REPRODUÇÃO/ACERVO DA FAMÍLIA
Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco nº 73 - Distribuição gratuita - www.suplementopernambuco.com.br
EDIÇÕES BAGAÇO RELANÇA
UM CAVALEIRO DA SEGUNDA
DECADÊNCIA, DE HERMILO BORBA
FILHO, OBRA SEMINAL QUE
PROPÕE UM DESNUDAMENTO
PESSOAL E HISTÓRICO
DE CORPO
INTEIRO
TATIANA SALEM LEVY | ENTREVISTA COM LOURENÇO MUTARELLI | ROBERTO BOLAÑO
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PERNAMBUCO, MARÇO 2012
GALERIA
IGO BION E
“Descubro a fotografia todos os dias, a cada click, em cantos da cidade onde estou. A fotografia me
proporciona uma ferramenta de aprendizado e conhecimento próprio e do mundo em que vivo.
Com ela, acabo desvendando meus pensamentos, ideias, descubro pessoas, histórias, erros e
acertos. Enxergo luzes onde antes não conseguia ver, tenho a possibilidade de desfocar a minha
visão, focar minhas decisões. Mas o mais importante, e que ainda estou aprendendo e descobrindo
a cada click, é o pensar fotográfico, aquela hora em que temos que parar, abaixar a câmera e apenas
observar. Observar os detalhes, fatos, momentos, histórias. Posso eternizar o momento que
continua a passar pelo tempo.”
www.flickr.com/igobione
e no instangram seu nome de usuário é @igobione
C A RTA DO E DI TOR
O escritor Hermilo Borba Filho é um daqueles segredos que Pernambuco guarda
do resto do Brasil. É autor de uma tetralogia
seminal, que mistura sua própria biografia
com os altos e baixos da história do país,
sempre guiado pelos extremos da carne e do
espírito. Para marcar a (silenciosa) reedição
que a Editora Bagaço realizou do escritor, o
Pernambuco deste mês apresenta aos leitores um dossiê sobre essa obra sui generis da
literatura nacional, que nos faz compreender
algumas das particularidades que formam
o éthos pernambucano.
Convidamos a jornalista e doutora em sociologia Carolina Leão para olhar pelo buraco da fechadura do imaginário oferecido
por Hermilo Borba Filho. Em seu texto, a
pesquisadora disseca questões polêmicas,
como a relação do pernambucano com a
literatura de Henry Miller. “Comparações são
inevitáveis. Na literatura também. Mas, como
índices, elas apenas apontam. Como placas
no caminho, elas sempre mostram para onde
se deve ir, não como chegar lá. Racionais, impedem que nos percamos no trajeto quando
precisamos economizar tempo e dinheiro;
não nos garantem, porém, se chegaremos
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SUPERINTENDENTE DE EDIÇÃO
Adriana Dória Matos
no referencial desejado. É natural que muitos
leitores tenham encontrado Hermilo pela
associação ao libertino e libertário Miller –
Hermilo fez do sexo, como Nelson Rodrigues
ou Marques de Sade, matéria-prima criativa”,
observa Carolina.
Nessa edição oferecemos ao leitor uma rara
oportunidade de conferir a produção poética
de Roberto Bolaño, nome de ponta da literatura contemporânea, cuja poesia permanece
inédita no Brasil. A tradução ficou por conta
do jornalista e escritor Ronaldo Bressane, um
“bolaniano” de primeira linha. Vale muito a
pena o leitor conferir a homenagem que o
poeta Ricardo Domeneck presta à Prêmio
Nobel Wisława Szymborska, falecida mês
passado e só há pouco traduzida para o Brasil.
Ainda no terreno da homenagem, Marcelino
Freire, a nosso pedido, disseca vida e obra do
escritor Wilson Bueno.
A entrevista do mês traz revelações de um
dos nomes mais ímpares da literatura brasileira, Lourenço Mutarelli, que recebeu a
repórter Carol Almeida para uma conversa
em seu apartamento em São Paulo.
Boa leitura e até abril.
SUPERINTENDENTE DE CRIAÇÃO
Luiz Arrais
GOVERNO DO ESTADO
DE PERNAMBUCO
Governador
Eduardo Campos
EDIÇÃO
Raimundo Carrero e Schneider Carpeggiani
Secretário da Casa Civil
Francisco Tadeu Barbosa de Alencar
ARTE, FOTOGRAFIA E REVISÃO
Gilson Oliveira, Janio Santos, Karina Freitas,
Militão Marques e Sebastião Corrêa
COMPANHIA EDITORA
DE PERNAMBUCO – CEPE
Presidente
Leda Alves
Diretor de Produção e Edição
Ricardo Melo
Diretor Administrativo e Financeiro
Bráulio Meneses
PRODUÇÃO GRÁFICA
Eliseu Souza, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves,
Roberto Bandeira e Sóstenes Fernandes
CONSELHO EDITORIAL
Everardo Norões (presidente)
Antônio Portela
Lourival Holanda
Nelly Medeiros de Carvalho
Pedro Américo de Farias
REDAÇÃO
Mariza Pontes, Debóra Nascimento, Ingrid Melo,
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MARKETING E PUBLICIDADE
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COMERCIAL E CIRCULAÇÃO
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PERNAMBUCO é uma publicação da
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16/02/2012 08:22:17
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PERNAMBUCO, MARÇO 2012
BASTIDORES
Sobre quem
segue o fluxo da
maré e da chuva
KARINA FREITAS
Em seu segundo romance,
a premiada escritora
portuguesa radicada no
Brasil descreve personagens
guiados pela força dos
elementos da natureza
Tatiana Salem Levy
CARTUNS
GANJARTS
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Meus livros nascem sempre de um impulso da realidade. Pode ser uma paisagem, uma voz, uma pessoa,
um acontecimento, um relato, o importante é que algo
me toque e, assim, me leve a explorá-lo.
Em 2007, depois de lançar A chave de casa em Portugal, fui passar cinco meses na França, com uma
bolsa de tradução. Decidi ir com uma amiga para a
Córsega, e me encantei tanto com o panorama quanto
com as histórias da ilha. Dessa experiência, surgiu
a vontade de escrever um romance ambientado lá.
No final daquele mesmo ano, voltei para o Brasil e
fui para Dois Rios, na Ilha Grande, e pensei em criar
uma história que juntasse esses lugares que, embora
diferentes, compartilham um modo de vida.
O ilhéu tem uma forma particular de relação com
o tempo. Na contramão do que se tornou o mundo –
veloz, ansioso, impaciente – os habitantes das ilhas
seguem o fluxo das marés, da chuva e do sol e, assim,
vivenciam o tempo de uma forma mais orgânica. Se
há uma coisa que eles aprendem desde cedo é esperar.
Contra uma tempestade ou um mar agitado, nada
podem senão aguardar a calmaria.
Esse foi o ponto de partida do meu segundo romance. Eu queria poder falar da passagem das horas,
dar ao leitor essa vivência cada vez mais rara. Os
personagens foram surgindo aos poucos: os irmãos
gêmeos, Antônio e Joana, e a francesa misteriosa que
surge na vida deles, Marie-Ange.
Então, outra questão ganhou contorno: a do duplo.
Eram duas ilhas, dois irmãos, duas histórias paralelas,
uma na voz de Joana, outra na voz de Antônio. Imaginei esses irmãos se apaixonando pela mesma mulher,
e de que forma o amor os transformaria, levando-os
a explorar um passado em comum.
No meio do processo de escrita, senti a necessidade de voltar aos lugares que haviam dado origem
ao livro, para poder colher mais material, observar
novamente as características de seus habitantes, seus
hábitos, sua culinária. Voltei à Córsega, onde aluguei
um carro para poder circular livremente, percorrer
as estradas, os diferentes vilarejos e, só então, decidi
que a história se passaria em Nonza, um charmoso
povoado incrustado na montanha, repleto de turistas
no verão, mas vazio no resto do ano.
Eu tive a sorte de ir lá com amigos corsos, frequentei
as famílias mais tradicionais, e isso me permitiu entrar
na cultura da região. Além disso, por coincidência, naquele momento eu estava fazendo um pós-doutorado
sobre o escritor alemão W.G. Sebald, e descobri um
texto dele sobre a Córsega que terminou por ser fundamental para o meu romance. Sebald fala da tradição
corsa em relação aos mortos, aos fantasmas, à bruxaria.
Esse universo fantasmagórico sempre me fascinou, a possibilidade de diálogo com os mortos. Nós
vivemos hoje numa sociedade tão apressada que mal
temos tempo para o luto. Somos intimados a ficar
bem logo, atropelar o tempo da dor, mas os mortos
não vão embora, permanecem conosco, e o luto é um
processo demorado.
Dois Rios, mais até do que Nonza, é um cenário
de ruínas, onde se vê claramente que houve vida, e
dessa vida não restaram senão vestígios. O vilarejo
foi erguido para acolher as famílias dos policiais que
trabalhavam na colônia penal Cândido Mendes,
implodida na década de 1990, quando a maior parte
dos moradores terminou por abandonar o povoado.
Antônio e Joana são netos de um policial, e passaram as férias da infância em Dois Rios, onde
souberam da morte do pai. Vinte anos depois, ainda
precisam elaborar essa perda e suas consequências e, para que esse processo se concretize, será
necessário o encontro com Marie-Ange. A partir
da paixão, eles vão reviver a experiência da ilha,
a relação com o mar e o tempo.
Na primeira parte do romance, o mar impulsiona
Joana ao movimento. Na segunda, Antônio aguarda o
retorno de Marie-Ange, que partiu num barco.
Essa ideia da espera também foi fruto de uma experiência real, e muito triste. Eu estava passando
um tempo em Lisboa, quando uma amiga recebeu a
notícia de que seu irmão tinha ido pescar em Cabo
Verde e não havia voltado. Isso acontece com certa
frequência. Alguns desses barcos, inclusive, terminam
chegando ao Brasil, à deriva. Durante três semanas
eu vivi, com e por ela, a angústia da incerteza. Meses
mais tarde, quando eu estava escrevendo o livro, a
imagem de alguém à espera de um barco reapareceu,
mas eu a transformei completamente. Porque escrever é isso, partir da realidade para transformá-la e,
com as palavras, tentar se aproximar das coisas que
realmente importam.
O LIVRO
Dois rios
Editora Record
Páginas 224
Preço R$ 34,90
16/02/2012 08:23:45
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PERNAMBUCO, MARÇO 2012
TRADUÇÃO
Sonhos e pesadelos
de Roberto Bolaño
Numa série de devaneios, escritor chileno
revela seus medos e referências literárias
1. Sonhei que Georges Perec tinha três anos e
visitava minha casa. O abraçava, o beijava, lhe
dizia que era um menino precioso.
9. Sonhei que Macedonio Fernández aparecia no
céu de Nova York em forma de nuvem: uma nuvem
sem nariz nem orelhas, mas com olhos e boca.
11. Sonhei que em um cemitério esquecido da
África encontrava a tumba de um amigo cujo rosto
já não podia recordar.
13. Sonhei que lia Stendhal na Estação Nuclear de
Civitavecchia: uma sombra deslizava pela cerâmica
dos reatores. É o fantasma de Stendhal, dizia um
jovem com botas e nu da cintura pra cima. E você,
quem é?, perguntei. Sou o yonqui da cerâmica, o
húsar da cerâmica e da merda, disse.
14. Sonhei que estava sonhando, tínhamos perdido a revolução antes de fazê-la e decidia voltar
para casa. Ao tentar me enfiar na cama encontrei
De Quincey dormindo. Acorda, dom Tomás, lhe
dizia, já vai amanhecer, você tem que ir. (Como
se De Quincey fosse um vampiro.) Mas ninguém
me escutava e eu voltava a sair para as ruas escuras
da Cidade do México.
15. Sonhei que via nascer e morrer Aloysius
Bertrand no mesmo dia, quase sem intervalo de
tempo, com se os dois vivêssemos dentro de um
calendário de pedra perdido no espaço.
17. Sonhei que era um detetive velho e enfermo
e que buscava gente perdida havia muito tempo.
Às vezes me olhava por acaso num espelho e reconhecia Roberto Bolaño.
20. Sonhei que o cadáver voltava à Terra Prometida montado em uma Legião de Touros Mecânicos.
23. Sonhei que voltava da África em um ônibus
cheio de animais mortos. Numa fronteira qualquer
aparecia um veterinário sem rosto. Sua cara era
como um gás, mas eu sabia quem era.
24. Sonhei que Philip K. Dick passeava pela Estação Nuclear de Civitavecchia.
29. Sonhei que traduzia Virgilio com uma pedra.
Estava nu sobre uma grande pedra de basalto e o
sol, como diziam os pilotos de caça, flutuava perigosamente às 5.
31. Sonhei que a Terra acabava. E que o único ser
humano que contemplava o fim era Franz Kafka.
No céu, os Titãs lutavam até a morte. De um banco
de ferro forjado de um parque em Nova York, Kafka
via arder o mundo.
SOBRE O TRADUTOR
Ronaldo Bressane é
jornalista e escritor e assina
o blog Impostor (http://
impostor.wordpress.com/)
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32. Sonhei que estava sonhando e que voltava
para casa muito tarde. Na minha cama encontrava
Mario de Sá-Carneiro dormindo com meu primeiro amor. Ao descobri-los, percebia que estavam
mortos e mordendo-me os lábios até sangrar eu
voltava aos caminhos vicinais.
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PERNAMBUCO, MARÇO 2012
KARINA FREITAS
34. Sonhei que era um detetive latino-americano
muito velho. Vivia em Nova York e Mark Twain
me contratava para salvar a vida de alguém que
não tinha rosto. Vai ser um caso condenadamente
difícil, senhor Twain, dizia a ele.
36. Sonhei que fazia um 69 com Anaïs Nin em
cima de uma enorme rocha de basalto.
37. Sonhei que fodia com Carson McCullers numa
casa em penumbras na primavera de 1981. E nós
dois nos sentíamos irracionalmente felizes.
40. Sonhei que uma tempestade de números
fantasmais era a única coisa que restava dos seres
humanos três bilhões de anos depois que a Terra
havia deixado de existir.
42. Sonhei que tinha 18 anos e via meu melhor
amigo de então, que também tinha 18 anos, fazendo amor com Walt Whitman. Faziam numa
poltrona, contemplando o entardecer borrascoso
de Civitavecchia.
45. Sonhei que Pascal falava do medo com palavras cristalinas em uma taberna de Civitavecchia:
“Os milagres não servem para converter, senão
para condenar”, dizia.
47. Sonhei que Baudelaire fazia amor com uma
sombra numa casa onde haviam cometido um crime. Mas Baudelaire não estava nem aí. “É sempre
a mesma coisa”, dizia.
50. Sonhei que depois da chuva um escritor russo
e também seus amigos franceses optavam pela felicidade. Sem perguntar nem pedir nada. Como quem
se derruba sem sentido sobre seu tapete favorito.
53. Sonhei que voltava às estradas, mas desta vez
não tinha 15 anos e sim mais de 40. Só tinha um
livro, que levava em minha pequena mochila. De
repente, enquanto ia caminhando, o livro começa
a arder. Amanhecia e quase não passavam carros.
Enquanto jogava a mochila chamuscada em um
canal, senti que minhas costas coçavam como se
tivesse asas.
55. Sonhei que ninguém morre na véspera.
56. Sonhei que um homem voltava sua vista
atrás, sobre a paisagem anamórfica dos sonhos, e
que sua mirada era dura como aço mas também se
fragmentava em múltiplas miradas cada vez mais
inocentes, cada vez mais deslavidas.
57. Sonhei que Georges Perec tinha três anos e
chorava desconsoladamente. Eu tentava acalmá-lo. O pegava os braços, lhe comprava guloseimas,
livros para pintar. Logo íamos para o Passeio Marítimo de Nova York e enquanto ele descia pelo
escorregador eu me dizia a mim mesmo: não sirvo
para nada, mas servirei para cuidar de você, ninguém te fará mal, ninguém tentará te matar. Depois
começava a chover e voltávamos tranquilamente
para casa. Mas onde estava nossa casa?
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Brasil não conhece poesia de Bolaño
Schneider Carperggiani
A Companhia das Letras está realizando um
ótimo trabalho em editar a obra do escritor chileno Roberto Bolaño (1950-2003), ainda que
cometa alguns pecados na escolha de certos
títulos. Por que deixar de lado a enciclopédia
farsesca de monstros que é La literatura nazi en
América e preferir o confuso Monsieur Pain? O
mais recente a sair no Brasil é a coletânea de
contos Chamadas telefônicas, que destaca o talento
de Bolaño com narrativas breves, sobretudo
para o leitor que teve contato com o seu legado
a partir de “gigantes” como Detetives selvagens e
2666. No entanto, sua poesia permanece inédita
no Brasil.
Até meados dos anos 1990, Bolaño havia
dedicado a maior parte dos seus escritos à
poesia, ainda que fosse um poeta irregular.
Mas aí está o detalhe sui generis do seu universo:
trata-se de um autor exemplar em escrever
sobre poetas de obra incompleta, ou mesmo
inexistente (gente que acreditava que a vida é
um modo de fazer literatura); e não um grande
poeta de fato. É sobre isso que trata algumas
das suas obras seminais como Detetives selvagens
e Estrela distante, narrativas sob o signo do horror
político vivido pela América Latina na segunda
metade do século passado.
O começo da sua produção poética data
de meados dos anos 1970 e foi marcada pelo
juvenil Manifesto Infrarrealista, que propunha uma
nova poética para um continente enclausurado por ditaduras, onde os grandes ídolos da
literatura já não pareciam mais fazer qualquer
sentido. O Manifesto Infrarrealista se orgulhava
de que seus “parentes” mais próximos eram
os “francoatiradores, os planeiros solitários
que assolam os cafés dos mestiços da latino-américa, os massacrados em supermercados,
em suas tremendas desjuntivas indivíduo-coletividade; a impotência da ação e da busca
(a níveis individuais ou bem enlameados em
contradições estéticas) da ação poética”.
O Manifesto Infrarrealista tornou-se famoso
justamente por ter sido ficcionalizado em Detetives selvagens, que descreve as angústias de um
grupo de jovens escritores à solta na turbulenta
capital mexicana dos anos 1970. Nessa época,
refugiado do Chile de Pinochet, Bolaño e seus
companheiros infrarrealistas eram inspirados
sobretudo pela literatura beatnik norte-americana. Essa sua produção inicial foi reunida
em publicações de vida efêmera, atualmente
relíquia para colecionadores.
Na sua poesia é possível encontrarmos a
gênese de uma das temáticas favoritas da sua
literatura: o fascínio pelo clima noir de livros
policiais, numa série de poemas sobre detetives (é famosa a declaração de Bolaño de
que seu sonho era ser detetive criminal). Essa
série, e boa parte da sua poesia, está reunida
na antologia póstuma La universidad desconocida.
O escritor Ronaldo Bressane traduziu alguns poemas do livro póstumo Tres, em que
o escritor lista uma série de sonhos e pesadelos (na verdade, o imaginário do escritor é
sempre atravessado por um certo tom onírico
e surrealista), que acaba deixando transparecer algumas das suas maiores influências
literárias. É o caso de Georges Perec. Então,
para os leitores do Pernambuco deste mês,
um Bolaño inusitado.
16/02/2012 08:25:55
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PERNAMBUCO, MARÇO 2012
ENTREVISTA
Lourenço Mutarelli
Algumas incertezas
em meio ao aroma
de café e nicotina
Repórter reencontra um dos mais curiosos escritores em
atividade no Brasil e discute sobre opiniões que se perdem
com o tempo e o tênue limite dos gêneros literários
FOTO: DIVULGAÇÃO
Você gosta de ler sobre as coisas
que escrevem sobre você?
Não leio. Nunca li. Tem tese, entrevistas,
mas nunca li nada. Às vezes dou pra Lu,
minha mulher, ler.
Dia desses Laerte falou que não gosta
de ler sobre quando falam mal dele
porque geralmente ele concorda.
É verdade, mas até mesmo quando falam bem,
ou quando é entrevista, sei lá. Você fala um
monte de besteira ou, mesmo que não seja
besteira, às vezes você fala uma coisa em que
você acredita num momento e depois, passam
dois dias, e você não acredita mais.
A se falar em entrevistas suas, de
opiniões que você pode não mais ter, li
uma recente em que você falava que o
mundo lá fora está ficando doente e é a
partir daí que ele começa a reconhecer
teu trabalho. Ainda acredita nisso?
Entrevista a Carol Almeida
Após sete anos, retorno ao apartamento no
segundo andar do edifício da Vila Mariana, São
Paulo, onde Lourenço Mutarelli vive ao lado
de sua esposa, Lucimar, e do filho, agora adolescente, Francisco. Há mais gatos pela casa —
cinco ao todo —, mais livros nas estantes e mais
quadros nas paredes. Algumas dessas molduras
exibem “mimos” dos trabalhos mais recentes
do autor, como as caixas de cigarro que incensaram o filme Natimorto, protagonizado pelo
próprio Mutarelli e adaptado de um romance
homônimo do mesmo autor. Longe do cenário asfixiante do longa, mas ainda envolvidos
pelo perfume da nicotina e do café que acabou
de sair da cafeteira italiana, conversamos so-
6_7_Entrevista MAR.indd 6
bre distanciamento, interpretação, sínteses,
processos e, claro, mais objetivamente sobre
quadrinhos, já que Mutarelli lançou recentemente Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um
dia quente, álbum que, embora tenha saído pelo
selo de quadrinhos da Companhia das Letras,
despertou dúvidas nos leitores quanto as insígnias de sua forma. Dedicado cada vez mais a
uma literatura, em quadrinhos ou romanceada,
a que ele chama de “experimental”, o escritor
e desenhista paulista pensa agora em usar
um artifício das artes plásticas para ironizar
a falta de compreensão que alguns possam
ter de seu trabalho. Para ele, num mundo em
que as compressões precisam ser imediatas,
talvez seja a hora de colocar “plaquinhas” que
legendem e expliquem exatamente o que ele
faz. Só que ao contrário.
Acho que o mundo está muito doente,
porque as pessoas estão muito distantes do
que seria a realidade e isso tem a ver com o
consumismo. Vejo assim: quando comecei a
tomar antidepressivo, que não tomo mais, era
raríssimo ver alguém tomando também. Era
começo dos anos 1990, fim dos anos 1980.
Hoje em dia é difícil quem não tome. E esse
tipo de medicação te distancia muito, te tira
muita sensibilidade.
Existe uma coerência na tua obra,
seja em quadrinhos, romance, cinema
ou teatro, que são teus personagens.
Quase todos são contidos e estão a
ponto de explodir. É mais ou menos essa
sensação que você sente nas pessoas?
A realidade prática da vida é absurda. Você
precisa criar escapes para poder viver nesse
modelo e precisa rever um bocado de coisa.
A escola, por exemplo, tem que ser repensada.
Não são pequenas mudanças que farão a
diferença. Mas acho que existe uma esperança
de que as coisas deem certo. Deve ser por isso
que tem essa coisa de 2012, para que a gente
tenha esperança que uma catástrofe consiga
parar tudo pra gente recomeçar.
16/02/2012 08:27:25
7
PERNAMBUCO, MARÇO 2012
Mas confesso que
estou começando
a achar cada vez
mais difícil ler
clássicos. Porque
nossa língua é viva
e tem mudado
O que as escolas poderiam
fazer para mudar?
Para começar, acho que não dava
para ter aula de 50 minutos. Não
dava pra fragmentar as matérias
como elas são fragmentadas.
Devia haver três professores e
mais diálogo em sala, não tinha
que ter essa forma de avaliação
com provas. Também não dá pra
ter 100 alunos por classe. Mas
para as escolas é caro bancar os
professores e a manutenção e aí
lhe resta seguir o padrão. A gente
jogou nessa última Mega Sena da
virada, de R$ 170 milhões, e eu
estava falando com a Lu que se a
gente ganhasse, podíamos fazer
uma escola como a gente pensa
que ela poderia ser.
Conversamos em 2005 e você
disse que queria fazer uma
história em quadrinhos de terror.
Nem me lembro disso.
Pois é, mas você falou que
seria uma história de terror
suburbano para falar um
pouco da experiência que
você teve com seu irmão.
Falei isso?
Falou.
É porque essa coisa do crack
é filme de zumbi, né? É
exatamente isso.
Você está acompanhando esse
processo de desocupação da
Cracolândia em São Paulo?
Um pouco. Mas é um problema
muito difícil e não vejo solução.
Acho que está totalmente errado
o que eles estão fazendo, mas não
dá pra tirar o pessoal dali. Não
tenho esperança. A desocupação
é isso, é interesse imobiliário,
porque ninguém quer aquele cara
6_7_Entrevista MAR.indd 7
ali. É horrível falar isso, mas não
consigo ver uma reabilitação.
Talvez uma minoria, um ou outro
que quiser muito, mas quando as
pessoas chegam naquele estágio é
porque já desistiram. São pessoas
que não conseguiram entrar no
jogo absurdo do sistema.
livro mesmo. Li três vezes, em
três diferentes momentos da
minha vida. Mas confesso que
estou começando a achar cada
vez mais difícil ler clássicos.
Porque nossa língua é viva e
tem mudado muito. E o ritmo
das coisas é diferente.
Faz parte então dessa doença do
mundo que você estava falando?
Você está cedendo ao
‘sistema’ da língua?
Sim, faz parte. Vejo pelo meu
irmão. Porque tem uma hora
que a única coisa que ele quer é
a droga e aí não importa, ele vai
até comer lixo.
De quem você se influencia hoje?
Ano retrasado o Antonio Prata
me indicou o Kurt Vonnegut, que
é um escritor americano que já
morreu e foi o cara que mais me
influenciou antes mesmo de eu
ter lido ele. Tem muito a ver com
meu trabalho. E não é porque faço
algo parecido com o que ele faz.
Falo em influências quando vejo
como aquelas pessoas resolveram
bem suas questões em suas
obras. E não por que tento fazer
um trabalho parecido com o
que leio. Mas houve uma época,
por exemplo, em que me sentia
tão influenciado pelo William
Burroughs, que fiz um livro meio
misturado com ele, mas era na
verdade uma homenagem.
Qual o livro?
O do Amores expressos.
Se costuma muito associar teu
trabalho a Kafka e Dostoiévski.
Essas foram minhas primeiras
influências. Lembro que li
uma versão de Crime e castigo
que devia ter 90 páginas, era
uma versão para estudantes.
E gostei tanto que fui atrás do
Totalmente. Acho que meus
livros refletem isso também.
Escrevo muito pra quem não
gosta de ler. Meus livros são
rápidos. Não sei se naquela
época as pessoas ganhavam por
caracteres, mas sempre dá pra
você tirar o extrato das coisas.
Muito se questionou se Quando
meu pai se encontrou com o
ET fazia um dia quente era
realmente quadrinhos. Para
você existe alguma fronteira
que determine que até ali é
quadrinhos e depois não?
Fiz esse álbum porque fui
convidado por uma produtora
que se chama RT, junto com a
Companhia das Letras, para fazer
uma história em quadrinhos. E eu
não estava a fim ainda de voltar
aos quadrinhos. Tenho feito muita
coisa experimental, mas ainda
não cheguei no que quero. E
quando comecei essa história em
quadrinhos, vi que não ia ter gás
e propus uma história ilustrada,
que chamei exatamente assim.
Mas quando terminei e saiu o
livro, começo a achar agora que
é quadrinhos. Teve até um amigo
que falou uma coisa interessante,
ele disse: “pô, quadrinhos é arte
sequencial, essa história é toda
fora de ordem, como você vai
chamar isso de quadrinhos?”.
Mas enfim, confesso que chegou
O processo é o
que vale, é isso
o que eu quero
explorar. Quero
coisas que estejam
impregnadas
pelo processo
em mim menos polêmica do que
achei que haveria. Porque nesse
meio as pessoas são tão fechadas
que pensei que teria gente que ia
querer me processar.
Se Quando meu pai… é um
primeiro capítulo de uma
experimentação que você
está fazendo com quadrinhos,
o que vem mais por aí?
Tenho feito algumas coisas,
mas o que estou querendo
fazer em quadrinhos tem um
pouco a ver com as instalações
de artes plásticas. Você vai ver
uma instalação, aí tem uns
canudos vermelhos e do lado
uma plaquinha falando que o
autor tirou 15 litros de sangue e
tudo aquilo é o sangue dele. Aí
você fala: “ah legal, o sangue
dele...”. As plaquinhas então
serão necessárias. Comecei
uma história que era assim: sem
esboço, sem roteiro, sem nada.
Começo a desenhar. Vou virando
a página e desenhando outra e
a história vai se criando ali. E aí
quando a história começa a se
organizar e ficar linear, eu boto
um personagem novo e aquela
narrativa se quebra. Fui fazendo
dessa forma e cheguei a umas
80 e poucas páginas. Dei para
algumas pessoas lerem e elas não
entenderam que, assim como
o que eu fiz era experimental, a
forma delas lerem também tinha
que ser experimental. Então talvez
eu precise explicar isso.
Você acha que o exercício
de interpretação é cada vez
mais custoso às pessoas?
Muito. E quando você fala então
em experimental, aí é que a
coisa fica difícil mesmo. Porque
experimental é sempre “coisa
que eu não vou entender”. É
porque tem coisa que não posso
falar. Mas vamos lá. Essa coisa de
quadrinhos em editora grande,
por exemplo. Como acho que
eles pensam? Posso estar errado,
mas o pior é que eu posso estar
certo. Você junta lá os “bacana”,
os “cabeção” da editora, uns
meninos de 30 anos, descolados,
super ligados com tudo de
melhor que existe no mundo,
totalmente antenados com Nova
York, Berlim… E aí eles olham
para um livro e vem a pergunta:
“E isso aqui?” “Ah, isso aí não
é mais legal.” “O que é que é
legal?” “Ah, acho que legal agora
é isso aqui”. E aí se cria uma
ditadura. Eu vou lá e pergunto
por que não publicam mais o
William Burroughs ou o Kurt
Vonnegut? E a resposta é porque
eles estão fora de moda.
Você vai voltar a fazer
quadrinhos agora ou
fazer romances?
Tenho que terminar o livro
dos Amores expressos e tenho
umas encomendas que estão
atrasadas. Mas estou, sim,
fazendo quadrinhos e continuo
minhas experimentações. E
ano que vem vou lançar meus
cadernos laboratórios, que são
as coisas que eu mais gosto de
tudo que fiz, porque são coisas
inacabadas. Vai se chamar
Sketchbook. Se bem que ele não é
um sketchbook. Não é um estudo
para alguma coisa, é um exercício
de pensamento mesmo. Para
mim, o processo é o que vale, é
isso que quero explorar cada vez
mais. Quero coisas que estejam
impregnadas do processo.
Carol Almeida é jornalista.
16/02/2012 08:27:26
8
PERNAMBUCO, MARÇO 2012
KARINA FREITAS
Raimundo
CARRERO
Cuidado com o que você
fala ou escreve, no caminho
pode haver um “palavrão”
Marco
Polo
MERCADO
EDITORIAL
8_9_Carrero MAR.indd 8
Uma oficina literária se divide em dois planos:
linguagem e técnica.A linguagem pede equilíbrio
e harmonia nas palavras, frases cuidadosas, parágrafos em geral curtos e objetivos.Há expressões
coloquiais que precisam ser esquecidas quando
integram um texto de narrador, por exemplo, mas
podem e devem aparecer quando ditas por um
personagem, e até quando o narrador é um personagem. Parece complicado, mas não é. “A chuva
que caiu ontem” deve ser riscada, assim como
“quando me acordei ontem”. A rigor, ninguém “se
acorda”. Tira o pronome. Basta escrever: “Quando
acordei ontem.”
Recuse sempre: “Via de regra” e “por outro
lado”. São inadequadas ou impróprias, além de
literariamente ruins. Nem mesmo em discurso ou
ensaio. Esqueça. Sem querer você estará escreven-
ORIGINAL
Jussara Salazar reinstaura o sagrado na vida e na arte em
seu livro Carpideiras, lançado pela editora 7 Letras
A palavra palimpsesto designa
o pergaminho ou papiro cujo
texto foi eliminado para permitir
a reutilização de um novo. Já
dessacralização consiste em
devolver às realidades temporais
sua autonomia original em
relação ao poder religioso. E a
dessacralização em arte surge
com Duchamp, que a atrai para o
fazer comum, tirando do artista
a aura de ser especial. Todos
estes conceitos estão em jogo
do um texto erótico ou indecente. Preste atenção.
Cuidado, sobretudo com os encontros de sons das
letras. Veja: “O triunfo das palavras.” Sem dúvida,
um bom título, mas observe como fica: “O triunfo
das palavras” — “fo das”. Assim mesmo acontece
com a expressão “como sempre” porque ela é ambígua e pode causar duplo sentido.Veja o diálogo:
— “ Como vai sua mulher?”. —“Como sempre.” —
“Como sempre sim, eu sei, mas como ela vai?”. É
muito questionável, ainda, a expressão “Do fundo
do coração”. “Do do”. Além de ficar ruim “fundo
do”, o som é desagradável. Fundo de quê? Não é
certo que coração tem fundo. Pode provocar risadas
e aí o texto perde a força. Em textos dramáticos,
então, seja muito cuidadoso.
Mas o que se faz para evitar uso da conjunção
“como”? Ou para que a conjunção não se tranforme
DIVULGAÇÃO
Não duvide, a
linguagem pede
muito molejo
quando se fala do novo livro de
Jussara Salazar (foto), Carpideiras
(mulheres contratadas para
chorar e cantar nos velórios do
interior nordestino), lançado pela
7 Letras. A autora pernambucana
parte de matrizes pesquisadas
(cantorias, incelenças, rezas),
para, sobre elas e/ou a partir
delas, construir seus textos,
reinstaurando o sagrado na
vida (ou na morte) e na arte. O
resultado é estimulante e original.
16/02/2012 08:30:26
A Cepe - Companhia Editora de Pernambuco informa:
CRITÉRIOS PARA
RECEBIMENTO E APRECIAÇÃO
DE ORIGINAIS PELO
CONSELHO EDITORIAL
em verbo? Recorre-se à metáfora, até porque o
“como” é próprio da símile, que empobrece a frase
ou o verso. A metáfora suprime a conjunção, não é
mesmo? Está lembrado da composição de Caetano
Veloso? “Uma mulher, uma tigresa” — metáfora;
“Uma mulher é como uma tigresa” — símile. E fica
muito mais bonito, muito mais elaborado.
Essa frase, a seguir, aparece constantemente nos
jornais: “O conferencista foi aplaudido pelos presentes”. Que bobagem! Os ausentes não aplaudem.
Mas já encontrei esta pérola em livros: “Graciliano
Ramos renunciou em pleno mandato”. Claro, sem
mandato é impossível renunciar. Redundâncias,
pleonasmos e exageros são heranças de um resquício de barroco que sempre se arrastou na nossa
linguagem, mas o escritor precisa ter cuidado. Vá
com jeito, vá com jeito.
A melhor maneira de usar bem a linguagem é
estudar autores referenciais, com a qualidade de
Ariano Suassuna e Graciliano Ramos, dois opostos,
e, por isso mesmo, é preciso estudá-los juntos. Até
porque ambos escrevem sobre a mesma região e
sobre cenários bem parecidos ou aproximados.
Pode-se copiar numa folha em branco e com um
lápis os textos de um e de outro. Isto chama-se
trabalho ou esforço intelectual. O que um escritor
deve fazer sempre. Com muitos escritores, com
os mais próximos e os mais distantes.Tudo isso
ajuda muito. Não acredite nessa história de que
escrever é espontâneo. Não é mesmo. Escreva e
escreva. Escolha a página de um grande autor, copie
e depois tente escrever a sua própria página. Faça
isso várias vezes. Muitas. Até se sentir livre dos
escritores imitados. Estude todos os dias. Escreva.
Copie. Imite. Até encontrar seu próprio pulso. E
então esqueça tudo. Fiz muito isso no meu começo.
Sobretudo no jornalismo.
Aqui entra em questão o adjetivo. Aliás, deve-se
usar o adjetivo sempre que necessário. É possível
usar o adjetivo em, pelo menos, três ocasiões: 1)
antes do objeto, que o ilumina e o esclarece; exemplo: Vi uma bela mulher; significa que a mulher
será sempre bela; 2) depois do objeto, que o torna
circunstancial; exemplo: Vi uma mulher, bela, ou
seja, bela apenas naquele instante; 3) ou no diálogo: — Vi uma mulher. — Bonita? — Sim, bela; e
mais, tudo depende do seu equilíbrio estético, da
harmonia do texto. Aliás, tudo é assim, equilíbrio
e harmonia, no campo das artes. Há ainda outras
expressões perigosas. Cuidado com “Nunca gostou”, veja como fica horrível: “Nun ca go stou”.
O encontro central das palavras, cria outra palavra
muito ruim.
Outra palavra a merecer o maior cuidado é o pronome “sua”, extremamente ambíguo. Pode causar
confusão no leitor e truncar a frase, exige muita
atenção. Vejamos, por exemplo, a seguinte frase no
começo de um romance: “Desde que foi levado a
dormir na cama com sua mãe, Arlindo sentiu que
a vida mudou completamente”. O leitor toma um
choque. A mãe dele foi para a cama com Arlindo? E
ele nem sabia quem era Arlindo. Afinal? Tem ainda
a história da mocinha que foi dançar no clube popular. Começou dançando com um tipo que suava
muito, muito. Daí a meia hora ela disse: “Mas você
sua, hein?” E ele respondeu, sério e compenetrado:
“Eu também vou ser seu.”
Sem esquecer o verbo “tinha”. “Ela tinha”, por
exemplo, não se escreve nunca. Lendo em voz alta:
“É latinha.” Tudo isso merece o máximo de atenção, mesmo que pareça bobagem, detalhes. Aquilo
que poderia ser — fechada a frase — uma expressão
carinhosa, passa a ser algo vulgar. Em correspondências comerciais, esqueça “Acuso o recebimento”
e “Aceite os meus protestos”. Além disso, não use
o “Já” diante de “Tinha”, por exemplo.
I
Os originais de livros submetidos à Cepe,
exceto aqueles que a Diretoria considera
projetos da própria Editora, são analisados
pelo Conselho Editorial, que delibera a partir
dos seguintes critérios:
1. Contribuição relevante à cultura.
2. Sintonia com a linha editorial da Cepe,
que privilegia:
a) A edição de obras inéditas, escritas ou
traduzidas em português, com
relevância cultural nos vários campos
do conhecimento, suscetíveis de serem
apreciadas pelo leitor e que preencham
os seguintes requisitos: originalidade,
correção, coerência e criatividade;
b) A reedição de obras de qualquer gênero
da criação artística ou área do
conhecimento científico,
consideradas fundamentais para o
patrimônio cultural;
3. O Conselho não acolhe teses ou
dissertações sem as modificações
necessárias à edição e que contemple a
ampliação do universo de leitores, visando a
democratização do conhecimento.
II
Atendidos tais critérios, o Conselho emitirá
parecer sobre o projeto analisado, que será
comunicado ao proponente, cabendo à
diretoria da Cepe decidir sobre a publicação.
III Os textos devem ser entregues em quatro
vias, em papel A4, conforme a nova
ortografia, em fonte Times New Roman,
tamanho 12, com espaço de uma linha e meia,
sem rasuras e contendo, quando for o caso,
índices e bibliografias apresentados conforme
as normas técnicas em vigor.
IV Serão rejeitados originais que atentem contra
a Declaração dos Direitos Humanos e
fomentem a violência e as diversas formas de
preconceito.
V
Os originais devem ser encaminhados à
Presidência da Cepe, para o endereço
indicado a seguir, sob registro de correio ou
protocolo, acompanhados de
correspondência do autor, na qual
informará seu currículo resumido e
endereço para contato.
VI Os originais apresentados para análise não
serão devolvidos.
EUROPA
INFANTIL
Começam os salões do livro
da França e da Inglaterra
Antonio de Campos lança O livro dos bichos, com poemas
que não subestimam a inteligência das crianças
No dia 16 de março, será aberto
o Salão do Livro de Paris, que segue
até o dia 19. Já o Londres Book Fair
começa em 16 de abril e vai até
o dia 18. A CBL, junto com os
Minc, MRE e FBN, terá estandes
brasileiros nos dois eventos,
destacando o segmento do livro
infantil e o intercâmbio de direitos
autorais. Para participar, as editoras
interessadas deverão procurar a
Câmara Brasileira do Livro pelo
e-mail [email protected].
O poeta Antonio de Campos
(não confundir com o também
poeta Antonio Campos,
presidente do Instituto
Maximiano Campos e membro
da APL) é um destes artistas
reclusos que habitam o Recife e
sua região metropolitana. Muito
espaçadamente, sai da toca e
lança um livro. Caso do recente
O livro dos bichos – Com gente, plantas
e coisas da vida (Edição do Autor)
dedicado às crianças. Como o
8_9_Carrero MAR.indd 9
título diz, o livro tem peixe, barata
e grilo, mas também tem São
Jorge, Saci Pererê e Caboclo de
Lança, algodão-doce, semente
de fruta e boneca de pano. Enfim,
um leque de temas que Campos
aborda numa poesia que, embora
feita primordialmente para o
público infantil, pode ser lida por
adultos, porque não se infantiliza
nem subestima a inteligência
dos pequenos. Um presente
para o público pernambucano.
Companhia Editora de Pernambuco
Presidência (originais para análise)
Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro
CEP 50100-140
Recife - Pernambuco
16/02/2012 08:30:30
10
PERNAMBUCO, MARÇO 2012
CAPA
A caminho da carne,
da alma e de nós
A obra seminal de Hermilo
Borba Filho desafia limites
entre memória e ficção
Carolina Leão
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Não existe vida social sem estereótipos. Somos reduzidos, sintetizados, estigmatizados e amaldiçoados pelas
caricaturas que nos atribuem indiscriminadamente
e ressaltam os elementos da personalidade com os
quais nos disfarçamos, ocultamos ou nos lançamos
ao convívio humano. Como poderíamos esconder o
corpo marcado pela herança genética ou a modificação
social e os caminhos seguidos, muitas vezes sem rumo,
outras tantas intencionalmente? A vida escolhida fala,
mesmo quando silencia. Hermilo Borba Filho foi um
dos alvos dessa estereotipia. O rótulo de escritor maldito ressoa até hoje quando se fala no pernambucano
de Palmares, cuja fortuna crítica está sempre associada
à do anárquico Henry Miller e a Lawrence Durrel e seu
O quarteto de Alexandria – inspiração original da tetralogia
de Hermilo, lançada timidamente pela Editora Bagaço,
no final do ano passado.
Comparações são inevitáveis. Na literatura também.
Mas, como índices, elas apenas apontam. Como placas
no caminho, elas sempre mostram para onde se deve
ir, não como chegar lá. Racionais, impedem que nos
percamos no trajeto quando precisamos economizar
tempo e dinheiro; não nos garantem, porém, se che-
garemos no referencial desejado. É natural que muitos
leitores tenham encontrado Hermilo pela associação ao
libertino e libertário Miller – Hermilo fez do sexo, como
Nelson Rodrigues ou Marquês de Sade, matéria-prima
criativa. A tetralogia Um cavaleiro da segunda decadência
mostra, no entanto, fôlego suficiente para Hermilo
ser referência absoluta de sua própria literatura e obra
intelectual. E muito mais.
Pontuada por suas referências modernistas, Lorca
principalmente, e de sua própria história pessoal,
marcando a linguagem intertextual com digressões sensuais, filosóficas e surreais, Um cavaleiro
da segunda decadência é composta de uma narrativa
memorialística que revela mais do que detalhes
da vida pessoal do escritor. Ela cobre um período
que compreende o seu nascimento no interior do
estado (Margem das lembranças), sua chegada ao Recife
(A porteira do mundo), o exílio político e cultural em
São Paulo (O cavalo da noite) e a volta para a capital
pernambucana (Deus no pasto).
Isso quer dizer a memória de três décadas, nas quais
o homem Hermilo se transforma no artista e intelectual. Isso quer dizer a memória passada e passada
16/02/2012 08:35:07
11
PERNAMBUCO, MARÇO 2012
JARBAS DOMINGOS
a limpo, ruminada, racionalizada e estetizada pelo
homem Hermilo, pelo artista Hermilo e pelo intelectual Hermilo em diversos momentos de sua trajetória
artística e política. Escrita durante os anos 1950 e 1960,
e publicada no final dos 1960 e começo dos 1970, a
tetralogia é um tour de force das reminiscências. Não
há arrependimento, entretanto. Ele não se desculpa.
Mostra, afinal, o que o fez ser Hermilo Borba Filho e
não outro artista qualquer. O livro é, nesse sentido,
quase um work in progress do seu pensamento intelectual.
Não significa muita coisa dizer que é uma obra
ficcional baseada em fatos reais porque todas na
verdade a são. Mas dizemos. Dizemos também que a
partir dela, o escritor nos entrega, talvez até inconscientemente, a chave para a compreensão da vivência, da experiência intelectual e criativa, a partir de
sua própria linguagem; modificada e aparentemente
escrita em momentos diferentes, de acordo com
humores e sensibilidades diferentes. A chave abre
também uma história fascinante da vida doméstica,
cotidiana, da história social do Recife, do menino
de engenho, com todas as taras, manias, desejos
e repressões da vida social de Pernambuco. Um
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arquivo vivo para etnólogos e historiadores sociais.
Não basta a verdade. Os fatos, as datas oficiais. Que
os encontrem os cientistas sociais. Importa como a
história vem a ser contada, independente da verdade.
Mas é inegável a presença pulsante de uma memória
que nos faz acompanhá-lo pela sua trajetória. Hermilo recria não somente diálogos e situações, que
vá lá podem ser fictícias, ele recria a ambiência, a
atmosfera social. Através destas, chegamos ao contexto
responsável por criar o criador Hermilo.
Comecemos pela Margem das lembranças. “Estou na
balança. Todos os meus atos estão na balança”, abre
o primeiro parágrafo do livro. As páginas que seguem
têm o leitor como confidente, ou algoz. A sensação é: a
memória precisa ser colocada no papel, ou seja, racionalizada, elaborada, analisada e, assim, entendida. Diz
a psicanálise que a diferença entre dois sentimentos
irmãos, a vergonha e a culpa, é que a primeira silencia;
enquanto a última necessita da fala, existe por ela.
Não é necessariamente uma culpa no sentido judaico-cristão, de pesar e arrependimento – muito embora
o último capítulo, Deus no pasto, apresente o período em
que ele se converte ao cristianismo e possa ser visto
como tal. Mas de coerência e responsabilidade com
sua própria história pessoal. Tendo passado por uma
vida de luxúria e excessos, Hermilo volta ao passado
para fazer as pazes com os vários fragmentos do Hermilo ficados para trás, caídos no esquecimento, mas
formadores de seu mundo de ideias.
“De olhos fechados mastigo tudo o que passou”, diz.
“Aqui de pés plantados na terra vomitando palavras.
Lembro de tudo: do cheiro, das cores, das palavras,
de todos os atos. Embora saiba que nunca alcançarei
o futuro, continuarei escrevendo até secar os dedos.
O que importa é lembrar e pedir perdão para não ser
julgado. Esta é uma tábua de lembranças”, continua.
As lembranças não são nostálgicas. São quase relatos
jornalísticos do fato ocorrido, misturados a linguagem
descontínua, que ora nos aproxima com um zoom de
sua vida cotidiana, ora nos faz acompanhantes desse
julgamento analítico.
De certa forma, Margem das lembranças me remete
ao processo de composição de Casa-grande & senzala,
de Gilberto Freyre. O mundo da criança e do jovem
Hermilo gira em torno do açúcar. A vida no engenho,
o contato com o mundo rural, ansioso de ser citadino nos centros comerciais afastados dos solos de
massapés onde se fincaram os senhores de engenho.
A própria família do escritor vinha de ascendência
fidalga. Como grande parte dos senhores do açúcar,
caiu na decadência com o surgimento do capitalismo.
Tal qual Freyre, Hermilo se vale do registro cotidiano
e da vida doméstica da cidade pequena.
De certa forma, ambos se aproximam num certo,
pela falta de um termo mais apropriado, “inconsciente coletivo” de classe. Muito bem analisado por
Renato Ortiz, o contexto em que Gilberto Freyre surge
revela uma aristocracia empenhada, também pelos intelectuais que a representaram, em demarcar o
sentimento de pertencer à aristocracia e legitimar o
papel do patriarcalismo na economia pernambucana.
Ambos, Freyre e Hermilo, se valem do registro oral,
das memórias pessoais que não fogem da reprodução
classista. Enquanto Freyre, porém, busca-se inserir na
história social como pensador e um pensador desta
classe, Hermilo rompe com a vida social herdada se
afastando da família opressora e nesse processo cria
sua autonomia como artista. Esta longe de representar
um conteúdo legitimador da aristocracia mas é importante lembrar que ele fala a partir dela.
Essa antítese entre universos contraditórios, cidade e campo, por exemplo, será mais evidenciada
no segundo capítulo, A porteira do mundo, quando
Hermilo chega a um Recife cindido entre a velha
tradição escravocrata e a sua modernização. Em
Margem das lembranças impera a descoberta do mundo, sob a perspectiva da família, da vida doméstica, da cidadezinha que tem seu pequeno teatro,
seu cineminha, mas se encontra profundamente
arraigada ao seu provincianismo.
Este capítulo é essencial para entender as referências seminais do escritor bem como o papel do sexo
em sua vida. Volto para Henry Miller. De fato, há
proximidades estéticas com a mais vasta linhagem
de libertinos que utilizaram o sexo como conteúdo
estético em momentos políticos desoladores, como
Sade, no aburguesamento francês, ou Miller, no entre-guerras. O sexo surge como a pulsão erótica que
desafia o tânatos, representando não apenas nossa
fuga da morte, mas, nestes contextos, como provocação, anarquia contra a nova ordem política – sempre
prevalecendo uma certa melancolia, de classe ou
geração, nestes relatos eróticos.
Leda Alves, que foi casada com o escritor, destaca a
sexualidade presente nas memórias de Hermilo como
a sua imersão e simbiose no mundo rural. “Uma realidade diferente de quem cresceu na cidade. Na vida
rural, o sexo era com as árvores, os bichos. Não tinha
nada demais, para eles. Para Hermilo, era tudo muito
natural.”, coloca. Passagens confessionais, polêmicas,
mostram o incesto familiar, os filhos bastardos entre
senhores de engenhos e escravas, que acabavam sendo
criados nas casas grandes, onde a família compactuava
do fato com o silêncio.
E não escapava a paixão entre irmãos, que mal imaginavam o parentesco tão próximo. Tios se masturbavam à frente dos sobrinhos imberbes, e estes tentavam
repetir o êxito com os amigos de escola em tardes
perdidas no meio do mato. Os meninos espiavam as
mulheres, incluindo mãe e irmãs, pelas mais variadas
perspectivas: fechaduras do quarto, as cruzadas de
pernas ou subidas nas árvores, confidentes eróticas.
16/02/2012 08:35:12
12
PERNAMBUCO, MARÇO 2012
CAPA
JARBAS DOMINGOS
Num dos trechos, Hermilo esboça as reuniões
quase hemoeróticas, espontâneas, que os garotos
tinham por curiosidade do corpo ou força do tédio.
“À tarde, os irmãos se reuniam com Zuzu, um pobre
louco de cabeça raspada, bigode muito preto, ouvindo suas histórias. Zuzu sentava-se, desabotoava
a braguilha e exibia o membro enorme, largo como
meu antebraço e, enquanto se masturbava como
se nada estivesse fazendo, falava: - Quando eu
era cavalo, em tempo de carnaval, meu dono me
botava uma rosa na orelha e eu saía esquipando...”
E continua: “No meio de uma das histórias ejaculava mansamente, sem contrações, o esperma,
num guincho, alcançava a parede mais próxima,
correndo tristemente até encontrar a terra. Todos
batiam palma e Zuzu sorria”.
A essa história, seguem outras histórias engraçadíssimas, hilárias, contadas quase como anedotas,
caricaturas. Hermilo é dono de um universalismo
único, capaz também de expressar pela escrita
os preconceitos da fala matuta e do pensamento
suburbano, provinciano.
E outras histórias cabeludas, espantosas. Para Leda,
a tetralogia chocou a família e a sociedade pernambucana na época de sua publicação, na década de 1960.
“Ele era um escritor incompreendido. Até hoje seria”,
define. Chocou por conta de sua própria ligação com
as camadas mais altas da sociedade, já que aqui estudou na tradicional Faculdade de Direito e adentrou na
política cultural, como médio e alto escalão.
Hermilo chega ao Recife num verdadeiro choque
cultural. A década de 1930 foi marcada pelo estabelecimento dos escravos libertos no trabalho assalariado.
Trabalhos braçais, diga-se, de força física e resistência,
mas que os colocaram definitivamente na vida social.
A pequeno burguesia da capital fazia seu esforço para
se diferenciar socialmente. Apesar da modernização
urbana, indicada por um incipiente saneamento básico, por exemplo, a cidade vivia sua miséria cotidiana.
Os mocambos circundavam as zonas de manguezais e
os pobres e negros se acotovelavam em busca de um
trabalho no centro da cidade, com seus mercados, seu
porto, sua intensa vida diária.
“Nas nesgas de terra, nas pequenas ilhas que as
águas houveram por bem deixar aos homens vinham,
do centro para a periferia, os seres humanos: meninos
de barriga grande e mãos sujas, mulheres feias, negros
e mulatos musculosos, adolescentes arrogantes hábeis
no manejo das peixeiras, desembocando nas ruas co-
10_13_especial_capa.indd 12
loridas e oriental como gritos, música, dança, lenços
de seda, bibelôs, louças, frutas, sobretudo as frutas,
que davam o cheiro melado e os gostos afrodisíacos,
toda a multidão invadindo o mercado, indiferente
ao odor dos barrigas abertas e aos pretos camarões
recurvos”, descreve.
A burguesia se estabelecia como classe nos bairros
do centro, enquanto a vida aristocrática ainda compactuava da atmosfera de arrabaldes, das freguesias
tradicionais e outrora ocupadas por engenhos, como
Madalena e Apipucos. Enquanto a sociedade pernambucana frequentava o Jockey Club e o Club de Tennis
de Boa Viagem, o centro da cidade se transformava
na famosa zona boêmia, onde, recorda Leda, moça
direita não passava na ponte de Boa Vista, após as
17h. Ficava mal falada. Pudera. O Bairro do Recife era
o famoso antro de perdição, no qual Hermilo passou
bons e maus momentos e relata minuciosamente, sob
persona fictícia ou não, em A porteira do mundo.
Apesar de engatinhar numa nova mentalidade social, mais voltada à vida coletiva, da rua, o recifense
era, sobretudo, um provinciano e guardava o trancar-se
na casa, no sobrado, no seio da família, como proteção
que até hoje indica o medo, o pavor de se misturar,
de ser mais um entre tantos outros, de ser comum.
Por isso, a noite, o final do expediente, significava a
divisão entre dois universos. A opressão doméstica ou
cultural era substituída pela intensa movimentação
erótica. Mas só para os homens.
“E defronte era o cais, os compridos armazéns, a poeira do açúcar e da farinha de trigo, coladas aos tornos
nus de touros transformados em homens, os bigodes
eriçados na ânsia de devorarem carne, deixando que
os corpos se estremecessem nos barcos escandinavos,
orientais, ladinos, adornados de bandeiras esquisitas,
imóveis, cansados de travessias, somente à espera da
noite para se transformarem em massas misteriosas,
atraentes, despejando o sêmen dos marinheiros, que
passeavam nos bares, nos cafés, nos botequins, nos
cabarés, nos quartos transitórios, debaixo dos oitizeiros
ou nas escadas dos sobrados de dois, três andares, antigas residências coloniais dos donos do açúcar”. Como
diz o velho bordão: cidade pequena, inferno grande.
E continua: “toda esta multidão na morte, no comer,
no copular, no dormir, no andar, contra a outra dos
bairros importantes onde a água era filtrada, gelada
ou esquentada, andando nas primeiras dos bondes ou
nos automóveis para as festas, os cinemas, os jogos,
os piqueniques, os comes e bebes”.
Os anos no Recife são miseráveis também para o
herói dessa odisseia autobiográfica. Falta trabalho,
alimento. Não faltam cigarros, bebidas e mulheres.
E histórias de tardes em pensões, de masturbações
e orgias grupais. Xangôs, terreiros, sambas. Mas o
Recife, apesar de parecer a Sodoma e Gomorra, também se destaca pela sua agenda cultural. Hermilo
entra em contato com o teatro, a política e continua
a sua jornada, revelando psiques, crônicas diárias,
sob nomes fictícios, facilmente reconhecidos pelos
críticos mais atentos.
A porteira do mundo, representação simbólica da vagina, úmida e quente como o claustro das pensões
e do engenho, é exatamente a porta de entrada para
o escritor se estabelecer no cenário estético pernambucano, um universo possível por essa intensa
relação com a cidade. Uma cidade que Hermilo passa
a reconhecer como sua nos dois últimos capítulos
da tetralogia. O cavalo da noite narra o exílio cultural
e político do artista, um gauche na vida política e
artística. Hermilo cita o Eclesiastes: “E não recusei aos
melhores olhos coisas algumas de tudo o que eles
desejaram, nem proibi ao meu coração que gozasse
de todo o prazer”. No entanto, sua narrativa erótica
vai aos poucos sendo tomada pela dialética de sua
consciência política e intelectual, assim como pela
necessidade do amor a uma única mulher: primeiro
Débora, depois Leda.
Em Deus no pasto, retoma as reminiscências mais
íntimas dos dois primeiros capítulos e abre esta última
jornada com o seu jogo conceitual, citando o novelista
Hotchner: “Disse-me, ainda, que para ele havia somente uma maneira de explicar as coisas: contar toda
a verdade a respeito delas, sem ocultar nada; contar
ao leitor como a coisa realmente aconteceu. O êxtase
e a tristeza, o remorso e como estava o tempo e, com
um pouco de sorte, o leitor encontrará o seu caminho
até o âmago da própria coisa”.
Um cavaleiro da segunda decadência é uma obra única,
um relato da história das ideias e da proximidade entre
os campos político e cultural. A edição da Bagaço, no
entanto, não cumpre a universalidade de Hermilo,
restrito novamente a Pernambuco. Também merecia
uma edição mais cuidadosa, posto que temos pesquisadores debruçados sobre a obra de Hermilo, um autor
que vem sendo, ainda, timidamente conhecido pelas
novas gerações de leitores.
Carolina Leão é doutora em Sociologia.
16/02/2012 08:35:18
13
PERNAMBUCO, MARÇO 2012
O fôlego para
erguer um
mundo próprio
JARBAS DOMINGOS
Os detalhes da obra ficcional
que Hermilo Borba Filho
criou a partir da sua vida
Raimundo Carrero
A técnica confessional da tetralogia Um cavaleiro da
segunda decadência, de Hermilo Borba Filho, é muito
bem realizada, erguida a partir de depoimentos
escritos com absoluta qualidade e sem excessos —
apesar da presença do sexo em quase todas as páginas. Mestre na arte de escrever, Hermilo Borba Filho
estabeleceu um projeto literário humano, político e
cultural, em que trabalhou quatro décadas, variando
de pontos de vista, embora com um olhar político
encravado em Pernambuco e nos seus personagens.
Não abriu mão da crítica áspera, da ironia e, não
raras vezes, da contundência para realizar a sua
obra intelectual mais importante. Tinha o fôlego de
quem conhece os caminhos ásperos que é preciso
percorrer num projeto ficcional.
Marcado pela literatura de língua inglesa, sobretudo
a norte-americana, a partir de nomes como Henry
Miller e Eugene O’Neill, procurou no primeiro a sua
melhor companhia para atravessar o caminho da obra
e com ele travou um longo e belo diálogo. Hermilo
foi buscar em Lawrence Durrel, autor de O quarteto de
Alexandria, a frase que daria título à sua tetralogia. Em
O’Neill encontrou inspiração para o título do primeiro
dos quatro romances: Margem das lembranças. O’Neill é
autor de um peça teatral admirável chamada À margem
da vida. Mesmo assim, Hermilo foi sempre independente, dono dos seus próprios caminhos. Nenhuma
imitação, nenhum plágio. Todo escritor, naturalmente, tem os seus padrinhos ou companheiros de
viagem, desde Virgílio e Dante. Ariano Suassuna
sempre teve confessa admiração por Cervantes e por
Dante, além dos românticos alemães e pelos mestres
da prosa russa do século 19.
Hermilo começa Margem das lembranças, a primeira das
mil páginas que compõem a tetralogia, colocando-se
numa balança e diz que, no final, espera ser julgado
pelos homens e por Deus por tudo que está escrito,
verdadeiramente, mesmo quando recorre a uma invenção para melhorar a narrativa ou para diminuir os
10_13_especial_capa.indd 13
seus pecados. Tudo isso numa linguagem aberta, com
mais verdades do que metáforas, frases de quatro ou
cinco linhas, ou todo um parágrafo, sangrando, sem se
esconder, desde os episódios da adolescência envolvendo a diretora da escola em Palmares até a prisão,
no Recife, nas páginas de Deus no pasto, durante os anos
de chumbo do Golpe Militar. Há frases que podem
ocupar um capítulo inteiro, com alternâncias de tempo
e de espaço. Um estilo literário extremamente denso
e rápido, às vezes mudando de episódio na mesma
frase ou no mesmo parágrafo. Assim realiza aquilo
que podemos chamar de episódios sobrepostos — ou
seja, vários episódios ao mesmo tempo numa narrativa
vertiginosa e muito bem cuidada.
Outra técnica que HBF adotou desde o primeiro
momento foi a de usar uma epígrafe em cada capítulo, logo abaixo da numeração. O segundo volume
chama-se A porteira do mundo, e encontra Hermilo
no Recife até a viagem a São Paulo, para onde se
deslocou movido pelas perseguições políticas, local
do terceiro livro, O cavalo da noite. Aí passa a dirigir
grandes grupos nacionais de teatro e tem uma vida
noturna mais sôfrega. Segue-se Deus no pasto, mas sem
alterações estilísticas. Mantém-se fiel ao leitor, à obra
e a ele mesmo desde o princípio. Sem concessões e
sem recuos. Aí ele introduz uma nova técnica: insere
no texto geral trechos do diário de Túlio Carelli. As
últimas páginas deste romance são páginas de mestre, em que o autor olha pela janela do presídio para
admirar a chuva fina e a campina lá fora. Questiona a
presença de Deus, pergunta pela intervenção divina
naquele momento doloroso, naquele instante em que
o homem é colocado diante de sua própria dor, diante
do seu abismo. Mas o Hermilo religioso também está
ali, o convertido que clama pela presença do Senhor,
que espera sobretudo pela iluminação.
*Veja trechos da Tetralogia de Hermilo Borba Filho no:
www.suplementopernambuco.com.br
16/02/2012 08:35:28
14
PERNAMBUCO, MARÇO 2012
COMPORTAMENTO
Debaixo dos
pelos do bigode
de Nietzsche
Filósofo alemão, mesmo
contrariando seu desejo,
tem “crentes” e seguidores
Ingrid Melo
“Não quero ‘crentes’; acredito que sou demasiado
mau para crer em mim mesmo; eu nunca falo às massas… Tenho grande medo de ser, algum dia, santificado”. A frase é do filósofo alemão Friedrich Nietzsche
(1844-1900), que só não deve estar se revirando no
túmulo, porque ele também não acreditava nisso. Ela
foi publicada no livro Ecce homo (1888), um poético
elogio ao ego que o pensador escreveu com o intuito
de não ser confundido ou mal compreendido, pouco
antes de perder a lucidez. Nietzsche não suportava
a idolatria, tendo dedicado seu penúltimo livro, Crepúsculo dos ídolos (1888), a desmistificar a moral cristã,
as tendências modernas e a própria filosofia. Ironicamente, ele é hoje ídolo de uma geração de jovens
que, em boa parte, subverte seus escritos pinçando
máximas de seu contexto para estampar páginas de
redes sociais, pranchas de surf ou camisetas – entre
as prediletas, “Sem música a vida seria um erro”,
“O que não me mata, me fortalece” e “Eu só poderia
acreditar em um Deus que soubesse dançar”. Há, porém, quem se aprofunde deveras na obra do filósofo,
a ponto de acreditar piamente em suas teorias e tê-lo
como uma espécie de guru ou companheiro. Alguns
até o chamam carinhosamente de “Bigode”, devido
aos seus avantajados e característicos pelos faciais.
A frase sobre o Deus dançante foi o que impulsionou
a estudante de sociologia Angelica Albuquerque, de
23 anos, a se dedicar aos escritos do pensador. Embora já tivesse ouvido falar de Nietzsche, ela nutria
14_15_nietzsche kitsch.indd 14
a ideia de que o alemão era pessimista e depressivo.
“Eu tinha curiosidade sobre ele, mas só conhecia
citações como ‘Cada pessoa tem que escolher quanta
verdade consegue suportar’ ou ‘O evangelho morreu
na cruz’. Sou naturalmente melancólica e achava que
se lesse qualquer coisa de Nietzsche iria surtar ou
até tentar suicídio, então nem cogitava”, se diverte.
Quando se deparou com a frase hedonista em uma
propaganda da Tangolomango, uma festa mensal de
música brasileira criada em 2008, no Recife, percebeu
que o alemão poderia ser positivo. “Um homem que
queria que Deus dançasse não poderia me deixar
infeliz. O primeiro livro que comprei foi A gaia ciência
(1882) porque me disseram ser ‘alegre e florido’. Nele,
me deparei com teorias como o Eterno Retorno e
conheci um Nietzsche dionisíaco que me encantou
profundamente”, lembra ela, que já leu quase todos
os livros do pensador e tem tatuado um oroboro – em
referência à eterna repetição que Nietzsche pregou
pela primeira vez em A gaia ciência e tornou-se famosa
pelo célebre Assim falou Zaratustra (1883-1885), que
ganha agora nova ediçaõ pela Cia. das Letras com
tradução de Paulo César de Souza.
Angelica conta que não duvida que os fatos se repetem infinitas vezes. “Basta a gente pensar em guerras
e epidemias, em como elas aconteceram uma vez
e mais outra e mais outra. Um dia estamos alegres,
outros tristes, depois alegres de novo. Tudo vai e tudo
retorna. Até na moda é assim”, argumenta. O Eterno
16/02/2012 09:36:47
15
PERNAMBUCO, MARÇO 2012
JANIO SANTOS
seja muito melhor, já que tudo está garantido. Em
Nietzsche nada está garantido, e talvez isso seja a
graça da vida: saber que conceitos não suficientes
para interpretar o mundo, que a vida é uma contingência necessária, enfim”, conclui.
Iniciante no estudo da filosofia de Nietzsche, a
estudante de Direito Gabrielle Duarte, de 22 anos,
também vê por meio do pensador um mundo belo
em suas incertezas. Ela se interessou de fato pelo
filósofo, a quem chama de “Bigode”, depois que leu,
há cerca de dois anos, o livro Quando Nietzsche chorou,
escrito pelo psicoterapeuta Irvin D. Yalom, em 1995 (a
obra é uma das responsáveis por resgatar o alemão).
Então, começou a reparar em dezenas de referências
a Nietzsche em filmes e músicas e também percebeu
a quantidade de edições de bolso de livros do escritor.
“Eu assisti ao longa Brilho eterno de uma mente sem lembranças (Michel Gondry, 2004) e me deparei com a frase:
‘Abençoados os que esquecem, porque aproveitam
até mesmo seus equívocos’, creditada a Nietzsche.
Depois, me toquei que na música Índios, de Legião
Urbana, Renato Russo afirma ‘esse mesmo Deus
foi morto por vocês’. Deus está morto: é Nietzsche.
Um dia, estava no supermercado e lá estavam quase
todos os livros de Nietzsche numa prateleira. Pensei:
‘esse bigodudo deve ter algo especial!’. Comprei
uma edição de Humano, demasiado humano (1878) e vi
o quanto ele é lindo”, conta.
De fato, não é raro encontrar referências a Friedrich Nietzsche no mundo pop. Em filmes como
Gênio indomável (Gus Van Sant, 1997), A casa do lago
(Alejandro Agresti, 2006) e A pequena Miss Sunshine (Jonathan Dayton, Valerie Faris, 2006) ele está presente.
O último, aliás, faz uma sátira justamente aos jovens
admiradores de Nietzsche. No enredo, o personagem
Dwayne (Paul Dano, em excelente atuação), de 15
anos, tem uma caricatura do filósofo na parede do seu
quarto; faz voto de silêncio; usa uma camisa onde se
lê “Jesus was wrong” (Jesus estava errado); e aparece
O pop está repleto
de referências ao
filósofo. Do funk
carioca, passando
por David Bowie,
Kanye West e
Pet Shop Boys
Retorno é uma das teorias mais complexas de Friedrich Nietzsche e pressupõe que polos se alternam na
vivência, numa eterna repetição que os torna faces de
uma mesma realidade (saúde e doença, bem e mal,
criação e destruição). Essa teoria não diz respeito a
um tempo cíclico, mas a uma realidade que não tem
um objetivo a cumprir. “Parece assustador (a ideia do
Eterno Retorno) porque nós temos essa mania de novidade e de querer buscar uma razão em tudo. Mas, na
verdade, me confortou bastante cessar essa procura.
O foco tem que ser a vida e não o que está além dela.
Nós temos que pensar em tudo que já vivenciamos e
dizer: ‘passaria por isso de novo’. Temos que saber se
viraríamos ou não a ampulheta”, afirma.
O estudante de filosofia Ítalo Lins, de 21 anos de
idade, concorda. Fã de Nietzsche desde os 13, quando
estava em crise com a educação católica que recebera, e se deparou ocasionalmente com um exemplar
de O anticristo (1895) na estante do irmão, ele afirma
que a teoria é uma maneira de fazê-lo aproveitar
de maneira mais forte o tempo que foi destinado à
vida, que, por sua vez, é única. “Eu penso no Eterno
Retorno com frequência. Se eu fosse um spinozista
seria uma espécie de carpe diem, mas vejo por um
lado que não se restringe ao dia vivido. A ideia é se
superar, mesmo nas situações adversas. Meu dia
hoje pode ter sido ruim, mas o que eu posso fazer
para que isso me engrandeça? De que maneira posso
aumentar minha potência? É uma espécie de exercí-
14_15_nietzsche kitsch.indd 15
cio”, explica. Com essa afirmação, Lins introduz dois
outros conceitos de Friedrich Nietzsche: a Vontade
de Poder e o Super-Homem, pontos de partida de
Assim falou Zaratustra e abordados pelo pensador desde
seus escritos de 1881. Tais noções, ampla e deturpadamente utilizadas pelos nazistas ao aplicarem seu
ideal de superioridade da raça ariana, geraram um
repúdio à obra de Nietzsche durante várias décadas.
Esse super-homem nietzschiano, porém, não é um
ser cujo desejo é dominar.
A Vontade de Potência, em Nietzsche, significa
“criar”, “dar”, “avaliar” e “evoluir”. Trata de uma
impulsão inventiva do homem e do universo. Uma
provocação, na melhor maneira nietzschiana, como
a que fez com que Ítalo largasse a faculdade de Direito para cursar a de Filosofia. “Nietzsche me incitou
de uma maneira que seria ingenuidade da minha
parte ignorá-lo. Ele é um divisor de águas para mim.
Não se pode pensar a existência de outra forma,
depois de se entrar em contato com ele. Suas ideias
me fizeram aprimorar meu discurso sobre religião,
estética e sensações. Mas, acima de tudo, aprendi
com ele a estar a par da vida”, afiança. Segundo
Ítalo, o filósofo é para ele como um amigo, pois ambos dividem problemas, situações similares e uma
mesma linguagem. “Com ele eu vejo um mundo
muito mais colorido, muito mais vivo, com inúmeras
possibilidades a serem experienciadas. Mas não há
algo confortante nisso. Talvez recair num dogma
na grande maioria das cenas com Assim falou Zaratustra
em mãos. Na música, por sua vez, é possível notar
a influência do filósofo em nomes como Marilyn
Manson, Pet Shop Boys, David Bowie, Kanye West e
até mesmo no funk carioca, em que o Dj Mendigo e
as Intelectuazudas cantam um refrão que repete incessantemente “O Eterno Retorno, o Eterno Retorno,
o Eterno Retorno, Nietzsche já dizia”.
“Quando me viu com O anticristo em casa, minha mãe
se espantou e perguntou se eu tinha me tornado ateia.
Meu pai riu e disse que eu estava ficando intelectualizada. No ônibus, outro dia, um senhor ficou me olhando
admirado. Se ele conhecia o ‘Bigode’, provavelmente
estava pensando que eu era ‘mais uma dessas que
vem deturpar o que ele escreveu’. Se não, devia me
achar uma anarquista, niilista ou algo do gênero. Há
essa espécie de ambiguidade em relação a obra de
Nietzsche e eu compreendo. É interessante, porém,
que ao mesmo tempo que essas abordagens raras
podem comprometer o que ele escreve, elas podem
fazer com que pessoas se interessem por ele”, teoriza
Gabrielle. Paradoxos sempre foram marcantes na obra
de Friedrich Nietzsche. Ele costumava, por exemplo,
colocar lado a lado palavras totalmente antagônicas
(“Nascer póstumo”; “Deus morreu”, “delicadamente
mal-educado”). Contudo, provavelmente nenhum
é maior do que essa popularização e consequente
aprofundamento de suas ideias. O homem dinamite
explodiu e, pasmem, beira à santificação.
16/02/2012 09:36:52
16
PERNAMBUCO, MARÇO 2012
MEMÓRIA
Morrer só o
estritamente
necessário
Uma homenagem à Prêmio
Nobel Wisława Szymborska,
falecida no mês passado
Ricardo Domeneck
Foi em um mesmo mês, em 1996, que travei contato
com o trabalho de dois artistas poloneses que viriam
a se tornar tão importantes para meu pensamento
poético, ensinando-me cedo a intuir a conjunção
entre estética e ética, antes mesmo de descobrir tal
proposição explícita nos trabalhos de um pensador
como Ludwig Wittgenstein. Foi em novembro daquele
ano, creio que apenas com uma semana separando
os dois acontecimentos, que a TV Cultura exibira o
filme Krótki film o miłości, (1988), conhecido no Brasil como Não amarás, de Krzysztof Kieślowski; e um
documentário sobre a poeta Wisława Szymborska
(1923 – 2012), que acabava de ganhar o Prêmio Nobel
de Literatura, transformando-a, da noite para o dia,
de discreta poeta do Leste Europeu, com uma obra
bastante concisa, em celebridade literária mundial.
Eu tinha 19 anos. Os filmes de Kieślowski passariam
a ser refeição espiritual frequente dali por diante, mas
a poesia de Szymborska, que me fascinara tanto naquele documentário a mostrar uma mulher elegante
e sardônica, fumante inveterada, com vocalizações
discretas mas firmes de seus poemas, e num momento em que ainda não se podia usar a Internet com a
mesma facilidade de hoje, permaneceria escondida
e inacessível até o ano 2001, quando a revista carioca
Inimigo Rumor publicaria uma tradução coletiva de seu
poema Autotomia, trazendo-a de volta à minha mente e
iniciando minha busca por traduções de seus poemas
em quaisquer línguas em que estivessem disponíveis.
16_17_Wislawa Szymborska.indd 16
Até hoje, Autotomia segue sendo um dos meus poemas
favoritos, e tão claro em suas características marcantes
dentro da poética de Szymborska: “Diante do perigo,
a holotúria se divide em duas: / deixando uma sua
metade ser devorada pelo mundo, / salvando-se com
a outra metade. // Ela se bifurca subitamente em
naufrágio e salvação, / em resgate e promessa, no que
foi e no que será (...)”, chegando àqueles iluminados
versos “Morrer apenas o estritamente necessário,
sem ultrapassar a medida. / Renascer o tanto preciso
a partir do resto que se preservou”, mas encerrando o
poema com aquele ceticismo que tem sido associado
à poeta, mencionado com frequência nos elogios e
orações funerárias publicadas depois de sua morte,
em fevereiro, um ceticismo porém estranhíssimo,
que parece conseguir conjugar esperança e desespero
numa mesma asserção: “O abismo nos cerca.”
Em seu artigo publicado no jornal Il Foglio Quotidiano (ano XVII, n. 29, pag. 2), na sexta-feira posterior à
morte da autora, o crítico italiano Alfonso Berardinelli
fala em “ceticismo produtivo”, citando a própria
poeta, em sua declaração de que “O poeta moderno
é cético e desconfiado”, segundo ela, “também – e
talvez, sobretudo – nos confrontos consigo mesmo”.
Mas se este ceticismo e desconfiança em relação ao
poeta e à poesia no mundo contemporâneo levavam-na a uma textualidade de hesitações diante do que
anteriormente, entre os poetas românticos, por exemplo, seria visto como a busca de verdades ou o que
16/02/2012 08:38:34
17
PERNAMBUCO, MARÇO 2012
DIVULGAÇÃO
tudo aquilo que sangra e incha e baba, o único que
parece seguir invariável em meio às catástrofes acumulativas sob os pés do Anjo de Walter Benjamin, que
eu próprio escrevi num poema que “minha reação / à
temperatura é a única / invariável em minha equação
/ pessoal para a História”, e “se a garganta se engarrafa
/ e os lábios racham, não há sistema de defesa / contra
os herdeiros / de Eros ou Herodes, / ilustríssimos predadores”, identificando-me, no entanto, mais com as
mixinas que com as holotúrias da polonesa.
Se Szymborska mantinha sua atenção sobre as
coisas concretas deste mundo devastado e devastador, instintivamente parecia manter-se consciente
do que Ludwig Wittgenstein formulou com as palavras: “O mundo é a totalidade dos fatos, não das
coisas”, sabendo que tais fatos são apenas coleções
de palavras, e, como o austríaco, parecia acreditar
também que “mesmo depois de serem respondidas
todas as questões científicas possíveis, os problemas
da vida permanecem completamente intactos”. E
estes problemas talvez tenham solução nenhuma.
Se Szymborska parece confiar em certas lições que
podem ser intuídas entre a Natureza e a História,
ela não se entrega jamais a qualquer determinismo
ou mera relação de causalidade, pois parece, mais
uma vez recorrendo a Wittgenstein, saber que “algo
pode ser o caso ou não ser o caso e tudo o mais permanecer o mesmo”. Em seu poema Por um acaso, Szymborska escreve: “Poderia ter acontecido. / Teve que
acontecer. / Aconteceu antes. Depois. Mais perto.
Mais longe. / Aconteceu, mas não com você. / Você
foi salvo pois foi o primeiro. / Você foi salvo pois foi
o último. / Porque estava sozinho. Com outros. Na
direita. Na esquerda. / Porque chovia. Por causa da
sombra. / Por causa do sol. / Você teve sorte, havia
uma floresta. / Você teve sorte, não havia árvores. /
Você teve sorte, um trilho, um gancho, uma trave, um
freio, / um batente, uma curva, um milímetro, um
instante. / Você teve sorte, o camelo passou pelo olho
Ano passado, a
Companhia das
Letras publicou o
primeiro volume
de poemas
da autora em
território nacional
mais se aproximasse destas, Wisława Szymborska
nunca temeu buscar no mundo e suas ocorrências
e catástrofes uma espécie de parâmetro ou balança
moral e ética que, ao mesmo tempo, parece ligá-la
justamente àqueles poetas românticos que viam na
natureza uma manifestação do divino. Cética, sim,
mas nascida em um país tão marcado pela cultura
judaico-cristã como o é a Polônia, a estes parâmetros
e verdade intuídos no que chamaríamos de leis (tão
pouco misericordiosas) da natureza, e aí reside talvez
sua diferença em relação aos poetas românticos que
a precederam, como Blake ou Keats, a busca por
conhecimento na poesia da polonesa parece operar-se entre o que se aprende com a natureza e o que se
desaprende com a História. Em seu trabalho, conhecimento e sabedoria não parecem ser operações de
adição ou acumulativas. Pelo contrário, a poeta parece
dizer que é por subtração de certezas que chegamos
a algumas verdades talvez ligeiramente menos instáveis. Seu poema sobre a estratégia da holotúria diante
de seus predadores parece-me bastante emblemático
neste aspecto. Se cedo ou tarde a existência há-de
devorar-nos, Szymborska sugere que colaboremos
com o que tanto tememos justamente para postergá-lo. Parece-me um pensamento de grande coragem,
de uma tenacidade ética gigantesca. Em seu discurso
On courage and resistance, quando recebeu o Prêmio
Oscar Romero, a escritora norte-americana Susan
Sontag (1933 – 2004) — outra escritora tão apaixonada
16_17_Wislawa Szymborska.indd 17
pela fortitude ética — escreveu: “Nós somos carne.
Nós podemos ser perfurados por uma baioneta, feitos
em pedaços por um homem-bomba. Podemos ser
esmagados por uma escavadeira, fuzilados dentro
de uma catedral.”
É esta mesma consciência da fragilidade de nossa
existência física que parece comandar a atenção de
Szymborska, exigindo e implicando talvez menos
ceticismo que uma modéstia tenaz, uma modéstia que
é ao mesmo tempo bravura. Em seu poema Torturas,
ela escreve: “O gesto das mãos protegendo o rosto, /
esse permanece o mesmo. / O corpo se enrosca, se
debate, se contorce / cai se lhe falta o chão, encolhe
as pernas, / fica roxo, incha, baba e sangra. // Nada
mudou. / Apenas o curso dos rios, / do contorno das
costas, matas, desertos e geleiras. / Entre essas paisagens a pequena alma passeia, / some, volta, chega
perto, voa longe, / estranha a si própria, inatingível,
/ ora certa, ora incerta da sua existência, / enquanto
o corpo é, é, é / e não tem para onde ir”, em tradução
de Regina Przybycien na bela antologia publicada no
ano passado pela editora Companhia das Letras. Nosso
corpo degradável e nossa dor como bens comunitários. Parece-me uma percepção de um discernimento
espiritual aterrador, lembrando-me o aviso de Orides
Fontela, de que “a lucidez / alucina”. E foi dialogando
várias vezes com esta poeta polonesa, de quem pude
conhecer o trabalho apenas em tradução, em busca
desta lucidez e clareza assustadoras, consciência de
da agulha. / Em consequência, porque, no entanto,
porém. / O que teria acontecido se uma mão, um pé, /
a um passo, por um fio / de uma coincidência. / Então
você está aí? A salvo, por enquanto, das tormentas
em curso? / Um só buraco na rede e você escapou? /
Fiquei mudo de surpresa. / Escuta, / como seu coração
dispara em mim.”
Neste exato momento, há torturas, guerras, catástrofes ocorrendo. Holotúrias seguem sendo devoradas.
Para estes fatos, a morte de Wisława Szymborska a
1° de fevereiro de 2012 não faz a menor diferença.
Mas se ela estivesse viva, certamente haveria maior
alegria no mundo para tantos de nós que a lemos com
admiração e o prazer daquelas três palavras que ela
celebrou: “Não morrer demais”.
Ricardo Domeneck é poeta brasileiro residente em Berlim.
Autor, entre outros, do livro Cigarros na cama (Berinjela/
Modo de Usar & Co.)
O LIVRO
POEMS (POEMAS)
Tradução Regina Przybycien
Editora Companhia das Letras
Páginas 168
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16/02/2012 08:38:45
HUMOR, AVENTURA E HISTÓRIA EM
LIVROS PARA ADULTOS E CRIANÇAS
O CONTO DO GAROTO QUE
NÃO É ESPECIAL
Lucas Mariz
ANJO DE RUA
Manoel Constantino
A CABRA SONHADORA
Luzilá Gonçalves Ferreira
Primeiro colocado da categoria Infantil
no I Concurso Cepe de Literatura Infantil
e Juvenil, realizado em 2010. Conta a
história de um menino comum, igual a
de outros de sua idade, mostrando que
ninguém precisa de superpoderes para
ser feliz. Ilustrações de Igor Colares.
Primeiro colocado da categoria Juvenil
no I Concurso Cepe de Literatura
Infantil e Juvenil. Inspirado na história
real de um menino que viveu nas ruas
do Recife, mostra como uma amizade
pode perdurar, mesmo na adversidade.
Ilustrações de Roberto Ploeg.
A cabrinha Cordulina, que sonha
com o amor de um lindo bode chamado
Matias, vive uma série de aventuras,
que incluem voar e tomar banho de
cachoeira, até que seu sonho se torna
realidade. Ilustrações do artista plástico
Luciano Pinheiro.
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O HISTORIADOR DA LIBERDADE
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Álbum que reúne fotografias tiradas
pelo empresário, industrial do açúcar e
fotógrafo amador. Possui um rico acervo
documental da expansão da malha
ferroviária do Nordeste e do cotidiano
das famílias recifenses do século 19.
O livro mostra o lado humanista
do engenheiro francês que projetou
obras modernizadoras no Recife
do século 19, a exemplo do
Teatro de Santa Isabel e do Mercado
de São José.
O volume reúne as obras A Revolução de
1817, O sentido social da Revolução Praieira e
O padre Lopes Gama político, que espelham
um trabalho em boa parte voltado para os
movimentos libertários brasileiros, fazendo
de Amaro Quintas pleno merecedor do título
de O Historiador da Liberdade.
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PANO RÁPIDO
Joca Souza Leão
TAPACURÁ
Homero Fonseca
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Daniel Lima
A obra é uma compilação de breves e
bem-humoradas histórias de escritores,
jornalistas, artistas, poetas, políticos,
populares e boêmios pernambucanos,
anteriormente publicadas na coluna do
autor na revista Algomais.
Segunda edição da obra Viagem
ao planeta dos boatos. O leitor
acompanha o rumor de que a barragem
de Tapacurá havia estourado a partir
de relatos, incluindo, no caso mais
recente, a repercussão do mesmo em
redes sociais.
Há meio século, o Padre Daniel produz
uma poesia de qualidade singular,
mas que zelosamente subtrai ao olhar
do grande público. Agora, os amigos
venceram sua resistência em publicar os
versos e juntaram quatro de seus livros
inéditos neste magnífico volume.
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SOMBRA
Antonio Edson Cadengue
O OBSERVATÓRIO
NO TELHADO
Oscar T. Matsuura
Antonio Cadengue, que
estudou o Teatro de
Amadores de Pernambuco
por 10 anos, mostra
seus momentos mais
significativos, assim como as
excursões feitas em diversas
cidades e capitais brasileiras
e as suas principais
montagens.
Resultado de anos de
estudo sobre a vida e obra
de Jorge Marcgrave, o livro
faz parte da comemoração
do 4ª centenário de
nascimento do principal
responsável por grandes
estudos astronômicos
e cartográficos em
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19
Cleyton Cabral
INÉDITOS
PERNAMBUCO, MARÇO 2012
P
I
C
A
D
V E R ÃO
I
R
O
Enfermeiro largou o hospital e fugiu com o circo
depois que descobriu a veia cômica.
Solidão é ter um sol irradiando
por dentro e não sair de casa.
P
Ó
S
D
R
A
M
Depois de duas carreirinhas
ficou fazendo cena.
S U P E R FÁ C I L
Venho trabalhando o desapego
de você. Não, não é fácil cruzar
com você na rua e receber um oi,
como vai? Bem que você poderia
mudar de calçada, baixar a cabeça,
mas não, parece pirraça. Mudei o
roteiro de chegar ao trabalho, o supermercado, os bares, os cinemas.
Mas é incrível a sua capacidade de
me achar como se eu fosse uma
resposta de palavras cruzadas. Nível superfácil. Tento desviar, entrar numa loja, me esconder atrás
de uma árvore, mas em segundos
você está ao meu lado como um
fantasma. Fantasma que fala. Fantasma que pergunta se estou bem,
se está tudo legal, como andam as
coisas? Aí termino olhando nos
seus olhos, dizendo que sim, estou bem (no fundo nem está tão
legal assim), que a agitação dos
dias tem sido produtiva etc., etc.
E você convida para um café, um
filme, ver a exposição que acabou
de entrar. Porra, vê se some, evapora. E eu digo sim. Desapegar-se
de algo que mexe com a gente é
difícil. Como a palavra cruzada
que você não sabe a resposta e vai
lá no final conferir: amor.
T
I
C
O
F
U
AU L A DE G Ê N E RO S
O
Depois dos três tiros,
o repórter cobriu o morto.
Matar é dramático?
Pica é épico?
SOBRE O AUTOR
Larica é lírico?
Cleyton Cabral lança em
abril seu livro de estréia
Templo nublado no céu da
boca
JANIO SANTOS
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Adelaide Ivánova
INÉDITOS
PERNAMBUCO, MARÇO 2012
Domingo,
25 de julho
de 2010
é aquela velha coisa:
a gente termina um namoro
e passa um batom pra encobrir o incobrível
e vai pra boate crente que já vai conseguir se divertir
e passa a noite inteira
sentada no bar
sentindo saudade
e pensando (enquanto os outros suam away)
em como tudo era mais divertido com ele.
e o fato da cerveja ser de Colônia
e custar 4 Euros
ajuda pouco a superar.
agora picture this:
saí da festa sem dizer tchau
andei 20 minutos até o trem
era bem de manhã
(insisti tanto, como veem, num nada irreversível)
fazia um vento gelado
esperei o S-Bahn mais 20
ventava gelo
andei três estações entre Kreuzberg e Alexanderplatz
atravessei a rua pra pegar o bonde
esperei mais 13 minutos
o vento gelava e agora chovia
desci na porta de casa
subi as escadas
abri a porta
deitei
e foi só isso.
um silêncio de morte.
Eu sou Ivan Ilitch, tu és Iv
Você está num aeroporto: e espera.
Afinal, que outra coisa mais se faz
num aeroporto além de se encher
de esperanças? Como se essas duas
palavras não significassem – e não
trouxessem – a mesma coisa. Nada.
Um aeroporto tem o movimento
da vida da gente: as pessoas vêm
e vão (umas bonitas, outras feias,
umas tristes, outras alegres. Outras
vão indo como podem). Os carros
também vão sabe-se lá para onde
e, por algum mistério do universo,
os taxis estão sempre bege.
Num aeroporto, como na minha
existência ordinária e na sua, as
malas sempre parecem mais cheias
que o necessário.
A diferença hoje é que espero
porque realmente não tenho escolha. Sem ajuda, não vou a lugar
algum. Não por falta de destino,
não porque espero alguém que me
carregue. É que fisicamente não
posso. Não tenho o pé direito.
Em dezembro do ano passado levei uma queda no dia do vernissage
da minha exposição em Berlim, e
rompi os ligamentos. Ter ignorado
a ferida com o motivo de sair por
aí em busca de um bar complicou
ainda mais minha situação ortopédica. E o castigo veio, ao contrário da minha própria capacidade
motora, a galope. E então me disse
o médico, em higiênico alemão:
“Mocinha, nada de andar. Fique
deitada por duas semanas”.
Mas moço, deitada da minha
cama eu não vejo o mundo. Eu
não vivo o mundo.
Então no penar do meu repouso me veio às mãos A morte de Ivan
Ilitch. Eu sei, caro letrado leitor,
que nada que eu venha a dizer
sobre essa novela (perfeita, se
me permite um adjetivo entre
parênteses) vai enriquecer a história da crítica literária. Sobre ela
tudo já foi dito.
Antes de continuar minhas lamúrias, quero dizer aqui que sei
muito bem que estou fazendo tempestade num pé engessado. Não
comparo minha dor com aquela
das pessoas que sofrem de impedi-
respeito de pista
nunca
na sua vida
nunca
faça pouco caso de uma pessoa sozinha na pista.
você não faz a mais vaga ideia do que ela está passando.
nem chorar chorei.
(essa sou eu na pista
de dança conversando
com um pobre coitado)
oh darling,
(pausa, gole)
if you’re not gonna marry me,
(pausa, gole, gole)
don’t even start the flirting.
SOBRE A AUTORA
Adelaide Ivánova é
fotógrafa e escritora
brasileira residente em
Colônia. Esses textos
fazem parte do seu livro
inédito Sobre meninos
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PERNAMBUCO, MARÇO 2012
Terça-feira,
1° de junho
abc
theres’s something about the boys do subúrbio.
tem alguma coisa em São Fetiche do Campo.
és Ivan Ilitch, Ele é...
mentos físicos permanentes. Quero
apenas compartilhar meu infortúnio — e, como o de costume, refletir
sobre o corpo e a interferência dele
nas nossas emoções (ou, vá lá, nas
minhas).
Ivan Ilitch, aquele Zé-Ninguém,
correto, crente e obediente de Tolstoi, entendeu que mesmo uma
existência inofensiva à humanidade não poderia salvá-lo de sofrer menos com o definhamento
do corpo. Não era a doença que
violava a humanidade de Ivan, mas
a imobilidade. A Torá diz que tudo
está em movimento e o que não se
movimenta, morre.
Pois por isso mesmo não me
admira que, depois de tanto tempo olhando para o botão encravado em seu divã, Ivan Ilitch ficou
com raiva não do sofá em si, mas
de Deus. “Para quê me trouxeste
até aqui?”, quis saber o homem.
Como outrora perguntou Vinicius,
quando de uma época de coração
partido: “Se foi para desfazer, por
que é que fez?”.
“your room has a red couch, bed, a record player, desk.
not too much storage space though...
but enough space to dance”
nunca imaginei que alguém faria poesia nos classificados.
Posso estar muito errada, mas
duvido que algum deles tenha obtido alguma resposta.
Meu pé inútil, sua síndrome do
pânico, nosso medo de morrer são
doenças ordinárias, completamente desinteressantes. Ninguém
vai fazer cara de espanto com isso.
Meu pé tomou a proporção que eu
lhe dei, assim como aquela tão
versada sarna. E essa proporção
não cabe em nenhum sapato 34.
As pessoas vão dizer para você ter
paciência, mas você quer conseguir tomar um banho sozinho —
você quer tomar um banho em pé.
Vão dizer que você está fazendo
drama, que há pessoas morrendo de fome, e esse veto ficcional
eu veto de volta. Não me venham
dizer que minha dor é pequena,
porque é a minha e é a que tenho.
Não há outra forma de se reagir
quando, em vez de mover-se, de
participar, lhe resta apenas a observação.
E se é isso que lhe resta, que assim seja e que assim se faça.
Quarta-feira,
29 de Setembro
stadt sapatão
eu tenho uma namorada
e ela se chama Berlim
a gente se vê todo dia
ela nunca me ignora
ela está sempre disposta
ela sempre sai comigo
e gosta de andar de mãos dadas
eu tenho uma namorada
e ela está tão triste.
Like a prayer
oi pai do céu
estou neste momento vestindo meu melhor vestido e
pedindo
que o senhor me mande um motivo bem bonito
que me ajude
a sobreviver
só mais essa noite.
aprendi
com Rachel
tem gente que lê romances.
tem gente que vive em um.
meu Deus
nada acontece.
Minha divina
comédia pessoal
tu és minha beatriz.
tu és tão lindo.
JANIO SANTOS
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PERNAMBUCO, MARÇO 2012
RESENHAS
JANIO SANTOS SOBRE FOTOS DE DIVULGAÇÃO
Coletânea de artigos traz o
escritor argentino se debruçando
sobre tigres, Dante e Shakespeare
Schneider Carpeggiani
Mariza
Pontes
NOTAS
DE RODAPÉ
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imersão borgeana.
É lendo Borges dessa
forma bem particular
que recomendo Nove
ensaios dantescos & a
memória de Shakespeare,
que a Companhia das
Letras lança agora dentro
da sua coleção Biblioteca
Borges. A obra se insere
de maneira exemplar na
perspectiva de impureza
e contaminação, a
que nos referimos
anteriormente. Há
contos, ensaios,
fragmentos e um
prólogo que é tudo
isso ao mesmo tempo.
Cabe ao leitor escolher
a classificação da sua
leitura.
E o leitor, já
acostumado ao universo
borgeano, sabe da
vastidão do imaginário
do escritor argentino
em se tratando de
Dante. O texto (vamos
chamá-lo assim, para
não aprisioná-lo na
“armadura” de ensaio)
O último sorriso de Beatriz
dá uma boa ideia de
como Borges amplia o
mestre italiano: “Tenho
a impressão de que
PERFORMÁTICO
Apresentações de Biagio integram projeto de
pesquisa para mestrado que começa na USP
Desde 2009 o poeta e ator Biagio
Pecorelli realiza performances
inusitadas, usando o corpo
para expressar suas criações.
A série In-Margem faz parte do
projeto que ele inicia neste
mês, no Programa de Mestrado
em Artes Cênicas da USP. A
performance mais recente
foi realizada em fevereiro, às
vésperas do Carnaval, quando
o poeta ficou amarrado em
uma cama, exposto ao público
Dante edificou o melhor
livro produzido pela
literatura para intercalar
alguns encontros com
a irrecuperável Beatriz.
Melhor dizendo, os
círculos do castigo e
o Purgatório austral
e os nove círculos
concêntricos e Francesca
e a sereia e o Grifo e
Bertrand de Born são
intercalações; um
sorriso e uma voz, que
ele sabe perdidos, são
o que importa”. Sua
perspectiva tão aguda da
estratégia dantesca de
se aproximar da musa
Beatriz é compreensível.
O Aleph trata de um
homem que escolhe ver
o universo inteiro apenas
para ler as cartas íntimas
da amante morta. A visão
Total seria apenas o álibi
de um voyeur atormentado
por detalhes.
Se com esse livro
compreendemos
melhor Dante, também
visualizamos o fascínio
de Borges pelo tigre,
como símbolo e animal:
“Uma famosa página de
Blake fez do tigre um
fogo que resplandece e
um arquétipo eterno do
Mal; prefiro a sentença de
Chesterton, que o define
como um símbolo de
terrível elegância. Não há
palavras, ademais, que
possam cifrar o tigre, essa
forma que há séculos
habita a imaginação dos
homens”. E, como Borges
sempre nos alertou, é
bom ter cuidado: o tigre
está à solta na biblioteca.
ROMANCE
NOVE ENSAIOS DANTESCOS &
A MEMÓRIA DE SHAKESPEARE
Autor - Jorge Luis Borges
Tradução - Heloisa Jahn
Editora - Companhia das Letras
Preço - R$ 29,50
Páginas - 104
REPRODUÇÃO
A vastidão a que
o leitor de Borges
é condenado
Talvez a marca mais
grandiosa da literatura
de Jorge Luis Borges seja
a impureza. A mistura e
a contaminação fazem
seus contos serem lidos
como ensaios e viceversa, num jogo que só
comprova uma questão:
quem faz o gênero é
o leitor; é ele quem
compreende um livro
seguindo seus próprios
desejos e necessidades,
como se guiado por
uma bússola particular
e intransferível. Como
leitor fiel de Borges,
por exemplo, acredito
que a ficção O Aleph é
uma descrição das mais
fieis do universo e da
sua gênese. É como
se estivesse lendo
um livro de ciências
que me revelasse a
simultaneidade com
que as coisas convivem
e dependem uma das
outras. E mais: releio O
Aleph acreditando que
vou ter alguma revelação
ao final da leitura, ainda
que a revelação maior
seja a minha crença de
que algo será revelado,
num claro processo de
durante quatro horas, para
expressar a ideia de morte
como negação da vida (foto).
Outras apresentações incluíram
vestir-se de astronauta e
colocar uma bandeira no
Capibaribe, no aniversário
da chegada do homem à
lua; amarrar-se num poste
com caranguejos vivos na
cabeça, desculpando-se pelo
sumiço da estátua de Chico
Science na Rua da Moeda.
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PERNAMBUCO, MARÇO 2012
REPRODUÇÃO
DIVULGAÇÃO
PRATELEIRA
ESTRADA ESCURA
A dupla de detetives de Boston criada por
Lehane há cerca de 12 anos, Patrick Kenzie e
Angie Genaro, parceiros e amantes, envolvese com a máfia russa ao tentar encontrar
uma jovem problemática, por quem nutrem
sentimentos de culpa. A busca os leva a um
emaranhado de crimes que incluem sequestro,
tráfico de drogas e de pessoas, falsificação e
roubo de relíquias, entre outros.
Autor::Dennis Lehane
Editora: Companhia
das Letras
Páginas: 336
Preço: R$ 37,00
HQ nacional em boa fase
Vermelho, vivo, graphic
novel pautada num
conto de Cristina Judar,
com projeto gráfico,
desenhos e arte-final de
Bruno Auriema, é mais
uma prova de que os
quadrinhos nacionais
andam numa boa fase,
com espaço garantido
em grande editoras
a exemplo da Devir
Livraria, que assina a
publicação.
Bem finalizada, com
um roteiro correto
e complexo — que
vai desnudando a
personagem principal
Clara Martins —, a
história tem um tom
essencialmente feminino,
começa com uma simples
tentação de uma garota
diante de um produto
fashion — um batom
japonês — e vai entrando
em questões espinhosas,
como o abuso às crianças,
a solidão, a inveja, o
medo e o assédio sexual
pelo qual passam tantas
mulheres.
Tudo no roteiro tem um
tom difuso: a vida banal
de uma menina de classe
média baixa se mostra
bem mais problemática
do que as aparências
deixam antever. E o
que inicialmente nos
parece corriqueiro, acaba
resultando em violência
crescente. A opção
pelas cores quentes, em
consonância com o título e
com o leit motiv da história.
(Danielle Romani)
QUADRINHOS
Vermelho, vivo
Autor - Vários
Editora - Devir Livraria
Preço - R$ 18,50
Páginas - 48
Uma voz bem particular
A literatura
contemporânea
portuguesa não cessa
de dar exemplos da
sua força. É o caso
do escritor José Luis
Peixoto, vencedor do
Prêmio José Saramago
pelo romance Nenhum
olhar (2001), obra
seminal sobre o Diabo
(ou mesmo “um
diabo”) à solta no
Alentejo. O escritor
retorna agora com Livro,
cujo protagonista é
justamente o tempo.
Não o tempo dos
relógios ou do tédio,
mas o tempo enquanto
matéria-prima da
própria vida. Ou como
pontua o crítico José
Castello, talvez Livro
trate do amor “que
amarra destinos,
acorrentando-os.
Talvez trate da saudade,
um tema tão português,
palavra intraduzível
na qual o tempo e o
amor deságuam. Creio,
porém, que no centro
de tudo está o próprio
livro — e isso o título
do romance já diz com
clareza. A literatura como
instrumento de captura da
memória e produção de
destinos”. Independente
do tema, vale a pena
se aventurar pela sua
narrativa sui generis, que
parece ter escolhido a
concretude do substantivo
“livro” como melhor
artifício das metáforas.
(Schneider Carpeggiani)
MACÁRIO, OU DO DRAMA ROMÂNTICO
EM ÁLVARES DE AZEVEDO
A especialista em literatura brasileira
do século 19, Sirihal Werkena, analisa o
drama Macário, de Alvares de Azevedo,
tão singular que exigiu a criação de novos
códigos de interpretação e classificação,
já que oscila entre teatro, diário íntimo e
narrativa. O tema trata de um estudante que
encontra em Satã um falso amigo, disposto a
apresentá-lo à devassidão de uma cidade.
Autora: Andréa Sirihal
Werkema
Editora: UFMG
Páginas: 252
Preço: R$ 40,00
SUA MÃE
Um menininho começa a descobrir o valor
e o significado das palavras, e começa a
montar uma relação muito especial com
vários objetos e pessoas, em especial a mãe
e o avó. A autora mineira e a ilustradora
pernambucana, Rosinha, resgatam memórias
da meninice na criação dessa história cheia
de sutilezas sobre o uso da linguagem.
ROMANCE
LIVRO
Autor - José Luís Peixoto
Editora - Companhia das Letras
Preço - 42,00
Páginas - 288
Autora: Ana Elisa Ribeiro
Editora: Autêntica
Páginas: 24
Preço: R$ 27,00
ALICE NO TELHADO
LIVRO DIGITAL
PARABÉNS
SARAU PLURAL
CBL faz congresso
internacional em maio
Instituto Maximiano Campos
comemora 10 anos
Programação atrativa no
primeiro semestre de 2012
Será nos dias 10 e 11 de maio, no
Centro Fecomércio de Eventos,
em São Paulo, o 3º Congresso
Internacional CBL do Livro Digital,
promovido pela Câmara Brasileira
do Livro. O tema é A nova cadeia
produtiva de conteúdo – do autor ao
leitor. Serão discutidas todas as
nuances do mercado para este
segmento editorial, desde aspectos
tecnológicos, direitos autorais etc.
O mercado do livro digital é um
dos que mais cresce no mundo.
O ano é de comemoração pelos
10 anos do IMC, que tem uma
penca de projetos. Depois de
repaginar o site www.imcbr.org.br,
o instituto vai inaugurar o Museu
do Miniquadro em Pernambuco
e realizar o projeto Poço das
Artes, dando visibilidade a
artistas do Poço da Panela,
onde se situa, e já anunciou o
mote da Eco-Fliporto 2012: os
baobás de Pernambuco, que
catalogou recentemente.
Vinicius Sarmento, no violão
de sete cordas, junta-se a
Marco Polo, Homero Fonseca e
Geraldo Maia no comando da
programação do Sarau Plural.
Dia 27 de março tem Schneider
Carpeggiani discutindo casos
solúveis e insolúveis, tramas
policiais e paixões humanas.
Os outros convidados são Leda
Alves (24 de abril), Miró (29 de
maio) e Frederico Pernambucano
de Mello (26 de junho).
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Prêmio Glória Pondé de Literatura
Infantojuvenil de 2011, o livro traça um
paralelo com Alice no país das maravilhas, de Lewis
Carrol, resgatando os mesmos personagens
da obra clássica, que, graças às ilustrações
de Nelson Cruz, “correm” de uma página
a outra, enquanto se veem perdidos num
cenário urbano, e acabam caindo no vazio.
Autor: Nélson Cruz
Editora: SM
Páginas: 32
Preço: R$ 33,00
16/02/2012 13:08:17
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PERNAMBUCO, MARÇO 2012
CRÔNICA
Marcelino Freire
RICARDO MOURA
A soltura da alma e uma ou duas
lembranças azuis-celestes
SOBRE O AUTOR
Marcelino Freire é autor,
entre outros, de Amar
é crime, livro de contos
recém-publicado pela
Edith (visiteedith.com).
24_contracapa.indd 24
Schneider Carpeggiani foi quem
me convidou. Para escrever, aqui
no suplemento, sobre Wilson
Bueno. A partir de texto que ele,
Schneider, leu em meu blog. Ave
nossa! De cara, topei. E fiquei, nas
férias, remoendo a empreitada.
Dias, noites e dias. Ave Maria! Por
onde começar a contar? Da minha
admiração pelo escritor paranaense. Qual ponto, de fato, pontuar?
Aonde chegar chegando?
Na minha página na internet,
a Ossos do ofídio (marcelinofreire.wordpress.com), falava eu sobre o romance póstumo do Bueno. Um
dos melhores lançados no ano
passado. Título, a saber: Mano, a
noite está velha. Editora: Planeta.
Desenredo: um acerto de contas,
meio autobiográfico, em que o autor conversa, o tempo todo, com o
seu irmão morto.
E o cenário desse livro eu conheço. Lembro-me quando estive
na casa de Bueno em Curitiba no
ano de 2002, 2003, não sei... Um
sobrado azul-celeste. E ele me
mostrou a escrivaninha. O quarto
por onde entrava o sol na sua linguagem. O lugar em que Bueno
derramava o verbo. Eis o que me
encanta em sua obra: o apuro da
língua além da língua, seus voos,
suas viagens sem volta.
À época, em sua sala, ele leu
para mim trechos do romance
Amar-te a ti nem sei se com carícias.
Ave nossa! Belo livro em que ele
se apropria de um estilo machadiano, digamos. Tomando a voz
do século 19 para si. Esse jeito de se
vestir que o Bueno tinha. Lusitano.
Isso quando ele não se aventurava
em mares nunca dantes mergulhados. Assim, em nossa literatura.
Como na feitura do seu, há tempo,
já clássico Mar paraguayo. O primeiro
de nossos autores a experimentar
o portunhol selvagem. Com que
classe! Com que ironia! Anárquica.
Bueno não se continha. E eu
gosto e cultuo e celebro esse tipo
de coragem. De inquietação que
ele tinha de sobra. Quando criou,
por exemplo, o histórico jornal
Nicolau etc. e tal.
Mas, ora. Creio que, quando
Schneider me fez o convite, não
foi para traçar, aqui, um perfil
biográfico. Mas trazer, sobretudo, um testemunho. Uma espécie de homenagem a esse que
sempre foi um dos meus heróis
de cabeceira.
Então, beleza.
Coloco o Bueno na mesma estante, afetiva, em que está para
mim o português Vergílio Ferreira. Autor de Alegria breve – de
quem tenho todos os livros. Ou
ainda: ao lado da mesma soltura
de alma que possui o grande João
Gilberto Noll. Bueno – idem Noll
– tem a música de que gosto.
As sonoridades. As pulsações de
pontuação. Salve, salve.
Corte.
Perder o Bueno foi uma infelicidade.
Pausei.
Pensei, lá atrás, que pudesse
começar este texto pelo dia 30 de
maio de 2010. O dia do espanto.
O dia em que meu coração já
amanheceu de luto. Profundo.
Wilson Bueno faleceu na mesma
data. No mesmo domingo que
minha mãe.
Fundo.
Calei.
Se eu procurasse por palavras.
Que pudessem traduzir dia tão
escuro. Um escritor como Bueno
não estaria mais ali para me ajudar.
Sem contar as circunstâncias da
morte do criador de Meu tio Roseno,
a cavalo. A tragédia. O crime brutal.
Ocorrido ali, na casa que visitei.
Azul-celeste. Cenário, repito, que
aparece, fúnebre e melancólico,
no seu mais recente romance —
nas suas, agora, de alguma forma,
“memórias póstumas”.
Meu Cristo!
Melhor seria mudar o rumo da
prosa. Bueno não gostaria que este
meu texto forçasse a penumbra. O
terror que é viver. Logo ele, uma
das figuras mais engraçadas que
conheci. Com quem convivi, algumas vezes, em eventos pelo Brasil.
Recordo-me, saudosamente,
de Bueno em uma das festas literárias internacionais de Paraty. Lá,
nós dois em um almoço na casa
do príncipe Joãozinho de Orleans.
A cara, propositalmente, enjoada que o Bueno fazia. Tomando o caldo quente de entrada. A
gente ria. As cadeiras no jardim
afundavam na areia fofa. Imagine
a cena: Bueno, fazendo cara de
monarquia e sentindo os pés da
cadeira afundando. Inesquecível! Bradava ele a quem quisesse
ouvir: “O império está ruindo, o
império está ruindo”.
Enfim...
Ainda: depois de Cortázar, foi
Wilson Bueno quem me veio trazer
outros bestiários. Animais, contos e
parágrafos engaiolados, enjaulados.
Como não admirar os jardins zoológicos que ele criava? Feras para
quem, em obras como Manual de
zoofilia, ele dava voz, gozo e ritmo.
Eta danado!
Não. Infelizmente, não fui amigo
íntimo de Bueno. Mas em algum
momento a nossa natureza se comunicava. Gente que a gente fica
feliz que esteja vivendo no nosso
mesmo tempo — respirando as
nossas mesmas paixões e acontecimentos.
Daí essa ausência.
Este meu texto pequeno. Pouco. Insuficiente. Improvisado. Que
nunca dará conta do que eu sinto.
Do que eu quero dizer.
Para isto, o(a) leitor(a) deste suplemento terá os livros do Wilson
Bueno. Para ler e reler.
E para, com eles, eternamente
viver.
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