadernos! Alguma dica de como ela foi parar lá! - Depois que enterrei minha filha, passei vários dias no seu quarto tentando encontrar qualquer coisa que pudesse esclarecer aonde ela fora, o que ocorrera. Li todos os seus cadernos, revirei cada pedaço de papel solto, bilhetinhos de colegas, enfim tudo o que havia. Posso lhe garantir que não havia coisa alguma. Talvez estivesse com ela o diário. Sei que possuía uma agenda e com certeza se perdeu nas águas do rio. A mochila e todos os pertences com que saiu da escola jamais foram encontrados. A polícia interrogou todas as colegas e todos os ambulantes da porta da escola. Ninguém se lembrou de nada estranho. Ela ficou uns momentos pensativa, como se pudesse rever as cenas na parede de sua sala. Alyrio aguardou que voltasse a falar. - A versão da polícia é de que alguém a raptou na saída da escola, de uma forma que os colegas não notaram. Sabe, às vezes as pessoas entram num carro acuadas por uma arma e quem está em volta tem a certeza de que é o carro de algum conhecido. Talvez tenha sido um seqüestro relâmpago que deu errado, então a drogaram até que ela morreu e a levaram para fora da cidade e a jogaram no rio. Quem pode saber, numa cidade tão violenta como São Paulo! - As lágrimas rolaram pela 71 face de dona Laura e ela não tentou detê-las. - É horrível ver uma filha morta. É pior ainda não saber pelo que passou, o quanto sofreu, quem fez tudo isso! Olhando aquela mulher transfigurada, Alyrio pensou que o pior da morte é deixar parentes vivos. Especialmente jovens que deixam os pais vivos, inconformados e sofredores pelo resto de seus dias aqui na terra. Durante todo o tempo em que falou sobre a morte da filha, dona Laura foi se consumindo. Fora visível a redução orgânica do seu corpo sobre a delicada poltrona de couro, as mãos se apertando. Alyrio estava constrangido diante de tanto sofrimento. Sentia que dona Laura já havia falado tudo o que sabia. Se havia alguma conecção entre os casos era ele quem tinha de descobrir. As noites de segunda-feira passadas na companhia de Melanie não lhe deixavam dúvidas! Despediu-se afirmando que se tivesse alguma novidade, telefonaria. Dona Laura esboçou um sorriso e segurou sua mão como um náufrago tentando salvação. Por um instante ele sentiu nos olhos da mulher um lampejo de esperança. Saiu da casa de dona Laura e dirigiu para a casa. A imagem dos próprios filhos veio-lhe à mente. Será que vivendo em Miami corriam risco menor? Será que lá havia menos violência? Será que lá a droga não corria tão solta como aqui? Afinal lá era o grande mercado consumidor, o povo que realmente tinha grana para pagar a droga! O trânsito estava pesado. O carro avançava lentamente. Toda vez em que se aproximava de casa e ficava preso no trânsito, Alyrio pensava que precisava mudar de casa e de bairro. São Paulo era assim, havia sempre muita gente circulando pelas ruas! Lentamente passou por um trecho da Rua Augusta onde as boates esbanjavam suas luzes extravagantes. Aproximou-se da Paulista e seguiu para sua casa. Na Rua Frei Caneca, era o último imóvel residencial da área. Todas as outras casas haviam se 72 transformado em comércio ou empreendimentos imobiliários. À noite, os diversos bares e padarias colocavam mesas do lado de fora e as calçadas se transformavam em um único bar com muito barulho e muita cerveja. De dentro do seu carro, Alyrio olhava para o amontoado de gente e pensava que precisava se mudar. Finalmente conseguiu embicar o carro na sua casa, desceu, destrancou o cadeado do portão, estacionou na garagem na frente da casa e recolocou o cadeado. Abriu a porta da casa. Entrou sem acender as luzes da sala. Gostava da penumbra. Foi andando pela casa escura e tateando as coisas até que seus olhos se adaptaram. Abriu a valise, colocou o micro sobre a mesinha de centro e ligou-o. Gostava de ficar na sala, sentado na penumbra. Só a luz azulada da tela de fundo do micro a fazer-lhe companhia. Era então que as imagens da própria vida também se mantinham na penumbra e ele deixava a imaginação atinar com as melhores deduções para seus casos mais complicados. Alyrio pegou os recados da secretária eletrônica e telefonou para a delegacia de Salto que atendera ao caso de Solange. Falou com o delegado e marcou uma entrevista para o dia seguinte na parte da manhã. Ajeitou então as almofadas e deitou-se no sofá. Com os olhos fechados, sentia a presença da luz do micro ao seu lado. Sentia-se amargurado com o sofrimento que vira em dona Laura. Por conta disso, algumas cenas da própria vida vierem-lhe à mente. Alyrio fora casado por dez anos e quando voltava para aquela mesma casa todos os dias havia duas crianças correndo para abraçá-lo. Como eram felizes aqueles momentos e, com certeza, mais ainda a lembrança deles. Sua ex-esposa fora viver em Miami e levou com ela os filhos. Ele autorizou por puro comodismo. Falta de forças para brigar! Na época em que ela pediu o divórcio, fora pego por uma onda de surpresa e estupefação que lhe arrancara por completo o norte. Jamais lhe passou pela cabeça que sua esposa não era feliz ao seu lado e que pudesse se apaixonar por outro homem e abandoná-lo! Só depois de tudo consumado é que ele enveredou pela 73 infinidade de indícios mínimos que fora deixando passar. Abriu os olhos e sentiu a claridade da tela do micro. Desde a morte de sua mãe, a luz da tela do micro era a coisa mais constante a lhe dar conforto. Na penumbra da sala, deitado no sofá, Alyrio conseguiu rever o momento exato em que esteve no quarto do hospital com sua mãe que havia tido um AVC. Ela estava mal, com poucos momentos de lucidez. No entanto, ao vê-lo ao seu lado, com o olhar muito firme, afirmou que ele era um filho que havia sido adotado. Ficou alguns momentos com o olhar fixo nele e afirmou que ele era filho de um mau passo que ela dera quando jovem e seu pai se casara com ela mesmo estando grávida de outro homem. Por isso ela fizera questão de engravidar novamente e dar a ele filhos com seu sangue. Alyrio foi pego desprevenido por aquelas afirmações. Por toda vida, sua mãe fora autoritária, cheia de ódios contidos. Seu pai era ausente ou sem paciência para qualquer conversa. Jamais tivera disposição para sair do seu mundo que ninguém sabia onde era. Alyrio fora filho único por um bom tempo, mas vivia mais na casa de suas tias do que na sua. Quando ele estava com sete anos, sua mãe conseguiu engravidar e teve dois outros filhos. Caio que ela jamais negou ser seu filho predileto e Mariana, filha predileta de seu pai. Alyrio sempre se sentiu meio solto, o que não foi suficiente para atrapalhar-lhe a vida. Foi um adolescente normal, estudou, formou-se em direito e se casou. A mãe morreu pouco depois daquela revelação, sem esclarecer exatamente como havia sido sua história. Ele não comentou com ninguém. Aos poucos foi juntando as pontas soltas da sua vida e percebeu que ele realmente era uma ponta solta na família, uma peça totalmente fora daquele ninho. Na época, Alyrio já estava casado e se apegou demais à esposa e aos filhos. Acreditou que a partir daí seria ele a formar uma família, a ter um lastro na vida. Não se passou um ano e ele foi surpreendido pela mulher se apaixonando por outro. Saindo de sua vida e levando com 74 ela os filhos. Até o emprego, que era no escritório de advocacia de um tio de sua esposa, ele abandonou. Recomeçou por investigar as pontas soltas da própria vida e as traições da sua esposa e se transformou num detetive. Antes que os olhos começassem a ficar lacrimosos, lembrou-se de Domitila. Sentir-se apaixonado pela primeira vez depois de todos aqueles percalços, revigorava-lhe a alma! Saiu do sofá, acendeu a luz e foi para a cozinha. Fez torradas que lambuzou de requeijão e preparou uma vitamina. Pela pouca quantidade de frutas que ainda havia na geladeira o gosto ficou bastante insosso, mas sentir-se satisfeito de alimentos ditos saudáveis fazia com que sua consciência ficasse bastante tranqüila. Subiu, tomou um banho bem quente e foi para a cama. No dia seguinte levantaria bem cedo. Iria saber mais detalhes sobre a morte de Solange. 75 14. - O Delegado Pacheco? - Acaba de sair. - É que marquei com ele! - Teve um chamado urgente, volta em seguida. - O policial havia levantado os olhos da papelada sobre a mesa e tentava um sorriso. Merda!, Alyrio pensou enquanto suspirava. - Vou aguardar, obrigado! - falou e sentou-se na cadeira de madeira salpicada de pixações que ele não se deu ao trabalho de decifrar. O policial balançou a cabeça distraído e voltou para as suas ocorrências. Dentro da delegacia estava fresco e escuro. Um grande ventilador girava com um ronco constante que acalmava. Depois do calor da estrada, o ar sombreado de dentro da delegacia era calmante. Alyrio ligara para o delegado marcando a entrevista e iria esperar. Queria saber todos os detalhes sobre a morte de Solange. Se o delegado havia saído para atender pessoalmente uma ocorrência, com certeza era coisa grave. Acomodou-se o mais confortável que conseguiu na cadeira de madeira e tentou relaxar. Fechando os olhos, imaginou-se flutuando sob uma cachoeira, com os lábios tocando a água, o corpo mole como de um molusco: técnica de relaxamento que inventara no correr dos anos e que usava sempre que tinha pela frente uma espera. O ventilador fazia um chiado, soprando uma brisa leve em seu rosto. Ele recostou a cabeça na parede. Devagar, bem devagarinho, conseguiu adormecer. Sonhou que entrava na casa de Sônia. Estava escuro, ele procurava o interruptor, acendia a luz e se via numa relação sexual com Melanie no sofá da sala. Sônia estava parada estupefata e Melanie caía na gargalhada. Então ela se debruçava sobre a mesa e dava profundas cafungadas na cocaína. Fazia-o numa atitude de 76 desafio e arrogância. Alguém que ele não conseguiu ver, deu uma paulada na nuca de Melanie e ela rolou pelo chão. Alyrio sentiu que Sônia o chacoalhava e ele acordou assustado. O policial de plantão o sacudia. - O delegado Pacheco chegou e o aguarda em sua sala. - Obrigado, - Alyrio esforçou-se para voltar à realidade. As imagens do sonho ainda pareciam muito reais. Levantou-se, espreguiçou-se, olhou para os lados certificando-se que estava na vida real e foi para a sala que lhe indicavam. O delegado era um sujeito grandalhão, de cabelos negros e oleosos e pele pálida marcada por vestígios de espinhas e acne. Recebeu-o com um aperto de mão que o fez voltar definitivamente à realidade. - Sente-se. - Com o dedo indicador, apontou-lhe uma cadeira de verniz descascado. - Em que posso ajudá-lo? - o delegado deu a volta na escrivaninha atulhada de papéis, sentou-se e esboçou um sorriso simpático. - Como falei por telefone, vim fazer umas perguntas sobre a morte de Solange. O corpo encontrado do rio. O delegado procurou um cigarro, acendeu-o e então pareceu se lembrar de alguma coisa. Aspirou a fumaça com vontade e ao soltá-la parecia bem lembrado. - Sabe, não é a primeira vítima que aparece jogada no rio. E depois dela tiveram outras. Infelizmente não há muito a lhe dizer. A menina entupiu-se de cocaína e álcool! Com certeza quem estava com ela também estava se drogando e só foi perceber o problema quando já não havia o que fazer. O mais fácil era se livrar do corpo jogando-o no rio. É uma forma de pular fora da encrenca! - E vocês não têm idéia de quem sejam os culpados? O delegado aspirou com força a fumaça e esboçou um sorriso irônico: - Existe uma infinidade de chácaras e sítios nas margens do Tietê. Sabe 77 como é! Os jovens vêm fazer suas festinhas, os pais não sabem de nada e as coisas acontecem. - Ele abriu os braços. Alyrio assistia a mais um delegado abrir os braços com ares de impotência. - Estou investigando outros casos que imagino estejam ligados a este. Alyrio falou enquanto observava a sala. As paredes eram encardidas, de um branco-beje indefinido e não havia sobre elas nenhum quadro ou gravura. Apenas um calendário com os dizeres de Seicho-No-Iê: “Quem vence a si mesmo é um grande vitorioso.” O delegado levantou-se, abriu uma das gavetas do arquivo de metal atrás da escrivaninha e tirou uma pasta. Sentou-se e folheou-a, em seguida entregou-a a Alyrio. - Tudo o que se sabe está aí. A causa da morte foi uma overdose que daria para matar um cavalo, ou talvez vários. Ela foi jogada no rio depois de morta. Os pais da menina estiveram aqui, desesperados como todos, afirmando que sua filha jamais chegara perto de drogas, que sequer fumava. Também eles pesquisaram por todos os cantos, mas não encontraram coisa alguma. Solange nem conhecia a cidade de Salto e tampouco tinha amigos por aqui. No que conseguimos apurar nos clubes e festinhas, ninguém a conhece nem a viu no dia em que morreu. Alyrio folheou o arquivo. As fotos lhe causaram um calafrio. Pensou no horror que deveria ser para os familiares ter de reconhecer um corpo tão estragado pelas águas. - Seria bom você falar com Fátima. - O delegado estalou os dedos e parecia feliz de poder lançar mão de algo que o tirasse daquela situação. - É uma jornalista que está fazendo uma pesquisa minuciosa sobre o assunto. Tem escrito artigos e mais artigos sobre mortes por overdose e corpos abandonados pelos amigos. 78 Ela teve um irmão que também morreu de overdose e nunca se soube, ou melhor, nunca se pôde provar quem jogou o corpo na mata. Desde então, Fátima está empenhada em desvendar todos os casos, como se isso fosse vingá-la dos que mataram seu irmão. O delegado pegou o telefone e antes que Alyrio tivesse tempo de dizer sim ou não discou. - Fátima? Você está na redação? Tenho aqui um detetive de São Paulo que gostaria de falar com você sobre seu assunto predileto! Mortes por overdose! O caso daquela menina, Solange. Os dois ficaram em silêncio, o delegado ouvindo o que Fátima dizia e Alyrio relendo o recado do calendário. - Ela está vindo para cá. – O delegado falou depois de desligar o telefone. - Com certeza vai poder informá-lo melhor do que eu. Ele foi até a porta e pediu ao policial que lhes trouxesse dois cafés. Enquanto esperava, Alyrio leu o relatório do médico. Uma autópsia não respeitava nada. Toda normalidade e toda anormalidade do corpo de um indivíduo eram detalhadas. Solange morreu de overdose. Mas estava ali a quantidade de muco no seu nariz, o peso de seu fígado, baço, pulmões, coração e cérebro, condição de suas genitálias. O corpo foi encontrado muitas horas depois de ter permanecido na água. Não havia marcas de violência, mas tivera relações sexuais antes de morrer. Seu estômago continha alguma quantidade de alimento por digerir, com fragmentos de carne e massa. A entrada do policial interrompeu sua leitura. Ele trazia dois copos plásticos com café. Alyrio seguiu o exemplo do anfitrião. Emborcou-o de uma vez. Estava horrível! Em seguida não resistiu em pegar o maço de cigarros e oferecer um para o delegado. Os dois davam as primeiras tragadas quando a porta se abriu. 79 A mulher que entrou não tinha atrativos físicos evidentes e nem aura de sensualidade. Mas tinha uma qualidade essencial para aquele tipo de trabalho: era jovem! Tinha ímpeto para correr atrás de provas e levar muitas bordoadas antes de realizar sonhos ou chegar ao ponto de desistir de persegui-los. - Vamos tomar uma cerveja na padaria ao lado, - ela falou logo após as apresentações e sorriu para e delegado. - Esta delegacia não é um bom lugar para conversas compridas. Alyrio seguiu-a e entraram numa padaria que tinha umas mesinhas. Pediram uma cerveja bem gelada. - Estou aqui para conseguir informações sobre a morte de Solange. Uma menina cujo corpo foi encontrado na barranca do rio, causa mortis: overdose. A cerveja chegou e Alyrio serviu-a. Bateram os copos e sorveram de uma golada. Foi com imenso prazer que ele sentiu a cerveja descer geladinha levando com ela os resquícios do horrível sabor do café requentado que ingerira na delegacia. Fátima acompanhou-o sorvendo toda a cerveja do copo. Fez um ar de satisfação e desta vez foi ela a reenchê-los. - Apesar de não ser verão, nesta região, a esta hora é sempre quente! Para esse tipo de clima, só uma cerveja gelada é capaz de matar a sede! - Ela falou após emborcar o segundo copo. Então o observou com muito cuidado e perguntou:Quando me falaram que havia um detetive investigando casos de overdose, não imaginei um homem tão interessante. Alyrio olhou-a com certa surpresa: - Detetives normalmente não são interessantes? - Tenho conhecido diversos e nenhum interessante como você! - ela corou: - Talvez você lembre meu irmão. Ele era muito bonito, moreno, da sua altura, com o rosto bem feito e o olhar castanho muito profundo. 80 Alyrio sorriu e nem precisou fazer perguntas. Com a aproximação que o álcool provoca, Fátima tomou fôlego e falou por um longo tempo sobre o irmão morto. Seu corpo não fora encontrado no rio, mas numa mata próxima. Também ele morrera de overdose numa festinha e os amigos o deixaram naquela mata. O pior é que nem ela nem a polícia conseguiram provar quem estivera com ele e muito menos quem jogara o corpo. Todos os seus amigos estiveram em festinhas e barzinhos. Todos o viram e falaram com ele, como sempre, mas ele saíra cedo e imaginaram que estivesse com alguma garota. Nenhuma garota o viu depois de certa hora. Ou seja, não se apresentou um único integrante do grupo de conhecidos que estivesse com ele no horário em que ocorreu a sua morte. Todos tinham álibi! Era como se seu irmão tivesse resolvido se suicidar e tivesse ido àquela mata tomar a overdose. Mas a polícia havia descoberto que o corpo fora colocado ali. Havia marcas de pneus e do corpo sendo arrastado. Como durante a madrugada chovera no local, foi impossível identificar o tipo de pneus. Fátima ficou por um tempo calada, bebendo cerveja e deixando o olhar se perder pelas paredes da padaria antes de afirmar que com Solange havia ocorrido a mesma coisa. Estivera no local onde o corpo dela fora encontrado e só não o levava lá porque não era nada além do que uma barranca de rio que se podia ver muito bem nas fotos. Afirmou que rapazes e moças de todas as cidades, especialmente da capital e das cidades maiores tinham sempre um membro de suas famílias que possuía uma chácara meio abandonada ou pouco usada. Com desculpas ecológicas, como o bem que proporciona o contato com a natureza, os jovens formavam grupos e iam para as tais chácaras a fim de se drogarem à vontade. Os casos de overdose aconteciam. Quando a turma toda saía da viagem e tomava pé na realidade, ou o que lhes parecia a realidade, percebiam que um deles havia apagado. Ninguém volta da viagem com tempo para prestar socorro, enfim levar a vítima a algum hospital! Ficam apavorados e 81 tentam sumir com o corpo! Ninguém quer se comprometer, ninguém quer dizer que também estava se drogando. No caso de Solange jogaram o corpo no rio. Com certeza o rio estava próximo. Enquanto ingeria muita cerveja, Fátima fez uma preleção sobre o uso das drogas, a juventude que entra com tudo. Os mais velhos que realmente não percebem ou fingem não perceber. As escolas que tentam encobrir para não terem problemas, ou seja, perderem alunos. Desde que não façam uso dentro da escola, no mais, que se matem! Os pais que morrem de vergonha e vão se fechando, se fazendo de desentendidos até que ocorre um daqueles casos. Aí aparecem apavorados, afirmando que o filho não bebe e não fuma e jamais tocou em qualquer droga. Ficam inconsoláveis. Alyrio pediu mais uma cerveja, serviu Fátima e foi ele a emborcar diversos copos. O calor estava aumentando e a cerveja estava gelada como ele gostava. - O rio Tietê é longo, perpassa centenas de chácaras com condições para esse tipo de festinha. E as águas do rio têm força! Conseguem levar um corpo para bem longe do local em que foi jogado. - Fátima repetiu a frase do delegado. – Existe um problema sério que só percebi quando me embrenhei nas investigações. As pessoas que usam drogas acabam fazendo amizades repentinas. Uma única festa é suficiente para perceberem as mesmas preferências, se juntarem e irem para outro local a fim de usar drogas. Quando ocorre uma overdose e se livram do corpo, é impossível saber quem estava com eles. Depois de ouvir Fátima por mais de meia hora, Alyrio percebeu que não havia nada de novo. Ela conhecia todos os casos que haviam ocorrido na região e poucos haviam tido uma solução. No caso de Solange não havia pista alguma. Ela conhecera os pais de Solange. Estiveram lá para reconhecer o corpo, e mostraram-se 82 estarrecidos. Depois retornaram com mais calma para conversar com o delegado e com ela. Ela levou-os à barranca do rio, esperou que chorassem todas as lágrimas e então pôde fazer muitas perguntas e saber muita coisa a respeito da vida de Solange, ou pelo menos o que os pais pensavam dela. Foi muito bom para a pesquisa que vinha desenvolvendo. Pretendia transformar os artigos que escrevia diariamente no jornal local em um livro. Se Alyrio tivesse mais notícias sobre Solange queria ser informada. Gostaria de saber com quem estava a vítima ao tomar a overdose. Quem eram os companheiros. Quem se livrava do corpo com tanto despojamento. Afinal se estavam se drogando juntos, deveriam ser cúmplices! Partilhar não só das viagens, mas ter solidariedade e compaixão pelo semelhante! Pediram mais uma cerveja. - As pessoas já não têm compaixão ou solidariedade nem pelas águas do rio! – Alyrio arriscou. - Esse é outro assunto que me empolga. - Fátima tomou ares sérios. - A poluição do rio Tietê! E ela se pôs a falar sobre o tanto de dinheiro que o governo de São Paulo afirmou que seria dedicado a despoluir o rio e que havia ficado no bolso dos governadores. Alyrio apreciava aquele assunto, o crime que estavam praticando contra o rio poluindo-o e matando-o. Mas não podia enveredar por mais algumas horas de conversa. Despediu-se e prometeu mantê-la informada sobre o andamento do caso. Ao sair da cidade, dirigiu até bem próximo ao rio. Desceu do carro e caminhou até a margem. Deixou que as águas barrentas carregassem seu olhar. Colocou atenção no barulho. O som das águas era mencionado nos versos disparatados de Melanie. Era ela, aquela guria drogada, a ligação entre o corpo de Solange encontrado numa barranca ali próxima e o de Rita, encontrado numa periferia 83 de São Paulo. Precisava com muita urgência encontrar essa ligação! Era terrível quando, durante uma investigação, tinha certezas e convicções, mas sem coisa alguma que fosse uma prova ou mesmo que pudesse levá-lo mais próximo da verdade. Fora as duas serem amigas de Melanie, não havia outro vínculo! Suspirou e retornou ao carro e à estrada. Enquanto dirigia, pensou que aquele caso estava mais complicado do que imaginara. Enquanto observava a estrada bem cuidada, tentou se aproximar do centro daquela história sórdida que afinal começava a atraí-lo do jeito que ele gostava, como um desafio inteligente. Gastão Ferras Bastos o contratou para averiguar a morte da irmã, Rita, que fora assassinada, segundo as evidências, numa batalha anti-drogas. O caso já havia sido encerrado pela polícia. Havia um motivo bastante forte e assassinos confessos. Só que os possíveis assassinos haviam desaparecido: um suicidara-se na cela lotada e outro fugira. Segundo o delegado isso era comum acontecer em delegacias lotadas. O irmão da finada tinha um pressentimento de que o caso abrigava mais mistérios do que a solução simplista a que a polícia chegara. E nisso ele tinha toda a razão. Na realidade, Gastão não lhe deu pista alguma além da intuição. Tinha certeza de que a melhor amiga de sua irmã, Melanie, tinha algo a ver com o caso. Não que fosse a assassina, mas sabia mais do que dizia saber. Ele fora visitar Melanie e logo de cara viu que ela era uma viciada em drogas pesadas. Investigando os endereços da agenda de Melanie, foi à casa dos donos da construtora Moreira Guimarães. Todos eles, incluindo a professora assassinada, tinham em comum os quadros de Domitila com as paisagens noturnas do tempo em que São Paulo era um pouso de tropas e a escola do Largo de São Francisco se instalara na cidade abrigando uma geração de poetas românticos. Pesquisando entre as colegas de classe de Melanie, soube que uma delas, 84 Solange, havia morrido de overdose e o corpo encontrado na barranca do rio Tietê. Estava ali pesquisando, sem ter encontrado pista alguma. Com certeza, às segundas-feiras, elas faziam um programa juntas, pois Sônia lhe dissera que Melanie dormia na casa de Rita e a mãe de Solange, que a filha dormia na casa de Melanie. Ou seja, as meninas mentiam para os pais e faziam alguma atividade com a professora Rita. Melanie sabia o que era e não lhe contou. Por um momento relembrou as palavras de Maurício sobre as orgias dos estudantes em meados do século dezenove. Suas figuras macilentas, usando capas pretas, declamando versos alucinados, clamando pela morte! Será que algum deles vivera uma situação tão escabrosa como a que ele vivenciara com Melanie? De qualquer forma, apesar do sentimento ruim que lhe ficou daquela relação sexual com a guria drogada, teria de mais uma vez enfrentá-la e ouvir suas explicações sobre as noites de segunda-feira. Que tipo de balada freqüentavam! Alyrio suspirou. Sua única certeza era que a morte de Solange tinha alguma coisa a ver com a morte de Rita. Ele não sabia o quê, mas tinha. Mais uma vez a tal percepção extra sensorial ou a prática em desvendar os casos? Em seguida seus pensamentos voltaram-se para as paisagens noturnas e a vernissage de Domitila. Seria naquela noite. Afinal uma coisa boa! Rever Domitila! 85 15. Eram apenas dois quadros de Domitila expostos numa coletiva. O suficiente para ela se agitar e dar entrevistas. Convidara todos os amigos e conhecidos e, além dos elogios por seus trabalhos, interessou-se pelos trabalhos dos outros artistas. Alyrio esteve a maior parte do tempo ao seu lado. Gostava da companhia e estava atento aos convidados. Tinha a esperança de que Maurício Penna ou Lúcio Guimarães aparecessem. No entanto, até o final da noite, nem eles, nem ninguém relacionado ao assassinato da professora apareceu. Nem mesmo Melanie ou alguma de suas colegas de classe. Quando a galeria estava fechando, Alyrio e Domitila saíram da exposição. A noite estava fria e foram a um restaurante. Não estavam com muita fome, depois de tantos salgadinhos e coquetéis, e uma sopa caiu muito bem. Ela estava feliz com os resultados da mostra e Alyrio estava romântico. Saíram de mãos dadas e, sem que houvesse uma combinação prévia, ele a levou para a casa. Queria uma noite inteirinha para eles. Sentia uma alegria que lhe nascia no fundo da alma e sabia que era correspondido. Ele estacionou na sua garagem e abriu a porta do carro para ela. Sorria exagerando nas mesuras. Os dois se abraçaram e sorriram até que ele abriu a porta da casa. Domitila deu um passo atrás e estancou. Perpassou por seu rosto uma expressão de horror. Como se não tivesse notado que ela perdia a cor, Alyrio fez uma mesura de mosqueteiro para que ela entrasse pela primeira vez na sua casa. Ela o fez como se tivesse se extraviado num matadouro e se manteve encolhida para prevenir uma catástrofe iminente. - Aconteceu alguma coisa? - Ele não pôde evitar a pergunta depois de dar uma olhada na sala e encontrar tudo nos seus devidos lugares. 86 - Não sei o quê! Sinto que alguma coisa muito ruim está acontecendo! - Você tem certeza? – A voz de Alyrio não conseguia conter certa irritação. - É um pressentimento. E é muito forte! Ele, que pretendia uma noite maravilhosa, sentiu que alguma coisa interrompia a sua festa. No entanto foi até a cozinha e trouxe a garrafa de champanhe e as taças na esperança de que as tensões se amainassem. Afinal não via nada de errado em sua casa. Sequer a luz vermelha da secretária eletrônica estava piscando. Antes de abrir o champanhe, pediu que ela se acomodasse enquanto ele ia ao banheiro. Ela se manteve encolhida, sem fazer-lhe a concessão de se sentar. Ele subiu as escadas e entrou no quarto. Ao acender a luz, deu de cara com a catástrofe que ela pressentira. O susto foi tamanho que não conseguiu evitar um som que reverberou no peito e saiu pela boca num grito abafado. Domitila subiu as escadas e chegou rapidamente para ajudá-lo a enfrentar a visão de Melanie morta sobre sua cama. Ela estava completamente vestida. Usava calças jeans e um blazer preto. Tinha uma camiseta branca por baixo. Calçava botas pretas muito lustrosas. Os cabelos estavam penteados. O único detalhe a informar a morte eram os olhos arregalados, congestionados como o dos lobisomens. Alyrio percebeu os apetrechos para o uso da cocaína ao lado da sua cama. - Estou ferrado! - foi o que conseguiu dizer abrindo os braços. – Alguém fez isso para me afastar da investigação! Aproximando-se, tocou o rosto de Melanie e sentiu-o ainda quente. - Ela está morta, não está? - as faces de Domitila perdiam a cor. - Sem dúvida! - Senti um ar de tragédia dentro da sua casa assim que você abriu a porta. 87 Ele limitou-se a olhá-la e sentiu um estranho carinho, uma vontade imensa de abraçá-la. - Acho que vou vomitar! - ela perdia um pouco mais da cor. - Vamos ao banheiro, - ele amparou-a, sentou-a num banquinho e segurou sua testa gelada enquanto ela vomitava. Quando acalmou, ela lavou o rosto na pia. - O que vamos fazer? - ela perguntou. - Ainda não sei. Ele voltou ao quarto e, com o olhar, fez um exame minucioso no corpo. - Talvez ela tenha morrido de overdose, mas há também um hematoma na nuca. Ela não morreu aqui, foi trazida. Está muito arrumada sobre a minha cama. O espelho, o canudinho e a droga foram colocados aqui. Percebendo que as faces de Domitila não recobravam a cor, ele amparou-a e levou-a até uma cadeira no quarto ao lado. Alyrio só tinha duas certezas. A primeira era que Melanie estava morta. A segunda era que alguém a matou e a colocou em sua casa. Como ela estivesse demorando a morrer com o tanto que consumira de drogas, deram-lhe uma ajuda com uma paulada na nuca. No mais, sentia-se num nevoeiro. A polícia não ficaria neste nevoeiro por muito tempo, a justiça tampouco. Sabia que as suspeitas recaíam sempre sobre a hipótese que parecia mais plausível. Um corpo na sua cama, sem portas arrombadas, só indicavam que o dono da casa fosse o assassino. Chamar a polícia estava fora e cogitação. Naquele instante, além de todos os dissabores com a polícia, a figura de Sônia surgiu com uma tremenda nitidez. Que explicações poderia dar a ela? O que Melanie fazia em sua casa? Com certeza nos interrogatórios algum vizinho iria informar que há dois dias a vira entrar em sua casa e ele a colocara no táxi na manhã 88 seguinte! O chofer do táxi iria se lembrar, especialmente pelo estado de Melanie, e por ele ter pedido que não a deixasse sair antes de chegar ao destino. “Quem fez aquilo queria vê-lo fora do caso!” Ele pensou e suspirou. “Tenho de tirá-la daqui, e não no porta-malas do carro e desova-la em algum barranco.” Alyrio sentou-se ao lado de Domitila, segurou-lhe a mão e ficou pensativo até que tomou uma decisão: - Temos de tirá-la daqui e vou testar um método que li em um livro policial. - Sem mais comentários, ele desceu, pegou uma cadeira da sala e levou-a para o quarto. Calçou um saco plástico em cada mão. Juntando todas as forças, colocou Melanie sentada e amarrou seu corpo para que enrijecesse na posição sentada. - Acho melhor levar você para a casa. Preciso que me faça um favor amanhã cedo, logo nas primeiras horas. Sei que você não está bem, mas é a única pessoa que viu o que aconteceu e pode me ajudar. - Alyrio levou Domitila pela mão até o carro. Abriu a porta e ajudou-a a se sentar. Então foi para o seu lado. Deu partida e enquanto dirigia, explicou seu plano: - Alugue uma cadeira de rodas e nós vamos tirá-la daqui sem levantar suspeitas. Não se esqueça de pagar com dinheiro. Não deixe seu nome ou cheque e nem cartão de crédito. - Aonde eu faço isto? – Ela tentava se concentrar no plano dele. - Nas proximidades do Hospital São Paulo, existem inúmeras lojas de material hospitalar. Estas lojas abrem cedo, você pode estar por lá logo às oito da manhã e alugar uma cadeira de rodas. Alugue pelo menor tempo que eles permitirem. Ao parar na porta da casa de Domitila, Alyrio beijou-lhe a face. Ela se aproximou. Os dois se olharam, estavam transtornados. Ela jamais lidara com a morte tão de perto. Ele esperou que entrasse e voltou para a casa. 89 Só então sentiu que sua casa estava gelada, tinha o hálito da morte. Quando entrara com Domitila, estava tão excitado com as possibilidades da noite que sua percepção falhara. Bem devagar, foi até o quarto. Mesmo sabendo o que iria encontrar sentia medo. Dentro do quarto, a escuridão fazia com que a menina se diluísse. Por instantes ficava quase invisível. A escuridão parecia proteger Alyrio da morte. Dava-lhe a impressão de desaparecer numa solidão em que nada mais existia. Pegou algumas roupas e foi para a sala. Tentou dormir no sofá, mas não conseguiu mais do que uns leves cochilos quando a exaustão o vencia. Enquanto acendia um cigarro após o outro, com a imaginação, reviu as orgias dos estudantes. Naquele momento, sua casa, com o terror que abrigava, estava possuída pelo clima do romantismo, a mesma atmosfera de morbidez e mistério descrita pelos rapazes do século dezenove. Se tivesse a percepção extra sensorial tão aguçada como tivera o poeta Álvares de Azevedo, teria escrito na parede o nome das mortas: Solange e Rita, e saberia que a próxima seria Melanie. À medida que o tempo passava, delirava com a possibilidade de avisar a polícia para que viesse livrá-lo de um cadáver incômodo, um pouco como se pedisse ao serviço de coleta de lixo que viesse pegar um objeto que não tinha mais uso. E no meio daquele delírio recordou-se que naquela manhã, quando estava na delegacia esperando o delegado para falar sobre o caso de Solange, tivera um sonho. Adormecera numa cadeira sem nenhum conforto e vira Melanie se drogando e levando uma paulada na nuca. No sonho, não conseguiu ver quem dava a paulada. Será que todos tinham intuições e pressentimentos, era só uma questão de prestar atenção ou perceber? O resto da noite, ele tentou recuperar o momento do sonho que tivera na delegacia e, quando mais se lembrava, mais estranho lhe parecia. Logo que o dia clareou, com a casa toda entorpecida pelos tantos cigarros que ele havia fumado, telefonou para o cemitério do Araçá a fim de se certificar dos 90 horários dos enterros daquele dia. As salas do velório estavam todas ocupadas e haveria enterros desde as dez horas da manhã. Ele ligou para o celular de Domitila e ela já estava na loja alugando a cadeira. Era preciso ir para o cemitério o quanto antes e se livrar de tudo aquilo. 91 16. Às nove da manhã, os dois saíram da casa de Alyrio, empurrando uma cadeira de rodas. Nela ia sentada uma moça de gorro e óculos escuros. Estava com uma correia de couro segurando-lhe a cintura e pedaços de fio de naylon prendiam-lhe os pulsos aos braços da cadeira e os tornozelos ao estribo devidamente posicionado. Uma manta cobria-a do pescoço para baixo. Nas mãos puseram-lhe luvas. Domitila também estava irreconhecível com uma peruca loura. Alyrio achou que ela não precisava de disfarce, mas ela ponderou que desde a loja onde alugara a cadeira, diante de qualquer problema, iriam se lembrar de uma loura. - Sair de uma casa empurrando uma cadeira de rodas é bem mais fácil do que carregar um corpo para o porta-malas do carro e depois descarregá-lo em um lugar qualquer. - Alyrio mencionou enquanto tentava pôr naturalidade em todo o seu semblante. - Você acha que ela pode ter morrido de causa natural? – Domitila estava atrapalhada e tentava por naturalidade nos gestos e na voz. - Vivemos em São Paulo. Assassinato já está sendo considerado causa natural nesta cidade! - Jamais me imaginei carregando um defunto para o cemitério numa cadeira de rodas! - Nem eu! - Você disse que leu uma cena destas num romance policial? - Foi. - Quase não leio romances policiais, prefiro os filmes. Neles, diante de um assassinato deve-se preservar o local do crime. - O que se deve fazer diante de um morto é notificar imediatamente a 92 polícia. Nós não tínhamos explicação alguma para o aparecimento do corpo na minha cama. Se tivéssemos ligado para a polícia, com certeza a esta altura ainda estaríamos tentando apaziguar os repórteres dos noticiários sensacionalistas. Claro que eu seria o principal suspeito. Os dois ultrapassaram todos os obstáculos da calçada da Frei Caneca e chegaram à calçada da Paulista. - Ela ainda estava quente quando a toquei. - Alyrio continuou. - Não tenho o hábito de tocar gente morta, mas ela deve ter sido assassinada pouco antes de sairmos para a exposição. Meu palpite é que alguém deixou que se enchesse de cocaína, então a levou para a minha casa e, como a overdose não foi suficiente para matá-la com rapidez, deu-lhe uma boa paulada na nuca. Claro que este alguém quer me ver fora desta investigação. E também apagar o arquivo que estava na cabeça de Melanie. A cadeira de rodas bateu numa saliência da calçada. A cabeça de Melanie balançou. Domitila ajeitou tudo rapidamente, inclusive verificando a posição dos óculos escuros. Os dois seguiram empurrando em silêncio. Chegaram ao cemitério exatamente na hora em que um caixão saía do prédio do velório e era conduzido para o túmulo, seguido por um séqüito de pessoas. Eles seguiram o enterro por um tempo até que, sem chamar a atenção, desviaram por um dos corredores. Seguiram observando os túmulos mais altos e pomposos. Não demoraram até avistar um com uma capela, bastante descuidada, onde o cadeado estava quebrado. Abriram rapidamente a porta. Dentro havia uma pedra mármore fixada ao lado um pequeno altar que poderia servir como um banco. Domitila olhou a Nossa Senhora do altar e se benzeu. Alyrio observou os arredores e não havia ninguém. Tirou o canivete do bolso e cortou as amarras que prendiam Melanie à cadeira. Domitila o ajudou e, depois de 93 muito esforço, conseguiram colocá-la sentada no banco de mármore. Retiraram os óculos e o gorro e saíram da capela. Domilila sentou-se na cadeira de rodas, cobriu as pernas com a manta e Alyrio empurrou-a até a calçada do lado de fora do cemitério. Ali pegaram um táxi e foram até a casa de Domitila. Logo que entrou, ela arrancou a peruca loura. Sem consultá-lo, ela foi à cozinha, pegou copos com gelo e serviu uma dose dupla de uísque para cada um. Bateram os copos num brinde que nem sabiam a quê. Emborcaram de uma vez o uísque e conseguiram minorar um torpor que queria aniquilá-los. Um pouco menos apreensiva, Domitila brincou com a peruca loura e conseguiu sorrir. Alyrio beijou-lhe as faces. Ela informou que no dia seguinte devolveria a cadeira de rodas. Depois da segunda dose, já meio tontos e com a alma mais ou menos recuperada, foram para um restaurante. Só então perceberam que estavam famintos. Enquanto esperavam os pratos saquearam a cesta de pão com manteiga e pediram outra que também não foi suficiente para aplacar um nervosismo que se instalara neles desde que haviam encontrado o corpo. Quando os pratos chegaram comeram com muita fome e excitação. Falaram sem parar sobre muitas coisas que não tinham a ver com o caso. Beberam muita cerveja gelada. As nuvens se aglomeravam no céu. Ao sair do restaurante, Alyrio pensou no último temporal e suspirou. Embora o amor e o desejo fossem fortes, havia um corpo pairando entre eles. Havia uma noite passada quase que em claro. Acompanhou Domitila até sua casa. Ela sorriu afirmando que iria dormir até o dia seguinte. Alyrio voltou para a casa. Estava exausto e nem valia a pena ir até o escritório. Além do mais, precisava dormir. Ao entrar, percebeu que a chuva começava a cair. Não foi um temporal como o que passara no ateliê com Domitila, 94 mas era uma chuva forte. Olhando pela janela, lamentou não estar ao seu lado. Mas na sua casa havia algumas prioridades. Começou por uma limpeza na sala, especialmente os cinzeiros que transbordavam pelo tanto que fumara durante toda a noite. Lavou os cinzeiros e aproveitou para lavar a louça que se acumulava na pia. Foi para o quarto, abriu as janelas, trocou as roupas de cama jogando as sujas na máquina e deixando-as de molho em muito sabão. Jogou a cocaína na privada e deu descarga. Espelho e canudinho que haviam deixado ao lado da sua cama foram para o lixo. Passou um pano com álcool sobre os móveis, tirando todas as evidências da cocaína que pudesse ter se espalhado pelo local. Tomou um banho quente bem demorado, esfregando o corpo todo com bucha a fim de tirar os resquícios de tudo que fizera nas últimas horas. Só então se atirou na cama com lençóis limpos, onde há poucas horas Melanie estivera morta. O cansaço era forte e ele afundou num sono sem sonhos. 95 17. Alyrio dormiu num sono só até o dia seguinte que era sábado. Acordou muito cedo e esperou até as dez horas quando ligou para a casa de Sônia. - Detetive Alyrio? - perguntou a voz já conhecida. - Como está dona Sônia? Desculpe incomodá-la num sábado de manhã. - Não é incômodo. Alguma novidade? Diante da pergunta ele pensou em Melanie, mas pela displicência da sua voz tinha certeza de que ela não fazia qualquer idéia de onde andaria a filha. Por um momento pensou que, caso ninguém descobrisse o cadáver, ele faria uma denúncia anônima de um orelhão qualquer. - Nada de significativo, - Alyrio tentou pôr firmeza na voz diante da visualização de Melanie apodrecendo num túmulo. - Poderia passar rapidamente por sua casa? Não tomarei muito do seu tempo. - Tenho um almoço com uns amigos, mas se vier logo... - Vou sair imediatamente. A chuva da véspera limpara a atmosfera e fazia um belo dia quando ele adentrou os portões da mansão. Desta vez o mordomo o esperava e o conduziu imediatamente para a sala onde Sônia folheava uma revista. Ela o recebeu vestida para sair; no rosto não trazia nenhum traço de preocupação com o paradeiro de sua filha. - Bom dia, detetive. O senhor não tem folga nem aos sábados! - o tom de voz era amável e o sorriso simpático parecia autêntico. Alyrio tentou esconder o encantamento que aquela mulher lhe causava, associado ao horror da hora de encontrar Melanie morta. - Quando tenho um caso tão intrincado não dá para parar! Ela fitou-o com um olhar cheio de dúvidas e ironia. 96 Alyrio sabia que ela não poderia fazer idéia dos intrincados desdobramentos do caso! Tomando o fôlego necessário, ele falou: - Na realidade deveria falar com sua filha, mas seria melhor que a senhora me ajudasse. - Melanie viajou com uns amigos. Deve retornar segunda logo cedo. Ficou de ir direto para a escola. Alyrio sentiu um fogo lhe subindo pelo rosto e disfarçou com uma tosse fingida. Faltou-lhe coragem para perguntar quais amigos. Pediu desculpas pelo acesso de tosse, respirou fundo e voltou a falar: - Melanie deve ter algumas anotações, algum caderno, agenda. Se a senhora conseguisse encontrar qualquer coisa do gênero. As adolescentes sempre escrevem diários. - Jamais me intrometi na vida privada de minha filha! - Ela o olhou com espanto. Era como se ele estivesse pedindo que violasse algum direito. A atmosfera mudou instantaneamente e a receptividade inicial deu lugar a uma atitude defensiva. O corpo de Sônia se retraiu e o sorriso desapareceu. - Isto é tão importante? - ela perguntou depois de uns instantes de um incômodo silêncio. - Não posso ganrantir!. Acredito que sim. - Ele olhou-a com firmeza. - A senhora tomou conhecimento que Solange, outra amiga de Melanie, morreu e seu corpo foi encontrado nas margens do rio Tietê poucas semanas antes do assassinato de Rita. - Claro que soube! A escola inteira e também toda a cidade ficou sabendo! Foi noticiado em todos os jornais e telejornais! - Ela o olhou com uma surpresa verdadeira, como se ele viesse lhe contar o óbvio. A tensão diminuiu. - Fiz questão de ir ao enterro dar apoio aos familiares! Mas jamais imaginei alguma ligação 97 entre os dois casos! Afinal a menina morreu de overdose e Rita morreu por combater a droga! - Talvez exista alguma ligação, algum amigo em comum. As três eram muito amigas, saíam juntas com freqüência. Se Melanie anotou alguma coisa no diário vou poder lhe dizer depois de lê-lo. Quando se faz uma investigação, por vezes detalhes insignificantes nos põe no rumo certo. - Teria de revirar o quarto dela e procurar. - Eu espero. Ela suspirou diante de um homem que não iria desistir facilmente. Saiu da sala meio a contragosto deixando a revista que folheava sobre o assento. Alyrio pegou-a e, imitando a anfitriã, também folheou o festival de vidas famosas, maravilhosas, cheias de amores fantásticos e dinheiro aos montes. Os problemas ficavam de fora. Depois de uns quinze minutos ela retornou com três volumes. - Foi a única coisa manuscrita que encontrei no seu quarto. – A voz de Sônia era áspera. Alyrio abriu um amplo sorriso de agradecimento antes de tomar de suas mãos os três volumes. Um era a agenda que ele já conhecia. Os outros dois eram dois cadernos. Ele folheou o caderno escolar com as várias matérias separadas, e viu que não havia nada além do que lições mal feitas. O terceiro lhe pareceu um tipo de diário misturado a versos. Cheio de desculpas ele pôs na voz um tom de súplica. - A senhora poderia me emprestar até amanhã à noite. Prometo que segunda-feira, quando Melanie retornar, já vai encontrar tudo nos devidos locais. Ela lançou-lhe um olhar cheio de desprezo. - Asseguro-lhe que é para o bem das investigações. - Ele tentava justificativas. - Talvez outras pessoas estejam correndo perigo! 98 - Amanhã, no final da tarde, o senhor pode deixar com o mordomo! - ela respondeu e levantou-se dando por encerrada a visita. Alyrio saiu com a certeza de que sua imagem fora definitivamente abalada. Até então haviam-se encontrado uma única vez. Com certeza Sônia o vira como um pobre coitado desempenhando seu trabalho, interrogando Melanie a fim de confirmar o que todos já sabiam. Agora talvez se visse um pouco como cúmplice em violar os segredos da filha. A partir daquele momento, ele passara a ser o detetive intrometido invadindo sua privacidade. A forma como se despedira não deixava a menor dúvida. Com a alma entristecida, Alyrio viu os portões se fecharem às suas costas sem saber se tivera êxito em ocultar o encantamento por Sônia e imaginando como seria o momento em que ela recebesse a notícia sobre a morte da filha. Ele não queria estar na pele do policial que teria de informar à família sobre a morte de Melanie. Contar aos pais que um filho morreu, e fazê-lo com dignidade, era impossível. Quando a polícia chegava com uma notícia de morte, levava sempre algum tempo até que os familiares conseguissem assimilar a realidade. Especialmente porque a última imagem que tem do filho é dele cheio de vida. De volta à sua casa, Alyrio sentou-se e fez uma inspeção minuciosa nos três volumes. A agenda, ele já conhecia e somente deu uma repassada. O caderno com lições de casa era um horror! As lições eram mal feitas e sem nenhuma criatividade. O diário pareceu-lhe o mais interessante. Na primeira folheada percebeu que as páginas usadas eram numeradas e havia cinco delas arrancadas. Ele pegou uma garrafa de água e foi bebendo enquanto lia cada linha com toda a atenção. Melanie freqüentava a escola no período da manhã. No entanto suas tardes eram preenchidas com todo o tipo de desregramento. Freqüentava bocas de fumo. Tinha relações sexuais com homens e mulheres e adorava sair da escola com 99 meninas comportadas e iniciá-las na vida de bolacha como ela escrevia e ele sabia que era iniciá-las em relações homossexuais. Claro que era ela a parceira. Alyrio ficou aterrado lendo todas as atividades de Melanie. Era inacreditável que aquela guria, com uma fantástica candura de virgem no olhar, pudesse viver uma vida tão desregrada e continuar numa casa onde aparentemente havia uma família a controlá-la! Alyrio parou de ler e deu uns goles na água da garrafa se perguntando como poderiam viver na mesma casa os pais e tantos empregados, e ninguém perceber o comportamento de Melanie? Como podia ser que Sônia não fizesse idéia das atividades da filha e, enquanto dona Laura acreditava que sua filha Solange ia com a amiga Melanie tomar sorvete num centro comercial próximo à sua casa, elas iam à uma favela, numa boca de fumo e quando retornavam, enquanto a mãe não as perturbava por acreditar que estavam fazendo importantes deveres escolares, tinham relações sexuais, que nas descrições de Melanie, eram de tirar o fôlego. Será que no brilho dos olhos, na expressão facial não havia o menor indício? As olheiras, a vermelhidão dos olhos, será que ninguém notava? Ou os pais estavam sempre tão cheios de compromissos que nem percebiam! No diário também ficava claro que Rita era apaixonada por Melanie e era correspondida. Mesmo com todos os desregramentos na vida de Melanie, Rita era quem ocupava seu coração e a inspirava nos versos. E, claro, eram companheiras nas drogas. Segundo o diário, viver juntas os delírios das drogas, era uma prova de amor! Havia menção de festas fora da cidade. Semanalmente, às segundasfeiras, elas pegavam a estrada para participar das tais festas num local onde havia um rio. O barulho da água era constantemente mencionado nos versos e foi no rio que Solange fora encontrada. Só poderia ser o mesmo rio. O rio Tietê. Caminhando na sua sala, de um lado para o outro, Alyrio tentava 100 imaginar onde estava a ligação entre os casos. A repórter Fátima havia falado das tantas chácaras onde a moçada ia se drogar e acabava morrendo. Em todos os casos, os pais chegavam enlouquecidos, sem ter a menor idéia do que ocorria com os filhos e não faziam a menor idéia de que se drogavam. Seria verdade, ou a droga criava um véu que os pais tinham vergonha de ultrapassar e ter de encarar a verdade! E afinal, por que tanto sentimento de culpa? Partir para a droga era uma opção da própria pessoa! Alyrio foi buscar gelo, colocou a água no copo e bebeu-a bem gelada, depois releu o diário. Talvez a pista mais quente daquele caderno fossem as cinco folhas que faltavam. As páginas arrancadas deveriam conter a descrição de um fato importante que não era para ser divulgado. Ou seriam mais versos disparatados que ela escreveu e entregou à amante? Alyrio voltou a caminhar dando voltas na própria sala e teve a certeza de que as folhas não eram versos. As folhas que faltavam eram uma prova muito importante! Mas prova do quê? O que aquela guria escrevera que era tão importante! Era exatamente o que ele tinha de investigar. Depois da morte de Rita, Melanie parara com os versos e as descrições de suas peripécias e passou a descrever a tremenda falta que Rita fazia em sua vida. Era uma paixão que desaparecia sem que o relacionamento estivesse terminado. Segundo o que escreveu estava sofrendo muito. Vivia deprimida e não fazia outra coisa que pensar em Rita. No entanto, fora à sua casa e se entregara a ele e à cocaína com uma atitude de profissional desprovida de qualquer sentimento! Ou talvez essa fosse uma das tantas formas de se manter triste e chateada. Com certeza estava viciada não só nas drogas como nos comportamentos que a droga determinava e já não havia como mudar a conduta! Era um alívio perceber que ela não narrara a tarde em que estivera em sua casa, mas também era uma pena que não escrevera aonde estivera na noite em que a 101 mataram. De qualquer forma, se ela tivesse escrito e o caderno estivesse com ela, ele não estaria agora lendo aquele diário. Teria desaparecido com sua mochila. Pelos locais que freqüentava, especialmente nas “bocas” em que comprava droga, qualquer um poderia ter matado Melanie, até por falta de pagamento pela droga. Mas qualquer um não teria o senso de humor de colocar o corpo na sua cama! Com certeza tinha a ver com a série de assassinatos. A primeira fora Solange, depois Rita. Em seguida, um dos seus assassinos confessos foi encontrado suicidado na cadeia! Melanie ainda não fora encontrada em seu túmulo. Mas as mortes continuavam! Quem seria a próxima vítima? Diante desse pensamento, Alyrio estremeceu. Era preciso agir rápido, muito rápido. Ao sentir fome, percebeu que a hora do almoço já havia passado. Foi para a cozinha. Esquentou água e colocou dois pacotes de Miojo. Esperou os três minutos de cozimento, observando a água borbulhar. Escorreu, colocou o pó para temperar. Colocou também um pouco de manteiga e ketchup. Sentou-se e comeu. 102 18. Logo após ingerir o Miojo, Alyrio pegou os cadernos e o micro e saiu em direção ao bairro de Higienópolis. O apartamento de Rita precisava de mais uma repassada. Depois de ler os cadernos de Melanie, ele tinha quase certeza de que a busca dos assassinos concentrava-se nas folhas que faltavam no diário. Agora que conhecia melhor o caso, pretendia encontrar no apartamento alguma coisa que se encaixasse na trama. Se tivesse sorte, encontraria algum detalhe sobre o local dos encontros que ocorriam às segundas-feiras. Começou pelo escritório. Cada gaveta, cada recanto, cada livro foi folheado. Os recortes, os anúncios, os marcadores de páginas. Cada pedacinho de papel esquecido dentro dos livros foi verificado. Alyrio leu com muita atenção os poemas demarcados com cores hidrográficas. Eram frases cheias de um romantismo meloso que desta vez ele tentou interpretar com os dados que já possuía. A única coisa em comum era que a maioria, os seja, os bons poemas haviam sido escritos pelos poetas românticos que estudaram na São Francisco. Os poemas assinados pela professora morta e por Melanie, que também estava morta, eram delírios de paixão mal escritos, plagiando poetas da fase do romantismo. O pouco que mencionavam a vida real falavam sobre seus encontros e amores desregrados. Enfim, nada que trouxesse uma luz ao caso. Melanie estava morta, Rita estava morta e Solange estava morta. As três tinham em comum as noites de segunda-feira e versos que, além de paixões ensandecidas, mencionavam o barulho das águas de um rio. Solange foi encontrada no rio. No diário havia menção de que nas festas havia o barulho das águas de um rio. E com certeza isto fazia parte das paisagens noturnas que Domitila pintava. Não havia o menor indício do local onde se realizavam as festas. 103 Alyrio foi até a sala e serviu-se de um cálice de Porto dez anos. Sentou-se no sofá e, enquanto degustava a bebida, deixou-se envolver pelo quadro de Domitila. Aquela paisagem calma e tranqüila, envolta numa bruma de mistério, com certeza abrigava alguma tragédia. Ele não era muito entendido na arte da pintura, mas podia afirmar que era na forma em que as pinceladas espalharam as cores que se sentia o desespero da tragédia. Não havia um rio desenhado, mas, se a pessoa pudesse estar naquele local, com certeza ouviria o barulho das águas de um rio correndo. Aonde será que Domitila via aquelas paisagens que recriava nas telas? Elas eram reconhecidas por pessoas que mencionavam uma época da cidade de São Paulo em que nenhum deles havia vivido e, portanto não poderiam conhecê-las pessoalmente. O que aquelas pessoas tinham em comum com as paisagens? Por mais que se lessem as crônicas da época, como reconhecer um local com tanta precisão? A própria Domitila alardeava que o conhecimento ia se perdendo no decorrer da História. A primeira vez em que a ouvira, ele ficou surpreso, mas no decorrer dos encontros, foi analisando e percebendo que suas idéias não eram tão absurdas como lhe pareceram a princípio. A própria História da cidade ia se perdendo na metrópole que crescia. E surgia aquela imagem, parte de uma série delas bem parecidas ou de um mesmo local, fixadas na cabeça de uma pintora e reveladas em telas. Olhando com muita atenção para o quadro e bebericando o vinho, sentiu que era um convite à solidão e à paz de espírito. Alyrio nunca fora especialmente inclinado a meditações filosóficas. Por vezes quando estava em repouso tentava imaginar-se num local prazeroso e mergulhava em si mesmo. Por um tempo deixava-se levar na corrente da imaginação, e sabia que esses momentos eram importantes para a saúde da mente. No entanto retornava com a certeza de que a vida era uma interação contínua e recíproca entre várias questões práticas à espera de solução. O que quer que houvesse naquela 104 paisagem era algo que já levara três mulheres à morte. Suspirou, emborcou mais um cálice de vinho e se dirigiu ao quarto. Dedicou-se com esmero a cada item. Armário, cômoda, estante, malas, bolsas, caixas, cadernos, livros, nada ficou por ser visto, até os bolsos das roupas no armário. Fotografias, bilhetes de amor, flores secas, qualquer coisa que pudesse servir de pista, que mencionasse as tais festas e o local em que se realizavam. Mas não encontrou indício algum. Olhando a cama, desta vez ele pode visualizar Rita e Melanie drogadas tendo relações sexuais. Era uma certeza que ia se formando, mas o fato em si não levava a nenhuma pista na investigação. O apartamento tinha dois banheiros e um lavabo que também foram vistoriados. Os objetos pessoais da finada estavam todos lá, inclusive a escova de dente e o sabonete que estavam sendo usados antes dela morrer. Perfumes, cremes, pentes, escovas, absorventes íntimos, maquilagem, nada faltava. Alyrio retornou à sala e serviu-se de mais um cálice de Porto. Degustou-o envolvido com a pintura de Domitila enquanto chegava à conclusão de que naquele apartamento, o indício marcante era a própria falta. Embora todos os pertences estivessem ali, não havia nada indicando que aquela moça fosse uma imbatível combatente da droga. Não havia coisa alguma que a ligasse à escola que lecionava. Não havia um caderno de aluno, uma prova a ser corrigida. Não havia um papel que mostrasse sua luta em busca de recursos para melhorar o padrão dos seus alunos. Nada que demonstrasse um relacionamento com os diretores da construtora Moreira Guimarães e tampouco com os dois pivetes que supostamente a executaram. Não havia um único folheto ante droga ou de qualquer grupo de apoio a drogados. Não havia coisa alguma sobre as festas que Melanie mencionava no diário. Não podia ser acidental. Ninguém consegue apagar tão completamente os sinais de sua vida 105 profissional e talvez amorosa a menos que esse apagamento tenha sido proposital. E neste caso quem revistara aquele apartamento era perito. Ou talvez quem o recompôs: Melanie. A simples recordação daquele nome trazia a Alyrio um estremecimento. Se o assassinato de Rita tivesse ocorrido como os jornais noticiaram, porque alguém teria necessidade de matar Melanie e jogar o corpo na sua cama? Se fora drogada até a morte, era porque alguém tinha certeza de que ela sabia demais. Por que não a jogaram no mesmo rio em que jogaram Solange? Para isto ele tinha resposta. Porque ela não fora morta no local das festas e jogaram na sua cama para que ele se afastasse do caso. Se ele tivesse chamado a polícia já estaria detido e fora de atividade. Degustando o vinho, ele recordou-se do armário que Rita possuía na escola. Também lá não havia coisa alguma. Como uma professora com tanta atividade no bairro se limitava a ter em seu armário somente o livro de chamada da classe? Mesmo que Rita fosse organizadíssima, tinha de ter alguma coisa que mostrasse sua vida. Se Melanie, ao recompor o apartamento depois que fora revistado, conseguiu apagar todas as evidências da vida da amante, era realmente uma perita. Alyrio verificou que a garrafa de vinho já estava à menos da metade. Serviu uma última dose, arrolhou a garrafa e guardou-a no armário. Bebericou o vinho observando o quadro e conjeturando sobre tudo aquilo. Antes de sair, lavou o cálice e guardou-o para uma próxima visita. Já era noite quando saiu do apartamento. Entrou no elevador e viu um homem com as faces avermelhadas pelo vinho, porém olheiras fundas circundavam os olhos aveludados pelo álcool. O porte altaneiro da juventude se mantinha. Por um instante recordou-se da repórter Fátima afirmando que ele era parecido com o irmão dela, bonito, moreno, alto, o rosto bem feito. Sorriu pondo em dúvida aquela opinião e cumprimentou a própria figura no espelho. 106 19. No domingo Alyrio levantou tarde, depois de uma noite bem dormida. Pegou o jornal, deu uma olhada nas notícias principais e saiu. Não foi para o lado da Paulista. Andou até o jornaleiro próximo à sua casa e folheou as revistas semanais. Leu alguns cabeçalhos de notícias que lhe interessaram, mas não comprou nada. Seguiu em direção ao centro. Estava com fome e foi observando as opções de comida. No entanto, quando saiu de casa, em sua mente já havia um destino: o Gigetto. Era bom aproveitar os restaurantes tradicionais da cidade enquanto não fechavam e desapareciam. Era um pouco mais da História que se perdia! Andou toda a Frei Caneca e saiu na Augusta. Era um caminho que estava acostumado a fazer. Gostava de repeti-lo, embora vivesse numa cidade onde as tradições não eram bem vistas. Os modismos e os especuladores ligados à prefeitura iam criando novas áreas da moda e desfigurando a cidade. Ele gostaria de freqüentar os mesmos locais que os modernistas de 22, como fazem os franceses no mesmo Café Procope dos revolucionários de 1789, ou os belgas nas mesmas tavernas de Lenin e Freud. Mas em Sampa isso não era possível. O centro, que deveria guardar as tradições, ia se deteriorando dia a dia! Mendigos dormindo nas calçadas e assaltos iam fazendo com que os restaurantes tradicionais fechassem ou mudassem para filiais sofisticadas nos lugares da moda. Estava tão distraído em suas divagações que se surpreendeu ao chegar ao restaurante. Sentou-se à mesa de sempre e pediu uma cerveja. Tomou a primeira garrafa pensando nas paisagens noturnas que Domitila pintava. Elas datavam de meados do século dezenove e não era possível nem saber se realmente existiram. Fora as arcadas da São Francisco já não existiam resquícios do tempo dos estudantes românticos! Pediu a segunda garrafa de cerveja. Comeu o pão com manteiga e 107 azeitonas e pediu um cabrito a caçadora. Enquanto esperava seu prato, Alyrio pensou nos rapazes da fase do romantismo. Seria ingênuo imaginar que a boemia da geração acadêmica de Álvares de Azevedo tenha sido mais desregrada do que as que se sucederam na São Francisco ou mesmo em outras escolas espalhadas pelo mundo. Naquela altura Byron foi traduzido e muito lido no Brasil. Alyrio havia lido Noite Na Taverna no tempo de escola e não dera a devida importância. Iria comprar um novo livro. Afinal Maurício o sintetizara afirmando que descrevia loucuras como incestos, defloramentos, adultérios, degolamentos, envenenamentos. Enfim era um amontoado de cenas extravagantes e narrações monstruosas que caracterizavam a literatura dos românticos europeus. Talvez para escrever tais cenas ele tenha se inspirado mais nos livros vindos da Europa do que na sua própria experiência de vida. Morto aos vinte e um anos e deixando a obra que deixou, com certeza havia dormido mais na companhia dos livros do que do vinho e das mulheres! O cabrito chegou e Alyrio degustou-o com vagar. Como sempre, estava delicioso. Terminou a refeição e caminhou de volta para a casa. O sol do inverno estava gostoso, esquentava o corpo, mas sua alma estava triste. Não fora ele a matar Melanie, no entanto ela morrera porque ele estava investigando o caso. Envolvera também Domitila, mas não fosse ela, ele não conseguiria desempenhar aquele enterro no Araçá. Sozinho, teria sido muito mais difícil livrar-se do corpo. Por um momento recordou toda aquela loucura de transportar o corpo em cadeira de rodas para o cemitério. Só que na cena que visualizava estavam também os rapazes escaveirados, vestidos em capas pretas e segurando suas caveiras, observando a cadeira de rodas e colocando no olhar toda a surpresa que a cena causava. Um deles afirmou que aquele seria um tema e tanto para seus contos macabros! Um tropeço num buraco da calçada, trouxe Alyrio de volta à realidade e a figura de Sônia se sobrepôs àquela maluquice. Teria sido avisada da morte da filha? Para não se deixar 108 afundar na tristeza depois de um almoço tão gostoso, tentou se concentrar na rua e nas casas por onde passava. Ao chegar em casa a cerveja fazia efeito. Alyrio foi para o quarto com o jornal, desfolhou-o, leu alguns artigos e adormeceu. No final da tarde, conforme combinara, retornou à casa de Sônia a fim de devolver os cadernos de Melanie. Estava apreensivo. Eram muitas as possibilidades a esperá-lo. Ao chegar aos portões, tudo parecia calmo. No entanto, ao anunciar-se na portaria, soube que a casa abrigava uma verdadeira revolução. Foi o próprio porteiro a lhe falar que no meio do dia, alguém entrara no quarto de Melanie. Com toda a segurança e o séqüito de empregados e cachorros, alguém invadira a casa sem que ninguém percebesse e revistara o quarto. Quando dona Sônia chegou do almoço e percebeu, não havia um item que não estivesse no chão. Os armários esvaziados, até o colchão havia sido esfaqueado. E o invasor desaparecido. E como as desgraças não vinham sozinhas, minutos depois receberam um telefonema do Instituto Médico Legal pedindo que alguém da família fosse reconhecer o corpo de Melanie. Acharam até que fosse alguma brincadeira de mau gosto, mas por fim tiveram de acreditar. Dona Sônia e Dr. Renato haviam retornado e estavam arrasados. Alyrio soube tudo isso pelo porteiro. Quando o mordomo chegou e percebeu a conversa, lançou-lhes um olhar afiado. Diante do silêncio que se fez, aproveitou para postar-se como uma sentinela à frente dos portões. Intimidado pelo olhar, Alyrio abaixou a cabeça e observou os sapatos do mordomo, os do porteiro e os seus. Os três tinham uma boa aparência e estavam limpos. Depois de um profundo suspiro, sentiu que precisava naquele momento abraçar Sônia. Dar o apoio que ela deveria estar precisando. Voltou-se para o mordomo que tinha o olhar fixo nele. Com o peito bem aberto, o homem deixou muito 109 claro que não havia a menor possibilidade dele, ou qualquer outra pessoa, adentrar a casa. Com olhos muito tranqüilos, Alyrio lembrou ao mordomo que a casa havia sido invadida e que ele poderia estar envolvido com o invasor. Afinal estava ali para cuidar de todos os detalhes e alguém entrara na casa e revistara um cômodo sem que ninguém, especialmente ele, notasse qualquer movimento. Nem os cachorros latiram! - Não estaria encobrindo alguém? - Alyrio encerrou com uma pergunta que supôs estremeceria os alicerces do homem. Sem o menor sinal de abalo, o mordomo lançou-lhe um olhar de pouco caso e estufou um pouco mais o peito. Alyrio achou melhor seguir o bom senso e retornar numa hora mais propícia. Ao entrar no carro e colocá-lo em movimento, passou a mão pela mala do micro que continha os três cadernos de Melanie. Era ali que estava a ponta do fio que desenrolaria a meada. Ou melhor, eram as cinco folhas arrancadas que continham o segredo e que estavam ocasionando tantas mortes. Já não tinha dúvidas. Pensou que quem revistara o quarto fez uma bobagem, pois do jeito que Melanie era esperta em camuflar as evidências, poderia ter escondido aquelas folhas em qualquer local da mansão. Ou em qualquer outro local que freqüentava. Jamais as esqueceria no próprio quarto! 110 20. Os pensamentos fervilharam de tal forma na cabeça de Alyrio que quando se deu conta seu carro estava em frente à casa de Domitila. Uma brisa fresca circulava pela cidade. Por ser domingo, as ruas estavam mais vazias e foi fácil estacionar. Mais uma vez ele se dirigia a casa de Domitila tentando esquecer Melanie, ou o que ocorrera com Melanie. Na primeira vez, tentava esquecer um envolvimento sexual desnecessário com uma guria drogada e agora tentava esquecer que a levara para o túmulo. Com certeza algum mendigo que costuma dormir no cemitério a encontrou. Alyrio chegou a sorrir pensando no susto que levou quem se deparou com o cadáver sentado numa capela de um dos túmulos do Araçá. Ele tocou a campainha e Domitila abriu a porta. Depois do abraço e dos afagos, os dois subiram para o ateliê. Ela ajeitou as almofadas do sofá onde estivera deitada lendo. - Que bom que você veio. Depois de toda aquela loucura de levarmos Melanie para o túmulo, ainda não consegui voltar ao normal. Sobrou uma ansiedade, uma turbulência pelas entranhas! Os dois estavam sentados no sofá e Alyrio limitou-se a abraçá-la, trouxe-a mais para perto, ela recostou a cabeça sobre o seu ombro, ele sentiu o perfume dos seus cabelos. - As pessoas sempre pensam que a vida de detetives é repleta de situações eletrizantes, mas na maioria das vezes as situações a que somos convocados são entediantes. - Ele falava como se conjeturasse consigo mesmo. - Talvez a forma como lidamos com a morte de Melanie tenha sido uma situação bem emocionante! Com certeza a mais emocionante que eu já vivi! - O mais próximo que cheguei da morte foi em velórios, quando tudo já 111 estava arrumado e eu simplesmente dava uma olhadinha no caixão e via um morto bem comportado, todo coberto de flores. - Domitila forçou um sorriso. - Gostaria de me desculpar de uma maneira mais formal, trazendo flores! - Naquele momento ocorreu a Alyrio que poderia ter lhe levado flores ou algum chocolate especial. - Sei que a coloquei numa situação bem desconfortável. Por outro lado, se não fosse você, sozinho não teria conseguido pôr em prática aquele plano maluco que salvou minha pele! Ela levantou a cabeça, sorriu, ele beijou-lhe a testa. Ela voltou a se aninhar ao seu lado. Ele sentiu que seu corpo relaxava. Sentiu-se perdoado. - Estou vindo da casa de Melanie. Seus pais haviam acabado de chegar do Instituto Médico Legal aonde foram reconhecer o corpo da filha. Segundo os empregados estão arrasados. - Alyrio falou ao mesmo tempo em que estremecia diante da imagem de Sônia reconhecendo o corpo apodrecido da filha. - Não tive filhos, mas imagino que uma das piores coisas que pode ocorrer a um ser humano, é perder um filho! - Neste exato momento eu gostaria de esquecer toda esta história da morte de Melanie e ter a certeza de que não vamos aparecer em algum noticiário sensacionalista. Já imaginou um cinegrafista amador que tenha nos flagrado na Avenida Paulista empurrando uma cadeira de rodas? – Ele sorriu. - Você sempre pensa no pior! Os dois sorriram. Ela se levantou e colocou numa posição bem visível um cavalete com um quadro que retratava uma das suas paisagens noturnas. Os dois ficaram em silêncio observando. - Tenho pensado muito sobre as paisagens que pintei. - Ela informou apontando o quadro. - Hoje fiquei a maior parte do tempo deitada no sofá olhando para ela, meditando, tentando me envolver, me situar na época. 112 - E chegou a alguma conclusão de onde vêm estas imagens? - De algum recanto da minha memória. - Ela ficou pensativa. - Talvez o doutor Maurício tenha razão e eu vivi uma outra vida nesta época. É uma lembrança muito forte! Acho que surge nos meus sonhos e eu retrato na pintura. Mas além da imagem não consigo captar mais nada. Nenhum flash de uma situação vivida no local! - É engraçado pensar em vidas passadas. Deveríamos ter alguma informação mais precisa sobre o assunto. - Alyrio sorriu. - Talvez seja como tentar se lembrar da infância. A gente lembra alguns momentos. Ninguém consegue se recordar de um dia completo vivido na infância, e muito menos de longos períodos. Talvez fiquem alguns traumas, alguns momentos felizes! A partir de um momento feliz, a gente vai idealizando os fatos da nossa infância e a lembrança acaba sendo uma fantasia. De outras vidas a gente tem somente relances, flashes. Talvez esta imagem tenha ficado gravada no meu espírito. Por uma razão que desconheço, quando me dediquei à pintura elas saíram do inconsciente e gravei-as na tela. - Você conhece a história da época? - Já li alguns livros sobre a história de São Paulo na época em que foi fundada a escola de direito do Largo de São Francisco. Devo ter alguns livros dos poetas românticos. Preciso procurar. Sei que todos eles seguiam o modismo da época que era a poesia de Byron, os sonetos de Bocage e um pouco do romantismo alemão de Hoffmann. Enfim, eram mórbidos. A maioria dos poetas que estudou na São Francisco acabou morrendo de tuberculose. Até isso era considerado romântico! Os dois estavam voltados para a pintura. Árvores, terra revolvida, a única claridade era a do luar. Em algum ponto não visível na pintura, havia uma lua cheia, destas que assombram o mundo. - É engraçado pensar em infância. - Alyrio fazia um esforço para se 113 lembrar. - Sou um dos poucos paulistanos que vivem em São Paulo. Nesta cidade a grande maioria dos habitantes veio de outros Estados ou outros países. Vivi minha infância no bairro de Moêma. Quando passo por lá, não existe mais nada do que foi o bairro naquela época. As residências foram derrubadas para surgirem prédios e mais prédios, e claro o shopping. As poucas que restam já não formam um conjunto que traga lembranças. A casa em que vivi foi posta abaixo e é hoje um estacionamento. Uma vez que os locais tenham sido tão modificados, posso fantasiar à vontade sobre minha infância! Ela sorriu. - Por vezes a gente lê romances fantásticos em que as pessoas retornam ao local de origem e, revendo locais que ainda são exatamente os mesmos, redescobrem lembranças marcantes, capazes de mudar todo o rumo de suas vidas. Em São Paulo, isso não é possível! Aqui temos colônias italiana, portuguesa, alemã, japonesa e nem sei quantas outras. Para que se construíssem todos os edifícios trouxemos trabalhadores de todo o norte e nordeste do país. Tudo isso vai se misturando. E vai especialmente modificando a cidade. As construções vão sendo demolidas para serem construídas outras mais modernas que vão criando novas características na paisagem. - Talvez as cidades européias tenham mais tradição. Nesta época, Domitila apontou o quadro, - São Paulo era um pouso de tropas. Quando os fazendeiros se embrenharam pelo interior plantando café e gerando grana é que as características de uma cidade foram se delineando. Afinal, todo o fazendeiro que se prezasse, construía uma bela casa na capital! - Você seria capaz de imaginar como era a Avenida Paulista antes de todas as casas dos barões do café serem derrubadas? Arrasamos um museu a céu aberto e vamos construindo e reconstruindo edifícios impessoais. 114 - É uma pena que tudo vá se perdendo desta forma. Como te falei, minhas idéias não são tão malucas como parecem à primeira vista! Com o passar do tempo, vamos descartando o que não mais nos convém e perdendo toneladas de conhecimento! - Ela sorriu, beijou-o nas faces e se levantou. Foi até a cozinha e trouxe cervejas em um balde com gelo. Os dois brindaram, beberam a cerveja geladinha e resolveram pedir uma pizza. Não estavam com vontade de sair. Ele estava feliz vendo-a sem a expressão medonha que seu rosto tomara diante da morte de Melanie. No embalo da cerveja, a conversa enveredou pelas vidas que talvez tivessem vivido e pelas que gostariam de ter vivido. Quando a pizza chegou, desceram, foram até a cozinha, ela preparou a mesa com capricho, saborearam cada pedaço. - É estranha a profissão de detetive particular! - ela mencionou enquanto comiam. - Por que? - Antigamente fazia sentido. Hoje em dia um relativismo moral tomou conta do mundo. Já não se tem o senso do adultério, nem do roubo, nem do assassinato como tabus. Porque todo o mundo é um pouco adúltero e ladrão. A começar pela nossa classe política! Nos mais altos cargos da nossa república rouba-se sem o menor constrangimento! Ele limitou-se a observá-la. Embora pensasse da mesma forma, as considerações vindas dela, o surpreendiam. - O problema é que quando as coisas acontecem com a gente, são diferentes. O mundo inteiro trai, mas ainda é difícil aceitar a traição de uma pessoa que você ama. E mesmo na classe política, as grandes falcatruas são sempre pegas por delações de parentes que se sentiram traídos. - Toda a profissão tem suas pegadinhas! - ela sorriu. – De qualquer 115 forma, neste momento a última coisa que eu queria é estar na pele dos pais da menina morta. Em geral se diz que essas tragédias que ocorrem numa vida fazem o espírito evoluir. Pura balela! Enfrentar grandes dramas traz uma anestesia da alma quando não um desmonte total. Muita gente prega e acredita que é justamente deste desmonte que os espíritos renascem e encontram novos valores. Alyrio pensou em Sônia, nele próprio. Domitila continuou: - Quando uma pessoa passa por uma situação muito dramática, as mudanças que vêm depois são simplesmente a forma menos dolorida de acomodar as frustrações. A gente tem de superar o drama, acomodar as frustrações de maneira razoável e voltar a acreditar na possibilidade de ser feliz aqui neste mundo, comendo, bebendo, amando. Sem deixar as coisas para depois. Alyrio ouviu-a e pensou em Sônia, mas também lhe vieram alguns lances da própria vida. Por um momento pensou em sua separação, nos seus filhos vivendo tão longe e na maneira como ele reacomodou a vida. Naquela hora, para reacomodar definitivamente as emoções causadas pela morte de Melanie, tomaram mais uma cerveja. Houve um momento em que um calor gostoso subiu pela coluna e os dois se beijaram como se fossem namorados há muito tempo. Ele conheceu o quarto dela que ficava no andar térreo. Fizeram amor não com os requintes que ele imaginou na noite após o vernissage da exposição, mas com muita ternura. Quando pegou o carro e foi para a casa, pensou que desde que se divorciara, transava com mulheres que encontrava por acaso e que via umas poucas vezes e sumiam de sua vida. Estar ali conversando, entrando na intimidade de uma mulher era uma experiência da qual já não se lembrava. Sentir prazer em conversar, em estar junto, era algo novo na sua vida de divorciado solitário. 116 Nos seus anos de juventude, Alyrio sempre sonhara com uma situação de perigo em que salvava a mulher e depois vivia uma paixão avassaladora. Toda aquela aventura de ter levado o corpo de Melanie para o cemitério reproduziam a cena prototípica juvenil com todos os seus ingredientes. Domitila era uma mulher interessante, tinha idéias geniais. Gostava dela, gostava muito dela, podia afirmar que estava realmente apaixonado por ela. No entanto, também podia afirmar que lhe faltava a coragem para assumir um compromisso sério. 117 21. Na segunda feira logo cedo, Alyrio foi acordado pela campainha do telefone tocando insistentemente. Para sua surpresa era Sônia. Precisava falar com ele com urgência. - A senhora poderia adiantar o assunto? - Ele conseguiu falar ainda sob o efeito da surpresa. - Precisa ser pessoalmente. - A voz demonstrava timbres de tristeza sem perder a firmeza. Em seguida ele ouviu o som do aparelho desligando. Ele entendeu que era para ir o mais rápido possível. Pulou da cama, tomou uma chuveirada bem fria e rápida, vestiu-se o melhor que pôde, pegou seu micro e, colocando na maleta os cadernos de Melanie, dirigiu-se para o Morumbi. Desta vez o mordomo estava avisado e, mesmo com seu melhor olhar de desprezo, permitiu sua entrada. - O senhor pode me seguir! - exclamou com o olhar firme e enveredou pela casa. Sem perguntas ou comentários, Alyrio o seguiu. Sabia que eram ordens da patroa e mesmo a contragosto tinham de ser cumpridas. A maravilhosa sala perdera a tranqüilidade. Usando suas melhores jóias e toaletes, as amigas de Sônia esparramavam-se pelos sofás e falavam sem parar. Uma empregada uniformizada retirava xícaras usadas e trocava cinzeiros cheios por vazios. O ar estava carregado de fumaça. A entrada de Alyrio provocou um minuto de silêncio. Todas as pessoas que estavam na sala pararam de falar e se voltaram observando sem constrangimento o novo personagem daquela história. Ele sentiu diversos pares de olhos fixos nele e examinou os rostos que 118 poderiam ser de um bando de bruxas trajando roupas sofisticadas. Ele não era bem-vindo naquele clube fechado, foi a primeira idéia que veio à mente de Alyrio. Mas em seguida sentiu exatamente o contrário. Ele era um ser raro que ia lhes trazer informações fresquinhas! No olhar de cada uma das pessoas ali, havia a pergunta: quem é você e que novidades traz? A experiência lhe ensinara que pessoas envolvidas com um assassinato espetacular, desde que não estivessem de luto pela vítima nem se sentissem pessoalmente ameaçadas pela investigação policial, gostavam da emoção proporcionada pelo esbarrão com a morte violenta e a notoriedade de estar por dentro do ocorrido. Sem aplacar-lhes a curiosidade, Alyrio, seguindo o mordomo, percorreu as salas cumprimentando a todos com um sorriso velado. Enveredou pelo corredor e foi deixado no escritório onde se deparou com Sônia. Ela estava sentada no sofá em que Melanie havia se deitado em seu colo. Seus olhos estavam congestionados pelas muitas crises de choro. Alyrio conteve um ímpeto de correr até ela, abraçá-la e confortá-la. A presença daquela mulher o perturbava. Mesmo naquele estado emocional lastimável, ela mantinha um charme que movimentava alguma coisa em suas entranhas. - Já não bastasse ver minha filha morta, alguém me telefonou! Disse que estou escondendo alguma coisa muito valiosa e eles querem que eu a providencie imediatamente! - ela voltou-lhe seus olhos lacrimosos. - E qual é a coisa valiosa? - Não faço a menor idéia! Não tenho coisa alguma de minha filha. Tudo o que era dela estava no quarto. De repente ela desfez o ar choroso e encarou-o com firmeza. - Os cadernos que o senhor levou! Com certeza era isso que procuravam! 119 Alyrio tirou-os da maleta do micro e entregou-os. - Li e reli tudo. Não há nada que traga pistas ao caso! - Ele abriu o caderno no local em que haviam sido arrancadas algumas páginas. - Talvez aqui houvesse algo realmente importante, mas infelizmente já haviam sido retiradas quando levei aqui da sua casa no sábado. Ela pegou os cadernos e examinou-os. - Não costumo mexer nas coisas da minha filha. Não sei o que fazer quando ligarem novamente. Não tenho a menor idéia do que querem! Se forem estes cadernos, entrego tudo. Quanto às folhas arrancadas, não tenho idéia de onde possam estar! Neste momento entrou no escritório um homem franzino, cabelos lisos cor de estanho, magro feito um palito e feições de quem era extremamente chato. - Sou Renato, o esposo de Sônia. - O homem estendeu-lhe a mão e Alyrio sentiu um aperto de mão úmido e sem vigor. Respondeu ao cumprimento pensando que aquele homem não tinha coisa alguma a ver com a maturidade resplandecente de Sônia. Com certeza sua qualidade essencial era ter grana suficiente para que ela mantivesse o charme! - Estamos vivendo uma irrealidade de tal ordem que precisamos de ajuda e o senhor vai nos ajudar. Alyrio sentiu que toda a fraqueza da figura era compensada pela força das palavras. Elas vinham como uma ordem seguida de um olhar muito penetrante que não aceitaria negativa. - Fui contratado pelo doutor Gastão, irmão de Rita, e acredito que é por isso que outras desgraças estão acontecendo. - É exatamente por isto que o senhor é a pessoa certa para nos ajudar. O senhor sabe exatamente em que vespeiros anda mexendo! 120 Alyrio coçou a cabeça. Renato pegou uma cigarreira da mesa e ofereceu um cigarro a Alyrio. Sônia também aceitou. Depois de várias tragadas muito profundas, Renato foi até o carrinho com uma bandeja de garrafas e sem perguntar, serviu generosas doses de uísque puro em três copos. - Estamos precisando disto! - Falou enquanto distribuía os copos. Alyrio molhou a língua e percebeu que Sônia emborcou todo o seu e estendeu o copo para que o marido a servisse novamente. Ele o fez, e desta vez ela bebeu mais devagar. Sentindo o uísque de ótima qualidade descer muito suave por sua garganta, Alyrio relaxou um pouco. Sônia tomou fôlego e falou: - Vamos aos fatos. O senhor esteve aqui para falar com minha filha sobre a morte de Rita que para a polícia já estava solucionada. Na conversa, sei que não obteve nada além do que os jornais publicaram. Depois o senhor retornou e me pediu que lhe entregasse os cadernos. Fui ao quarto dela, encontrei-os e entreguei-os ao senhor. Minha filha havia viajado com amigas da escola, ou pelo menos foi o que ela me disse e recebo a notícia de que seu corpo está no Instituto Médico Legal. Fomos até lá fazer o reconhecimento. Ficamos sabendo que Melanie passou o final de semana morta, sentada na capela de um túmulo! Ela ainda não foi enterrada, pois o corpo não foi liberado. Entraram na minha casa com toda a segurança que temos, revistaram o quarto e nenhum dos empregados notou. A polícia já averiguou e na escola ninguém viajou com Melanie. As amigas não a viram desde a última aula na sexta-feira. Com quem ela viajou ou com quem ela estava? Quem entrou no quarto? - Precisamos dos seus serviços. - A voz de Renato ressoou pelo aposento interrompendo a ladainha de Sônia. - Este caso, a cada dia se complica. - Alyrio confessou. - Não se 121 esqueçam da outra menina, Solange, que foi encontrada nas margens do rio Tietê. Acredito que ela é parte desta trama. Os dois o olharam surpresos. - O senhor havia mencionado Solange quando veio buscar os cadernos de Melanie. - Sônia parecia pensar alto. - Mas não imaginei que estivesse envolvida. Antes de ver minha filha morta, não pensei em coisa alguma. - Precisamos de seus serviços! - mais uma vez a voz de Renato soou como uma ordem. - Sua agência foi bem recomendada. Quero que faça uma investigação completa. Quero saber tudo o que ocorreu desde que minha filha começou a ser amiga desta professora. Ou melhor, desde que passou a fazer parte desta trama que acabou com sua vida. E tudo com muita discrição! Alyrio olhou para Sônia e não falou em honorários, achou que depois combinaria com Renato. Pigarreou e perguntou: - Vocês sabiam se Melanie usava algum tipo de droga? Renato e Sônia se entreolharam. Foi perceptível o sangue subindo pelas faces de Renato. - Minha filha era uma menina exemplar! – Renato cuspia as palavras. Jamais se meteu com drogas e Rita fazia uma grande campanha contra as drogas! Creio que foi morta exatamente por tentar expulsar dois pivetes que faziam parte da venda de drogas! Alyrio esperou o homem se acalmar enquanto pensava como eles podiam ignorar. Recordou-se de Melanie lhe dizendo que a casa era uma tumba e que seu pai jamais lhe permitiria qualquer aproximação. Com certeza nenhum dos dois jamais se aproximou da filha e não perceberam suas necessidades afetivas e emocionais. Diante de algum problema, contratariam os serviços de um profissional, psicólogo ou psiquiatra. Frente aos empasses da vida, Melanie optara pela droga. Afinal é o mais 122 fácil! Sair da realidade quando surge um problema! Ou simplesmente se deixara levar pelo modismo e depois não havia porque se preocupar em sair do vício! O telefone tocou. Renato atendeu. Deu algumas ordens. - Temos de impedir que os telejornais sensacionalistas explorem o caso! sua voz era uma ordem. - Quero sigilo absoluto nas investigações! A partir de agora o senhor também trabalha para mim e quero ser informado de cada detalhe da investigação. – Renato entregou-lhe um cartão com seu celular particular. Alyrio percebeu que a entrevista estava terminada. Saiu atordoado. Passou pela sala e mais uma vez sentiu-se observado por todos que aproveitavam a chance para uma reunião. Na porta da sala estava o mordomo que o seguiu até o carro. Antes de entrar, Alyrio voltou-se para ele e o encarou: - No primeiro dia que vim falar com Melanie ela havia fumado maconha. Você sabia que ela se drogava? Uma bofetada bem dada não teria causado dano maior. O homem olhou-o estupefato. Seus olhos queriam saltar. - Fui contratado para uma investigação. - Alyrio esclareceu. - Acho bom você colaborar. Alguém entrou aqui e revistou o quarto da menina com a cumplicidade de um dos empregados! Ele ficou parado por um tempo e Alyrio podia sentir seu sangue agitando-se pelo corpo. E foi ficando de tal forma agitado que Alyrio teve medo de ser agredido. Depois de algum tempo em que ele finalmente optou por acalmar-se, falou com a voz que conseguiu: - Já que o senhor foi contratado, vamos começar pelo começo. Meu nome é Abelardo. Alyrio pensou em dizer que sempre achou que fosse Jarbas, mas 123 absteve-se da brincadeira. Sentiu que não era a hora. - Claro que o cheiro de maconha andava por toda a casa e eu cheguei a falar com dona Sônia. - Graças a Deus alguém na casa percebia! - Alyrio levantou os olhos para o céu. - E o que foi que dona Sônia respondeu? - Ela não acreditou. Ficou indignada! Achou que eu estivesse inventando e acreditou na palavra da filha que dizia fumar cigarros de cravo. Como dona Sônia e doutor Renato fumam muito, talvez não sentissem a diferença. Eu não fumo e posso distinguir cada cigarro diferente. Especialmente os de maconha. - Abelardo tomou fôlego e continuou: - Eles também tem uma vida social muito intensa e talvez não tivessem tempo de observar que a menina chegava em casa sem se agüentar nas pernas, cheia de drogas. Alyrio sentiu que Abelardo se descontraía. Bateu-lhe nas costas e falou: - Preciso descobrir quem entrou aqui e qual dos empregados o ajudou. Para isto preciso muito da sua ajuda. Vou interrogar cada um deles, mas gostaria que você os observasse e me dissesse qualquer coisa de diferente que notar ou que se lembrar da hora em que o quarto foi revistado. - Pelo portão ele não passou. Além do guarda que fica ali vinte e quatro horas, pode-se ver pela câmara. - Abelardo esboçou um começo de sorriso e Alyrio sentiu que poderia contar com ele. - Qualquer coisa me avise! – Alyrio falou entregando-lhe um cartão com seu celular. Em seguida lançou um olhar pelos jardins que chegou até os muros que se misturavam à vegetação. Entrou no carro e seguiu para o escritório. Ligou o rádio. O locutor anunciou as notícias locais. Alyrio escutou pacientemente as últimas atrocidades ocorridas na cidade, antes de escutar o locutor falando do corpo de uma 124 adolescente encontrado num túmulo do cemitério do Araçá. A moça se drogara quase à morte, mas alguém a apressou dando-lhe uma paulada na nuca. Não havia outros sinais de violência. Não havia sido estuprada. Tratava-se de uma jovem branca, de dezesseis anos, que havia sido identificada pela família. Não havia pistas de quem fizera tal barbaridade. E agora a previsão do tempo, o locutor continuou e Alyrio desligou. Fora contratado para descobrir ele mesmo. Afinal fora ele a levar o corpo para o cemitério. Livrara-se do corpo e da encrenca, mas não fora ele a matá-la. Era exatamente quem a matou e que também matara Solange e Rita que ele precisava descobrir. E rápido! Antes que outras mortes ocorressem! Mais uma vez veio-lhe à mente a figura do estudante Álvares de Azevedo. Ele pressentira a própria morte e a de dois colegas. Tinha uma percepção tão aguçada que se dera ao luxo de escrever na parede da república em que vivia o nome e o ano em que morreriam. Mesmo tendo tido um sonho bastante estranho na delegacia, Alyrio não conseguira prever sequer a morte de Melanie. E agora, se não se apressasse a desvendar tudo aquilo, com certeza seria ele o próximo a fazer parte da lista! 125 22. Alyrio estava organizando a correspondência e pegando os recados da secretária eletrônica quando ouviu as batidas na porta. Em seguida George entrou. - Onde tem andado nosso detetive? Alyrio percebeu que ele estava num de seus momentos de solidão e que o papo seria longo. - Ando num mato sem cachorro! - Alyrio sorriu. George levantou a mão com uma garrafa de vinho. Foi até a cozinha e trouxe o saca-rolha. Abriu o vinho e serviu em duas taças. Os dois levantaram as taças num brinde silencioso e beberam. Ao ingerir o vinho, Alyrio pensou que passara boa parte da manhã na casa de Sônia e percebeu que estava com fome, com muita fome. Como se aquele pensamento fosse direto para a mente de George, ele falou: - Hoje você não me escapa, vamos almoçar juntos. Sabia que você viria ao escritório e trouxe os ingredientes para um arroz de polvo. Os olhos de Alyrio brilharam de prazer. - Tem algo em que estou trabalhando que com certeza você vai poder me ajudar. Preciso saber um pouco sobre a história de São Paulo na época dos poetas românticos. - Ah! Os poetas românticos... Homens jovens que sofriam e se angustiavam com paixões impossíveis e idéias fúnebres. Viviam empolgados e arrebatados pelo pressentimento da morte. George suspirou fazendo a melhor cara de poeta romântico e reencheu os copos enquanto Alyrio fazia um resumo do caso. Falou sobre a morte de Solange e Melanie. Uma antes e outra depois da professora. Sendo que Melanie parecia o elo a 126 unir tudo aquilo. Falou também sobre Domitila, as paisagens noturnas e as vidas passadas, provável fonte de inspiração para seu trabalho. George ouviu com atenção e bateu sua taça na de Alyrio: - Já temos pelo que brindar! Aliás, é o assunto certo para acompanhar meu arroz de polvo. Os dois emborcaram o vinho. - No final de semana estive em Bertioga e trouxe alguns peixes, inclusive polvo. Ando com desejo de comer arroz de polvo e é um prato que não se deve comer sozinho. - Toda a tensão da manhã me deixou morrendo de fome. O polvo é de preparação demorada? - Alyrio estava ansioso para ver a comida pronta. - Trouxe o polvo cozido. É só fazer o refogado, misturar o polvo e cozinhar o arroz. Nada além de meia hora. Alyrio foi até a geladeira. Aquele vinho precisava de alguma coisa para forrar o estômago. Encontrou uns pedaços de queijo e colocou-os sobre uma tábua. Abriu um pacote de amendoins. George foi até seu escritório e retornou com os ingredientes, outra garrafa de vinho e pão fresco. - Meu querido, quanto a vidas passadas, já cheguei a um estágio em que acredito em tudo. A vida é tão misteriosa que tudo pode ser. - George falou enquanto organizava os ingredientes na minúscula cozinha. - Como pode, inclusive, não ser! - O meu problema é investigar as mortes desta encarnação! - Alyrio sorriu. – Estou começando a acreditar que a vida de alguns estudantes que viveram em São Paulo no século XIX vem inspirando a matança. Com certeza você conhece a história de São Paulo o suficiente para me orientar. - Apesar de estar preparando um molusco, prefiro vinho tinto. Era a bebida predileta dos poetas românticos. - George levantou o copo, olhou o vinho, 127 sorveu mais um gole. - Bem, acho que eles bebiam de tudo. Dizem que até éter bebiam. George conferiu os ingredientes e aprovou. Estava pronto para começar. - Lembra de Noite na Taverna de Álvares de Azevedo? Ali ele envereda por uma seqüência de narrações onde os protagonistas se apaixonam por mulheres perdidas e vivem todas as monstruosidades do romantismo criado na Europa. Talvez, além de serem bons de escrita, fossem bons de cama e de copo! E suas esbórnias começavam sempre com garrafões e pipas de vinho. - Sei que você conhece muito bem o assunto e tenho certeza que vai encontrar alguma coisa que tenha a ver com o que está ocorrendo. A primeira vez em que estive com Maurício, ele me falou de orgias em cemitérios. E é exatamente este fato que inspira as paisagens noturnas que Domitila pinta! Não estou nem um pouco tentado a ler uma infinidade de livros para encontrar um pedaço da história que se encaixe no meu caso. Aliás, nem teria tempo para isso! O vinho terminou e Alyrio abriu outra garrafa enquanto George picava cebola e alho, esquentava azeite de oliva e colocava tudo para refogar. Depois de algum tempo pensativo, George fez uma cara que se lembrava de algo promissor: - Vou falar um pouco sobre a Sociedade Epicuréia. Devem ter existido muitas outras sociedades de estudantes, mas esta deixou história e bons registros. O assunto é longo, mas acredito que é o que mais combina com o seu caso e com o arroz de polvo. Alyrio levantou o copo a incentivá-lo. - Na época em que se fundou a escola do Largo de São Francisco e os estudantes começaram a vir de todo o país, São Paulo não possuía a riqueza e o esplendor das cidades no norte e nem o charme da corte que era o Rio de Janeiro. A garoa e o nevoeiro contribuíam para dar à cidade uma aparência peculiar. Os poetas 128 românticos viam nesta garoa o mistério e a melancolia da Londres de Byron. O clima favorecia idéias fúnebres e pressentimentos de morte. Garoas e dias cinzentos favorecem a introspecção. Com certeza esse foi o ponto principal para que o romantismo fosse tão cultuado em São Paulo! George falava sem perder a concentração no refogado que mexia até tudo ficar dourado por igual. - Na Academia de Direito, havia uma sociedade de estudantes com o nome de Epicuréia. Seus membros escreviam, falavam e viviam à maneira de Byron. Os especialistas afirmam que como tudo o que é copiado por nós, brasileiros, também o romantismo foi cheio de exageros. Os membros das tais sociedades secretas caíram na degeneração, entregando-se a orgias e excessos físicos de toda espécie e a um culto mórbido da morte com todos os seus emblemas sepulcrais. George colocou o polvo já cozido sobre o refogado. Alyrio sentia um cheiro muito bom que lhe aguçava o apetite. - Você mencionou paisagens noturnas que o construtor reconheceu como sendo de um cemitério aonde se realizavam orgias e a pintora Domitila reproduz como se tivesse lá vivido. Vou contar um fato que está nos anais da nossa cidade. George provou um bocadito, fez um olhar de quem aprovava e colocou o arroz, vários fiozinhos de açafrão e a água. Mexeu tudo. Provou novamente e retificou o tempero, rodando mais um pouco o moedor de pimenta do reino. Depois de alguns minutos reteve na mão fechada o vapor que saía da panela e levou-o ao nariz. Aspirou fundo e esboçou um ar de aprovação. Colocou a tampa sobre metade da panela e veio se sentar ao lado de Alyrio. - Certa noite, em meados do século dezenove, um grupo de estudantes pertencente à Sociedade Epicuréia, vagueava pelo cemitério, pisando nos túmulos e declamando versos de Byron e os que eles próprios compunham para a ocasião. Com 129 certeza freqüentavam o cemitério muitas noites, inclusive para obter a caveira que era obrigatória para cada estudante. No entanto, naquela noite foram possuídos da idéia de fazer uma rainha dos mortos. Trazer orgias sexuais para dentro do cemitério! Claro que a noite acabou em tragédia e por isso ficou registrada. O aroma do arroz de polvo inebriava todo o ambiente e aguçava-lhes o apetite. Os dois beliscavam bocaditos de queijo e bebiam vinho. - Para realizar uma festa a altura da fama que possuíam, os estudantes precisavam se paramentar. Para isso, foram a uma loja maçônica onde apanharam vestimentas e mantos de aparência tétrica. Em seguida entraram na casa de uma mundana. Esse era o nome que usavam na época para designar as putas. Ou melhor, é o nome que os cronistas de época usavam e que a gente pode ainda ler. George foi até o fogão, levantou a tampa da panela, mais uma vez reteve o vapor na mão e aprovou o cheiro. Abaixou o fogo e tampou a panela completamente. - Contam que naquela noite, depois de muita bebedeira, os estudantes saíram do prostíbulo levando uma das moças. Talvez até fossem várias, mas apenas uma acabou morta. Envolveram-na naqueles aparatos da maçonaria, colocaram-na em um esquife e rumaram para o cemitério. Lá, no meio da terra recém cavada, do pio das corujas e talvez até sob a luz de uma lua cheia assombrosa, todos eles se lançaram sobre a moça e a possuíram e estupraram até a morte. E segundo a crônica da época, continuaram a possuí-la mesmo morta e em seguida gritavam! “Osculei um cadáver!” Para quem vivia com a cabeça cheia das leituras Byronianas e vapores de álcool, deve ter sido a coroação do todos os atos macabros com que se masturbavam! Claro que os estudantes eram filhos de famílias importantes e a pobre moça, como é descrita nas crônicas, uma reles mundana. Largaram a morta no cemitério e o caso foi arquivado. George mantinha-se em pé, controlando a panela e bebericando seu 130 vinho. - Com certeza é esta a sociedade que os donos da construtora pesquisam e imitam! - Alyrio estava satisfeito com a história. - Em qual cemitério o fato ocorreu? - Cemitério da Consolação. Acho que era o único, muito afastado da cidade! Por um momento Alyrio pensou que poderia ter andado um pouco mais e colocado o corpo de Melanie no Cemitério da Consolação. Daria um toque mais charmoso à sua crônica! George foi para perto da panela, tirou a tampa, colocou cheiro verde bem picadinho, uma boa dose de conhaque e mexeu tudo. Tampou e desligou o fogo. Enquanto o arroz de polvo descansava, como se preparasse um ritual religioso, colocou sobre a mesa do escritório a toalha, dois pratos e talheres. Aprovou tudo com o olhar enquanto emborcava mais uma taça de vinho. Então trouxe a panela, e com uma expressão de orgulho e satisfação, serviu. Alyrio esperou que parasse de fumegar e experimentou: - Sinto-me como aquelas apresentadoras de programas femininos provando os pratos e revirando os olhos! - Só que no caso delas é mentira, pois ninguém pode gostar de tudo. Elas provam diariamente coisas diferentes e reviram os olhos para tudo! - O seu polvo está divino! – Alyrio revirou os olhos e sorriu. - Está mesmo! - George confirmou com palavras e com a expressão de satisfação que todo o seu corpo emanava. - Eu andava com desejo de comer este polvo. Caprichei no preparo e ele saiu do jeito que gosto. Por alguns momentos os dois ficaram em silêncio com os maxilares empenhados na mastigação. - Sua querida Domitila, com este nome, deve ter vivido na época dos 131 estudantes românticos. Ou melhor, a mãe dela deve ter se lembrado da importância do nome na hora de batizar a filha! - Depois de comer a primeira porção e servir-se da segunda, George voltou a falar: - Pensando em vidas passadas... Ou melhor, se pudermos acreditar nelas, sua pintora poderia ter sido uma das mundanas que esteve no cemitério e assistiu os estudantes treparem até que uma delas morreu. Deve ter ficado apavorada e a imagem permaneceu em sua alma por outras gerações! Não acredito que a senhora Domitila participasse de alguma das orgias dos estudantes no cemitério! Os dois tinham as faces afogueadas pelo vinho e suas expressões demonstravam o tanto que estavam apreciando o prato. - Comendo este polvo e bebendo um vinho tão bom, a gente acredita em tudo! - Alyrio falou entre uma garfada e outra. - Viver uma situação destas deve ficar gravada por muitas gerações. Você me contou a história certa! - Gosto muito de ler sobre a história da nossa cidade. Fala-se muito de orgias e desregramentos dos poetas e do tempo do romantismo. Se pensarmos que eles estudavam, escreviam, se apresentavam em saraus sérios na casa da Marquesa, as orgias não poderiam ocorrer com tanta freqüência! É que antes da instalação da Academia em São Paulo, a cidade era muito pacata. A única ocorrência era a chegada das tropas. Os dois comeram até os últimos grãos de arroz. - Imagine uma cidade com não mais de dois mil habitantes. Quando os moços começaram a chegar de outros estados com novos costumes, já deve ter sido uma comoção. Imagine que de repente as tavernas começaram a funcionar e os prostíbulos também! Acredito que existiam um ou dois prostíbulos que ficavam perto do cemitério. Desde as moças casadoiras de boas famílias até as mundanas, todas devem ter se alvoroçado com a chegada de tantos rapazes de famílias que podiam 132 sustentá-los estudando aqui e vestidos em suas capas pretas! Claro que quem mais se divertiu foram as mundanas que tiveram clientes bem mais charmosos do que os tropeiros a que estavam acostumadas! O vinho terminou e os dois ficaram conjeturando sobre a cidade em meados do século dezenove. - Não se esqueça que Álvares de Azevedo, além de poemas e os contos de Noite na Taverna, escreveu peças teatrais e muitos textos literários. Suas cartas são crônicas vivas da cidade de São Paulo. Se pensarmos que ele morreu com vinte e um anos, pode-se dizer que dormiu mais na companhia dos livros do que das mulheres! George foi até seu escritório buscar o licor, trouxe um livro e leu alguns trechos: A Sociedade Epicuréia foi fundada em 1845. Era uma sociedade voltada para orgias e farras sem fim, cujos membros eram grandes bebedores e farristas. Além, claro de serem poetas românticos. Amor, poesia e morte eram o tríptico do romantismo. Os representantes desta escola poética sempre se deram mal com o destino. A maioria morreu jovem vítima de tuberculose que era a doença típica dos românticos. Sofriam e se angustiavam com idéias fúnebres. Viviam empolgados e arrebatados pelo pressentimento da morte. Até que sentiam nos próprios pulmões e nas hemoptises os motivos concretos para esperar a morte. Na época, a tuberculose não tinha cura e os jovens estudantes acabavam por contraí-la. George fechou o livro e colocou uma panelinha com água para ferver e passar o café. Alyrio deitou-se no sofá. Era impossível pensar com clareza depois de tanto vinho e uma comida tão deliciosa. Dando continuidade ao seu ritual, George tirou os pratos e ajeitou a mesa enquanto a água fervia. O telefone tocou e nenhum dos dois atendeu. Alyrio estava semi dormente no sofá e George estava passando o café. Era a secretária do doutor Gastão que, com a voz bem treinada, deixava um recado. Doutor Gastão Ferraz Bastos tinha 133 urgência em falar com Alyrio! Alyrio revirou-se no sofá. - É ele quem me paga e preciso redigir o relatório. Antes tenho de ligar para a casa de Sônia e saber se o corpo de Melanie foi liberado e quando vai ser o enterro. Bem, o mais urgente é descobrir quem está apagando as pistas com novos assassinatos! George serviu o café e um cálice de licor de anis. Afirmou ser aquele licor o ideal para elevar o pensamento até a solução de problemas como aqueles. Resolveram fechar os escritórios e ir raciocinar em casa com mais conforto. 134 23. Alyrio chegou em casa atordoado pelos vapores do vinho. Conseguiu retornar o telefonema de Gastão e deixou um recado na secretária tentando agendar um encontro para o dia seguinte pela manhã. Em seguida ligou para a casa de Sônia. Abelardo atendeu e informou que ainda não tinham previsão para a liberação do corpo e muito menos para o enterro. Na casa estavam todos bem e não houvera outros telefonemas ameaçadores. Depois de gaguejar um pouco, falou que a arrumadeira, contratada há pouco tempo, havia desaparecido. - Você não pede referências ao contratar uma empregada? - Claro! - seu tom era defensivo. - Nossos empregados são contratados por uma agência! Temos xérox de todos os documentos dela. - Com certeza foi ela a abrir a porta para quem esteve aí revistando o quarto. - Alyrio suspirou e despediu-se pedindo que o avisasse tão logo o corpo fosse liberado. Os vapores do vinho o deixavam em estado de levitação. Ele sentou-se e abriu o micro a fim de redigir um relatório detalhado, mas seu corpo relaxou no sofá. De qualquer forma, bastava aquela luz azulada para que ele sentisse uma companhia amiga ao seu lado. Recostou a cabeça no encosto e deixou as imagens rolarem sem a organização que buscava para escrever o relatório. Conseguiu visualizar com bastante nitidez as cenas descritas por George enquanto preparavam e degustavam o arroz de polvo. Viu as orgias dos estudantes, a sociedade Epicuréia, a tal mundana estuprada ou simplesmente usada até a morte e largada no cemitério. Era a partir de orgias como aquelas, que poetas do romantismo compunham seus versos. Era preciso bebedeiras para que sentissem a exaltação das paixões que na vida real não sentiam! E enquanto visualizava as tantas imagens 135 perdidas no tempo, mais uma vez veio-lhe a pergunta: Como é que disso tudo, surgiam as paisagens noturnas de Domitila? Que detalhes poderiam existir nos quadros que denotassem ser imagens do cemitério da Consolação em meados do século dezenove! E onde tudo aquilo se ligava às mortes que investigava? Os pensamentos de Alyrio estavam embaralhados pelos vapores do vinho. No entanto uma coisa estava bem clara em sua mente. Sônia precisava de proteção. Se alguém ligara pedindo o que ela possuía de especial não ia desistir enquanto não conseguisse. No caso dele, Alyrio, não existia um talvez. Com certeza estava correndo perigo e à medida que descobrisse mais detalhes daquele caso, aumentavam as chances de ser o próximo a ter de ser apagado! O perigo que corria foi a última coisa que se recordava de ter pensando antes de adormecer profundamente. O despertador acordou-o. Por um momento nem sabia onde estava. Um nevoeiro onde via Melanie em sua casa, cafungando montanhas de pó, ao mesmo tempo em que via um maltrapilho com uma expressão de tremendo espanto ao deparar-se com o cadáver no cemitério. Por fim reconheceu as paredes e o teto de seu quarto. Depois de alguns minutos de luta contra aquelas visões em que ria muito do susto da pessoa que encontrava o cadáver de Melanie, tentou se lembrar como transportara o próprio corpo do sofá da sala para a cama no quarto. Logo desistiu e decidiu ir para a cozinha preparar um café. Enquanto esperava a água ferver foi para o banheiro e lavou o rosto com água fria na tentativa de despertar de vez. Levantou o rosto ainda molhado e mirou o espelho. O que viu foi um sujeito que, pelos cabelos e a expressão fisionômica, lembrava o maltrapilho do sonho. Só que sua expressão não era de susto, mas de estar se divertindo muito! Pela primeira vez lhe ocorreu que levar Melanie para um túmulo havia sido uma grande travessura. Poderia ter dado muitas outras soluções ao corpo, mas aquela que leu em 136 algum livro policial lhe pareceu a mais travessa! Não podia negar que se deliciara diversas vezes relembrando os detalhes e imaginando o susto de quem a encontrara. Mesmo os sem teto que dormiam nos túmulos do cemitério, não estavam acostumados a se deparar com cadáveres. Viam os caixões descendo para as covas, mas jamais viam um morto de verdade. O que encontrou Melanie deve ter tido um tremendo susto! Alyrio lavou o rosto com água fria várias vezes, e foi para a cozinha. Abriu a lata e percebeu que havia esquecido de comprar café. Também não havia pão para torrada. Resolveu ir tomar café na padaria. Desligou o gás. Subiu, vestiu-se e saiu. Ao fechar o cadeado do portão da sua casa, por um momento, ficou na dúvida se seguia em direção ao centro e tomava café no shooping ou se ia na direção da Paulista. Atraiu-o a média com pão e manteiga da padaria em frente a Casa di Dante. Sempre que caminhava até a Paulista, uma das atrações era o pão fresquinho besuntado de manteiga e esquentado na chapa. Passou pela igreja da paróquia do Divino Espírito Santo que já começava suas atividades com as crianças. Algumas vezes ele entrava na igreja. Mas naquela manhã limitou-se à lembrança das vezes em que entrara quando a igreja estava vazia. Gostava da calma, os vitrais refletindo uma luz sensata, a quietude que trazia uma ligação com algo acima das lides diárias. Incrível que na ruazinha em frente ficasse o Hotel Lover! Entrou na padaria e pediu a média com pão e manteiga. - É com manteiga? - Com muita manteiga. – Alyrio não podia nem com o cheiro de margarina e o garçom já o conhecia. - É doutor, a gente pergunta por que às vezes o médico proíbe a manteiga e o freguês muda! 137 - Se o doutor proibir, como pão seco! Enquanto sorvia a primeira xícara de café com leite, observava a casa di Dante, um antigo palacete de três andares que sobrevivera a destruição desse tipo de imóvel na região. Como gostaria de voltar no tempo e poder observar a vida das pessoas naquela casa. Com certeza fora construída e pertencera a um dos grandes barões do café. Por um momento vislumbrou as damas muito alvas e bem vestidas, se abanando com seus leques e com suas mucamas ao redor para satisfazer-lhes os caprichos. Será que aquela casa já existia quando a Academia de Direito do Largo de São Francisco foi fundada e os estudantes faziam suas farras? O garçom colocou à sua frente o prato com o pão quentinho, tirando-o de suas divagações. Alyrio pediu mais um café com leite e comeu o pão com vagar, observando as pessoas que começavam o dia com o café na padaria. Depois de tomar a segunda xícara de café com leite, resolveu caminhar um pouco. Saiu da padaria em direção à Paulista. Na esquina deparou-se com uma avalanche de jovens do cursinho Etapa. Na outra esquina um hotel mais requintado, o Della Volpe. Os táxis faziam fila para pegar os executivos que haviam começado o dia com um breakfast no hotel. Em seguida um hotel mais luxuoso, o Crowne Plaza, com seu Espaço Empresarial e em frente a Maternidade do Hospital São Paulo. Até quando aquela maternidade, com um terreno com possibilidades imobiliárias fabulosas, iria resistir! Alyrio pensou e atingiu a Paulista. Apesar de ser ainda muito cedo já havia um tráfego pesado. O ventinho gelado da manhã empalidecia o rosto das tantas pessoas bem agasalhadas que andavam com pressa na direção de algum escritório. Ele caminhou alguns quarteirões pensando na casa de Sônia, com seus monumentais portões e tantos dispositivos de 138 segurança e na fragilidade da própria segurança. Contrataram uma empregada com referências forjadas e trouxeram para o seio da casa o perigo. As agências que forneciam as domésticas se preocupavam em conferir os documentos, se eles existiam, jamais se eram falsos ou não! Com certeza a empregada fora colocada lá para encontrar o que não encontraram no apartamento da finada professora. Com certeza, dia a dia, ela fuçou cada canto da casa sem descobrir coisa alguma, até que seus mandantes se cansaram e a fizeram abrir a porta para alguém mais profissional. Ela teve de desaparecer, mas o incrível era que com tanta gente na casa não tivessem visto coisa alguma. Melanie deveria andar com os cadernos e a agenda em sua mochila. Por que os deixara em casa quando avisou a mãe que iria passar o fim de semana com amigos? A única explicação é de que estava indo encontrar pessoas que ela não queria que lhe tomassem os cadernos e a agenda. Ao retornar da caminhada havia um recado na secretária eletrônica confirmando o encontro com doutor Gastão ainda naquela manhã. Recém chegado de uma caminhada no meio de uma turba de gente, Alyrio pensou na maravilha que era a tecnologia que guardava vozes que atravessavam a cidade. A secretária falou de um ponto afastado, no outro lado da cidade e a voz ficava ali, à sua disposição! Tomou banho, vestiu-se com capricho e seguiu para o escritório do seu contratante, doutor Gastão. Depois de entrar no edifício e passar pela secretária, Alyrio foi recebido por doutor Gastão. Diante do empresário, abriu o micro e, seguindo os principais tópicos, contou cada detalhe do que estava ocorrendo. Quando Alyrio se calou, Gastão juntou as mãos que continuavam muito bem tratadas e comentou: - Confirmando meu prognóstico, o caso não é um simples homicídio por causa das idéias malucas da minha irmã. Por ser ela uma ferrenha perseguidora dos 139 vendedores de droga! - Ela usava algum tipo de droga? - Alyrio fez a pergunta muito diretamente e fixou-se no olhar de Gastão. - Por toda a sua luta, eu deveria imaginar que jamais se drogou. Mas não ponho minha mão no fogo por nada do que minha irmã alardeava. Ou seja, nunca soube que se drogava, nem que não se drogava. Dizem que os traficantes não se deixam viciar. É de se imaginar que quem combate a droga não chegue nem perto de qualquer tipo de droga. Depois do que você me contou sobre o tanto que aquela guria se drogava, deve haver alguma suspeita quanto à minha irmã! Afinal eram amicíssimas. - Por que o senhor não gostava de Melanie? - mais uma vez Alyrio fez a pergunta muito diretamente e fixou-se no olhar de seu interlocutor. - Vi esta menina poucas vezes em companhia de minha irmã e foi uma antipatia à primeira vista. - Os olhos de Gastão se fixaram na parede atrás de Alyrio. Não houve um motivo específico, era sua maneira de olhar as pessoas, sua maneira de estar sempre se insinuando como uma virgem desprotegida e talvez sua aura de drogada. – Os olhos de Gastão fixaram-se em Alyrio. – Realmente não houve um motivo específico. Foi um conjunto de atitudes que me fez desgostar dela desde o primeiro momento em que a vi. Alyrio suspirou e passou os dedos pelos cabelos. Gastão parecia estar sendo sincero. Não lhe perguntou se também fizera sexo com ela. - Por acaso sua irmã tinha algum problema psicológico do tipo dupla personalidade? Afinal na escola ela combatia a droga com veemência e sua melhor amiga era uma drogada. Morreu de overdose! Eu mesmo a vi cheirando pó como uma profissional. - Não posso ter certeza de nada. - Ele suspirou. - Melanie morreu! 140 Lembrando detalhes da amizade entre elas, poderia confirmar as suspeitas de que as duas tinham um caso. Se minha irmã usava drogas, foi a partir da amizade com essa guria. As maluquices de minha irmã eram as que já lhe falei. Por toda a vida leu biografias de santos e tentou imitá-los, mas a partir do momento em que esta amizade começou, ela se transtornou, as coisas mudaram. Não sei precisamente o quê, mas mudaram! Talvez ela tenha começado a usar drogas, talvez tenha se apaixonado. Com certeza foi uma paixão violenta... - No momento, estamos lidando com vários assassinatos. Solange, Rita, um de seus supostos assassinos e agora Melanie. Existem pessoas apagando as possibilidades de se chegar à verdade! Queima de arquivo do qual eu começo a fazer parte! Gastão limitou-se a olhá-lo. - Tem certeza de que quer continuar? - Alyrio olhou-o com firmeza. - Exatamente para isso o contratei! - O risco está aumentando e tenho de cobrar mais! - Já falei que dinheiro não é problema. Quero ir até o final disso tudo! Mais do que nunca preciso saber em que enrascada Melanie envolveu minha irmã. E que acabou por envolvê-la também! - Ela era uma menina de dezesseis anos de uma família rica. - Meninas ricas também são perigosas! - Conhece Maurício Penna e Lúcio Guimarães? Suas sobrancelhas se levantaram, mas a expressão de Gastão continuou vaga. - Acho que não. - Eram amigos de sua irmã e são donos de uma construtora. - Talvez já tenha ouvido falar, mas jamais estive pessoalmente com 141 qualquer um dos dois. - Seu olhar era interrogativo. - Eles faziam parte dos endereços da agenda de Melanie e acho que têm alguma coisa a ver com o caso. Além de uma forte intuição, não tenho prova alguma. Gastão continuava em silêncio. - Você conhecia um quadro que sua irmã comprou na mesma noite em que Maurício e Lúcio foram ao ateliê da pintora? O ar de Gastão continuou vago. - O quadro está na sala de sua irmã e faz parte de uma série de paisagens noturnas pintadas por Domitila. - Estou tentando me recordar dos quadros da sala de minha irmã. Acho que vi uma paisagem escurecida. Ela tem algo a ver com os assassinatos? - O quadro com certeza não, mas seu significado, paisagens noturnas do século dezenove, talvez tenha. - Que coisa estranha, paisagens noturnas do século dezenove! Atrás de Gastão, visto pela janela, talvez a um quarteirão de distância, um gancho balançava num imenso guindaste de construção, carregando uma gigantesca coluna e um temerário trabalhador sobre ela. Alyrio observou-o e por um instante invejou sua coragem de se balançar naquela linha desenhada no céu. - A coisa está muito mais confusa do que supus. - Comentou ao voltar os olhos para Gastão. - Se estivesse fácil não o teria contratado! - A morte de Melanie vai estar nos jornais. Creio que discretamente, pois seus pais estão fazendo o possível para afastar a imprensa sensacionalista. - Tenho uma questão que há muito me importuna: A imprensa sensacionalista ajuda ou atrapalha uma investigação? - Gastão demonstrou um real interesse. 142 - É difícil dizer! Depende do caso. - Alyrio teve um flash com a guria morta em sua cama. - Afinal ela foi encontrada num túmulo do cemitério, o que não é nada comum. Também não foi um assalto nem um seqüestro. Sua morte está ligada à de sua irmã, à de Solange, à do rapaz enforcado na cela. Claro que a polícia ainda não ligou os fatos e com certeza não vai se dar ao trabalho de ligá-los. - Por vezes tenho a impressão de que mostrar os assassinatos na televisão e no cinema instiga outras pessoas a fazer o mesmo. - Quanto a isto não há dúvida. - Sabe, - ele desabafou. - Vejo esse interesse crescente por programas de TV que se dedicam ao jornalismo sensacionalista como mais um sinal da estupidificação gradativa do brasileiro. Toda esta violência me deixa desanimado... Ou talvez eu tenha envelhecido e já não suporte me sentir perdido neste país tropical calorento e selvagem. Alyrio olhou-o com certa surpresa. Afinal levando-se em conta o ar condicionado, os móveis moderníssimos de aço escovado com um design europeu e a paisagem na janela, era difícil imaginar a que calor e selvageria ele se referia. Fora o olhar surpreso, absteve-se de comentários. A campainha do telefone tirou-os de suas conjecturas. Depois de pedir um momento ao interlocutor do telefone, Gastão fez um movimento, da maneira estranha de quem quer se erguer, mas não pode ficar em pé. Despediu-se tampando o bocal do aparelho e pedindo que Alyrio o mantivesse informado. Poderia enviar seus relatórios diariamente por e-mail. Alyrio saiu do escritório de Gastão com um novo cheque e uma promessa velada de que as coisas iriam se aclarar rapidamente. Antes de entrar no carro ele levantou o olhar. Lá estava o homem sobre a coluna suspensa por um guindaste, tentando encaixá-la na estrutura. Era uma obra monumental. Na frente, os cartazes 143 informavam que seria um hotel de luxo. Por um momento, Alyrio invejou o homem sobre a coluna. Aquele desafio, aquela audácia em relação ao perigo e a morte. Por outro lado a irresponsabilidade. Mesmo que estivesse amarrado a cordas, qualquer descuido e sofreria um sério acidente. Talvez aquela fosse a selvageria a que Gastão se referiu. Quanto ao calor ainda era inverno e mesmo sendo quase meio-dia, não dava para se sentir em um trópico calorento e tórrido. 144 24. Ao chegar ao escritório, Jéferson o esperava. - Consegui falar com o suposto assassino que fugiu da delegacia. Você não vai acreditar, ele se diz irmão do preso que se suicidou na cela. – Jéfersson estava ansioso, esfregava as mãos e falava muito rápido, com as palavras se atropelando. Alyrio balançou a cabeça numa tentativa de entender. - O melhor de tudo é que consegui um encontro para você! - continuou. O cara topou falar tudo o que sabe. - Irmão! - Alyrio ainda estava digerindo as primeiras informações. - Não pedi identidade, mas o cara induziu outros amigos a reclamarem o corpo. Assistiu ao enterro e disse que estiveram juntos a vida toda. Depois do ocorrido, anda escondido. Para conseguir encontrá-lo foi preciso usar muitas das minhas amizades! Você fica me devendo esta! - E o que você prometeu em troca dele falar comigo? - A única coisa que induz o cara a falar e que movimenta o mundo: grana! - E qual é sua opinião sobre o cara? - Ele estava no local errado, na hora errada. Afirmou que realmente a professora dava duro no pessoal que vendia baseados na escola. Tanto ele como o irmão viviam de vender baseados, mas não eram assassinos e não tinham nenhuma intenção de matá-la. O cara jura que não a matou. Simplesmente precisava de grana e fez um acordo. Alguém que precisava de culpados, prometeu grana e fuga fácil. Ou seja, eles assumiriam a culpa de um crime que foram por acaso testemunhas. Em seguida fugiriam da delegacia, trocariam de identidade e continuariam suas vidas de vender baseados em outra escola, em outra periferia. Ele fugiu com facilidade e soube que o irmão havia morrido na cela. Claro que não acredita em suicídio. E sabe que a 145 qualquer descuido ele também desaparece. - E por que não te contou com quem foi feito o acordo? - Está apavorado. - E comigo não vai estar? - Ele só vai falar com o dinheiro na mão e a possibilidade de fugir para bem longe. Jéferson já conseguira acalmar a ansiosidade. Falava num ritmo mais fácil de entender. - O combinado é amanhã, neste horário de almoço, estação de metrô República. Ele vai te esperar sentado numa das cadeiras ao lado do embarque, você senta ao lado, ele fala, pega a grana, vai para a rodoviária e some no mundo! Ele quer estar sempre no meio de muita gente, acredita que é mais difícil alguém assassiná-lo. A conversa foi interrompida pelo telefone que tocava. - Senhor Alyrio? - Sim - Aqui é Abelardo. - Alguma novidade? - A agência que contrata nossos empregados tentou entrar em contato com as referências dadas pela arrumadeira e nenhum dos telefones é de quem ela afirmava ser. - Isso deveria ter sido feito pela agência antes de enviar qualquer pessoa para um emprego! - Você tem razão. Dei uma tremenda esculhambação! Eles afirmaram que quando ela entregou os telefones, deveria ter alguém instruído do outro lado da linha, pois as respostas foram compatíveis com o que ela falou e com os documentos! - Você se lembrou de alguma coisa diferente na hora em que o quarto de 146 Melanie estava sendo revistado? - Por incrível que pareça, não notei coisa alguma. - Onde você estava? - Foi no domingo, dona Sônia e doutor Renato haviam saído para almoçar e confesso que estava no meu quarto assistindo TV e cochilando. Aos domingos às vezes faço isto. A gente começa a ver aquelas bobagens que passam na TV e adormece. Mas se houvesse algum barulho estranho, com certeza eu teria escutado. Nem os cachorros latiram! - Abelardo fez uma pausa e informou: - O corpo de Melanie foi liberado e o velório será feito no próprio cemitério onde vai ser enterrada, aqui perto de casa, no Morumbi. - Antes de ir para o velório vou passar por aí. – Alyrio falou. - Avise dona Sônia. –Ah!... só mais uma perguntinha! O que faz o seu patrão? - Ele trabalha para o governo! Alyrio desligou o telefone balançando a cabeça. - As empresas que fazem a segurança em residências têm de se reorganizar! Parece até piada que coloquem câmeras e segurança armado estacionado na porta e depois contratem uma pessoa com referências falsas! Com certeza foi a própria arrumadeira que se cansou de remexer e resolveu fazer uma revista. Depois de balançar a cabeça por mais um tempo, sorriu e voltou-se para Jéfersson: - Amanhã antes do almoço estarei aqui com a grana! Agora vou para o enterro. 147 25. Alyrio chegou à casa de Sônia e foi levado ao escritório. Olhou para o sofá onde pela primeira vez sentara-se ao lado de Melanie e viu-a com a força da imaginação. Viva e nos vapores da maconha, com o rosto bem desenhado, os cabelos louros e reluzentes e seu olhar cheio da candura de virgem. Reviu seu olhar perdido na paisagem da janela, buscando uma estrela luminosa onde Rita incorporava sua nova dimensão de vida. Em seguida viu-a na cadeira de rodas e desabando para um túmulo abandonado. Seu peito sentiu uma pontada e ele teve de sair do escritório. Precisava ocupar os olhos com outras coisas. Ao tocar a maçaneta, Sônia e Renato a tocaram pelo outro lado e entraram. - Estive na delegacia e eles não têm a menor idéia de quem matou nossa filha. - A voz de Renato transmitia toda a sua dor. Alyrio tinha a mesma inquietação e gostaria muito de ter pistas mais concretas para desvendar aquele mistério. Quem matou Melanie, era a pergunta que também lhe martelava o cérebro! - E o senhor, tem alguma novidade? - A voz de Renato era um comando. - Infelizmente ainda não. - Espero que as coisas se resolvam com rapidez! - Agora vamos para o velório. - Sônia convocou-os. O casal estava agitado e não deu para maiores considerações. O corpo de Melanie já estava numa das salas do velório e era preciso apressar-se. Dos portões da casa saiu um cortejo onde o casal liderava e atrás iam empregados e amigos. Alyrio fazia parte. O velório estava repleto. Alyrio visualizou muitos dos amigos que vira 148 em casa de Sônia e pessoas que conhecia da mídia. Gente importante ligada a pessoas que trabalham para o governo e precisam de constante troca de favores. O que faz com que estejam constantemente bem de vida! Alyrio conversou com várias dessas pessoas e ficou até a hora em que o caixão baixou na cova. Recordou-se do enterro que ele e Domitila fizeram para Melanie num túmulo do Araçá. Olhou para Sônia. Ela havia se recomposto do sofrimento atroz e conseguia acompanhar o caixão baixando sem desandar em crises de lágrimas. Tudo seguiu o protocolo de gente bem. Enquanto os familiares e amigos esperavam que as placas de cimento fossem colocadas sobre o caixão, ele se afastou pensando em como Sônia superaria aquela perda. Como seu ser se reacomodaria na nova realidade sem a filha única? Ao chegar ao estacionamento do cemitério, o dia terminava num fim de tarde que esfriava. Alyrio recordou-se da primeira visita que fizera a Dr. Maurício e de sua percepção extra sensorial ter-lhe sugerido algo mais do que um simples estudioso da história dos estudantes da fase do romantismo. Antes que as pessoas saíssem e se aglomerassem ali, ligou para Maurício. Se ele tinha algo a ver com tudo aquilo, era preciso informá-lo de que Sônia não sabia coisa alguma sobre a filha. - É o detetive Alyrio? - A voz da esposa mostrou uma surpresa feliz. - Dona Maria Amélia, a senhora está bem? Preciso falar com seu marido. - Hoje ele não tem compromisso, se quiser passar logo depois do jantar eu aviso e ele o espera. – A voz dela se animava. - Obrigado. Alyrio teve tempo de passar em casa e tomar um banho. Não quis mexer em cozinha e preparar mais um chop suey, vendo-o borbulhar na panela, nem mesmo cozinhar um Miojo. Parou na padaria próxima à sua casa e pediu um sanduíche de queijo quente e um refrigerante. 149 26. Mais uma vez Alyrio foi recebido pela esposa de Maurício. Com um sorriso nos lábios, Maria Amélia não o levou diretamente à biblioteca. Desta vez levou-o para a sala de estar, instalou-o numa bela poltrona e pediu que a empregada servisse um café. Alyrio poderia jurar que ela tinha algo importante a lhe dizer, mas tão logo a empregada entrou com as xícaras e o café sobre a bandeja de prata, Maurício entrou com um ar de enterro e a mão estendida para cumprimentá-lo. - Soube da morte de Melanie. Infelizmente as notícias foram tão disparatadas que não fui ao enterro. Tampouco conhecia seus familiares. - É verdade que a menina foi encontrada num túmulo do Araçá? - Maria Amélia perguntou. - Como será que ela foi parar lá? - A expressão de Maurício mostrava o quanto o fato o consternava. - Vivemos num mundo violento. Que consegue a cada dia tornar-se mais violento. - Será que ela não morreu lá mesmo? - Alyrio perguntou e olhou diretamente nos olhos de Maurício. - Os jornais noticiaram, e tudo indica que ela morreu em outro local. Maurício manteve o olhar firme. Os três engoliram o café e Maurício sugeriu que fossem para o escritório. Mais uma vez Alyrio sentiu que a mulher se frustrava. Mas não contrariou Maurício, pediu licença com um sorriso que sugeria uma esperança e o acompanhou. Os dois entraram no escritório e antes de se acomodarem, voltaram o olhar para a paisagem noturna pintada por Domitila. Mais uma vez Alyrio sentiu que aquela cena tranqüila dizia alguma coisa que ele não conseguia captar. 150 - Conheci Melanie em função do quadro. Da magia das paisagens noturnas que Domitila retrata. - Maurício falou num tom de reminiscência. - O senhor me disse ter conhecido Rita em suas campanhas para angariar fundos para a escola. - Sim, conheci Rita desta forma, mas muitas pessoas fazem o mesmo. Nossa ligação se tornou maior por causa destas paisagens, destas reproduções da nossa cidade há mais de um século. E foi através de Rita e do ateliê de sua amiga pintora que conheci Melanie! - Se a pintora não sabe ao certo de onde lhe vem a inspiração, como o senhor pode ter certeza de que estas imagens retratam meados do século dezenove quando os poetas românticos habitavam São Paulo? - Quando a gente estuda como eu estudei sobre a época não há como estar errado! Sem falar que fiz uma regressão e posso afirmar que vivi nesta época. Alyrio encarou-o com seriedade e não se deixou apanhar por aquele assunto. - Estou aqui tomando seu tempo porque estou preocupado que as mortes continuem. Imagine que alguém ligou para Sônia, mãe de Melanie e a ameaçou. A pessoa afirmou que ela tem uma coisa muito importante e que se não entregar, vai sofrer algum tipo de violência. Alyrio falou olhando diretamente os olhos de Maurício. Observou-o levantar o rosto num gesto rápido, mas não conseguiu ler nada nos seus olhos. - Se ela tem a tal coisa por que não entrega! - Maurício sugeriu o óbvio. Alyrio percebeu-lhe um leve tremor nas pupilas. - Ela não tem idéia do que se trata! Invadiram sua casa. O quarto da filha foi revistado. Estes pais grã-finos mal conhecem os filhos, que dirá saber sobre alguma coisa importante! Imagine que os pais não percebiam que ela usava drogas! 151 Maurício limitou-se a balançar a cabeça. - Posso lhe garantir que ela não tem idéia do que seja! Conversei longamente com ela e o marido! Estão apavorados. O quarto foi vasculhado por um profissional que não encontrou o que procurava. - Em que enrascada estas meninas se meteram! - Maurício pigarreou. Acho incrível que os filhos se droguem e os pais nem percebam. Ou será que os pais de drogados tem um pacto de silêncio? - Concordo que a maioria dos pais mente para eles próprios. Inventam desculpas para não ter de encarar que os filhos se drogam. Mas no caso, este não é o principal problema. Além das mortes, estou preocupado por Sônia. Ela realmente não tem idéia do que a filha possuía e que é tão importante. - Alyrio manteve o olhar fixo em Maurício que disfarçou uma tosse com a mão na boca. - Melanie pode ter escondido o que os bandidos procuram em qualquer parte da casa ou mesmo fora dela! Quem a matou deve tê-la apertado e ela não falou. Alyrio falava olhando diretamente nos olhos de Maurício, mas não via nenhuma mudança. - Eu mesmo vistoriei as possíveis provas. Peguei o diário, a agenda e um caderno de Melanie. Adolescentes têm o hábito de escrever o que fazem e até mesmo as coisas criadas em suas fantasias. Além de versos disparatados não encontrei nada que me desse uma única pista. - Você tem certeza de que vistoriou tudo? – Maurício tentava disfarçar o interesse. - Antes de o quarto ser revistado, dona Sônia me entregou os cadernos de Melanie. Li cada linha dos versos que escrevia, até as lições mal feitas. Não encontrei uma única palavra que me desse uma pista, um local que freqüentasse. Só sei que se drogava diariamente e era apaixonada por Rita. No diário, que tem as páginas 152 numeradas, faltam cinco folhas. Talvez essas folhas tivessem algo escrito e talvez seja por conta disso que as mortes estejam ocorrendo. - Que coisa estranha. - Maurício fez um ar pensativo e pigarreou. Alyrio teve a impressão de que ele sentia-se aliviado com as notícias que lhe dava. Mas fora a intuição, Alyrio não notava nenhum movimento facial que demonstrasse que ele perdia o controle. - Volto a lhe pedir. Se o senhor se lembrar de qualquer coisa, qualquer gesto, enfim alguma palavra por onde eu possa pesquisar, me avise. Estou completamente perdido. Não tenho uma única pista! – Alyrio lançou um pedido que reforçava sua ignorância e a de seus contratantes. Maurício pôs fim a entrevista mostrando-se o mais cordial possível e prometendo informar qualquer coisa que pudesse sugerir uma pista. Levantou-se e foi conduzindo Alyrio para fora do escritório. Maria Amélia estava na sala, esperando, com os olhos muito acesos, na expectativa de novidades. Chegou a oferecer mais um café, mas Alyrio sentiu que era hora de sair de cena. Enquanto se despediam, num momento em que Maurício descuidava-se olhando alguma coisa sobre a mesinha, Maria Amélia colocou um papelzinho amassado nas mãos de Alyrio. Ele amassou-o o mais que pôde e segurou-o até ter a chance de enfiá-lo no bolso. Não era difícil notar que o olhar da mulher transmitia uma mensagem. Mais do que ser informada ela gostaria de informar. Alyrio tratou-a com muito carinho, segurou-lhe a mão um pouco mais do que o necessário. Tudo com muita descrição, pois Maurício estava atento. Despediu-se com todos os trejeitos que sabia e saiu. Ao entrar no carro, a primeira coisa que fez foi acender a luz e ler o papel. Havia o nome Maria Amélia e o número do telefone celular. Alyrio dirigiu até sua casa cansado e deprimido. O inverno começava a se 153 diluir e a noite não estava muito fria. Havia uma lua no céu, alta, enevoada, indiferente. A casa vazia, a luz da secretária tranqüila. Não havia recados. Não havia pistas. Somente mortes ocorrendo uma após a outra. Se Maurício realmente tinha algo a ver com os assassinatos, Alyrio dera o recado. Sônia não fazia idéia do que a filha possuía que era de tanto valor para o assassino. Não adiantava fazer pressão. Lembrou-se da primeira vez em que viu Maurício. O tremor das pupilas azuis. Talvez pelos olhos de um azul tão claro, ele não lhe parecesse uma figura real. Um assassino sempre tem uma aparência irreal na medida em que se sabe que ele é um assassino e não se tem como pegá-lo. Mas seria ele um assassino? Estaria ele envolvido em tudo aquilo ou simplesmente era uma coincidência que gostassem das mesmas pinturas? Quando Melanie descrevia as festas, mencionava que alguns homens participavam, mas não dava nomes. O nome de Maurício era um dos que estavam relacionados na agenda com nome e telefone. Não havia uma única pista que indicasse que ele era culpado. Nem que estava envolvido. Desde que começara a investigação sobre a morte de Rita o caso já se desdobrara em muitos outros. Alyrio sentia perder o pé, ao mesmo tempo em que sabia que os desdobramentos deviam-se exatamente a ele estar atuando no caso, mexendo num vespeiro. Ao contratá-lo, Gastão avisara que o caso não era tão simples como os jornais haviam noticiado. Mas tampouco poderia supor que se complicaria tanto. Já não era mais o assassino de Rita ou de Solange que buscava, mas o assassino de Melanie. O homem que a colocara sobre sua cama, claro que com a intenção de tirá-lo do caso. Inclusive este homem sabia abrir portas sem deixar vestígios, pois ele não notara nenhum problema nas fechaduras e trancas de sua casa. Com um grande suspiro deixou-se cair no sofá. Por mais que pensasse, tudo o que pensava só lhe apontava o quanto estava perdido. E pior, sua preocupação 154 maior já não era a identidade do culpado, mas quem seria a próxima vítima! Surgiu em sua mente a figura de Sônia e ele tentou apagá-la. Na manhã seguinte ligaria para Abelardo e o faria prometer que não a deixaria escapar de sua vista! Talvez o encontro com o suposto assassino lhe desse uma pista real, um nome, uma história mais palpável que as paisagens noturnas de Domitila. Algo por onde pudesse puxar o fio antes que outra morte ocorresse. Ou talvez o telefonema para Maria Amélia o ajudasse mais do que qualquer outra pista. Como gostaria de estar num filme americano destes em que o detetive sempre descobre tudo. Um simples fio de cabelo, ou qualquer detalhe do corpo de Melanie enviado aos laboratórios do FBI mostraria a identidade do culpado. Fazendo um esforço, levantou-se do sofá e foi para a cozinha. As frutas da geladeira estavam começando a estragar, mas ele pegou assim mesmo. Descascou-as e picou-as, jogou no liquidificador e colocou leite. Bateu com pouco açúcar e bebeu. Tomar uma vitamina, mesmo que com frutas um pouco passadas e açúcar lhe recompunha o ânimo. Sentia-se como um garoto que a professora tivesse dado uma nota dez pela boa ação. Subiu as escadas e acendeu todas as luzes do andar de cima, sem nenhuma razão aparente além da necessidade de esclarecer a si mesmo. Enquanto olhava cada quarto aceso pensava na própria vida e no tempo em que era casado. Era uma história tão estranha e tão distante que nem parecia ter acontecido com ele. Estivera casado por dez anos. Conhecera sua esposa numa festa e apaixonaram-se vertiginosamente. Ele era recém formado em direito e ela arranjou-lhe um estágio no escritório de um tio. Viveram momentos de pura felicidade. Casaram-se e tiveram dois filhos e ele só percebeu que tudo tinha ido por água abaixo quando ela pediu o divórcio. Até então ele se sentira realizado, ela não. Claro que perdeu também o emprego no escritório do tio dela e passou a exercer a profissão de detetive. Sua vida 155 tornou-se desregrada, tanto na escolha das mulheres que levava para a cama como na maneira de se alimentar. Gostava de bons restaurantes, mas comia de tudo, sem método. Nas bebidas era a mesma coisa. Não tinha sequer uma bebida preferida, como todos os detetives da literatura policial. Bebia o que estivesse ao alcance da mão e do bolso. Aos poucos apagou as luzes, deixando apenas a do seu quarto acesa. Precisava de apenas uma luz que lhe desse direção no caso que investigava. Foi para o banheiro, tomou um banho e retornou ao quarto. Apagou a luz. Na penumbra ainda havia a impressão de Melanie morta sobre a cama. Ele tentou não pensar nela e preparou-se para dormir. 156 27. Jéferson entrou, depositou o capacete e a mochila na poltrona e olhou o relógio: - Está quase na hora, cara! Não vá se atrasar! - A última coisa que perderia é esta pista! - Alyrio olhou o relógio, fechou o micro e levantou. Pegou a grana da gaveta. Mostrou o bolo de notas a Jéferson e enfiou-o no bolso. - Já liguei para meu contratante e ele compensou esse imprevisto! Transferiu para minha conta, passei no banco e retirei a grana. - Com isto o cara fala e segue para a rodoviária. Jéferson esfregava as mãos. - Acho que você vai ter uma informação bem quente! Pelo menos vai perder esse olhar extraviado, perdido! Alyrio coçou a cabeça e pensou em Sônia. - Um único nome que este rapaz me dê, vou ter por onde começar! - O cara é boa gente! Conversamos um longo tempo. Tenho certeza de que vai abrir o jogo todo. - Será que não vou perdê-lo no meio da multidão? - Ele vai estar na estação República, sentado do lado do embarque. Você logo vai ver na hora que o primeiro trem chegar o cara que não se levantar! Ele é até meio parecido comigo, assim... – Jéferson levantou e fez um trejeito. – O mesmo tipo físico. - Você vai ficar aqui? – Alyrio perguntou. - Vou esperar você voltar. Pode deixar que atendo os telefonemas e tomo sua cerveja. – Ele sorriu. - Qualquer novidade importante me avise no celular. - Alyrio pensava em 157 Sônia. Visualizava-lhe a figura, mas não deixava as idéias se expandirem. Estava preocupado. Qualquer novidade só poderia referir-se a ela. Quando falara com Abelardo naquela manhã ele lhe prometera não sair do seu encalço. Se suas suspeitas de que Maurício tinha algo a ver com o caso fossem infundadas, o assassino continuaria pressionando-a. - Cara! - Jéferson tirou-o de seus devaneios. - Não fique aí parado! O garoto não vai ficar o dia inteiro esperando! Ele está apavorado, precisa da grana para sumir no mundo! Alyrio fez um gesto de despedida e saiu. Pouco antes do meio-dia, já estava circulando pela estação República. E continuou circulando até quase uma hora quando sentiu que o celular vibrava no seu bolso. Era Jéferson. Alyrio sentiu que as pernas fraquejavam. Ele só ligaria em caso de muita urgência. A figura de Sônia veio-lhe à mente. Mas Jéferson surpreendeu-o com outra notícia. O delegado acabara de telefonar avisando que o suposto assassino da professora estava morto. O corpo foi encontrado naquela madrugada com um tiro na testa. Coisa de profissional. Alyrio retornou para o escritório atônito. Caminhou pela Praça da República e a Sete de Abril sem ver as pessoas que lhe davam encontrões. Ele não sentia. Era como se estivesse anestesiado, fora da realidade. Mais uma morte! Era a frase que se repetia como um mantra na sua cabeça. Entrou no escritório e encontrou Jéferson em péssimo estado. - Ele foi morto depois de falar comigo. Alguém me seguiu e localizou o rapaz! - sua voz era um soluço. – Ele estava se escondendo e, consegui fazer com que conversasse comigo. Foi a sua sentença! As lágrimas corriam pelas faces de Jéferson. No lixo, uma montanha de 158 latas de cerveja amassadas. Alyrio aproximou-se e os dois se abraçaram. - Levei o assassino até ele! – Jéferson estava inconformado. - Não se pode ter certeza! Talvez tenha sido assassinado por outros motivos. Não se esqueça que ele vendia baseados na escola e provavelmente coisa mais pesada em alguma boca. O telefone tocou. Era George, seu visinho. Sua TV estava ligada. O jornal do meio do dia estava mostrando uma reportagem sobre os mortos das últimas vinte e quatro horas. Entre eles um corpo encontrado com uma bala na cabeça, identificado como um assassino procurado! Alyrio ligou para a delegacia que atendera a ocorrência. Depois de falar com o delegado, tentou arrumar na cabeça alguns dados fornecidos por ele. O laudo cadavérico confirmava a suspeita, o corpo encontrado era do rapaz fugitivo. Levara um tiro na cabeça, entre os olhos. Coisa de profissional. George entrou com a garrafa de uísque que mantinha para ocasiões especiais. Pegou gelo na geladeira e serviu dois copos. Jéferson continuava na cerveja. Alyrio emborcou a primeira dose de uma golada. Num relance de raiva ligou para Gastão: - Mais uma morte no rastro do assassinato de sua irmã! - Ele desabafou depois de passar pela secretária e chegar finalmente ao interessado. - Como assim? - O rapaz que fugiu da prisão, o suposto assassino iria falar comigo. Você não se lembra de ter me enviado dinheiro para entregar a ele! Para pagar a informação! Pois é! Antes que o encontrasse, ele foi encontrado morto com um tiro na cabeça! Gastão fez um momento de silêncio. - Sinto muito. A coisa está ficando perigosa de verdade. Quanto você 159 quer a mais? - Não é só uma questão de dinheiro. É uma questão de proteger os envolvidos! O pior é que já não há como parar! Precisamos ir até o final disso tudo. - Concordo. Custe o que custar, temos de ir até o final! Alyrio desligou. Iria descolar uma boa grana de Gastão. Só esperava que não lhe custasse a própria vida! George estava preocupado por não terem comida no escritório. Alyrio foi bebendo uísque. Jéferson desceu e pegou mais cerveja e trouxe alguns sanduíches. Os três passaram o resto da tarde bebendo e lamentando mais aquela morte. Quando Alyrio foi para a casa, Jéferson estava dormindo o sono dos bêbados no sofá e não havia como mandá-lo para a casa. George achou bom ele dormir ali mesmo, pois pelo menos havia esquecido aquele sentimento medonho de se sentir culpado pela morte do rapaz. Alyrio chegou em casa embriagado. Mas o álcool do uísque não dava sono como a cerveja, punha-o desperto, fazia-o pensar melhor. A primeira coisa que fez foi pegar o papel amassado que a esposa de Maurício lhe dera com o número do seu celular e discou. Afinal era a última pontinha por onde poderia puxar alguma novidade. Ela atendeu e com a voz entrecortada pelo nervosismo afirmou que tinha urgência em lhe falar. Marcaram um café as dez horas da manhã do dia seguinte. Alyrio foi até a cozinha, bebeu um copo de água, encheu-o novamente e levou para a sala. Sentou-se no sofá e foi bebendo lentamente. Sua impressão é que cada vez mais se afastavam do caso de Rita, ponto de partida e para o que fora contratado. Sua morte parecia diluir-se na bruma dos crimes que lhe sucederam ou até antecederam. Cada um deles, por sua vez tendia rapidamente a perder a realidade para dar lugar a um outro e assim por diante. 160 O que o assustava era o deslocamento ou a multiplicação do centro de interesse da trama. Talvez sequer houvesse uma trama, ou seja, um universo de fatos no centro do qual estava o assassinato de Rita. Embora o irmão de Rita tivesse sido o primeiro a contratá-lo e colocá-lo naquela investigação, a morte de Rita não era o fundamental se pensasse no caso como um todo. As mortes se sucediam e cada uma delas poderia ser tratada como um caso a parte. Ele sabia da ligação, mas não a causa, o que as desencadeava. Poderia até afirmar que o que as desencadeava era o desejo do assassino ou assassinos de apagar as pistas. Todas as considerações que vinha fazendo talvez só servissem para disfarçar a trágica realidade. Ele estava perdido. Sua bússola quebrara. E pior, sua preocupação fundamental já não era identificar o culpado, mas quem seria a próxima vítima? Um relâmpago subiu pelas pernas de Alyrio, percorreu-lhe toda a coluna e desencadeou o trovão no cérebro com o nome Sônia! Abelardo prometera não sair de perto dela, e ela estava enlutada pela filha e não iria sair. Mas a casa já havia sido invadida e o quarto de Melanie revistado sem que ninguém notasse coisa alguma. Tentando colocar alguma ordem nas idéias, convenceu-se de que as folhas arrancadas do caderno de Melanie continham um segredo que perturbava o assassino. Ele não fazia idéia do que era, mas quem quer que soubesse aonde encontrar as tais folhas seria a próxima vítima. O que ele tinha de fazer com rapidez era encontrar as tais folhas. Pensou no encontro com Maria Amélia no dia seguinte. Talvez suas esperanças em relação ao encontro, fossem mais uma das suas expectativas de que alguma inspiração ou acontecimento miraculoso mudasse o rumo das investigações. Aliás, mudar o rumo era mais uma contradição, pois até o momento não tinha rumo algum. 161 Nos filmes americanos, os policiais não ficavam tão desamparados. Se o que estava ocorrendo aqui ocorresse lá, o rapaz morto teria algum fio de cabelo ou pedaço de unha do assassino em seu corpo ou em suas roupas e a partir disso, o médico legista praticamente desvendaria o crime para o detetive, este só teria de ir ao seu encalço de preferência numa desabalada perseguição de carro. Caso o legista falhasse, havia a possibilidade de se enviar um fio de cabelo ou pedaço de unha para o FBI e no dia seguinte receber a biografia completa do assassino. Cansado da falta de soluções, Alyrio resolveu ir para o quarto. A penumbra ainda continha a imagem de Melanie, ele ignorou-a e atirou-se na cama. 162 28. Apesar do uísque de boa qualidade, havia o problema da quantidade, e Alyrio despertou atordoado, com a cabeça latejante. Conseguiu descer as escadas e ir até cozinha. Bebeu muita água gelada antes de engolir a primeira aspirina. Pensou em Jéferson que havia ficado dormindo em seu escritório. Ele conseguira tomar um porre de cerveja! A morte do suposto assassino de Rita o deixara arrasado. Podia-se dizer que havia uma quase certeza de que o assassino realizara mais esta morte através de Jéferson. E obviamente tudo isso estava ocorrendo porque ele, Alyrio, estava metido na investigação. Com certeza um bom porre embotava a mente por um tempo e trazia alívio. Jéferson despertaria com tamanho mal-estar que a dor da culpa abrandaria. Alyrio entrou no chuveiro com a água bem fria, o que reforçou o efeito da aspirina, vestiu-se com capricho e foi encontrar Maria Amélia. Ela era a última esperança de encontrar uma pontinha solta no fio daquela história. Entrou num típico café de bairro e naquela hora havia muitas pessoas sentadas lendo ou conversando. O café tinha várias revistas e jornais para que as pessoas ficassem mais tempo e não só tomassem um café corrido. Era uma forma de se mostrar mais europeu. Maria Amélia estava sentada numa mesa bem ao fundo, com o olhar atento, e fez um movimento quase imperceptível para avisar que estava ali. Ele quase não a reconheceu, tal a informalidade com que estava vestida. Nas poucas vezes que fora à sua casa, encontrara-a em elegantíssimos tailleurs, como se estivesse pronta para sair e agora que estava fora de casa, trajava calças jeans e um casaco vermelho muito informal que a deixava com a aparência bem mais jovem. Cumprimentaram-se com um aperto de mãos e sentaram-se. A garçonete 163 trouxe o cardápio e, enquanto liam e decidiam por dois cappuccinos, ele pensava que esposas traídas ou mal amadas eram uma fonte de informações muito eficazes. Era preciso ter muito cuidado e encorajá-la a falar. Fitou-a com muito carinho e nem precisou de artimanhas de falso apaixonado, Maria Amélia não fez preâmbulos e foi direto ao fato: - Rita era uma pessoa bastante agradável. Eu a conheci trabalhando na escola e pedindo ajuda para a comunidade ao redor. Cheguei a ajudá-la nos contatos com os empresários da área. Podia ser o que fosse, mas se empenhava em melhorar a vida das crianças daquela escola. E alguém a matou! Vou dizer uma coisa, - ela tomou fôlego enquanto a garçonete colocava duas xícaras de cappuccino sobre a mesa, - tem muita maldade nesta droga de mundo. Maldade demais! Estou cansada disso, entende? As pessoas matam como se o ato de matar não representasse coisa alguma! Alyrio estava precisando de um café e enfiou a boca na espuma de chantili salpicada de canela. A bebida quente deu-lhe um novo ânimo, desanuviava de vez os vapores do uísque da noite anterior. Maria Amélia afastou um pouco a xícara: - Importa-se? - perguntou, puxando um cigarro, como se precisasse de alguma coisa capaz de matá-la. Alyrio também pegou um cigarro para si e acendeu os dois. - Nem sei se deveria contar para um estranho o que vou te contar. - Acho que já não sou um estranho. - Alyrio pensou em Melanie. - Afinal conheço quase todos os envolvidos! A maioria está morta! - O senhor acha que meu marido está envolvido? - Acho! E também acho que a senhora vai me ajudar a descobrir como e por quê? Pela primeira vez ela sorriu. Ele terminou o cappuccino e fez sinal para que a garçonete trouxesse outro. Maria Amélia ainda não havia tocado no dela. 164 Continuava fumando com furor e, mesmo sem estar apaixonado, Alyrio sentiu um desejo de pegar suas mãos, dar-lhe o amor que precisava. Mas limitou-se a fitá-la com um olhar que revelava o carinho que começava a sentir por aquela mulher que se arriscava vindo encontrá-lo. - Não sei muita coisa, - ela continuou: - Só sei que às segundas-feiras meu marido e Lúcio tinham uns compromissos estranhos. - Por que estranhos? - A menção de segunda-feira fez com que ele pusesse os sentidos em alerta. - Não diria que somos um casal apaixonado, mas jamais tivemos segredos. Acho que sempre tivemos fidelidade um para o outro. Quando ele começou a passar fora as noites de segunda-feira, comecei a ficar apreensiva, - ela deu uma profunda tragada. - Claro que qualquer mulher ficaria. Ela ficou alguns segundos hesitante, varreu com a mão umas migalhas da toalha, acendeu mais um cigarro e então continuou: - Contratei um colega seu. - Seu olhar era de uma garota que acabasse de fazer uma travessura. - Um detetive! - Alyrio assustou-se. - Um detetive. - Ela repetiu e tragou o cigarro, aspirando com força a fumaça. - Não gosto de passar por idiota! Não admito traições! - E o que foi que ele descobriu? - Logo na primeira segunda-feira, ele descobriu que Maurício e Lúcio iam para uma chácara que depois eu soube ser de propriedade da nossa construtora. Descobriu também que a professora Rita e a menina Melanie, bem como algumas outras meninas iam junto. Havia também outros homens, o detetive me deu os nomes e me informou a ocupação de cada um. Na tal chácara, realizavam festas que jamais imaginei que meu marido fosse capaz! Especialmente me trair com garotinhas! 165 Alyrio percebia que estava sendo muito difícil para ela contar tudo aquilo. Talvez depois ela o odiasse por partilhar seus segredos, mas ele não poderia interrompê-la. Era preciso aproveitar aquele ímpeto de esposa traída e ir até o fim! - Logo que o detetive me falou sobre festas onde se fantasiavam com trajes de outras épocas, achei até que ele estava querendo mostrar serviço. Que era alguma invenção só para que eu ficasse satisfeita com o trabalho dele. Há coisas que a gente sabe e não quer ou não pode acreditar! - ela dava tragadas muito profundas no seu cigarro. - Com o correr dos dias e das segundas-feiras fui vendo as evidências e ele me convenceu. Ou melhor, a vida me convenceu! Alyrio queria emborcar a segunda xícara de cappuccino que fumegava à sua frente, mas não queria fazer nenhum movimento para não atrapalhar o desabafo. Punha no olhar toda a atenção e carinho de que era capaz. - Não falei sobre o assunto nem com a esposa de Lúcio que é minha amiga. E não falei simplesmente por falta de tempo. Logo ao saber fiquei de tal forma chocada que me fechei, precisava de um tempo para digerir, para vencer as emoções. Quando as coisas começaram a se organizar na minha mente, o corpo de Solange foi encontrado no rio. Imediatamente pensei nas festas de segunda-feira e tudo se encaixava. Mal tive tempo de processar essas informações e Rita foi encontrada morta! Agora Melanie. Ao saber do corpo de Solange encontrado no rio, fiquei apavorada. Não era somente uma intuição, sabia que ela fazia parte das festinhas. Através do detetive sabia de todas as ligações e quem freqüentava a chácara! E o nome dela estava na lista, daí minha suspeita! Ou melhor, certeza! Claro que desde então as reuniões de segunda-feira terminaram. - Então a senhora acredita que as mortes têm a ver com seu marido? - Tem a ver com as festas da chácara! Tem também a ver com Lúcio e todos que freqüentavam as tais festas. Contratei um detetive, e logo depois que me 166 convenci de que suas informações estavam corretas, o corpo de Solange apareceu numa barranca de rio. Imediatamente pedi que ele parasse com a investigação. Fiquei apavorada. Era como se eu não pudesse mais mentir para mim mesma. Então surgiu o corpo da professora Rita e o senhor. - Ela deu uma tragada no cigarro como se dali tirasse forças para a pergunta seguinte: - O senhor vai à polícia? - Fui contratado pelo irmão de Rita. Meu relatório será para ele e para os pais de Melanie que acabam de me contratar. O irmão de Rita já foi à polícia. Os pais de Melanie não querem repórteres sensacionalistas explorando o caso. Claro que se for descoberto um assassino ele terá de ser julgado! Ela ficou algum tempo com os olhos fixos em um ponto distante. Ele aproveitou para emborcar seu cappuccino. Então tirou do bolso o papel aonde havia outros nomes copiados da agenda de Melanie. Ela conhecia dois. - São construtores do nordeste. O detetive os viu algumas vezes entrando na chácara e colocou seus nomes no relatório. Com certeza faziam parte da confraria! A palavra confraria fez com que Alyrio recordasse o almoço com George. Ele lhe falara da sociedade Epicuréia que existiu no século dezenove e de seus adeptos que eram poetas românticos e viviam orgias sem fim. Da mesma forma que o mundo inteiro copiava a violência dos filmes americanos, aqueles ricos cidadãos se davam ao luxo de tentar repetir os atos dos estudantes de meados do século dezenove. - Nós vamos viajar, eu e meu marido, Lúcio e a esposa. - Maria Amélia voltou a falar e interrompeu-lhe o devaneio. - Quando? - Amanhã, num vôo que parte na hora do almoço. Vamos para a Europa. Por isto marquei o encontro com o senhor agora, logo cedo. Está tudo pronto, mas ainda tenho algumas coisas para providenciar e vou aproveitar a parte da tarde. Viagem é sempre assim. Até o último momento a gente tem a sensação de que ainda 167 falta alguma coisa! Ela puxou mais um cigarro. Fumou em silêncio dando tragadas muito profundas e amassou a bituca com muita força. Levantou-se e Alyrio percebeu que se preparava para ir embora. Antes de sair, tirou da bolsa uns papéis. - Aí está um mapa com a localização exata da chácara e os nomes dos participantes das festas que o detetive me entregou. Ele ainda teve tempo de se levantar e fitá-la com muito carinho. Segurou-lhe as mãos um pouco mais do que o necessário, beijou-a na face e viu-a sair. Da porta do café ela voltou-se e fez-lhe um sinal de adeus. Estava mais sorridente e, talvez pela cor do seu casaco, ele ficou com a sensação de uma mancha avermelhada que se esfumava no ar. Sentiu que as lágrimas chegavam-lhe aos olhos, tal o carinho que sentiu por Maria Amélia. Por seu desabafo, por sua confissão! Seu desejo era correr atrás dela e abraçá-la, alisar-lhe os cabelos, mas voltou a sentar-se, pediu um café puro e acendeu um cigarro. Aos poucos foi digerindo tudo o que ela lhe dissera. Os dois casais iriam para a Europa. Na manhã seguinte a mesma hora já estariam se dirigindo ao aeroporto. Com certeza ficariam por lá até assentar a poeira de todas aquelas mortes. Todas as pistas haviam sido apagadas. Restava somente ele, Alyrio, que não fosse o encontro que acabava de ter com dona Maria Amélia, não tinha uma única pista por onde começar. Outros assassinatos surgiriam na cidade, seriam noticiados nos telejornais sensacionalistas e aquelas mortes que investigava cairiam no esquecimento. Maria Amélia deixava-lhe uma pista palpável! Aliás, a única pista real desde que começara as investigações! Alyrio deu uma profunda tragada no seu cigarro e enquanto amassava a bituca no cinzeiro e bebia mais um café, pensou que corria risco de vida e não precisava se matar com tanto café e cigarro. Também não poderia esquecer que Maria Amélia arriscara-se demais. Se Maurício a tivesse seguido, era 168 mais uma a ter de desaparecer. Pagou a conta e foi para o escritório. 169 29. Estacionou o carro, mas antes de subir ao escritório Alyrio resolveu caminhar. Sentia que a prioridade daquele momento era ir até a chácara, mas alguma coisa o impulsionava em outra direção. Atravessou a pé o Viaduto do Chá e seus passos o levaram para o Largo de São Francisco. Deteve-se do outro lado do largo, em frente à fachada de arcadas da atual Universidade de Direito. Naquela hora, o trânsito era intenso e centenas de pessoas andavam de um lado para outro. Para qualquer lado que olhasse, as paredes estavam pichadas, o chão estava sujo e o jardim da praça pisoteado. Tudo denotava maltrato. Ao lado da escola, a igreja de São Francisco recebia uma infinidade de pessoas. Apesar do santo oficial da igreja ser São Francisco, no altar havia uma imagem de Santo Antônio do Categeró. E era por causa dele que a maioria das pessoas entrava na igreja. Santo Antônio tem como função principal proteger os arranjos matrimoniais e, apesar da incrível movimentação de toda aquela multidão, no fundo, todos sonhavam com um grande amor. Entravam na igreja a fim de pedir ao santo proteção para seus amores. No meio daqueles pensamentos, ocorreu a Alyrio uma questão, como seria aquela praça quando os estudantes românticos freqüentavam a escola? Podia visualizar uma pintura da época, mas era dificílimo sobrepô-la ao formigueiro de gente que o rodeava. Era impossível, no meio daquela turba, imaginar a praça como o Largo do Capim do começo do século dezenove, um chafariz no meio onde os habitantes da redondeza iam buscar água, alguns cavalos pastando calmamente. Como seriam os estudantes com suas casacas escuras e cartolas? E as moças e senhoras da época? Na corte do Rio de Janeiro, diziam os cronistas da época que as mulheres eram 170 exuberantes, mas em São Paulo tinham fama de ser provincianas e andarem envoltas em mantilhas! De qualquer forma, era raríssimo que damas andassem pela rua sozinhas. Em volta do chafariz juntavam-se os escravos, as negras alforriadas que lavavam roupa nas margens dos rios e as tropas que traziam as novidades. Era ali que as orgias dos estudantes ganhavam corpo e iam aumentando a medida que eram contadas e recontadas! No meio da turba e das divagações, por um momento, ocorreu a Alyrio que Sônia poderia estar em perigo. Apesar de ele ter dito a Maurício que ela não tinha idéia do que buscavam no quarto de Melanie, ele poderia insistir, pressioná-la para sentir ele mesmo até que ponto ela chegaria. E se ela estivesse neste exato momento precisando dele? Pensou como resposta que alguém telefonaria. O celular no seu bolso estava tranqüilo, não vibrava! Sinal de que não o estavam procurando. Talvez Maria Amélia estivesse em perigo. Se Maurício suspeitasse do encontro daquela manhã, também ela estaria com a vida ameaçada. De uma coisa podia ter certeza, Maurício não sabia sobre o detetive que ela contratara para segui-lo. Caso soubesse, ela já não estaria no mundo dos vivos! Embora se preocupasse com Maria Amélia, o pensamento de Alyrio fixou-se em Sônia. Mesmo sem estar sendo pressionada por telefonemas, ela poderia estar precisando dele! Se isto estivesse acontecendo, o detetive contratado estava passeando pelo centro da cidade numa rememoração fora de momento e de propósito. Atravessou o largo, caminhou sob as arcadas e chegou até a porta da igreja. Antes de entrar, olhou a ladeira que se seguia ao Largo São Francisco desembocando no Vale do Anhangabaú. Ela formava um corredor de construções assobradadas de meados do século dezenove, com alguns minúsculos balcões em ferro batido, as calçadas estreitas, adaptadas à passagem de veículos do século vinte. Naquela ladeira a paisagem urbana ainda guardava algo do século dezenove. Talvez por isso, 171 sobrepondo-se ao complexo de avenidas em que se transformara o Vale do Anhangabaú, Alyrio conseguisse visualizar no final da ladeira o rio e as margens verdejantes. Tudo numa tranqüilidade incapaz de atinar com a metrópole em que ele vivia no momento! Na época, para quem estivesse a pé ou a cavalo o cemitério da Consolação era mesmo um lugar ermo e afastado. Saindo da escola, alguns estudantes iam para lá e rolavam em amores extravagantes nas paisagens noturnas que Domilita pintava. Observando aquele resquício de paisagem urbana que ainda existia, conseguiu visualizar tal caminhada como se estivesse a vivenciá-la. Será que algum dia também ele estivera envolvido naquele trajeto? Será que suas lembranças eram somente a imaginação agindo ou vinham de outras vidas como afirmava Domitila? Um transeunte apressado deu-lhe um forte encontrão e o trouxe de volta a realidade. Entrou na igreja que com certeza guardava resquícios daquela época. Tentou captar alguma coisa na sua atmosfera, mas havia gente demais. As pessoas entravam, se ajoelhavam, rezavam e saíam. Alguns apressados, outros mais calmos. Mas todos rezavam, conversavam com seu santo. Ele se sentou e conseguiu pensar que no tempo dos estudantes românticos um crime era uma notícia extraordinária, hoje os crimes eram cometidos em série. Ele fora contratado para investigar um caso que vinha se desdobrando e era preciso pôr um fim em todas aquelas mortes o quanto antes. E ele estava ali observando o altar da igreja e as pessoas que rezavam. Veio-lhe à mente que ao conhecer Domitila, espantara-se com a idéia dela de que no desenrolar da história havia abismos em que o conhecimento ia se perdendo. Naquele caso também o conhecimento se perdia a cada momento. A cada pista que encontrava, ocorria mais uma morte e o morto levava consigo algum conhecimento que não poderia mais vir à tona. Maria Amélia trouxera um dado importantíssimo. Ela suspeitara das 172 saídas do marido, pusera-lhe um detetive no encalço e dividira com Alyrio o resultado das investigações. Ou seja, fora traída e também o traía, revelando segredos! Era preciso contar com a sorte de Maurício estar entretido com a viagem e não ter prestado atenção à movimentação da esposa. Também era preciso ir à chácara e vasculhá-la até encontrar algo que fosse relevante ao caso. Algo que pudesse ser usado como prova. Sônia fora ameaçada. No entanto, ela não possuía conhecimento algum sobre as festas que a filha freqüentava. Aliás, ela sabia muito pouco sobre a filha. Embora tivessem vivido a vida toda sob o mesmo teto, os pais de Melanie a conheciam tanto quanto ele supunha conhecer os próprios filhos que viviam em Miami! E isso ocorria na era da comunicação! Mas não era hora para conjeturas sobre temas de cunho filosófico. Sônia, Maria Amélia e especialmente ele, corriam perigo. E ele estava ali, sentado numa igreja do centro de São Paulo, devaneando! Nunca se viu, em filmes policiais americanos, no momento em que a história precisa ter um desfecho e quando pela primeira vez existia uma pista real, o detetive sentar tranqüilamente numa igreja, conjeturando sobre o passado da cidade e um santo casamenteiro enquanto testemunhas importantes ficavam a mercê de assassinos perigosos. Se a polícia estivesse envolvida, numa situação como aquela, os policiais estariam fazendo diligências, interrogando suspeitos, imprensando os informantes, enfim, fazendo o que deve fazer todo o policial. Alyrio sabia que raramente a polícia fazia alguma coisa efetivamente capaz de conduzi-la à solução de um crime, noventa por cento dos assassinatos resolvia-se através de denúncias! No caso dele, um mero detetive particular, não possuía informantes para aquele caso. E as pessoas que sabiam de alguma coisa já não faziam parte do mundo dos vivos. De uma coisa ele tinha certeza, era preciso ir o quanto antes à chácara! 173 Com certeza lá ele encontraria algum indício ou prova da ligação de todas aquelas mortes. Alyrio ajoelhou-se, pediu que o santo o ajudasse e, em seguida, saiu da igreja. Do lado de fora ainda tentou abarcar com o olhar a paisagem a sua volta e transportá-la para meados do século dezenove, mas a turba de gente a sua volta não lhe permitiu um segundo de concentração. Exalou um longo suspiro e tomou o rumo do escritório. 174 30. Depois de atravessar o Viaduto do Chá, percorrer a Xavier de Toledo e andar pela Sete de Abril, Alyrio tomou o elevador do seu prédio. Entrou no escritório para alguns telefonemas. O primeiro foi para Domitila. Com certeza o santo protetor de amores, de cuja igreja acabava de sair, o impulsionava. Após algumas explicações, ela concordou em acompanhá-lo à chácara. Conheceriam o local e com certeza descobririam pelo menos uma evidência. Era difícil imaginar o quê, mas ele iria vasculhar todo o local onde ocorriam as festas e tinha de encontrar algo que fosse uma prova concreta das tantas suposições. Talvez Domitila reconhecesse suas paisagens noturnas. Depois da conversa com Maria Amélia não tinha dúvidas de que Lúcio e Maurício estavam envolvidos nas mortes. O grande problema era encontrar provas. Afinal até as testemunhas que freqüentavam as tais festas estavam mortas. Não tinha um único argumento para levar à polícia. Se divagasse sobre o que ele imaginava ocorrer às segundas-feiras, seria a palavra de um detetive contra a dos respeitáveis construtores Maurício e Lúcio, donos de uma empresa que inclusive fazia serviços para o Estado! Havia também uma lista de nomes que Maria Amélia lhe fornecera, mas sua experiência lhe dizia que, num interrogatório, todos eles iriam não só negar, como afirmar que ela estava ensandecida pelo ciúme. E será que num julgamento ela testemunharia contra o marido? E o detetive que ela contratara, iria testemunhar sobre as festas e as pessoas que ele vira entrar na chácara? E mesmo ele confirmando a ocorrência das festas onde sequer pôde provar um adultério, teria argumento para provar um crime! Se Alyrio não encontrasse um elo a ligar tudo aquilo, cada crime tinha todas as características de um fato à parte. Solange morrera de overdose numa festa 175 em local ignorado e fora atirada no rio pelos companheiros. Rita fora assassinada por dois pivetes. Ela havia tentado expulsá-los da escola por serem eles a introduzir os baseados entre os alunos e os dois se vingaram. Só que depois de presos e confessos, um suicidou-se na cela e o outro fugiu e foi morto com um tiro na cabeça. Poderia se afirmar que fora um acerto de contas entre traficantes. Melanie aparecera num túmulo do Araçá sem nenhuma ligação com os outros crimes. Neste caso, ele teria de confessar a travessura de ter levado o corpo em cadeira de rodas para lá, sem que suspeitassem dele. Afinal o corpo fora encontrado em sua cama! Alyrio sabia que existia o elo. Todas aquelas mortes estavam ligadas, no entanto era urgente encontrar provas! Encontrar evidências que mostrassem como os casos estavam ligados! Por medida de segurança ligou para Gastão e contou-lhe que havia descoberto o endereço da chácara e que estava de saída para lá. Se não aparecesse na manhã seguinte, que chamasse a polícia e desse o endereço. Em seguida ligou para Sônia. Abelardo atendeu. - Preciso falar com dona Sônia. - Ela está descansando com doutor Renato e pediu para não serem perturbados, - a voz de Abelardo era definitiva. Alyrio suspirou. Saber que ela estava descansando o tranqüilizava, mas pretendia mostrar-lhe algum serviço falando da chácara. Abelardo aguardava do outro lado da linha. Ele já havia provado ser de confiança e com certeza falaria sobre o telefonema para sua patroa. Alyrio resolveu contar-lhe seu próximo passo nas investigações. Deu muito mais detalhes do que dera para Gastão. Descreveu com bastante dramaticidade seu encontro com Maria Amélia, as intuições e certezas e a falta de provas. Avisou que estava de saída para a chácara. Não tinha idéia do que poderia encontrar lá. Deu o endereço e pediu que se não desse notícias até às dez da noite, que ligassem para a polícia e procurassem por ele. 176 - Cuidado! Muito cuidado! – Abelardo recomendou com voz soturna. - Vou dar uma busca por lá. Maurício e Lúcio, os dois envolvidos estão se preparando para embarcar para a Europa. Acredito que vão dar sossego para Sônia e desistir de pedir que ela encontre as folhas perdidas do caderno de Melanie. Mas fique atento! - Quem tem de ficar atento é você! Tome cuidado! - Abelardo repetiu. Sua voz era quase um sussurro. Alyrio ficou na dúvida se ele queria lhe dizer alguma coisa, ou se simplesmente estava evitando qualquer barulho que incomodasse os patrões. - Antes das dez da noite vou telefonar informando que consegui provas concretas de que todas as mortes são decorrências das festas que aconteciam na chácara! Vou ter provas concretas para meus clientes! - Estarei aguardando ao lado do telefone! – A voz de Abelardo mostrava uma preocupação sincera. Mais uma vez Alyrio ligou para Domitila. Desta vez avisando que ela poderia esperá-lo na entrada da vila. Em poucos minutos estaria passando por lá. Antes de sair, pegou a arma da gaveta e carregou-a. Colocou-a na cintura entre as costas e o cinto. Conferiu o mapa dado por Maria Amélia, enfiou-o no bolso e saiu. Domitila entrou no carro e seguiram viagem. Em poucos minutos estavam na Castelo Branco. Um pouco antes do quilometro 50 entraram em Araçariguama. Atravessaram a pequena cidade e seguiram por uma estrada de terra. Domitila ia observando o mapa e informando as viradas. Havia muitas propriedades margeando a estrada de terra, todas cercadas, afastadas da estrada e distantes entre si. Havia alguns haras onde se viam cavalos de raça muito bem tratados e havia também chácaras de fim de semana. No final da estrada estava a que procuravam. Ele desceu do carro, abriu a porteira, e atravessaram. Domitila desceu para fechá-la. Tudo parecia 177 muito calmo. Alyrio estava um pouco perturbado pelas palavras de Abelardo. Sabia que precisava tomar muito cuidado e estava apreensivo quanto ao que poderia encontrar. No entanto, conforme foi adentrando a propriedade, sentiu a magnífica calma do local. Ao se aproximarem da casa, três cachorros latiram ao redor do carro. Atrás deles surgiu um homem. Alyrio parou o carro e desceu. O homem deu uma ordem e os cachorros desapareceram. Alyrio perguntou se ali era o sítio do doutor Maurício. - É dele mesmo e também do doutor Lúcio. - Eles estão aqui? - Não senhor. Alyrio ficou sem saber o que dizer diante do homem que parecia ser o caseiro, e começou por se apresentar e apresentar Domitila. O homem estendeu a mão: - Meu nome é Conde. Vocês fazem parte dos colegas do doutor Maurício que vem aqui às segundas-feiras? - Não costumo vir, mas me disseram que as reuniões são bem animadas! Alyrio tentou demonstrar certa familiaridade com o assunto. O Conde esboçou um estranho sorriso, passou a mão pela boca. - Eu não sei de nada. – O Conde pigarreou. - O doutor me dá folga às segundas-feiras. Ele não só dá a folga como proíbe que eu fique aqui. - Proíbe? - Alyrio olhou-o com um espanto fingido. Bateu-lhe nas costas. - E para onde você vai? - Aproveito, janto no emprego de minha filha que trabalha na cidade, fico com ela à noite e retorno no outro dia de manhã. Enquanto os três caminhavam em direção da casa por uma alameda arborizada, o homem foi falando que só sabia das festas porque no dia seguinte 178 encontrava copos espalhados, cinzeiros sujos e outras coisas. Mas limpava sem perguntar coisa alguma. Quando chegava na terça-feira já não havia mais ninguém. Enquanto ouvia o que o Conde dizia, Alyrio pensava num conde decadente limpando a sujeira das festas, e prestava muita atenção à sua volta. Não havia sinal de outras pessoas por ali, só passarinhos cantando e ruídos indefinidos, distantes. O Conde confirmou que morava ali sozinho. Já estava velho e não tinha mulher há muito tempo. Falou que quando a desordem ficava muito grande, ele tinha autorização e contratava uma faxineira da cidade para ajudar a pôr tudo em ordem. Já quase na porta da casa, ficaram em silêncio e, firmando bem os ouvidos, Alyrio percebeu bem distante o barulho da água do rio. Como se os esperasse, o Conde introduziu-os na casa. Entraram numa ampla sala com móveis rústicos e piso de lajotas. Tudo estava em perfeita ordem, tapetes, quadros, lareira, televisão e aparelhos de som e vídeo. Na imensa cozinha, geladeira, freezer, fogão a gás, forno de microondas sem sinal de uso nos últimos dias. Ninguém nos quartos nem nos banheiros. Alyrio postou-se na cozinha. Tanto ele como Domitila queriam um pouco de água. Abriram a geladeira e encontraram todo o tipo de bebidas. Beberam muita água. Do lado de fora, atrás da casa, uma imensa piscina com churrasqueira. Tudo muito limpo e bem cuidado. Alyrio foi intercalando perguntas sobre o sítio e a vida do Conde. Batia-lhe nas costas, tentava ficar mais íntimo. Pouco a pouco foram falando das festas nas segundas-feiras que parecia o evento mais importante, ou melhor, o evento único que ocorria por ali. Depois de algum tempo e conversa, o Conde acabou confessando que algumas vezes sua filha tinha compromisso com o namorado e então ele retornava 179 mais cedo. Entrava sem fazer barulho, se enfiava no quarto sem acender a luz e, claro, via que a festa era animada. - Têm muitas mulheres bem novas, bonitas! - Ele falou e seus olhos brilharam. Alyrio foi fazendo perguntas e ele respondendo. Ali ocorriam festas bem estranhas todas as segundas-feiras. Vinham diversas pessoas, nem sempre as mesmas. Vestiam-se com roupas engraçadas, bebiam muito e se divertiam a valer! Conforme ele falava, Alyrio percebia que o fato de fazerem festas e beberem e se divertirem não provava que as mortes partiam dali. E mesmo que fosse à polícia e contasse toda aquela trama que envolvia as tantas mortes, ainda não existia uma única prova real! Depois de muita conversa, o Conde coçou a cabeça e falou que somente uma vez durante o dia duas moças estiveram lá. Foi um dia do meio da semana, fora de qualquer festa. Nem doutor Maurício, nem doutor Lúcio estavam lá. Ele reconheceu-as das noites de segunda-feira. A descrição era de Rita e Melanie. E ele continuou contando que as duas entraram na casa com muito conhecimento das coisas, sabiam tudo onde estava, serviram-se de bebidas. Conversaram com ele. Eram muito simpáticas. Beberam muito e fizeram ele beber junto com elas. Depois foram para a beira do rio e ele observou-as sem ser visto. Haviam bebido demais e poderiam cair no rio. Elas haviam levado uma enxada e ele observou-as cavando a terra. Tiveram forças para fazer um buraco até que fundo! Ele viu quando enterraram uma caixinha e voltaram para a casa. Beberam mais um pouco e se beijaram e se abraçaram. Sem interromper-lhe a fala, Alyrio sentia o sangue correr por cada uma das suas veias a indicar que finalmente estava próximo de algo muito importante. - Coisa das novelas, em que as mulheres se beijam daquele jeito! - O 180 Conde continuava sua história, por um momento suspirou e balançou a cabeça como que a reprovar tudo aquilo. - Elas me ofereceram bebida, eu bebi um pouco com elas, então me pediram que eu não contasse para o doutor Maurício nem para ninguém que elas estiveram aqui. Fizeram com que eu jurasse pela saúde da minha filha! Apesar de serem assim meio malucas, gostei delas e não falei nada. - Você sabe que as duas estão mortas? - Alyrio perguntou olhando-o diretamente nos olhos. O caseiro limitou-se a arregalar os olhos e levantou as sobrancelhas. Suas faces ficaram lívidas quando repetiu: - Mortas? As duas? – Ele se benzeu. - Sim as duas. - Sem esperar passar a perplexidade do caseiro, continuou: - Será que dá para você me mostrar o local em que enterraram a tal caixinha? Sem falar, ele pegou uma pequena enxada e levou-os até o exato local. Afastou uma pedra que afirmou ter sido ele a colocar para não perder o local. Cavou e a menos de 50 centímetros estava uma caixinha de papelão embrulhada num plástico. Dentro as folhas arrancadas do caderno. Alyrio reconheceu assim que abriu a caixinha e conferiu a numeração das páginas, estavam todas ali. Sentou-se numa pedra e leu as cinco folhas. Em versos atrapalhados, estava ali a descrição da festa em que a menina Solange morreu e a jogaram no rio. A festa fora a repetição de uma orgia dos estudantes que George descrevera no almoço de arroz com polvo. Naquela chácara, Solange, depois de ter feito sexo com todos os presentes, desfaleceu. Envoltos no mesmo clima tenebroso dos românticos, pensaram que fosse só um desmaio e nem se preocuparam. Na madrugada, quando ela continuou caída na terra, e eles saíam das “viagens”, perceberam que estava morta. Então se apavoraram e a jogaram no rio. Embora naquelas páginas, Melanie tentasse uma linguagem de rimas complicadas, a 181 descrição da morte e o despojamento com que jogaram o corpo no rio eram de uma simplicidade assombrosa. Era como se fosse somente mais uma parte da festa. O lixo que sobrou e tinha de ser removido. Alyrio passou as folhas para Domitila e sentiu-se estranho no mundo. Aquelas páginas continham a descrição de uma orgia semelhante a que George lhe contou. Tudo se parecia demais com o que a Sociedade Epicuréia havia feito no Cemitério da Consolação para coroar a rainha dos mortos, há pelo menos um século e meio! Na época a mundana também desfalecera e morrera e os estudantes a largaram no cemitério. Ali, ao lado de Domitila, no silêncio quebrado pelo canto dos pássaros e o barulho das águas, Alyrio pôde visualizar a cena. Com as luzes de velas, poderiam reproduzir o tom tenebroso e cheio de mistério. Talvez até pudessem contar com uma bruma que subia do rio e imitava as garoas de São Paulo e o nevoeiro de Londres! Com certeza os membros daquele grupo leram e estudaram o fato que George lhe contara e o repetiram ali com todos os requintes. Só não contavam que o final fosse ser o mesmo. Acreditaram que Solange tivesse uma estrutura mais forte. Ou deixaram a festa rolar e depois não podiam simplesmente abandonar o corpo ali como os estudantes fizeram com a mundana no cemitério. Tiveram de se desfazer dela e a jogaram no rio. E claro que não contavam com o fato de que Rita e Melanie estivessem sóbrias o suficiente para observar e que ocorria e muito menos que conseguissem escrever o que viram. Alyrio se levantou e andou até a barranca do rio. Olhou para as águas que trazia toda a poluição da cidade de São Paulo e suspirou pensando em Solange sendo jogada nas mesmas águas. Em seguida, pensou como Heráclito e refez a idéia, em outras águas! As águas de um rio iam sempre se renovando, jamais eram as mesmas. E outras águas carregaram o corpo de Solange até as proximidades de Salto. Apesar de estar a poucos quilômetros da Capital, ali o rio já parecia um 182 pouco menos opaco, um pouco menos poluído e era possível de se ver umas bolhas que denotavam a presença de peixes. Ou seja, ali o rio já não estava tão morto como na Capital. Foi a partir do corpo de Solange lançado nas águas que as outras mortes se sucederam. Nas páginas arrancadas do caderno de Melanie, havia nomes, detalhes, enfim tudo. Com certeza alguém soube que aquela história estava escrita. Aí o motivo das mortes se seguirem. Se fosse só o corpo de Solange, ninguém jamais descobriria coisa alguma e, passado um tempo, talvez até as festas fossem retomadas. Rita e Melanie morreram porque alguém soube que haviam escrito aquilo! Só não imaginaram que elas tivessem ido ao próprio local das festas esconder as páginas escritas. Qual das duas tivera a idéia? Afinal era uma idéia muito boa esconder ali onde jamais procurariam. Só que ao fazer aquilo, não conseguiram imaginar o quanto eram frágeis. E os assassinos, ao invés de destruírem a prova, destruíram as duas. Alyrio aproximou-se de Domitila e segurou-lhe a mão. Apertou-a quase com desespero. Estava contente por ter achado a prova e apavorado. Tinham de sair daquela chácara o quanto antes e entregar aqueles papéis a alguém antes de serem mortos. Ela olhou-o com carinho, como se compreendesse sua aflição. Não falaram nada na frente do Conde. Os três caminharam silenciosos e cabisbaixos até a casa. Alyrio precisava ir ao banheiro antes de pegar o carro e retornar. Domitila também. Enquanto ele usava o banheiro, ela ficou do lado de fora da casa observando o jardim muito bem cuidado. Ao retornar à cozinha, Alyrio encontrou o Conde bebendo água e ávido para falar. - Sabe que fiquei chocado de saber que as duas moças morreram! - a voz do Conde mostrava todo o seu pesar. - Vou dizer uma coisa para o senhor. Quando eu 183 não ficava com a minha filha na cidade, vinha para cá e eles estavam tão bêbados que eu podia observá-los à vontade. Embora estivesse aflito para ir embora o quanto antes, a curiosidade de Alyrio foi maior. Precisava ouvir o que o Conde tinha a lhe falar. Num desabafo desenfreado, talvez provocado pela dor da morte das duas, contou cada detalhe do que ocorria às segundas-feiras. Eram festas diferentes! Via as mulheres e os homens declamando, e depois bebendo e se drogando com cigarros de maconha e cheirando cocaína. Faziam sexo espalhados pela casa, pelo jardim, em cima da terra. Trocavam de parceiros a todo o momento, sem a menor vergonha. Começavam as festas vestidos com umas roupas estranhas, e não tinham o menor constrangimento para tirar tudo e ficar nus. Era divertido de ver, mas não podia se conformar com as duas moças mortas! Quando Alyrio lhe contou o que havia escrito nas folhas, ele balançou a cabeça afirmando que não vira jogarem nenhum corpo no rio. Mas poderia ter ocorrido, pois ele não ficava o tempo todo lá e quando ficava, como ele explicara, observava de longe, sem se deixar ver. Alyrio olhou-o com um pouco de dúvidas e ia apertá-lo um pouco mais quando ouviu um baque surdo do lado de fora. Saiu imediatamente e deparou-se com um homem encapuzado segurando Domitila por um braço. Na outra mão o homem tinha uma arma apontada para a cabeça dela. - Olá idiota! - uma voz saiu através do capuz. Alyrio piscou os olhos. Não era um pesadelo. Sentiu a própria arma entre as costas e o cinto, mas saiu de mãos para o alto e o Conde o imitou. Domitila estava transfigurada. Alyrio pensou em Maurício ou Lúcio. Os dois tinham um porte parecido e ele sabia que naquela altura não bastaria entregar-lhes as folhas arrancadas do 184 caderno. Os três haviam lido e sabiam o que ocorrera e os nomes dos que fizeram ou ajudaram a fazer. - Tanto fuçou que acabou descobrindo! Não fosse aquela professora desmiolada, tudo teria parado na morte de Solange. Ela e Melanie escreveram o que você leu e sabe o que a filha da puta da professora fez? - Nem faço idéia! – Alyrio gaguejou. - Me ameaçou! Ameaçou a todos os amigos prometendo enviar cópias para nossas famílias e para a polícia se não déssemos quantias vultuosas para que ela construísse uma nova escola com creche e tudo. Além do mais, queria que Maurício se separasse da esposa e se casasse com ela! Imagine, separar-se de uma mulher honrada para casar-se com a amante da menina Melanie! Mesmo por traz do capuz pressentia-se o seu sorriso de escárnio. Nesta altura Alyrio já sabia que era Lúcio. - Seríamos chantageados pelo resto de nossas vidas! Só então Alyrio percebeu que a seus pés havia um garrafão e que, obrigando Domitila a abaixar-se com ele, sem tirar o revolver de sua cabeça, destampava-o. - Desta vez ninguém vai cair no rio! - Ele dizia enquanto espalhava gasolina na frente da casa. - Os corpos vão arder como todo o cenário das paisagens noturnas! Sua amiga pintora não vai ter mais inspiração para pintar as paisagens calmas e serenas! - ele deu uma gargalhada. Alyrio tentava refletir, aquele filho da puta iria queimá-los vivos. E ele não conseguia pensar em fazer algo que não acionasse o revólver na cabeça de Domitila. Precisava ganhar tempo, fazê-lo falar, perguntar mais coisas. Lembrou-se de que todo psicopata homicida é exibicionista e enquanto ele estivesse se exibindo, ou exibindo seus feitos, teria um tempo para inverter a situação. 185 - Como vocês mataram a menina Melanie? Como vocês a enfiaram na minha casa sem arrombamentos? - Me parece que ela foi encontrada num túmulo do Araçá! – Ele continuava espalhando a gasolina, sem tirar a mira do revolver da cabeça de Domitila. Alyrio se surpreendeu que ele não fosse se gabar das façanhas, pelo contrário, estava apressado para pôr fogo em tudo. - Como me encontrou aqui? – Alyrio ainda tentou uma pergunta. - Resolvi averiguar se você havia se convencido de que não havia mais provas e desistido! Então vi seu carro tomando o rumo da estrada. Tive de vir para cá! Atrás de um detetivezinho de merda! – Sua voz era gritada. - Entrem logo que quero matá-los dentro da casa e deixá-los ardendo antes de embarcar para a Europa. - Ele tirou um isqueiro do bolso e abriu a tampa com um estalido. Alyrio dispunha de poucos segundos. Sentia o suor pingar entre os olhos, uma onda quente que brotava por todo o seu corpo e gelava em seguida. Não lhe ocorria uma única idéia! Ouviu um barulho, ou pensou ter ouvido. Por reflexo, fez o gesto de virar a cabeça, mas a visão periférica não registrou um único movimento na chácara. - Não tente atrair minha atenção para outros pontos. Não há mais ninguém aqui, o barulho é de algum pássaro. - Com movimentos exagerados, o encapuzado girou o polegar no isqueiro. Alyrio sentiu que as pernas amoleciam ao ouvir junto com o estalido do isqueiro o barulho de um tiro seguido de outro. O encapuzado, que estava de frente para ele, com a arma bem apontada para a cabeça de Domitila, fez um movimento bastante estranho. Amoleceu os braços, dobrou os joelhos como um lutador tentando manter o equilíbrio após um golpe violento, depois caiu para trás de braços abertos. 186 Domitila desabou mais lentamente para o outro lado. Durante um segundo que durou mil anos, Alyrio sentiu cair num abismo sem fim. Aterrissou bruscamente e piscou os olhos. Correu para perto de Domitila, mas o homem caíra com o isqueiro aceso e a gasolina estava escorrendo até a chama. Em poucos segundos o fogo tomou conta do jardim na frente da casa. O Conde também correu para junto de Alyrio que puxava Domitila desmaiada para longe do galão que iria explodir a qualquer momento. O que aconteceu antes que ele terminasse de pensar. Mas conseguira tirar Domitila, e também ele e o Conde haviam saído da área de maior risco. Domitila voltou a si e Alyrio beijou-lhe a face, respirou aliviado. Ela gemeu de dor. A bala do tiro disparado pelo encapuzado errou o alvo de sua cabeça e foi se alojar em sua coxa. Alyrio correu até o homem que já estava sendo envolvido pelas chamas. Havia sido baleado com um tiro certeiro. Ainda teve tempo de tirar-lhe o capuz e confirmar que era Lúcio. Também olhou à sua volta e viu surgir de trás das árvores Abelardo. - A polícia está avisada e a caminho. - Ele estava lívido. - Avise também os bombeiros. Estamos no inverno e o mato está seco! - Jamais em minha vida matei. - Abelardo largou a arma. - Meu Deus! Também ele desabava, sentava no chão, encolhia-se, abraçava os joelhos, limpava as lágrimas. Domitila gemia de dor. Alyrio olhou-a. Os olhos dela, de uma transparência incrível, pareceram-lhe quase cinzentos e seu nariz, comprido demais, dava-lhe uma aparência espiritual. Ele sentiu o frio da morte e amparou-a. O Conde chegava com um pano de prato e ajudou-o a amarrar a perna de Domitila a fim de estancar o sangue. 187 - Como você veio parar aqui? - depois de acomodar Domitila, Alyrio perguntou a Abelardo. - Quando dona Sônia se levantou, eu avisei-a que você estava vindo para cá e contei-lhe toda a história. Ela achou que seria prudente que eu viesse ajudar e não esperar que você desaparecesse e só então chamar a polícia. Concordei e vim com a arma de um dos nossos seguranças. Não tenho arma, mas sei usá-las, fiz curso de tiro e não me tornei segurança porque jamais me imaginei atirando em um ser humano. Abelardo suspirou e tomou fôlego para continuar: - Parei o carro antes da porteira da chácara e vim a pé, sem fazer barulho. Vi o outro carro e achei que vocês estavam com problemas, redobrei a cautela e quando ouvi a voz do homem, escutei toda a história e fiquei tentando atirar preocupado com a mulher que estava na mira do revolver. Quando ele pegou o isqueiro achei que não dava para esperar mais. Atirei. Por sorte acertei sem dar tempo que ele acertasse a cabeça da sua amiga. Ele chegou a puxar o gatilho, mas já estava perdendo as forças e a pontaria. O ferimento dela não é fatal. Alyrio bateu em suas costas, também ele emocionado. O fogo se alastrava e o Conde, semi recuperado do susto, pegava a mangueira e tentava controlar a situação. Domitila pediu água e ele trouxe-lhe a mangueira e ela deu uns goles sem se mexer. A dor era muita e ainda sangrava. Mas as forças estavam retornando. Alyrio e Abelardo, completamente atordoados, se puseram a ajudar o Conde, abrindo todas as torneiras do jardim e carregando baldes de água da piscina e jogando nas labaredas. Apesar da explosão do garrafão e da gasolina espalhada, o fogo não chegou a atingir a casa e eles foram conseguindo umedecer a grama antes que pegasse algumas árvores ressecadas pelo inverno. O fogo já estava quase controlado, quando o carro dos bombeiros chegou. 188 Percebendo que já não havia perigo, socorreram Domitila, enfaixando-lhe a perna e levando-a para o hospital. Lúcio estava morto e deveria esperar pela polícia que providenciaria a remoção do corpo para o IML. Alyrio aconselhou Abelardo a ir embora. Era melhor ir para a casa, arranjar um advogado e dar seu depoimento depois das horas necessárias para que não fosse constatado um flagrante. A polícia não demorou e Alyrio deixou o Conde contando todas as peripécias enquanto ele ia para a cidade dar seu depoimento na delegacia. O Conde sentia-se envaidecido em ser ele a contar o ocorrido. Entardecia. Antes de entrar no carro, Alyrio ficou alguns minutos observando a chácara. Num relance veio-lhe à mente a história contada por George: Certa noite em meados do século dezenove, um grupo de estudantes pertencente a Sociedade Epicuréia, vagueava pelo cemitério da Consolação, pisando nas sepulturas e declamando versos de Byron. Foi quando tiveram a idéia de pegar uma mundana, envolveram-na em aparatos da maçonaria, colocaram-na em um esquife e retornaram ao cemitério. Lá, no meio da terra recém cavada, do pio das corujas e talvez até sob a luz de uma lua cheia, todos eles se lançaram sobre a moça e a estupraram e possuíram até a morte. E, segundo a crônica da época, continuaram a possuí-la mesmo morta e gritavam! “Osculei um cadáver!” Aquele fato ocorrera no cemitério da Consolação há mais de um século. Maurício e Lúcio tentaram reproduzi-lo exatamente ali, aonde seus olhos se fixavam. Na época dos estudantes, o caso fora arquivado, pois todos eles pertenciam a famílias importantes e influentes e a moça era uma mundana considerada na época sem eira nem beira! Mas o fato ficara registrado nas crônicas da cidade. Nas festas que imitavam as orgias estudantis, não foi somente a morte de Solange. As coisas se complicaram. Melanie e Rita escreveram o ocorrido. Alyrio pensou no poder da palavra escrita que fez com que as mortes continuassem! 189 A claridade do dia diminuía rapidamente e Alyrio sentiu um calafrio ao observar a terra com vestígios do incêndio, as árvores tranqüilas e uma claridade assombrosa, exatamente idêntica a das paisagens noturnas de Domitila. Por um momento, sem saber se via o que via ou se imaginava um dos quadros de Domitila, sentiu uma estranha fascinação por aquela paisagem. Tudo aquilo lhe era bastante familiar e ele viu, pairando sobre a paisagem as figuras de Solange, Melanie e Rita. O pio agoniado de um pássaro tirou-o daquele transe. Entrou no carro assustado, como se tivesse visto um fantasma e seguiu para a delegacia. Na cidade, antes de entrar na delegacia, parou numa papelaria que anunciava fazer cópias xérox. A loja já estava fechando, mas ainda teve tempo de tirar várias cópias das páginas escritas por Melanie. Deu uma cópia ao delegado que ficou anexada ao seu depoimento, bem como o mapa da chácara e os nomes fornecidos por Maria Amélia. Os nomes dos participantes das festas estavam todos anotados. Quem matou Solange, a primeira, foram todos eles. Incrível, não era um o acusado, mas uma gang de ricaços que formaram uma sociedade para imitar poetas alucinados do século dezenove! Será que em São Paulo, com tantas atrações e programas culturais, ainda era preciso criar aquele tipo de loucura? Será que a tensão com a violência da cidade não era suficiente? Era incrível a idéia de que todos eles tiveram relações sexuais com ela e lhe deram cocaína e álcool até que ela perdeu as forças. Será que só o que lhe deu a dose fatal ou a última trepada seria considerado culpado? De qualquer forma, era preciso que se apurassem as outras mortes. Os assassinatos de Rita, de Melanie e os dois supostos assassinos foram bem premeditados. Pelo descrito nas páginas do diário de Melanie, a festa em que Solange morrera foi melhor do que a da época dos estudantes românticos, pois Solange gostava 190 do que fazia. Não havia uma única palavra que dissesse que ela foi forçada a qualquer ato. Não houve estupro! Tanto ela como Melanie e Rita cheiravam filas e filas de pó e bebiam vodka. Divertiam-se muito! Como naquela noite Solange fosse a escolhida para ser a rainha dos mortos, passou do ponto e não resistiu! Melanie escreveu que na madrugada, quando a encontraram morta e jogaram no rio, ela já estava roxa. Não houve mais festas e as mortes se seguiram. Além de Melanie ter escrito o ocorrido, Rita usara o fato para chantagear os construtores. Quanto ao dinheiro para ajudar os pobres ele até entendia, mas, sendo amante de Melanie, por que Rita queria se casar com Maurício? Será que queria ser a dona da chácara e das festas? É muito difícil compreender a cabeça das pessoas! Depois de dar o depoimento e sair da delegacia, Alyrio foi para a casa de Sônia. Levou-lhe uma cópia das páginas arrancadas do caderno de Melanie. Ficou lá muito tempo bebendo uísque e narrando tudo o que ocorrera. Prometeu a Renato um relatório completo. Mesmo com a filha morta foi bem difícil para eles aceitarem as coisas malucas que ela fazia. E o tanto que era uma desconhecida para eles. Já era madrugada quando Alyrio foi para a casa. Ainda ligou e deixou um recado na secretária eletrônica da secretária do doutor Gastão avisando que sobrevivera à visita à chácara e atirou-se na cama. Adormeceu feliz, relembrando o tanto de heroísmo que pusera na descrição do ocorrido naquela tarde. Sônia estava orgulhosa de seu mordomo e de seu detetive! No dia seguinte só despertou na hora do almoço. Aprontou-se, saiu, comeu um sanduíche na padaria e foi para o hospital visitar Domitila. Desta vez não se esqueceu de levar flores. - Sabe, meu ex-marido veio me visitar, – ela falou segurando as flores. Alyrio sentiu que um jato de ar frio o empurrava para fora do quarto, mas resistiu. 191 - E... - Avisaram e ele veio me ver, nada mais. Saber se ia se livrar de mim, afinal ele já está casado com outra e tem filhos com ela! Alyrio sorriu sem saber exatamente o que sentia. - Quanto à perna, já está quase boa. Devo sair em poucos dias. Talvez tenha de alugar uma cadeira de rodas e você vai ter de me empurrar! Será que vai ter um tempo livre? - Não sei, vou pensar! - Alyrio relaxava. - Ontem estive na casa de Sônia e narrei tudo o que ocorreu. Eles que já estavam inconformados com a morte da filha, ficaram ainda mais ao ter de aceitar tudo o que narrei e o que estava escrito no diário. Fazer o que! Vou fazer um relatório detalhado, entregar e receber minha grana. Daqui vou ao escritório do meu primeiro contratante, doutor Gastão. Quando o relatório estiver pronto, mesmo sem ter sido contratado e, claro, sem receber coisa alguma, vou levar uma cópia para dona Laura, mãe de Solange. Ela merece saber o que realmente ocorreu com a filha. Por um momento os dois ficaram se olhando, Alyrio segurou-lhe as mãos numa despedida demorada. Ao se voltar, na parede em frente à cama havia um quadro. Alyrio estremeceu. Já não tinha certeza se via a paisagem que vira na chácara ou se lembrava de algum fato ocorrido naquele cenário. De uma forma que não seria capaz de explicar aquelas paisagens mexiam com suas entranhas! - Pedi para uma amiga trazer o quadro. – Domitila não parecia notar-lhe o estremecimento. - Assim vou ficar olhando e meditando e quem sabe consiga descobrir de que ponto do meu inconsciente vem a imagem destas paisagens. Será que de fato eu vivi na época em que as orgias estudantis ocorreram? Alyrio sentiu um arrepio, mas sorriu. - Bem, os crimes desta vida estão solucionados. O de outras... 192