REVISTA DA FACULDADE DE
DIREITO
MAURÍCIO DE NASSAU
Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
Recife – ano 3 – n. 3 – 2008
REVISTA DA FACULDADE DE
DIREITO
MAURÍCIO DE NASSAU
Recife, 2008
Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
Recife – ano 3 – n. 3 – 2008
© 2008 Faculdade Maurício de Nassau
Conselho Editorial da Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau
João Maurício Adeodato (editor responsável)
Geraldo de Oliveira Santos Neves
George Browne Rego
Roque de Brito Alves
Larissa Leal (Universidade Federal de Pernambuco)
Alexandre Freire Pimentel (Universidade Católica de Pernambuco)
Raymundo Juliano do Rêgo Feitosa (Universidade Federal de Pernambuco e
Faculdade de Direito de Caruaru)
Eduardo Carlos Bianca Bittar (Universidade de São Paulo)
Cláudia Lima Marques (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
José Luiz Bolzan de Moraes (Universidade do Vale dos Sinos)
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Fernando Facury Scaff (Universidade Federal do Pará)
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Raúl Madrid (Universidad Católica de Chile)
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Jack Rooney (Thomas Cooley University, Michigan, U.S.A.)
REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO MAURÍCIO DE NASSAU
Recife: Faculdade de Nassau, a.3, n.3, 2008. 375p.
1. DIREITO. 2. DIREITO ROMANO. 3. DIREITO – BRASIL. 4. CÓDIGO
DE PROCESSO CIVIL – BRASIL. 5. RESPONSABILIDADE CIVIL – BRASIL. 6.
ESTADO E INDÍVIDUO. 7. DIREITO – FILOSOFIA. 8. DIREITO DO TRABALHO
– BRASIL. 9. JUIZES – PRÁTICA PROFISSIONAL. 10. IMPOSTO SOBRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E SERVIÇOS. 11. BRASIL – CONSTITUIÇÃO.
PeR – BPE 09-105
CDU 34
CDD 340
ISSN: 1809-9424
Fazendo parte da sua história
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EDITORIAL
A Faculdade de Direito Maurício de Nassau publica agora o
terceiro exemplar anual de sua Revista da Faculdade de Direito,
com artigos oriundos dos grupos de pesquisa de seus professores,
animada pela perspectiva de mudanças significativas. Isso
porque parecem finalmente estar se delineando os parâmetros
para inserção de uma publicação universitária no sistema Qualis
da CAPES/MEC, o qual objetiva ser um indicador de excelência
acadêmica e indexação científica.
Claro que este exemplar ainda não está totalmente adequado a esses parâmetros, mesmo porque não se encontram
definitivamente decididos. Um exemplo é conter a Revista
exclusivamente artigos produzidos pelos próprios professores
da Instituição. Tudo indica que um parâmetro de excelência,
por polêmico que seja, vai ser que quanto mais artigos de
pesquisadores externos uma revista contiver, mais alta será
sua classificação no Qualis, dentro desse item. Outro critério
a ser perseguido é a semestralidade, pois a Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau tem sido anual.
Muitos desses parâmetros sinalizados pela CAPES,
porém, sobretudo aqueles que têm mais tradição na academia
brasileira, já estão satisfeitos aqui, tais como a rigorosa uniformização no formato, a presença obrigatória de resumo,
de abstract e de sumário etc.
Mas não somente critérios formais mais exigentes foram
acrescidos a este terceiro número. Além dos cuidados com o
conteúdo dos artigos, procurando ir além dos meros relatos
descritivos do direito positivo que tanto prejudicam a área
de direito no Brasil, a tarefa mais árdua foi certamente conRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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seguir um Conselho Editorial qualificado e comprometido,
distribuído por instituições de prestígio em diversas regiões
do Brasil, da América Latina, Estados Unidos e Europa,
sem esquecer instituições do próprio Recife. Esse Conselho
de avaliadoras e avaliadores, formado por 20 membros,
trabalhará pelo sistema twofold blind review, isto é, com
avaliação anônima de ambas as partes.
Vários outros parâmetros de excelência continuarão
sendo perseguidos, do que são exemplos uma melhor distribuição e envio a instituições nacionais e estrangeiras, a
indexação nas melhores bases de dados (Ulrich’s Periodicals
Directory e RVBI-Periódicos do Senado Federal) e inclusão
no Catálogo Coletivo Nacional do IBCT.
Como a Instituição de Ensino Superior que mais cresceu no Brasil nos últimos cinco anos, hoje presente em sete
estados do Norte e do Nordeste, a Faculdade Maurício de
Nassau não vai descuidar da qualidade de seus projetos de
pesquisa na área de direito. Esta Revista pretende dar uma
amostra disso.
Recife, dezembro de 2008
José Janguiê Bezerra Diniz (Diretor Geral)
João Maurício Adeodato (Editor Responsável)
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SUMÁRIO
Direito e argumentação: uma abordagem pragmática
Enoque Feitosa...........................................................................9
O sistema formulário de cognição de lides cíveis
à base do processo civil romano clássico
Fernando Joaquim Ferreira Maia............................................27
Judicialização da política no Brasil após
a constituição de 1988: linhas gerais sobre o debate
Flávia Danielle Santiago Lima................................................85
Formação universitária, exercício profissional
e especialização em direito
João Maurício Adeodato........................................................113
Considerações filosóficas sobre a prova
José Arlindo de Aguiar Filho.................................................135
O legado grego nas modernas teorias
da argumentação jurídica
Katsuzo Koike........................................................................151
Uma crítica à ideologia jusnaturalista nos princípios
constitucionais do direito do trabalho
Lorena Freitas........................................................................191
A PEC 233/08 e a pretensão de modificação dos “Grilhões
de Hermes”: A tentativa de alocação, imprópria, do IVA
no lugar do ICMS
Luiz Edmundo Celso Borba...................................................209
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O papel do juiz na produção da consciência
inclusiva e para a efetivação da inclusão: o juiz
cidadão e agente político
Marcílio Florencio Mota........................................................245
Aspectos processuais e constitucionais
da indenização decorrente da revisão criminal
Mauro Alencar de Barros
Renata Cortez Vieira Severino...............................................279
O embate entre as teses biologista e socioafetiva:
qual o melhor interesse do filho?
Renata Cristina Othon Lacerda de Andrade.........................309
Gênero, direito e esfera pública: condições de efetividade
da Lei Maria da Penha
Renata Ribeiro Rolim.............................................................329
Da prescrição do “fundo de direito”
Sérgio Paulo Ribeiro da Silva................................................355
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Direito e argumentação:
uma abordagem pragmática
Enoque Feitosa1
Resumo
Este artigo debate questões atuais acerca da discussão
sobre a argumentação no direito. É baseado nas idéias de
Manuel Atienza no seu mais famoso livro: “As razões do
direito”. Destaca enfaticamente os momentos onde podemos
identificar como se argumenta no processo de decisão, na fase
legislativa e na doutrina. Por fim, objetiva trabalhar a questão
de como a argumentação é uma necessidade ontológica no
direito, logo presente tanto nos chamados casos difíceis, bem
como nos casos “fáceis”.
Abstract
This essay discusses the most recent manifestations of
the debate of the legal argumentation. It was based on Ma1 Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade Federal de
Pernambuco, Advogado, Doutorando em Direito e em Filosofia pela UFPE e
Professor da Faculdade Maurício de Nassau
Revista do Curso de Direito da Faculdade Maurício de Nassau –
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Enoque Feitosa
nuel Atienza`s ideas, according to his most famous book:
“As razões do direito”. It emphasizes in detail the moments
where we can identify how argue for decide, for produce
norms and for study of Law. At last, it aims to work how the
argumentation is an ontological necessity on, so-called, hard
and “easy” cases.
Sumário: Introdução: Por que um ensaio sobre a teoria
da argumentação a partir de Manuel Atienza? 1. A argumentação e o seu papel na produção de normas jurídicas. 2. A
argumentação na aplicação do Direito. 3. A argumentação
e o âmbito doutrinário da dogmática jurídica. 4. Conclusão:
Argumentação como necessidade ontológica do âmbito jurídico. (Referências).
1 – INTRODUÇÃO: POR QUE UM ENSAIO SOBRE
A TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO A PARTIR DE
MANUEL ATIENZA?
Este artigo, muito mais um ensaio, no sentido que Adorno
confere ao termo2, envolve um objetivo bastante delimitado
visto que não procura instituir um marco de debate através de
“idéias originais”, muito menos polemizar com o pensamento
de vários autores ou de determinada corrente jurídica.
Trata-se, menos pretensiosamente, de refletir, de forma
ao máximo especificada e num campo bem definido, acerca
2 Para Adorno, o ensaio não compartilha a regra do jogo da ciência e da teoria
organizada, segundo as quais, como apontara Espinosa, a ordem das coisas
seria a mesma das idéias. O ensaio não almeja uma construção fechada na
medida em que não captar o eterno, preferindo o transitório. Naquilo em que
é enfaticamente ensaio, o pensamento se libera da idéia tradicional de verdade
(ADORNO, 1986, p. 174-176).
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de uma questão levantada por alguns teóricos da argumentação jurídica e de forma particular a um dentre eles.
Trata-se, especificamente, do jurista espanhol Manuel
Atienza que, em seu livro intitulado “As razões do direito:
teorias da argumentação judicial”, procura discutir os âmbitos do direito em que ocorrem as práticas argumentativas
(ATIENZA, 2002).3
Para tal autor, a prática da atividade jurídica concentrase principalmente em lidar com argumentos e “todos costumamos convir que a qualidade que melhor define um bom
jurista talvez seja sua capacidade de construir argumentos e
manejá-los com habilidade” (ATIENZA, 2002, p. 11 e 17).
Trata-se então, como questão central deste texto responder ao seguinte problema: em que consiste e como se
argumenta juridicamente?
Para tanto, a tarefa aqui proposta é, num primeiro momento, acompanhar e reconstruir o desenvolvimento da
reflexão desse autor para, em seguida, tratar de algumas
limitações oriundas do que chamaríamos de “senso comum
dos juristas” o qual, entre outras crenças, se expressa na
afirmação de que só se argumenta (ou, só é necessário argumentar) nos chamados casos difíceis.
Na construção de uma teoria própria da argumentação
jurídica o autor em exame busca delimitar desde logo o problema de se saber quais os campos jurídicos onde ocorrem
argumentações.
3 Para efeitos deste artigo / ensaio, usa-se a edição brasileira de 2002. Houve
posteriormente reimpressões (erradamente chamadas de “novas edições”
visto que erros graves de tradução perduraram, por exemplo, na página 43,
segunda linha, se fala em “argumentos químicos” - sic!). Acerca desses e de
outros erros na tradução, o autor do presente artigo manteve, à época em que
cursava o Mestrado em Direito, correspondência com o Professor Atienza, o
qual confirmou que a tradução em questão era apenas “raciocínio jurídico”.
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Enoque Feitosa
Estes campos seriam: (a) na produção de normas jurídicas, o que configura aquele campo genérico chamado
de direito objetivo; (b) na aplicação dessas normas, o que
ocorre por agentes públicos ou ainda por particulares,
quando tal atribuição lhe é conferido por norma positiva; e,
(c) naquilo que, na nossa cultura jurídica, convencionamos
chamar de doutrina ou ainda, para lhe conferir dignidade
teórica, o que alguns chamam de Ciência do Direito, mas
que Atienza chama prefere chamar simplesmente de “dogmática jurídica” (ATIENZA, 2000, p. 18-20).
Abordar cada um destes campos passa a ser, a partir
de agora, o desiderato do presente trabalho, reconstruindo
as idéias de Atienza e pondo-as em confronto com outros
autores a fim de, desse modo, discutir suas insuficiências
e suas contribuições para uma teorização da argumentação
jurídica, bem como os limites da idéia pela qual tal modelo
consegue algo mais que justificar o direito e racionalizar
as práticas decisórias, como se coubesse a uma teoria da
argumentação o milagre de revelar um suposto caráter
essencial do direito por fora dos conflitos que cabe a ele
mesmo dirimir.
2 – A ARGUMENTAÇÃO E O SEU PAPEL NA PRODUÇÃO DE NORMAS JURÍDICAS
Para o autor em questão, na produção das normas jurídicas a argumentação se subdividiria em duas fases: a primeira
delas chamada de fase pré-legislativa e a outra entendida
como fase legislativa propriamente dita.
A primeira fase desta etapa, isto é, a fase pré-legislativa, tem para o autor em exame um caráter duplo – político
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e moral e é uma decorrência, segundo ele, da existência de
problemas cuja solução se crê pode se atribuir à produção
de uma dada norma jurídica. E, neste sentido, só secundariamente tais questões podem ser vistas como de natureza
técnico-jurídicas. (ATIENZA, 2000, p. 19)
Antes de examinar do que trata essa fase pré-legislativa é importante que se diga que ao distinguir o caráter
jurídico da argumentação de seu caráter moral o referencial tomado é o sentido em que Ronald Dworkin faz tal
diferenciação. Para ele, deve-se separar a afirmação que
alguém “deve fazer algo” daquelas situações onde se afirma que alguém “tem obrigação de fazê-lo”. Isto porque
o Direito não enuncia simplesmente o que se deve fazer
ou deixar de fazer: ele impõe obrigações (DWORKIN,
2002, p. 76-78).
Essa fase pré-legislativa envolve, dependendo das circunstâncias, um debate de caráter mais ou menos intenso
daquilo que alguns autores chamam de esfera pública4, outros
chamam de sociedade civil5, e também a atuação – ainda que
em nosso país de caráter não-legalizado – de grupos de pressão e / ou lobbies6 (estes, numa característica que mereceria
4 Para o conceito de “esfera pública”, conceito, aliás, bastante problemático
ver Habermas que a reconhece como “esfera pública politicamente ativa”.
(HABERMAS, 2003, p. 259, 268 e 273).
5 Sobre o conceito de “sociedade civil”, em Marx fica evidente que ele não atribui
– como o fez Gramsci – um caráter supostamente progressista à sociedade civil.
Para ele, “onde o Estado político já atingiu seu desenvolvimento, o indivíduo
leva uma dupla vida, a vida na comunidade política na qual ele se considera um
ser coletivo, e a vida na sociedade civil, em que atua como ser particularizado
e considera a si e aos outros como meios, como seres degradados, joguete de
poderes estranhos” (sic). (MARX, 1991, p. 26; GRAMSCI, 1980, p. 149-150;
BOBBIO, 2002, p. 43-72; ANDERSON, 1986, p. 7-74).
6 A regularização dos lobbies é matéria de projeto em debate, já algum tempo,
no Congresso Nacional, de iniciativa do Senador Marco Maciel (DEM-PE).
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um exame em outro artigo, atuando na fase pré-legislativa
quanto na legislativa).
A segunda fase desta etapa é a legislativa propriamente dita. Nela, um problema só passa a ser considerado
relevante quando adentra ao âmbito daqueles dotados de
capacidade jurídica de produzir normas enquanto sua competência principal (pois é primacial que há os que detêm
competência, ainda que secundária, derivada, para produzir
norma e sem que sua atividade primordial seja propriamente
legiferante).
Note-se desde já que esta segunda fase, embora muitas
vezes resultante de contextos e de influências do debate
público, pode ocorrer, a rigor, de forma independentemente
de ter sido fruto dos mesmos.
Diga-se ainda que nesta segunda etapa o prioritário
sejam as questões jurídicas, com a argumentação de perfil estritamente moral ocupando plano de menor monta.
Embora ocorram – e não raramente – contextos onde,
mesmo na fase legislativa, seus atores se valham de argumentos morais, com finalidades puramente retóricas,
descurando completamente do que seria de se esperar,
ou seja, do trato dogmático, jurídico, técnico enfim, do
problema.
Mas é de se ressaltar, desde logo, que o uso de argumentos moralizantes com efeitos meramente retóricos antes
poderia desqualificar quem dele se vale – numa estratégia
de mera obtenção de resultados – do que a própria retórica
que, para os que andam em busca de culpados pelos males
da pequena política, tornou-se a causa de todas as mazelas
resultantes da hipocrisia que perpassa aquela atividade no
mundo dito globalizado.
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A retórica é bem mais que isso, pois como assinala Garcia Amado ela própria seria competente para constituir-se em
teoria da argumentação jurídica dado que em sua consecução,
a argumentação transcorre em forma de diálogo, isto é, de
um intercâmbio comunicativo (GARCIA AMADO, 1988,
p. 323).
2 – A ARGUMENTAÇÃO NA APLICAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS
Trata-se aqui da atividade levada a cabo por juízes,
órgãos da administração e por particulares, na qual cabe
também a distinção quanto aos argumentos relacionados
aos fatos, daqueles argumentos relacionados ao direito,
implicando estes segundos, num sentido mais amplo da
expressão, em problemas de interpretação e, por conseqüência de persuasão e argumentação, visto que se a
controvérsia não passa nem por questões de fato e nem
por problemas de sua qualificação podemos dizer que se
está diante de uma controvérsia eminentemente de direito
(CATÃO, 2007, p. 75).
É o caso, verbi gratia, da determinação legal pela
qual:
Art. 515 – A apelação devolverá ao Tribunal o
conhecimento da matéria impugnada [...].
§3º - Nos casos de extinção do processo sem
julgamento de mérito (art. 267), o Tribunal pode
julgar desde logo a lide, se a causa versar questão
exclusivamente de direito [...].
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Em complemento a esse comando o Artigo 517 do mesmo diploma legal determina que:
Art. 517 - As questões de fato, não propostas no
Juízo inferior, poderão ser suscitadas na apelação,
se a parte provar que deixou de fazê-lo por motivo
de força maior.
Tal distinção quanto a argumentos relacionados aos
fatos e argumentos relacionados ao direito pode, aparentemente, conter uma dupla contradição, na medida em,
que: (a) se fato é algo dado pela experiência, ele seria
indiscutível em virtude de uma objetividade prévia que
lhe dispensaria de ser interpretado e, por outro lado, (b)
ao se falar em interpretar fatos em direito poderíamos estar introduzindo uma segunda antinomia visto que somos
treinados no sentido de distinguir, ao menos no mundo
jurídico, as questões de fato das questões de direito e
que só estas podem ser objeto de interpretação? (RABENHORST, 2003, p. 8-18)
Em direito, tanto na noção de fato bruto quanto nas
teorias tradicionais da interpretação, tal tese permeia
claramente o que se chamou, logo no início, de “senso comum dos juristas”. Para este senso comum, como aponta
um estudioso da questão, a tese central é de que antes da
valoração conferida pela norma, nada há a interpretar, pois
que estaríamos diante de um “fato puro” (CATÃO, 2007, p.
71-72) e esses fatos, dado a sua objetividade intrínseca não
podem ser objeto de interpretação, tudo como se fossem
evidentes de per si.
Assim, a segunda hipótese, além da questão levantada
no início deste texto, de que se argumenta, inclusive, no
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contexto dos casos fáceis, é a de que também argumentamos
no contexto das chamadas questões de fato.
Note-se, portanto, que, por exemplo, os fatos trazidos
pelas testemunhas e pelas partes ao processo nada mais são
do que uma narrativa, relatos e frutos da interpretação de
quem narra. Todo processo se desenvolve em cima dessas
interpretações dos fatos que são trazidos à apreciação dos tribunais, estes incumbidos legalmente de fazer a interpretação
autêntica, isto é, aquela dotada de força obrigatória.
Aqui, note-se que, mesmo do ponto de vista dogmático,
como assinala Rabenhorst, a separação entre factual e normativo nem sempre é muito óbvia, já que no âmbito das lides
jurídicas sucede de as questões de direito virem imbricadas
com questões de fato (RABENHORST, 2003, 17), do que
é exemplo o Código Penal Brasileiro que, ao examinar os
tipos imprudência, negligência e imperícia produz asserções
mistas, na medida em que funde questões normativas com
questões factuais:
Art. 18 – Diz-se o crime:
[...]
Crime culposo:
II – Culposo - quando o agente deu causa ao resultado
por imprudência, negligência ou imperícia.
O texto da norma evidencia que o Juiz só pode, no artigo
em questão, examinar a questão de direito suscitada pela figura do inciso II – isto é, houve culpa – se preliminarmente
se posicionar sobre uma questão que é, tipicamente de fato,
qual seja, se houve imprudência, negligência ou imperícia
do agente.
Atienza considera que a teoria da argumentação jurídica
dominante, isto é aquela que é majoritária nos círculos juRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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rídicos, concentra-se nas questões relativas à interpretação
do direito e que são propostas nos tribunais superiores, ou
seja, os chamados hard cases – que ele denomina de casos
dramáticos, mas complementa lembrando que a maioria dos
problemas que os tribunais decidem – no exercício de funções
não-jurisdicionais - concernem aos fatos e que, nestes casos,
os argumentos de que se valem correm ao largo do campo
de estudo da teoria da argumentação jurídica.(ATIENZA,
2002, p. 19)
Esta é outra tese não suficientemente justificada e também da qual trata a última parte deste artigo, onde se abordará
o que são e quais as características dos “casos difíceis” e por
que eles só são resolvíveis a partir de um contexto argumentativo, que, no entanto, não se restringe aos casos difíceis e
nem às argumentações em matéria de direito.
Isto pelo motivo de que a idéia de que só se argumenta
num contexto de casos difíceis e nos quais mais de uma decisão se apresenta ao julgador reflete apenas um aspecto do
problema, qual seja: os operadores de direito estão sempre
a argumentar porque sua atividade é focada na persuasão. O
que ocorre é que os casos difíceis demandam maior atividade
persuasiva, mobilizam mais argumentos, o que não se quer
dizer que só em tal contexto os juristas se valham da atividade
de convencimento.
O próprio Dworkin, ao qual Atienza dedica algumas
páginas, caracteriza o caso difícil, de maneira bastante concisa, como aquela situação onde o julgador deve reconhecer
que está, em certa medida, incerto quanto às possibilidades
que deve aplicar ao caso e, nesta hipótese, decide com base
na argumentação que lhe parece mais convincente ou mais
forte (DWORKIN, 2002, p. 111).
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3 – A ARGUMENTAÇÃO E O ÂMBITO DOUTRINÁRIO DA DOGMÁTICA JURÍDICA
Nesta parte cumpre, desde logo, assinalar o ponto
de vista de Atienza acerca das funções da dogmática jurídica: (a) fornecer critérios para a produção do direito;
(b) fornecer critérios para a aplicação do direito e, (c)
ordenar e sistematizar o ordenamento jurídico (ATIENZA, 2002, p. 19).
Notemos, no entanto, que o foco onde, dentre os três
acima, mais se ocupa a teoria da argumentação jurídica,
é aquele concernente à produção de razões e argumentos
para cumprimento da segunda função supramencionada da
dogmática jurídica.
Os procedimentos adotados na objetivação dessa função “b” não são diferentes dos procedimentos dos órgãos
aplicadores uma vez que se trata de oferecer a estes mesmos
órgãos aplicadores os critérios para a tomada de decisões
(ATIENZA, 2002, p. 20).
Ora, visto de tal forma, não pode restar a menor dúvida
que tal atividade definida em “b” e no sentido de “fornecer
razões” aos que “dizem o direito”, nada é mais que senão
aquelas que, em nossa cultura jurídica, ligamos à função de
doutrina.
A diferença entre essas três funções supramencionadas,
conforme reconhece e assinala o próprio Atienza, consiste em
que: a) Quando se trata de um órgão aplicador, a ele incumbe
resolver casos concretos; e, b) Já a dogmática – enquanto o
campo específico doutrina – se ocupará de casos abstratos.
Mas é de se lembrar que tal distinção não é taxativa:
basta observar a hipótese onde tribunais superiores decidem
acerca de consultas que lhes são feitas (por exemplo, na deRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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claração de inconstitucionalidade), e também a de formação
de jurisprudência onde se estabelece uma posição “em tese”
a ser aplicada caso os pressupostos sejam adequados.
E aqui, como Atienza reconhece não se trata de subestimar a distinção – fundamental para o discurso prático –
entre chegar a uma conclusão (que se situa num contexto de
descoberta / explicação) e fornecer razões acerca de porque
se chegou a ela (que se situa num contexto de justificação /
compreensão) (ATIENZA, 2002, p. 21-26).
O que os órgãos judiciais têm de lidar é com a necessidade de justificar suas decisões. Assim, a questão essencial
não se situa no campo de explicar o que se decidiu e sim
fornecer razões, isto é, justificar a decisão. Se tal questão
é a mesma para o leigo não o pode ser para quem, como
um operador de direito preparado, aprendeu minimamente
o que é teoria do conhecimento e que lida com tal tipo de
problemática em disciplinas como hermenêutica jurídica,
entre outras.
É preciso que se diga que a própria idéia de justificação /
fundamentação é bipartida visto que, num contexto argumentativo pode se falar tanto de justificativas internas como de
justificativas externas (ALEXY, 2005, p. 217-218, 226-227;
WRÓBLEWSKI, 1985, p. 57-68).
A primeira cuida de saber se a decisão decorre logicamente das premissas, com o que se terá um problema
de compatibilidade formal (algo similar a uma adequação silogística) o que a torna uma questão jurídicodogmática; enquanto que a justificação externa cuida
da correção dessas mesmas premissas, o que lhe dá um
caráter material, o que configura muito mais questões
de justiça política.
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Direito e argumentação: uma abordagem pragmática
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O problema que uma teorização sobre os âmbitos da
justificação deixa em aberto (mesmo que se preocupe na
justificação, se a conclusão deriva dos pontos de partida e
se os mesmos são corretos), é o de só tratar a correção da
afirmação segundo a qual apenas se argumenta ou (a) em
casos difíceis, ou (b) em questões de direito.
É é disto que se passará a tratar agora, já em sede de
conclusão, ainda que provisória, o que como se viu na introdução, é plenamente compatível com a forma de ensaio
com a qual se reveste o presente trabalho.
4 – CONCLUSÃO: ARGUMENTAÇÃO COMO NECESSIDADE ONTOLÓGICA DO ÂMBITO JURÍDICO
É preciso, por todo exposto, tentar se chegar a um
entendimento, mesmo que pontual: antes de se afirmar
que se argumenta apenas em casos difíceis – afirmação no
mínimo que deve ser cercada de cautelas e que depende
de um conceito prévio acerca do que se entende por “caso
difícil”.
Um bom ponto de partida para a discussão do caso difícil
é a formulação de Dworkin, na qual ele critica a teorização
do positivismo para os hard cases.
Dworkin afirma que o positivismo reconhece como tal
toda situação na qual uma ação judicial dada não pode ser
submetida a uma regra de direito clara, previamente estabelecida por uma instituição.
Ele considera essa formulação insuficiente e se propõe a
desenvolver outra, cujo pressuposto é a crítica ao modelo do
que chama “Juiz Hércules” e ao qual apresenta como alterRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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Enoque Feitosa
nativa – depois de alongada análise onde atribui as mazelas
desse modelo de Juiz todo-poderoso, quase um deus, ao
positivismo jurídico – que juizes se valham sempre da prudência e ponderação na aplicação do saber jurisprudencial,
(DWORKIN, 2002, p. 127 e 203) conselho vago e genérico
na medida em que deve ser guia de ação para qualquer juiz
diante de qualquer caso, fácil ou difícil.
Que em tal contexto o juiz não apenas se veja obrigado a argumentar em torno da decisão que tomará como
também que tenha ou mais de uma decisão aplicável ao caso
ou, mais radicalmente, tenha que criar direito novo, não é –
de certo modo – novidade.
O que é de se notar é que juízes argumentam sempre.
Assim, portanto, a hipótese a qual aqui se trata é a de que a
teoria da argumentação jurídica não pode ser tomada com
um modelo de justificação só em hard cases, mas apenas
que – de forma mais restrita – num caso fácil o esforço argumentativo é menor.
O que se dá no caso fácil é que sua aparência óbvia
decorre de sua estrutura silogística. Não percebem os que
adotam sem ressalvas esse modelo óbvio é que o silogismo é
muito mais uma forma de apresentação das razões do direito
do que mesmo forma de decisão.
Aristóteles, o primeiro a perceber essa peculiaridade do
discurso – e mais especificamente da argumentação jurídica – assinala que o silogismo é característico da dialética ao passo que o
entimema é próprio da retórica, e ambos têm em comum o fato de
que aqueles que necessitam de lidar com argumentos têm-nos em
mente quando falam dos topoi, isto é dos lugares-comuns típicos
do direito (ARISTÓTELES, 1998, p. 54, I, 2, 1358a).
Não perceber tal particularidade da argumentação judicial faz com que passemos ao largo do motivo pelo qual a
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Direito e argumentação: uma abordagem pragmática
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forma entimemática, ou seja, a ocultação de alguma premissa
com finalidades persuasivas (SOBOTA, 1996, 251-273), é tão
cara ao âmbito jurídico ainda que, nem sempre, os juristas se
dêem conta disso. E isto ocorre pelo fato de que se alguma
dessas premissas for bem conhecida, nem sequer é necessário
enunciá-la, pois o próprio ouvinte a supre, sendo por isso
mais adequado ao discurso judicial (ARISTÓTELES, 1998,
p. 52, I, 2, 1357a; p. 80, I, 9, 1368a).
E tal se compreende a partir de dados teóricos – os casos
fáceis são de solução mais óbvia – até respostas mais pragmáticas, dentre as quais a de que casos fáceis dão menos repercussão,
ganhos materiais e notoriedade aos que neles se debruçam.
Por fim, também é de pouca sustentação a tese pelo quais
questões de fato não pode ser objeto de argumentação.
E ainda que tal concepção pretenda se sustentar, no
campo da dogmática processual em uma atitude gnosiológica pelo qual fatos são objetivos por si mesmo e, em assim
sendo, dispensam interpretação, ela é desmentida exatamente
por suas próprias premissas, isto é, pelos fatos, quando sabemos que no âmbito jurídico um mesmo fato pode resultar
em várias percepções, portanto em múltiplas interpretações,
todas elas carentes de justificação a fim de que se convençam
aqueles a quem o operador de direito pretende persuadir, o
que – e para concluir – não põe em xeque nem sua objetividade nem a existência de um mundo externo e independente
dos indivíduos.
5 – REFERÊNCIAS
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O SISTEMA FORMULÁRIO DE
COGNIÇÃO DE LIDES CÍVEIS À BASE DO
PROCESSO CIVIL ROMANO CLÁSSICO
Fernando Joaquim Ferreira Maia1
RESUMO
O processo civil romano, particularmente a sua forma
clássica, revestiu-se de originalidade, com princípios,
valores e institutos próprios. Neste artigo, o leitor vai
encontrar uma análise do sistema processual formulário,
através de uma visão dialética, contextualizada e ancorada
em fontes respeitadas. Distinguem-se a processualística
do sistema formulário romano, ao tempo do Principado,
quanto às suas funções cognitivas e executórias. Outrossim, considerou-se a relação do sistema formulário com
os princípios jurídicos romanos, o Estado aristocrático e
os condicionantes históricos em que a civilização romana
1 Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco, Mestre e Doutorando em Direito pela UFPE, Advogado e Professor da
Faculdade Maurício de Nassau.
Revista do Curso de Direito da Faculdade Maurício de Nassau –
Recife – ano 3 – n. 3 – p. 27-84 – 2008
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Fernando Joaquim Ferreira Maia
estava inserida, bem como com a organização judiciária de
Roma e o escravismo. Por fim, o maior mérito deste artigo
reside no fato de que ele não é somente uma obra sobre
processo civil, mas, antes de tudo, referente à História do
Direito. Desta forma, o estudioso do direito vai encontrar
valiosos aspectos do direito romano clássico, tendo por
base a construção do modo-de-produção escravista na
Roma antiga.
Palavras chaves: processo formulário, Roma, procedimento.
ABSTRACT
The “formular issue” starts on Republic, 149 B.C., and
ends on III a.C., with a “extraordinary cognition system”.
The Roman wars resulted in growth of territory, of people
control by romans and increase in wealth production. In
this time, the before issue, by law action, doesn’t offer
answers for new reality, it was necessary a new way to resolve conflicts. Thus, when the Republic ends, the Roman
aristocracy promotes development of laws with rational
inspiration, practical organization, the goals were reproduction of slavery and establishment of Roma as universal
unity, what only was possible with new ways of seizure,
handling and creation of forms of social interaction. The
“formular issue” was its expression juridical, a abstract
model that together oral procedure, provided to sue by writing, it fixes a exact object impugned and gives the judge
power to condemn or acquit.
Keywords: formular issue, Roma, procedure
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Recife – ano 3 – n. 3 – p. 27-84 – 2008
O sistema formulário de cognição de lides cíveis à base do processo civil romano clássico
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Sumário: 1. A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DO
PROCESSO CIVIL ROMANO CLÁSSICO. 2. A ESTRUTURA SÓCIO-POLÍTICO-ECONÔMICA ROMANA AO
TEMPO DA FÓRMULA. 2.1. O primórdio do sistema formular: a República. 2.2. A consolidação do ordenamento
processual formular: o Principado. 2.2.1. Gênese e desenvolvimento do Principado. 2.2.2. Organização política
do Principado. 2.2.3. Decadência e queda do Principado.
3. O PROCESSO FORMULÁRIO. 3.1. O ordenamento
processual anterior ao sistema formulário: as ações da lei.
3.2. Gênese e desenvolvimento do sistema formulário. 3.3.
As instâncias procedimentais do ordenamento processual
formular. 3.3.1. O procedimento formulário na instância in
iure. 3.3.2. O procedimento formulário na instância apud
iudicem. 4. O DIREITO HONORÁRIO COMPLEMENTAR. 4.1. Os editos dos magistrados. 4.2. As diversas
modalidades de editos. 5. DO APOGEU AO OCASO DO
ORDENAMENTO PROCESSUAL FORMULAR NA
ROMA CLÁSSICA. REFERÊNCIAS.
1 – A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DO PROCESSO
CIVIL ROMANO CLÁSSICO
Este artigo tem por fundamento monografia intitulada
O processo civil romano ao tempo da ascensão e apogeu
da civilização romana, de minha autoria, apresentada
para a disciplina de direito processual de conhecimento,
como exigência parcial para a obtenção do grau de especialista em direito processual civil pela Faculdade de
Direito do Recife-UFPE, obtido pelo autor em fevereiro
de 2002.
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Recife – ano 3 – n. 3 – p. 27-84 – 2008
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Fernando Joaquim Ferreira Maia
A grande diferença entre a civilização romana e as demais da sua época é que ela conseguiu sedimentar estruturas
fundamentais no seu mundo que, motivadas pelo enraizamento do cristianismo nas fronteiras do Estado romano,
com seus princípios helenísticos, conseguiram transmitir a
herança romana ao longo das civilizações subseqüentes até os
dias atuais. Daí a importância do estudo do direito romano,
sobretudo para os países cujo sistema jurídico se enquadre
na família civil law, como é o caso do Brasil, visto que, na
raiz do ordenamento jurídico destes países está, sob certa
medida, a herança romana.
Desta forma, neste trabalho, analisaremos, brevemente,
o sistema formulário do processo civil romano clássico,
através de uma análise dialética, ancorada no processo de
evolução das leis objetivas de desenvolvimento do modo-deprodução escravista romano, bem como nos condicionantes
históricos e materiais em que a civilização romana estava
inserida, compreendendo o período histórico correspondente
ao Principado.
2 – A ESTRUTURA SÓCIO-POLÍTICO-ECONÔMICA ROMANA AO TEMPO DA FÓRMULA
2.1. O primórdio do sistema formular: a República
Em 510 a.C., o Estado romano passa a adquirir
uma nova forma, esta decorrente da vitória da aristocracia, no período da Realeza, contra as outras camadas
sociais. Era a República, que durou de 510 a 27 a.C.
A República constitui a segunda forma do Estado aristocrático romano.
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O sistema formulário de cognição de lides cíveis à base do processo civil romano clássico
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O grande excedente de produção gerado nesta fase de
expansão do escravismo romano sustentou o desenvolvimento social e amenizou, em certa medida, as contradições
sociais em Roma. Porém, ao mesmo tempo em que a aristocracia enriquece, a plebe continua com poucos direitos,
começando a enfrentar os reflexos da concorrência entre
o trabalho livre e o escravo; de outra parte, os médios e
pequenos proprietários de terras e escravos começam a
desaparecer, devido à expansão do Estado romano e ao fato
de que a produção agrária, para que fosse rentável, tendo
em vista que todos pagavam tributos e que as técnicas de
produção naquela época eram pouco desenvolvidas, exigia
grande número de escravos, o que os médios e pequenos
proprietários de terras e escravos não tinham condições de
adquirir, sendo, portanto, obrigados a vender as suas terras aos grandes latifundiários, engrossando, nas cidades, a
plebe (CHILDE, 1973, p. 216-217).
Esta situação impunha por um lado uma guerra de
conquista, visando ampliar o número de riquezas minerais,
agrícolas e manufatureiras disponíveis à Roma, sobretudo
terras e escravos, bem como o número de povos submissos e a
tributação sobre eles incidente (GUARINELLO, 1987, p. 11).
Ademais, por outro lado, impunha modificações na estrutura
jurídica da sociedade, sobretudo no que diz respeito à composição de conflitos, permitindo e incentivando a escravidão
hereditária, a escravidão decorrente da subjugação imposta
pelo Estado romano a outros povos e a escravidão por delitos
civis ou penais. Em relação à guerra de conquistas, vale ressaltar que esta produzia o efeito colateral de trazer para o seio
da sociedade romana a questão das nacionalidades. De certo,
à medida que o Estado romano consolidava seu domínio
sobre os novos territórios conquistados, integrando-os ao
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Fernando Joaquim Ferreira Maia
sistema escravista romano, as nacionalidades dominadas
não só empreendiam uma luta de libertação nacional, mas,
também, exigiam que a elas fossem estendidas a cidadania
romana como forma de se integrarem à sociedade, numa
tentativa de preservarem direitos seus.
Tal situação leva a uma progressiva radicalização da luta
de classes em Roma, levando a plebe (e em menor medida,
os escravos e os médios e pequenos proprietários de terras e
escravos) a obter algumas conquistas sociais, ampliando, assim, progressivamente, os seus direitos. A Lei das XII Tábuas
e o próprio sistema processual das ações da lei surgiram
como forma de pressão da plebe sobre a aristocracia para
que esta concedesse àquela mais direitos (BLOCH, 1974, p.
32-35), pressão esta que foi fortalecida em decorrência das
contradições interescravistas que conduziam Roma a uma
disputa por riquezas com outros Estados (ALFÖLDY, 1989,
p. 28-35). Foi através da referida lei que a plebe conseguiu
codificar o direito vigente, fixando-o de forma escrita, bem
como permitir o seu conhecimento a todos os cidadãos romanos (ALFÖLDY, 1989, p. 28-35).
A expansão romana que se seguiu às guerras púnicas e
gregas, com a derrota de Cartago e a ocupação da Macedônia,
entre 264 a 146 a.C., possibilitou um aumento e fluxo da
produção de riqueza nas fronteiras do Estado romano. Esta
nova evolução do escravismo de Roma foi acompanhada por
contradições no processo de produção. A concorrência do trabalho livre com o escravo, acabou por prejudicar o primeiro
(ACADEMIA DE CIÊNCIAS DA URSS, 1961, p. 36), os
gastos com a plebe, a tendência à queda da produtividade do
escravo, apesar de tudo, começavam a germinar. Outrossim,
o êxodo rural e a desvalorização monetária assinalavam a
pauperização da plebe e dos pequenos e médios proprietários
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de terras e escravos (GONÇALVES, 2002, p. 126-127). Ademais, o quadro acima aprofunda a divisão da produção e do
trabalho na sociedade, operando a divisão da aristocracia em
diversos estratos. O novo estágio de desenvolvimento do escravismo romano, o acirramento das contradições sociais e a
progressão das outras classes sociais rumo ao poder político,
no quadro da crise da República, geram antagonismos objetivos entre os interesses dos diversos estratos da aristocracia
romana, opondo-os relativamente.
Para a plebe, por outro lado, os novos direitos alcançados
eram efêmeros, pois representavam tudo, menos a conquista
do poder político. A plebe queria o poder estatal concentrado
nos seus comícios, a repartição das terras e a extensão da
cidadania romana a outros povos, esta última como materialização da pressão das outras nacionalidades por mais
direitos. As reformas de Tibério e Caio Graco, Tribunos da
Plebe, já apontavam neste sentido ao objetivarem a redistribuição das terras, concentração do poder nos Comícios da
Plebe e extensão da cidadania romana aos povos conquistados
(ROSTOVTZEFF, 1983, p. 149-151). A plebe queria o poder
do Estado para romper com o escravismo. Para a aristocracia
isto era inaceitável, pois transferir o poder para os Comícios
da Plebe significava mudar a forma do Estado, entregando o
poder político à plebe, que progredia rumo ao poder estatal,
tendo já a hegemonia no Senado. Distribuir as terras à plebe
significava desmantelar o sistema produtivo, visto que a
produção agrária ainda era a principal atividade econômica
da época e o grosso do trabalho escravo era ali empregado.
Estender a cidadania romana aos povos conquistados era
renunciar à política de conquista, fundamental ao escravismo.
O que estava em jogo era a própria ordem estatal escravista
e a existência da aristocracia (MAIA, 2004, p. 16).
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Aqui, a aristocracia romana deu grande importância
ao sistema jurídico, registrando-se grande proliferação de
normas jurídicas, bem como intensa atividade jurídica,
sobretudo nos fins da República, objetivando comentar as
leis existentes através da justificação das relações sociais
escravistas (GONÇALVES, 2002, p. 128-129). Desta forma,
o direito romano, ao procurar legitimar o poder político
aristocrata, regular o modo-de-produção escravista, bem
como disseminar a ideologia dominante no seio das outras
classes, revelava o seu caráter aristocrático e de superestrutura ideológica do Estado.
A República, nascida para garantir o interesse da aristocracia, não conseguia mais cumprir sua função, visto que
o consenso do Estado falhara e sua forma estava esgotada.
Ademais, já a partir do último século antes da era cristã, a
luta de classes se acirra, desta vez com a pressão dos escravos
e dos antigos camponeses despojados de suas terras.
Por fim, em 27 a.C., depois de um período de uso excessivo do instituto da ditadura (três triunviratos), a República é
desmontada pela aristocracia, utilizando o Estado, com sua
coerção, através de sua vanguarda política (os setores em
torno de Otávio Augusto), instituindo o Principado.
2.2. A consolidação do ordenamento processual formular: o Principado
2.2.1. Gênese e desenvolvimento do Principado
Em 27 a.C. tem início uma nova forma do Estado romano, estendendo-se aproximadamente estende até o
século III da nossa era: o Principado.
O Principado se caracterizava por uma diarquia de
poder, cabendo ao Príncipe os mais amplos poderes
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possíveis e ao Senado funções legislativas e eleitorais.
As outras instituições da República vão perdendo gradativamente as suas funções ou as tendo distorcidas
(FUNARI, 1999, p. 29-30). As Magistraturas passam
a ser subordinadas ao Príncipe e os Comícios passam
a sofrer contínua restrição até a sua completa extinção (NÓBREGA, 1959, p. 81-87). Aqui, destaca-se a
figura de Marcus Tulius Cícero. Este foi o principal
ideólogo do Principado, advogando uma forma de
Estado calcada num pacto aristocrático, à base de
uma composição de interesses entre os nobilitas e os
eqüestres como condição para a continuação do escravismo romano, devendo esta composição, preservando
as instituições vigentes, ser conduzida por alguém
com habilidades suficientes para mediar este pacto,
funcionando como um moderador (CÍCERO, 1996, p.
48-50, 89) (RIBEIRO, 1977, p. 141-142).
É no Principado que Roma encontra o seu apogeu e
começa a conhecer seu declínio. Neste período, todas
as regiões em torno do Mediterrâneo (a Europa, até os
rios Reno e Danúbio, da Turquia até o sul do Cáucaso e
à foz dos rios Tigre e Eufrates, totalizando cinco milhões
de quilômetros quadrados) pertencem a Roma. Com
o Principado, Roma experimenta grande crescimento
demográfico, possuindo a cidade de Roma um milhão
e duzentos mil habitantes. Ademais, o enorme desenvolvimento da produção de recursos agrícolas, minerais
e manufatureiros, propicia acúmulo e fluxo de riquezas
constantes, assegurando prosperidade ímpar em toda a
história romana. Nesta época, o Estado romano já mantém contatos com outras civilizações mais ao oriente
(Índia, entre outras) e a expansão das fronteiras romanas,
bem como a permanente guerra de conquista, obrigam o
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Estado a sustentar um exército com trezentos e sessenta
mil membros (MELLO, 1995, p. 158-161).
Como já foi dito, o fato de a economia romana estar
alicerçada no trabalho escravo, este empregado principalmente sobre a produção agrária a qual dependiam
todas as outras atividades, gerava, por um lado, uma
concorrência com o trabalho livre, levando os médios
e pequenos proprietários de terras e escravos à falência
e a maioria da população, constituída pela plebe, que
não tinha escravos ou os tinha em poucas unidades, à
desocupação, à queda do seu poder aquisitivo, já que
a maior parte das atividades laborais humanas estavam
destinadas aos escravos. Por outro lado, para que se
aumentasse a produção de bens, exigia-se um constante
aumento do número de escravos e de terras, o que,
dada as condições materiais da época, só poderia ser
obtido através de uma contínua expansão das fronteiras
romanas e da subjugação de outros povos. A guerra de
conquista significava isto.
Outrossim, a guerra de conquista e as alterações
na ordem legal permitiam a escravidão hereditária e a
escravidão por delitos civis ou penais, podendo haver,
ainda, escravidão temporária. Esta guerra de conquista,
se por um lado ampliava o número de escravos, de terras e a arrecadação de tributos dos povos dominados,
acrescentava alguns problemas:
1 - A mantença de uma poderosa força armada, destinada não só a ampliar os territórios conquistados, mas a
mantê-los, aumentando os gastos do Estado (CHILDE,
1973, p. 287).
2 - A luta de libertação nacional dos povos dominados
por Roma como um componente a mais para luta de
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classes entre a aristocracia, os pequenos e médios proprietários de terras e escravos, a plebe e os escravos.
3 – A questão das nacionalidades como um problema
sócio-político, também componente da luta de classes,
pois, como anteriormente dito, desde a República, à
medida que o Estado romano estendia suas fronteiras,
havia pressão por parte das nacionalidades conquistadas
para que elas fossem integradas à sociedade romana.
Esta integração plena, com base na igualdade de direitos,
só podia ser assegurada com a extensão da cidadania
romana aos povos conquistados (CHILDE, 1973, p.
287).
Outrossim, a existência de grande população desocupada e/ou empobrecida, implicava ao Estado, não só
mantê-la (MICHULIN, 1992, p. 200), mas, também,
ocupá-la. Daí a preocupação, verificada sobretudo na
gestão de Vespasiano (69-79 d.C.), em se estabelecer
feriados, grandes espetáculos e festividades para distrair
esta população. Tudo, na esteira dos contínuos embates
entre as classes sociais romanas, pois apesar da vitória da
aristocracia sobre as outras camadas sociais em Roma,
verificada em meados do período republicano, as contradições do modo-de-produção escravista, na medida
em que este se desenvolvia, cresciam na mesma proporção. Desta forma, impunha-se amenizar as contradições
na sociedade, objetivando a contenção da radicalização
do confronto social (HADAS, 1969, p. 49).
Um outro fator que surge, já a partir de Otávio
Augusto, é uma diminuição do ritmo de territórios
conquistados por Roma. Ora, a guerra de conquista
era o principal meio de se obter escravos e ampliar a
economia. Sem uma contínua reposição e aumento no
número de escravos, o escravismo romano corria sério
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risco de estagnação, seguido de falência, pois era sobre
o trabalho escravo que todo processo de produção estava
assentado. A partir do século III da nossa era, Roma não
conseguiria mais conquistar territórios. Ademais, em
relação ao trabalho escravo, este passa a apresentar uma
tendência à queda de produtividade, o que será tratado
mais adiante (ACADEMIA DE CIÊNCIAS DA URSS,
1961, p. 35-36).
Já nos fins do Principado, a diminuição do crescimento da população e a extensa exploração das minas
assinalavam, para o futuro, um aumento do custo de
vida e dificuldades com a reposição dos efetivos do
exército. Isto, decididamente, criava empecilhos para
expansão de Roma e a conseqüente dificuldade de
se obter escravos, além, é claro, de desestabilizar o
tesouro do Estado romano, visto que a arrecadação
de tributos diminuía. De fato, eram enormes os gastos, ameaçando o desenvolvimento das atividades
econômicas. A contratação de soldados mercenários e
a permissão para que pessoas não romanas servissem
ao exército (já que a queda da população tornava escasso o número de soldados romanos), em meados do
Principado, só agravou esta situação (ROSTOVTZEFF,
1983, p. 259).
Por outro lado, mesmo considerando a expansão
do sistema viário, que interligava todas as partes do
território romano, a extensão do Estado romano, em
virtude dos precários meios de comunicação da época,
tornavam as distâncias longas, comprometendo a
eficácia da administração e criando condições para a
ocorrência de disputas internas no território, sobretudo
entre os estratos da aristocracia e os pequenos e médios
proprietários de terras e escravos.
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O sistema formulário de cognição de lides cíveis à base do processo civil romano clássico
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Por último, a lógica do escravismo, bem como suas
contradições, impediam que se utilizasse a maior parte
do capital excedente produzido para se reinvestir na
economia, buscando uma diversificação das fontes de
riqueza.
Todos os fatores levantados acima germinaram no
Principado, sendo determinantes para o desmoronamento da civilização romana, já na etapa seguinte: o
Dominato.
2.2.3. Organização política do Principado
No Principado, as fontes do direito presentes na
República permanecem, sendo acrescidas de outras,
porém redimensionadas consoante as exigências do desenvolvimento do modo de produção escravista romano.
Assim, o direito romano, sob a égide do Principado,
passa a ter as seguintes fontes: 1 – costumes; 2 – leis
comiciais; 3 – editos dos magistrados; 4 – senatus consultos; 5 – constituições imperiais; 6 – respostas dos
jurisconsultos.
O costume era o consentimento tácito do povo em
oposição à lei, desde que manifestado explicitamente por
longo tempo. Quando o costume preenchesse lacuna de
lei (costume praeter legem), era obrigatória sua aplicação. Quando o costume traduzisse um comportamento
positivo contrário à lei (costume contra legem), ele não
revogava a lei. Já se traduzisse um comportamento negativo de não observância da lei (desuetudo), sem ter o
costume contra legem, revogaria a lei.
O fato é que, em virtude do advento do Principado,
por ação da aristocracia e do caráter do Estado como
meio de escravização de uma classe social por outra,
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bem como das conseqüências que isto implicava, do
ponto de vista de se conter as outras camadas sociais,
principalmente a plebe, e se aumentar as medidas repressoras aos escravos, o costume, pouco a pouco, perde
sua importância, sendo, ao longo do tempo, positivado
através do direito honorário (ALVES, 1995, p. 34-35).
Outrossim, a expansão territorial de Roma exigia um
aprimoramento dos órgãos do Estado, o que só poderia
ser efetivado com a maior positivação possível de todas
as normas existentes nos territórios romanos.
As leis comiciais, em função da restrição imposta
aos Comícios, decorrentes dos fatores acima levantados,
embora continuassem a existir, com o tempo deixaram
de aparecer, por desuso dos próprios Comícios, evidenciando a sua decadência, principalmente depois da
gestão do Príncipe Otávio Augusto.
Pelos Comícios, entretanto, até o século I d.C., passaram algumas leis importantes: Leges Iuliae Iudiciariae,
Lex Iulia de Maritandis Ordinibus, Lex Fufia Caninia,
entre outras (ALVES, 1995, p. 35).
Os editos dos magistrados, dos quais emanava o
direito honorário, embora continuassem a existir no
Principado, em função de o Príncipe gozar de amplas
competências funcionais, subordinando a ele todas as
Magistraturas, foram perdendo com o tempo toda a sua
atividade criadora. Já com o Príncipe Adriano (117 a 138
de nossa era), o direito honorário sofreu engessamento
total, mediante a fixação definitiva dos editos, com a
sistematização de todo o direito honorário existente no
território romano, criando-se, assim, o edito perpétuo.
Através do edito perpétuo, o Magistrado só podia criar
novo meio processual por solicitação ou do Príncipe ou
do Senado (ALVES, 1995, p. 35-36). Vale ressaltar que
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no processo de surgimento do edito perpétuo o jurisconsulto Sálvio Juliano teve participação destacada, visto
que coube principalmente a ele a fixação definitiva dos
editos dos magistrados.
Em relação aos senatus consultos, estes eram deliberações do Senado. Na República, não constituíam
fontes do direito.
Com a derrota da plebe, dos escravos, médios e pequenos proprietários de terras e escravos pela aristocracia e com a reformulação de todas as frações do poder
político, o Senado, agora livre da influência plebéia e
majoritariamente aristocrático, passou a absorver as
funções legislativas e eleitorais dos Comícios, mantendo certa posição de destaque, ante os outros órgãos do
Estado, à exceção do Príncipe.
Com isto os senatus consultos passam a ter força
constituidora de lei. Os senatus consultos eram criados
por força de proposta do Príncipe ao Senado, que a votava. Em meados do Principado, a proposta do Príncipe
passou a ter mais força que a deliberação do Senado,
senatus consultos, visto que este sempre a aprovava. A
partir daí, o senatus consultos transformou-se em oratio,
sendo designado pelo nome do Príncipe (CRETELLA
JÚNIOR, 1991, p. 55).
Os senatus consultos eram, inicialmente, designados
pelo nome do Magistrado que o propunha, depois pelo
do Príncipe. Excepcionalmente, era designado pelo
nome da pessoa que o provocou.
As constituições imperiais eram atos emanados do
Príncipe contendo novo preceito jurídico. Obviamente,
não era o Príncipe que diretamente elaborava estas
constituições, mas sim um colégio formado por jurisconsultos que auxiliava o Príncipe na elaboração destas
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normas (CRETELLA JÚNIOR, 1991, p. 56). No final do
século III d.C., com o fim do Principado e o surgimento
de uma nova forma de manifestação do poder político
em Roma, o Dominato, as já existentes constituições
imperiais tomam o lugar dos senatus consultos.
As constituições imperiais eram de quatro tipos: 1 –
Editos; 2 – mandatos; 3 – restritos; 4 – decretos.
Os editos eram normas gerais proferidas pelo Príncipe a qualquer tempo, assemelhado-se aos editos dos
magistrados.
Em relação aos mandatos, estes eram instruções
transmitidas pelo Príncipe aos funcionários do Estado
e aos Governadores das Províncias sobre qualquer assunto.
Os restritos, eram respostas dadas a particulares ou
a Magistrados e a Juizes populares, pelo Príncipe ou
por funcionários de suas chancelaria, versando sobre
questões jurídicas. Em relação aos particulares, eram
escritas abaixo das perguntas; em relação aos Magistrados e Juizes populares, eram enviadas por carta.
Por fim, os decretos eram decisões, definitivas ou
interlocutórias, dadas pelo Príncipe e a ele submetidas
em primeiro grau ou em grau de recursos. Pelo decreto, o
Príncipe podia, inclusive, mudar o sentido de interpretação de determinada lei (NÓBREGA, 1959, p. 89-90).
As constituições imperiais mais importantes eram o
decreto e o restrito.
Outra fonte do direito no Principado eram as respostas dos jurisconsultos. Estas eram opiniões dadas por
sábios do direito, denominados jurisconsultos, com a
autoridade dada pelo Príncipe, que tinham o direito de
responder oficialmente às consultas que lhes fossem
formuladas, fixando a regra de direito aplicável a um
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O sistema formulário de cognição de lides cíveis à base do processo civil romano clássico
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determinado caso (CRETELLA JÚNIOR, 1991, p.
58-59).
As respostas dos jurisconsultos já existiam na República, mas foi por meio de um restrito do Príncipe
Adriano que elas foram elevadas à fonte de direito.
Como já dito, a prosperidade alcançada nos tempos
áureos do Principado se assentava nas relações de produção e leis econômicas escravistas, pela qual o escravo
era a força de trabalho fundamental em qualquer meio
de produção, sendo o produto suplementar do trabalho
deste o “motor” fundamental da economia escravista romana. Entretanto, esta prosperidade alcançada sucumbe
face ao acirramento das já mencionadas contradições do
escravismo romano durante o Principado.
2.2.4. Decadência e queda do Principado
Já nos fins do Principado a pouca produtividade do
trabalho escravo e o esgotamento da guerra de conquistas geram profunda crise e acentuada estagnação no
paradigma dominante de produção agrária. De certo,
o sistema produtivo escravista, como um todo, apesar
do grande acúmulo de capital proporcionado pelo desenvolvimento pleno de suas forças produtivas, ainda
se comportava extensivamente, pelo qual a geração
de riqueza estava direta e proporcionalmente ligada à
reposição/ampliação do número de escravos e terras.
Essa estagnação econômica se materializava, justamente, pela incapacidade de se alavancar a produção
de riquezas pelo modelo agrícola extensivo de produção
(dificuldade cada vez maior de reposição/aumento do
número de escravos e terras) e pela conseqüente queda
da produção do campo, impedindo a dinamização do
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processo produtivo em larga escala. O esgotamento
da guerra de conquistas contribui decisivamente para a
crise em curso, visto que resulta na passagem à guerra
defensiva, face ao aumento da luta de libertação nacional dentro das fronteiras de Roma e da ocorrência das
primeiras invasões bárbaras, comprometendo a principal fonte de reposição/aumento de escravos e terras
(ROSTOVTZEFF, 1983, p. 260-261). Logo, a produção
agrícola entra em rápido processo de desorganização,
com a multiplicação da pequena agropecuária.
Entretanto, a manutenção do espólio do Estado
romano e a lógica do sistema escravista, exigiam a
expansão/espoliação permanente do território romano
sobre os outros territórios, conduzindo a gastos estatais
expressivos, forçando a um aumento de tributos, principalmente sobre os pequenos e médios proprietários de
terras e escravos, mas também sobre a indispensável e
cada vez mais exigida atividade manufatureira, com prejuízo para os artesãos (ROSTOVTZEFF, 1983, p. 260261). Isto, somando-se à mantença, cada vez maior, de
grande população desocupada nas cidades, representada
pela plebe, impulsionando a concorrência do trabalho
livre com o escravo, aguçava a crise no campo, empobrecendo principalmente os pequenos proprietários,
começando a fazer surgir o fenômeno do colonato,
mediante o qual os pequenos proprietários agrícolas
e escravagistas arrendavam suas terras à aristocracia,
recebendo em troca o direito de nelas lavorar como se
fossem acessórios dessas terras, transformando-se em
servos (ROSTOVTZEFF, 1983, p. 244, 258-259).
Outrossim, a permanência prolongada de tal situação
era insuportável para os pequenos e médios proprietários de terras e escravos, bem como para a plebe, os
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comerciantes e artesãos manufatureiros, pois o ritmo da
produção não acompanhava mais o constante aumento
das despesas do Estado aristocrático, movida pela necessidade de proteger/ampliar as fronteiras, manter as
forças armadas e assegurar a reprodução da prosperidade
alcançada pela civilização romana nos séculos I e II de
nossa era.
Outrossim, a queda de produtividade do trabalho escravo, por razões óbvias, atingiu não só a agropecuária,
mas, com a mesma intensidade, a mineração e a manufatura, o que vai se verificar com mais intensidade no
Dominato, aumentando o influxo de riquezas. Ademais,
na tentativa de se superar a crise, começou a surgir outro
fenômeno: a emissão excessiva de moeda. Este, por
sua vez, conduziu a um aumento demasiado da circulação mercantil, provocando desvalorização monetária.
Tal situação levou progressivamente ao colapso da
manufatura, mas também à queda acentuada do poder
aquisitivo da plebe e à falência dos pequenos e médios
proprietários de terras e escravos (ROSTOVTZEFF,
1983, p. 247-250, 262).
No contexto acima descrito, estava claro que a não
correspondência obrigatória das relações de produção
do escravismo com o caráter das forças produtivas deste
regime impedia um salto de qualidade nas técnicas
de produção, passando para um modelo intensivo de
desenvolvimento da produção, pelo qual o aumento da
produção de riquezas passaria pelo aumento qualitativo
da eficácia das técnicas produtivas. De fato, tal salto tecnológico só seria possível com grande aporte de recursos na economia, multiplicando as fontes geradoras de
capital. Na verdade, a crise do Estado romano era a crise
global do modo de produção escravista, representada na
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impossibilidade deste sistema político-econômico em
assegurar a contínua realocação da riqueza auferida, no
processo produtivo, garantindo a revolução tecnológica,
exigência indispensável do contexto da época para a
passagem para uma economia intensiva que, por sua
vez, assegurasse um acúmulo de capital necessário para
atender às demandas, já mencionadas, da sociedade
romana.
O quadro descrito acima conduz a uma nova radicalização da luta de classes na sociedade romana entre
os escravos, plebeus, pequenos e médios proprietários
de terras e escravos e a aristocracia, tendo como fundo
o acirramento das contradições sociais geradas pelo
escravismo, mas também os fenômenos explícitos de
agonia e colapso da sociedade decorrentes dessas contradições.
De certo, era evidente para as camadas dominadas,
principalmente para os pequenos e médios proprietários
de terras e escravos, que se quisessem fazer prevalecer seus interesses, tinham que ir além de questões
meramente efêmeras, pois a estagnação do escravismo
era sistêmica, historicamente construída pela longa
evolução das suas leis de desenvolvimento, indo muito
além de fatores meramente conjunturais, como os que
caracterizaram as crises durante a Realeza e a República.
Dava-se necessário se apossar do poder político e romper, de uma forma ou de outra, com os pilares econômicos
escravistas que entravavam o livre desenvolvimento das
forças produtivas. De fato, a progressão da luta social
atingia todas as instituições do Principado, sobretudo as
forças armadas, onde os pequenos e médios proprietários
tinham bastante influência, e o Senado, onde em menor
medida a plebe influenciava, provocando constantes
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guerras civis e desorganização da forma de manifestação do poder central, ameaçando o poder político e
econômico da aristocracia.
Por outro lado, à aristocracia não restava alternativa
ao escravismo, pois era a classe dominante nesta sociedade, detentora dos principais meios de produção, bem
como a grande apropriadora do produto suplementar
produzido pelo trabalho escravo. Era justamente na
prevalência das relações de produção e leis econômicas
escravistas na sociedade romana, assegurada pelo uso
do Estado como órgão de dominação e reprodução da
divisão da sociedade em classes, que a aristocracia legitimava seu poder político, transformando sua vontade, não
só na vontade do Estado, mas, principalmente na vontade
das outras classes sociais, assegurando a sua hegemonia
econômica e social. Agora, com a falência do modelo
político-econômico, aumento dos antagonismos sociais
e da luta social, o quadro de correlação de forças passava
a ser desfavorável aos grandes proprietários de terras e
escravos, comprometendo a hegemonia aristocrata.
Aos fins do Principado, a sorte da aristocracia, e da
própria Roma, resumia-se basicamente em impedir o
esgotamento da economia escravista, viabilizando-a.
De fato, várias foram as medidas adotadas pelo Estado
para superar a situação de colapso sócio-econômico.
Pode-se citar, como exemplo, o incentivo ao arrendamento de terras, profissionalização das forças armadas (com a contratação de mercenários), extensão da
cidadania romana a todos os homens livres, aumento
da circulação mercantil, alterações no sistema jurídico
processual formulário, aumento de tributos, estímulo à
indústria manufatureira e à mineração, etc. Entretanto,
tais medidas, a partir do momento em que não atacaRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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vam os fundamentos do escravismo e face ao fato de só
terem sentido pelo reforço desses mesmos fundamentos,
acabaram por ampliar a níveis dantescos a espoliação
da aristocracia sobre as outras parcelas da sociedade,
transferindo o ônus da crise para estas, criando ainda
mais distorções.
Já em 212 d.C., na gestão do Príncipe Caracala,
a extensão da cidadania romana a todos os homens
livres no território de Roma, muito embora tenha
objetivado o fortalecimento da teologia politeísta
romana, a ampliação do sistema tributário romano
aos peregrinos e a simplificação das normas de
resolução de conflitos, representou uma tentativa
de amenizar os pleitos das camadas subalternas de
Roma. Entretanto, acabou por constituir um dos
vários fatores que evidenciavam o exaurimento do
Principado como forma do Estado romano. Este não
conseguia mais conter, através dos mecanismos de
consenso estatais, a progressão dos outros grupos
sociais romanos rumo ao poder político. Impunha-se
a coerção estatal para a defesa da ordem escravista e
dos interesses da aristocracia.
Afastada definitivamente a plebe, com o esvaziamento das competências do Senado, enquanto órgão
do Estado, e a concentração das competências estatais
no Príncipe, os diversos seguimentos da aristocracia se
lançam numa luta pelo poder político com os médios
e pequenos proprietários de terras e escravos, que contamina todas as instituições romanas. Esta disputa, na
qual as forças armadas tem papel de destaque, culmina
na chamada anarquia militar (período de 50 anos – 235 a
285 d.C.), caracterizado por guerra civil interna, durante
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a qual se sucedem 26 Príncipes (ROSTOVTZEFF, 1983,
p. 261-262), resultando no fim do Principado.
A ascensão reformadora de Diocleciano inaugura
uma nova forma de manifestação de poder, o Dominato (ROSTOVTZEFF, 1983, p. 263), caracterizada
pela centralização absoluta das competências estatais
na figura do, agora, Imperador e o surgimento de um
novo sistema de composição de conflitos, dotado de uma
única instância de decisão, a cognição extraordinária.
O Dominato não teve a propriedade de salvar o Estado
romano. Aos fins do Principado, a falência do paradigma
escravista era irremediável. O Dominato apenas representou uma sobrevida do sistema político-econômico,
adotado e desenvolvido em Roma por séculos, até o seu
fim definitivo com a queda de Roma em 476 d.C.
3 – O PROCESSO FORMULÁRIO
3.1. O ordenamento processual anterior ao sistema
formulário: as ações da lei
O sistema das ações da lei era a processualística dominante em Roma anterior ao advento do sistema formulário.
Predominou, como sistema hegemônico, durante o período
da Realeza e da República. Aqui, faz-se necessário tecer
brevíssimas linhas sobre o tema, objetivando uma melhor
compreensão do surgimento do sistema formulário.
As ações da lei, ou legis actiones, eram regras processuais civis positivadas, destinadas aos cidadãos romanos,
chefes de famílias, para o reconhecimento de um direito
ou para a execução de um julgamento (NEVES, 1990, jus
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privatum sub), tendo por característica principal a oralidade,
pela qual todos os atos processuais eram necessariamente
orais, e o seu excessivo formalismo e complexidade de
atos, bem como a substituição ou incorporação do direito
consuetudinário.
No direito romano, havia uma íntima relação entre o
direito material e o processual, de forma que não existia,
pelo menos formalmente, sequer esta divisão, sendo todos
um direito só e exercido a um só tempo. Desta maneira, só
existiria um direito se existisse uma ação para tutelá-lo, pelo
qual a ação era mero exercício de direitos subjetivos assegurados pelo direito material. É por isso que no período das
ações da lei o ato processual era considerado um negócio
entre as partes, sendo ato de qualquer gênero (DINAMARCO, 2000, p. 17-18).
A ação seria instrumento e petição do direito, dirigida ao
adversário e tendo por objeto o bem questionado em juízo,
pela qual para cada direito a ser tutelado corresponderia uma
ação. Assim sendo, as ações da lei dividiam-se entre aquelas
com funções de conhecimento e com funções executivas.
As ações da lei com função de conhecimento eram as
seguintes: actio per sacramentum, actio per condictionem,
actio per iudicis arbitrive postulationem. A actio per sacramentum era uma ação obrigacional geral, podendo ser de
natureza pessoal ou real, destinada à cobrança de créditos
nos contratos verbais ou literais e de créditos resultantes
de delitos ou à prevalência de direitos sobre coisas móveis
ou imóveis (MEIRA, 1988, p. 261). Já a actio per condictionem aplicava-se às obrigações que tivessem por objeto
coisa certa, seja ou não em dinheiro. Em relação à actio
per iudicis arbitrive postulationem, esta era utilizada para
a divisão de herança, para a cobrança de crédito decorrente
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de uma promessa e para a divisão de bens comuns (ALVES,
1995, p. 200).
As ações da lei com funções executivas eram as
seguintes: actio per manus iniectionem e actio per pignoris
capionem. A primeira só ser usada para execução de quantia
certa, destinando-se contra aquele que foi condenado a pagar
certa importância e contra o réu confesso. A segunda era
um procedimento extrajudicial, solene, pela qual o credor,
dispensando a intervenção dos Tribunais, fazia a apreensão
de qualquer objeto pertencente ao devedor e o conservava,
como garantia, até que a dívida fosse paga.
As ações da lei processavam-se primeiramente in iure,
diante do magistrado, e, posteriormente, apud iudicium,
diante do juiz popular, este escolhido pelas partes ou pelo
magistrado ou, ainda, por sorteio (ALVES, 1995, p. 193194).
Uma vez presente as partes em juízo, abria-se a fase in
iure, pela qual as partes debatiam a controvérsia entre si.
Ocorreria, aí, duas situações: a) se o réu negasse o pedido
do autor, seria mantido o estado atual do objeto do litígio
(TUCCI; AZEVEDO, 1996, p. 57); b) se o réu confessasse ou a sua defesa não fosse correta, em se tratando de
ação real, o objeto do litígio era adjudicado ao autor pelo
magistrado, em se tratando de ação pessoal, caso o réu se
recusasse a cumprir a obrigação, o autor poderia executar
o réu através da ação manus iniectio (ALVES, 1995, p.
194-195).
Ultrapassados esses incidentes, as partes ou o magistrado
escolheriam um juiz popular, na presença de testemunhas,
instaurando-se, aí, a litis contestatio. Neste mesmo ato era
estabelecido os limites da lide, sendo fundamental a presença
das partes (ALVES, 1995, p. 195).
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Tem-se, aqui, o início da fase apud iudicem. As partes
deveriam comparecer ao juiz popular três dias depois de
sua nomeação. Nesta fase, as partes expunham o litígio sem
formalidades. Após isso, iniciavam-se os debates entre as
partes, seguidos das provas que, pelo fato de prevalecer o
livre convencimento do juiz popular, eram todas permitidas
(ALVES, 1995, p. 195). Segue-se a sentença, condenando
ou absolvendo o réu. Em função do caráter privado do juiz
popular, este poderia não dá-la, sob a alegação de falta de
elementos para isso. Neste caso, mandaria as partes voltarem ao magistrado para que este nomeasse um novo iudex
(MAIA, 2004, p. 19).
A sentença era irrecorrível, visto que a instância era
plana e o duplo grau de jurisdição não existia; entretanto,
se o réu não cumprisse a sentença, o autor deveria se valer
de outra ação, a manus iniectio (TUCCI; AZEVEDO, 1996,
p. 59-60).
O sistema das ações da lei, embora caracterizado pela
oralidade pura, era por demais bastante complicado e formal.
Todos os atos eram revestidos de uma rígida solenidade e
o simples descumprimento de alguma destas solenidades
era o suficiente para que a parte descumpridora perdesse a
ação. É no período das ações da lei que se origina alguns dos
institutos e idéias que o direito ocidental absorveu, como a
fiança, a representação judicial, a idéia de processo e ação e
a limitação progressiva da autotutela.
Com o falecimento da República Romana, já em 27
a.C., alimentada, entre outros fatores, pela crescente luta de
classes entre os grandes proprietários de escravos e de terras,
pequenos e médios proprietários de terras e escravos, plebeus
e escravos, tencionava-se, ainda mais, o sistema jurídico, no
sentido de que este, pelo fato de se formar à luz do processo
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histórico de evolução das leis objetivas de desenvolvimento
do modo-de-produção, passava a absorver as contradições
do sistema escravista, bem como o reflexo disto na luta
entre as classes sociais de Roma. Ademais, foi durante a
República que as relações de produção em Roma, calcadas
no escravismo, se desenvolveram plenamente, gerando
grande aumento de produção e forçando o Estado Romano
à guerra de conquista como forma de ampliar o número de
escravos e, conseqüentemente, manter e aumentar a geração
de riqueza. Isto, sem sombra de dúvida, influía diretamente
nos valores sociais da época, visto que estes eram gerados
pelo convívio social em que o indivíduo estava inserido,
refletindo, assim, a ideologia da classe social que detinha
o poder político e econômico na sociedade. Esta expansão
da civilização romana, acelerada pela derrota definitiva da
civilização cartaginense por Roma, na última guerra púnica,
em 146 a.C., possibilitou um maior desenvolvimento das
relações de troca entre os territórios conquistados, bem como
garantiu o caminho para que Roma impusesse sua pax ao
mundo (FARIA; MARQUES; BERUTTI, 1988, p. 81-86;
94-103).
Por fim, o excessivo formalismo do sistema das ações
da lei (calcado na oralidade plena e solene, na horizontalidade da instância judicial, na ausência de força executiva da
sentença e na obrigação de comparecimento das partes em
juízo) (SANTOS, 2007, p. 39-40), diante do novo quadro
que se colocava, esgotava este sistema e exigia um sistema
de composição de conflitos menos formal, mais célere,
flexível e de boa compreensão, que pudesse integrar e se
ramificar pelos vastos territórios que iam se conquistando,
institucionalizando, assim, o modo-de-produção escravagista
romano e disseminando a ideologia da aristocracia romana
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no seio das outras classes sociais e dos povos conquistados.
Esta nova processualística cível era o sistema formulário, o
qual será agora tratado.
3.2 – Gênese e desenvolvimento do sistema
formulário
O período formulário tem início durante a República,
com a Lei Ebúcia (aproximadamente 149 a.C.), se consolida
com o advento da Lex Julia indiciorum privatorum, que
aboliu as ações da lei, em 17 a.C. (TUCCI; AZEVEDO,
1996, p. 74) e tem seu ocaso no século III d.C., como
processualística predominante, com a consolidação do
ordenamento processual cível da cognição extraordinária
(MACHADO, 2004).
Entretanto, há divergência quanto ao início da sua formação, visto que alguns autores, como Ludwig von Keller,
sustentam que a fórmula já existia com a Lei Calpúrnia. Já
Huschke sustenta que a fórmula já tinha aparecido com os
editos dos Pretores Pelegrinos a partir do ano 242 a.C. Esta
tese é reforçada por Manuel Girard ao completar que tais
editos foram copiados dos costumes existentes nas províncias romanas conquistadas. A própria data da Lei Ebúcia é
controversa, havendo estudiosos, como o próprio Girard, que
afirmam que ela veio à tona entre 149 e 126 a.C. (NÓBREGA, 1959, p. 614-617). De certo, apenas com a Lei Júlia é
que o processo formulário se consolida em Roma, visto que,
até então, coexistia com a Lei Ebúcia o procedimento das
ações da lei. Será no Principado que o processo formulário se
desenvolverá plenamente (FARIA; MARQUES; BERUTTI,
1988, p. 97).
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O surgimento do sistema da fórmula tem como pano de
fundo o afirmamento da civilização romana no mundo da
época e o acirramento da luta de classes na Roma escravagista, verificado nos séculos II e I a.C. De fato, a progressão das
outras classes sociais em Roma, rumo à conquista do poder
político (especialmente a plebe) da aristocracia, verificada
naquela época, se materializou, sobretudo, na perda por parte da aristocracia da hegemonia no Senado principalmente
para a plebe (mas também, em menor parte, para os médios
e pequenos proprietários de terras e escravos) e, conseqüentemente, na inclinação do Senado aos interesses plebeus
(reformas de Tibério e Caio Graco) (ROSTOVTZEFF, 1983,
p. 149-151) e em rebeliões desta classe e dos escravos (revolta espartaquista em 74-72 a.C.) (STAERMAN, 1978, p.
196-203) na defesa de seus interesses. O consenso do Estado
(representado por todo aquele conjunto de mecanismos que
visam garantir pacificamente a proteção dos interesses da
classe dominadora e do seu poder político e econômico, bem
como a reprodução da ideologia da classe social dominante
na sociedade, mascarando, assim, o caráter totalitário do
Estado e garantindo o próprio poder político e econômico da
classe social dominante) e a atual forma do Estado romano,
a República, já estavam esgotados e não mais conseguiam
envolver as outras classes sociais romanas.
Decididamente, para a aristocracia romana era necessário
dar um salto de qualidade na luta de classes, era a exigência
do contexto da época: a coerção estatal, como meio legítimo
da expressão do poder político estatal, deveria ser empregada
para modificar a forma do Estado romano, assegurar a dominação sobre a plebe, os escravos e os médios e pequenos
proprietários de terras e escravos, bem como garantir a manutenção dos interesses e do poder econômico e político da
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aristocracia, além dos fundamentos do modo de produção
escravista em que a ordem estatal estava alicerçada.
É com esta compreensão que os grandes escravagistas
de Roma, tendo como vanguarda política os setores que
giravam em torno de Otaviano Augusto, golpeiam a República e instituem o Principado, em 27 a.C. O Principado não
foi fruto da vontade de uns poucos generais, mas fruto do
esgotamento da República romana, expressão da dominação
estatal da aristocracia sobre as outras camadas sociais, e da
necessidade da aristocracia em preservar seus interesses e o
escravismo romano.
Ademais, como já foi dito, as guerras de conquista levadas a cabo por Roma resultaram num aumento dos territórios e povos controlados pelos romanos (abrangendo todo
o mediterrâneo, toda a Europa ocidental e parte da Europa
oriental), na expansão das trocas comerciais (inclusive o
comércio privado entre cidadãos romanos e não-romanos),
bem como do seu volume, com outros povos, num aumento
da população sob a jurisdição do Estado e num grande aumento da produção de riqueza. Outrossim, paralelamente
ao ius civile, desenvolvia-se o ius gentium. Nestas circunstâncias, o procedimento das ações da lei, com seu excessivo
formalismo (TUCCI; AZEVEDO, 1996, p. 203), não conseguia dar as respostas exigidas pela nova dinâmica que o
sistema escravista começava a apresentar. Dava-se necessário
construir um novo sistema de composição de conflitos que
traduzisse os atuais condicionantes históricos e materiais em
que Roma estava inserida. O sistema formulário significava
precisamente esta nova construção.
De fato, já nos fins da República, a aristocracia romana
procurou redesenhar o direito vigente, desenvolvendo um
ordenamento jurídico prático, positivo e de inspiração raRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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O sistema formulário de cognição de lides cíveis à base do processo civil romano clássico
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cional, objetivando a melhor reprodução das relações sociais
escravistas (BRITO, 1967, p. 19). Aqui, o ius gentium, ou
seja, aquele conjunto de leis que compunham os conflitos e
disciplinavam os fatos da vida social entre os peregrinos, os
cidadãos romanos e os estrangeiros, adquiria importância.
Muito embora o positivismo imperasse no direito romano clássico (AFTALIÓN; VILANOVA, 1994, p. 190), pelo
qual o direito era visto como regra normativa, revelando-se
como experiência humana e tendo como fontes os fatos
produzidos pelo homem no espaço-tempo (REALE, 1969,
p. 445-446), o certo é que a aristocracia romana se valeu
de concepções do direito natural para preservar e garantir o
funcionamento das instituições sociais, bem como o próprio
ordenamento jurídico positivo. Assim sendo, o sistema jurídico passou a ser apresentado não como uma convenção,
mas como uma exigência natural, pela qual agir de acordo
com a lei, era agir de acordo com as divindades, vendo-se
o mundo como uma grande comunidade, civilização, onde
deveria reinar a fraternidade (CÍCERO, 1967a, p. 6-7).
Por tal concepção, a civilização só seria compatível com
uma ordem jurídica que assegurasse a razão e a força da
natureza. Outrossim, aqui, estava imbuído o pensamento
central da aristocracia no Principado em relação à questão
das nacionalidades incorporadas ao território romano: o
homem poderia pertencer ao mesmo tempo à pátria onde
nasceu e à que o adotou, assim, todos os habitantes dos territórios conquistados teriam duas pátrias e deveriam morrer
por Roma, dedicando-se inteiramente a ela, pondo-se a seu
serviço e consagrando-lhe todos os seus bens (CÍCERO,
1967b, p. 2). Desta forma, o Estado romano buscava justificar ideologicamente, não só perante os povos conquistados,
mas também perante seus cidadãos, a dominação e a guerra
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de conquistas, visto que conquistar significava civilizar e
levar lei e ordem ao mundo.
Outrossim, objetivava-se a unidade universal de
Roma, integrando administrativamente o vasto território
que se ia conquistando, bem como os vários modos de
funcionamento dessa mesma unidade, organizando Roma
unitariamente de forma racional e científica, o que só seria
possível através de vinculações jurídicas que se pusessem
como requisitos fundamentais para a gerência administrativa (JOB, 1984, p. 39, 43). O processo formulário foi a
expressão jurídica disto na nova composição de conflitos
que passou a predominar com o Principado, pelo qual os
grandes proprietários de terras e escravos levaram para a
ação prática a racionalização do pensar e do dizer para
apreender, manusear e criar formas de interação social
articuladas pelo emaranhado jurídico (JOB, 1984, p. 43),
possibilitando, assim, o envolvimento de todo o território
romano, através de um ordenamento processual civil
prático, ágil e universal.
Feitas essas ponderações imprescindíveis para a compreensão da gênese do sistema formular, entende-se que a
fórmula é um modelo abstrato pelo qual se propicia litigar
por escrito, em conformidade com os esquemas jurisdicionais
do direito honorário (TUCCI; AZEVEDO, 1996, p. 74). Este
escrito era o iudicium que, por sua vez, era elaborado com
base no fato, tendo a fórmula como modelo (ALVES, 1995,
p. 209), pela qual se fixava o ponto litigioso e se outorgava
ao juiz popular o poder para condenar ou absolver o réu
(CORRÊA, 1988, p. 80), conforme ficasse, ou não, provada a
pretensão do autor. Vale salientar que, em relação aos referidos esquemas jurisdicionais do direito honorário, antes de ser
apresentada a fórmula, no edito, o magistrado colocava uma
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O sistema formulário de cognição de lides cíveis à base do processo civil romano clássico
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cláusula, denominada edito estrictu sensu, onde determinava
as condições em que concederia ou denegaria a fórmula a
ser apresentada (ALVES, 1995, p. 209).
Neste novo processo permanecia a instância plana, in
iure e apud iudicem. A idéia de oralidade foi redimensionada:
o procedimento ainda era oral, mas a fórmula, necessariamente, revestia-se de forma escrita. A sentença passou a ter
caráter condenatório, pela qual a condenação era sempre
pecuniária.
O iudex, embora tivesse autonomia para decidir livremente conforme a sua convicção, deveria se limitar ao
disposto na fórmula. As partes, em audiência, podiam ser
orientadas por procuradores que eram admitidos só se as
partes estivessem pessoalmente e arcariam sozinhos com a
condenação (SANTOS, 2007, p. 43). O sistema de citação
alterou-se, visto que, embora se mantivesse privado, aboliu-se
o uso da força para tal. Para tanto, manteve-se o instituto do
vadimonium. O vadimonium era uma prerrogativa do réu para
o caso de não se estabelecer os limites da lide, litis contestatio.
Neste caso, o réu oferecia, perante o juiz popular, iudex,
uma promessa feita pelos vades para o comparecimento dele
na data marcada para o estabelecimento dos limites da litis
contestatio, sob pena dos vades serem multados (TUCCI;
AZEVEDO, 1996, p. 57). Outrossim, criou-se a ação de
edição. Esta, era uma ação que o autor, antes de chamar o
réu em juízo, notificava-o das suas intenções e dos fatos com
a finalidade de tentar fazer com que o réu cumprisse a obrigação, dispensando a via judicial. Se o réu fugisse, o autor
se valia de uma ordem de imissão sobre os bens do devedor
(NÓBREGA, 1959, p. 618). Outrossim, o prazo de 30 dias
para a nomeação do iudex estabelecido pela Lei Pinária foi
extinto. Eis os traços do novo sistema.
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Pelo exposto, apesar de uma maior intervenção estatal
no procedimento, o sistema formular continuava inserido no
ordo iudiciorum privatorum.
Nesta época é que se delineia, mais fortemente, o direito honorário (editos redigidos pelos pretores) ao lado do
direito civil, constituindo um momento histórico de Roma,
pois através da Pretura a jurisdição estatal se rejuvenesce,
agora livre das formalidades e estendida aos estrangeiros.
3.3. As instâncias procedimentais do ordenamento
processual formular
3.3.1. O procedimento formulário na instância in iure
Como já dito, no sistema formulário permanecia a
instância plana, in iure e apud iudicem. Apenas que,
agora, surgia a fórmula, esta obrigatoriamente revestida
de forma escrita.
O desenrolar da instância in iure era assim dividido,
senão vejamos: 1 - Introdução da causa; 2 – postulação;
3 - nomeação do juiz popular e montagem da fórmula;
4 - Litis contestatio.
A introdução da causa se dava com a citação. O procedimento da citação era idêntico ao das ações da lei. A
exceção era que o uso da força para que o réu viesse a
juízo não era permitido e se introduziu, como já foi dito,
a editio actio, como condição prévia para a citação, e a
figura do vadimonium, uma espécie de fiador da época.
Esta edictio actio servia, também, para comunicar a
pretensão ao magistrado e para se ter como base para a
composição da fórmula. O procedimento formulário, na
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citação, ampliou o campo das pessoas que não poderiam
sofrê-la: cônsul, prefeito, pretor, pontífice, magistrado
e funcionário público (no exercício das suas funções),
procônsul e aqueles que estivessem nos templos ou
acompanhando funeral. Todos eles e outros mais não
poderiam, ali, serem citados (TUCCI; AZEVEDO,
1996, p. 81).
Foi no processo formulário que a figura da representação em juízo e do litisconsórcio passivo, ativo e
misto foram admitidas. Em relação à representação, ela
podia ser por cognitor (procurador constituído perante
o magistrado) e por procurador (mandatário para a lide)
(ALVES, 1995, p. 217).
Já na postulação, a editio actio era formalmente
apresentada pelo autor, descrevendo a ação correspondente ao direito, ao magistrado e ao réu. Se a ação estivesse inadequada ou não estivesse no edito pretoriano
a ação era negada e o autor não mais poderia acionar
o réu pelo mesmo direito. Se o autor não tivesse idéia
da real posição do réu poderia interrogá-lo para que a
lide corresse com a maior exatidão possível (TUCCI;
AZEVEDO, 1996, p. 81-84), mudando o tipo de ação
(MEIRA, 1988, p. 272). Nesta altura, já era admitida a
figura do advogado defendendo a parte. Vale ressaltar
que até o século II d.C. o advogado não era remunerado
e após esta data só de forma muito restrita (NÓBREGA,
1959, p. 277).
Após isso, era passada a defesa ao réu. O réu, na sua
defesa, poderia apresentar exceções, inclusive impugnar
a ação, sob o argumento de que não era a ação adequada,
e apresentar reconvenção (pedido autônomo, com base
no mesmo negócio jurídico) (MEIRA, 1988, p. 272). O
réu poderia, também, confessar, encerrando o litígio, ou
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não comparecer ao chamamento a juízo, o que equivalia
à confissão. No primeiro caso, se se tratasse de quantia
certa a confissão seria igual a um julgamento, podendo o
autor passar à execução do réu. Entretanto, se se tratasse
de quantia incerta, se passaria à fase apud iudicem (ALVES, 1995, p. 217-218). No último caso, o magistrado
ou imitiria o autor na posse dos bens do réu (tratando-se
de quantia incerta) ou imitiria o autor na posse do imóvel
do devedor (tratando-se de ação real). Se se tratasse de
quantia certa, o réu seria executado sobre sua pessoa ou
seus bens (ALVES, 1995, p. 218).
Já na nomeação do iudex e montagem da fórmula, a
nomeação do iudex, tal qual no tempo das ações da lei,
era feita pelas partes em conjunto com o magistrado e
recaía sobre um particular qualquer, este, apesar das
pressões em contrário da plebe romana, um membro
da aristocracia, podendo ser até estrangeiro, desde que
fosse aristocrata (TUCCI; AZEVEDO, 1996, p. 86-87).
Havendo recusa, ou por parte do magistrado ou por parte
de uma das partes, nomeava-se outro iudex.
Outrossim, a fórmula era elaborada pelo magistrado
em comum acordo com as partes, devendo estas litigarem nos limites da fórmula.
Após a nomeação do iudex e montagem da fórmula
vinha a Litis contestatio. Esta era uma espécie de contrato judicial pela qual as partes firmavam o compromisso
de subordinar o litígio, nos termos da fórmula, à decisão
de um iudex, culminando com o aceite pelo réu e com a
fixação das linhas e limites da questão, obrigando, assim,
todos a respeitarem o julgamento. A litis contestatio,
neste sentido, provocava efeitos reguladores, criadores
e extintivos (MACHADO, 2004).
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O sistema formulário de cognição de lides cíveis à base do processo civil romano clássico
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O efeito regulador consistia em que, uma vez fixado os elementos pessoais e materiais do processo,
o iudex era obrigado a se conduzir nos limites da
fórmula. Porém, o magistrado podia permitir, tanto
ao réu como ao autor, que introduzisse alguma exceção na fórmula (NÓBREGA, 1959, p. 620). Já o
efeito criador decorria de um princípio do processo
formular de que a condenação do réu, seja qual for a
natureza da ação, seria sempre pecuniária. Ou seja,
uma vez condenado o réu, desta condenação surgia
nova obrigação: a de ressarcir o autor em dinheiro
(ALVES, 1995, p. 220-221).
Em relação ao efeito extintivo, em se tratando de ação
pessoal, a litis contestatio põe fim ao pedido, impedindo
o autor de acionar o mesmo réu sobre a mesma controvérsia. Já em se tratando de ações reais, estas podem ser
novamente apresentadas, visto que, em razão do objeto
da lide, não há identidade estrutural entre os fatos da
vida na sociedade tutelados pelo direito material e o
vínculo que surgia da subordinação à fórmula. Estes
eram efeitos de pleno direito (TUCCI; AZEVEDO,
1996, p. 101-102).
Porém, a extinção produzia efeitos por meio da
exceção, se o réu inserisse-a na fórmula, sendo, posteriormente, ao se constatar o fato alegado, absolvido pelo
iudex. Para a extinção produzir efeito de pleno direito
era necessário que se tratasse de iudicium legitimum e
que o objeto da obrigação fosse de direito civil. Vale
ressaltar que o iudicium legitimum era o processo que
se instaurava em Roma, abrangendo até a distância de
uma milha da cidade, no qual as partes eram cidadãos
romanos e a lide era julgada por um iudex romano.
Outrossim, a extinção também produzia efeito por meio
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de exceção, se a obrigação dissesse respeito a direito
honorário ou real (ALVES, 1995, p. 220).
A fórmula era composta pela parte principal e pela
parte acessória. Cada parte desta, por sua vez, se fragmentava, respectivamente, em quatro e cinco subdivisões, conforme o seguinte esquema: 1 - Parte principal
(intentio, demonstratio, adiudicatio, condemnatio);
2 – Parte acessória (praescriptio, exceptio, replicatio,
duplicati, triplicatio)
A intentio era a própria pretensão do autor, sendo
indispensável em todas as fórmulas. Devia ser, por isso,
certa e objetiva. Havia várias formas de intentio: in rem
e in personam (de acordo com a natureza da ação), in
ius concepta e in factum conceptae (de acordo com o
ius), certa e incerta (de acordo com a obrigação), abstrata ou causal (de acordo com a causa da obrigação)
e a ficta (nesta o magistrado não encontrando a ação
prevista em lei, deveria conceder a fórmula por meio
de uma ficção, como se o caso fosse previsto por lei)
(NÓBREGA, 1959, p. 621).
A demonstratio consistia em se delimitar o objeto
da lide. Esta parte da fórmula só existia nas ações incertas.
A adiudicatio era a parte da fórmula que permitia ao
iudex adjudicar a coisa do devedor ao credor. Só existia
nas ações divisórias.
Em relação à condemnatio, esta era a parte da fórmula pela qual o iudex tinha o poder de condenar ou
absolver. A condenação no sistema formular era sempre
pecuniária. Se o réu tivesse contestado uma provável
condenação, esta seria dupla sobre o valor em questão.
Quando a intentio fosse coisa que não dinheiro, o iudex
deveria avaliá-la para condenar o réu. Em se tratando de
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O sistema formulário de cognição de lides cíveis à base do processo civil romano clássico
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coisa certa, o iudex observava se a fórmula estabelecia
se a condenação deveria recair sobre o tempo da condenação do réu. Nestas ações poderia se permitir que o
réu, para não pagar em dinheiro, devolvesse a coisa ao
autor (era a chamada cláusula arbitrária), garantindo a
este fixar o seu valor, para o caso do réu não devolvê-la
(TUCCI; AZEVEDO, 1996, p. 93-95).
Já a praescriptio era uma cláusula acessória colocada
no início da fórmula, antes da demonstratio e da intentio, após a indicação do iudex, no interesse do autor,
pro actore, ou do réu, pro reo, visando, por um lado,
impedir que a ação ultrapasse o direito do autor, bem
como delimitar a qualidade com que este agia em juízo
e, de outro lado, impedir que a decisão do iudex não
prejulgasse questão mais importante do que a litigada
(ALVES, 1995, p. 213-214). O autor, com base na praescriptio, podia, assim, ajuizar nova demanda relativa
a direito correlato. Ressalte-se que a praescriptio pro
reo com o tempo deu lugar às exceções.
A exceptio era uma ação própria do réu, sendo a parte
acessória da fórmula, pela qual o réu, não negando o
direito do autor, alegava que este não tinha observado
o seu direito, com base em direito próprio ou pela
existência de determinados fatos extintivos, oposição
esta que se vitoriosa anulava os efeitos da pretensão do
autor (NÓBREGA, 1959, p. 622-623). Sua finalidade
era oferecer condição ao iudex para a decisão final.
A exceptio não existia ao tempo das ações da lei,
sendo própria do processo formulário. Dividia-se em:
perpétua (quando podia ser alegada a qualquer tempo),
temporária (quando se sujeitava a determinado prazo),
rei cohaerente (quando podia ser invocada por qualquer
interessado) e personae cohaerente (quando podia ser
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invocada por determinada pessoa) (ALVES, 1995, p.
215). A exceptio tinha natureza material.
Já em relação à replicatio, duplicatio e a triplicatio,
a primeira era nada mais que a exceptio do autor contra
o réu. Este podia responder ao autor da mesma forma,
por meio da duplicatio (também exceptio do réu contra
o autor) e o autor em seguida pela triplicatio.
3.3.2. O procedimento formulário na instância apud
iudicem
A instância apud iudicem iniciava-se logo após a litis
contestatio. Os textos da época sobre este procedimento
quase não existem, o que impede uma análise mais fiel
e clara desta etapa.
O procedimento apud iudicem era composto pelas
fases inicial, probatória e sentencial.
Em relação à fase inicial, no dia estipulado, as partes
deveriam comparecer, representadas ou não, perante o
iudex, apresentando-lhe a fórmula. Ademais, o resto do
procedimento era igual ao das ações da lei. Após, o iudex
mandava produzir as provas (ALVES, 1995, p. 222).
Já na fase probatória, a produção de provas e os
debates eram meio desordenados, admitindo-se todo
tipo de prova (sentenças passadas, testemunhas, juramento, costumes, documentos, tortura, opinião pública)
(TUCCI; AZEVEDO, 1996, p. 124-125) e não se estabelecendo prazo para os debates que, de uma maneira
geral, tinham que ser concluídos no primeiro comparecimento perante o iudex, facultando a este prorrogá-los
para outra audiência. Quanto aos advogados, estes deveriam falar ou no momento de apresentação das provas
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ou em debates com o réu, apresentando e interrogando
testemunhas, além de ler documentos (NÓBREGA,
1959, p. 623-624). As partes deveriam se ater a provar
os fatos alegados e o ônus da prova da alegação caberia
ao autor desta.
Os documentos deveriam ser apresentados, não só
ao iudex, mas, antes, na instância in iure, no momento
da elaboração da fórmula, perante o réu.
O comparecimento da testemunha, uma vez arrolada,
não era obrigatório, sendo que seu testemunho poderia
ser enviado por escrito.
Em relação à fase sentencial, o iudex, se não chegasse
à conclusão alguma, poderia deixar de dar a sentença.
Neste caso, as partes voltariam ao magistrado para que
este nomeasse outro iudex.
Ao sentenciar, o iudex estava adstrito à fórmula,
tendo, entretanto, liberdade para formar convicção a
respeito dos fatos envoltos na lide. Não havia forma específica para redigir a sentença, podendo esta ser dada
oralmente. As limitações do iudex ao sentenciar eram
as seguintes: 1 - Só podia condenar ou absolver o réu;
2 - não podia condenar o autor; 3 - se a pretensão contida na intentio não fosse exata o iudex devia absolver o
réu; 4 - o iudex devia se limitar aos fatos no momento
da litis contestatio, considerando os fatos ocorridos
antes da sentença (ALVES, 1995, p. 223-224).
A condenação do autor só era admitida se houvesse
a cláusula iudicium contrarium na fórmula.
Sendo condenatória, a sentença possuía a propriedade
de constituição de nova relação jurídica entre as partes,
denominada res iudicata, servindo de fundamento para
que o vencedor exigisse o cumprimento da sentença,
através da actio iudicati. Era justamente pela actio iudiRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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cati que se atribuía força executiva à sentença (NEVES,
1971, p. 25-26).
Assim sendo, a sentença produzia os seguintes
efeitos:
a) Se condenatória, daria ao vencedor o direito de
exigir que o vencido cumprisse a obrigação, valendose da actio iudicati (ação que possibilitava ao autor a
execução do réu quando este se recusava a cumprir a
sentença) em caso de resistência do réu ao cumprimento
da sentença.
b) A sentença produziria de qualquer modo coisa
julgada, impedindo que a mesma controvérsia fosse,
posteriormente, suscitada contra o mesmo réu. Desde
que houvesse identidade de questões e identidade
jurídica de pessoas, podia-se inserir uma exceção na
fórmula versando sobre a coisa julgada (ALVES, 1995,
p. 225-226). Aqui, a fórmula tinha a propriedade de
delimitar o objeto da controvérsia e os limites da coisa
julgada, possibilitando que a sentença final tivesse poder
de comando, o que lhe conferia caráter publicístico, criando uma nova obrigação entre os litigantes, a obligatio
iudicati (MACHADO, 2004).
O processo formular admitia a nulidade da sentença
em caso de desonestidade do magistrado ou do iudex,
falsificação de prova, incompetência do iudex, etc., que
podia ser alegada a qualquer tempo.
A execução da sentença no processo formulário era
feita através da actio iudicati (que passaria de novo
pela instância in iure e apud iudicem), substituindo
a actio manus iniectio do tempo das ações da lei. A
execução podia recair sobre a pessoa ou os bens do
devedor. O réu que não cumprisse a sentença ficaria
numa prisão privada trabalhando como escravo para
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o autor até que quitasse a dívida com o valor do seu
trabalho. O réu poderia se livrar desde que cedesse
todos os seus bens (MEIRA, 1988, p. 280). Aqui,
o sistema processual formular revela o caráter
aristocrático do processo civil romano. De fato, o
Estado, ao disciplinar os bens da vida na sociedade,
assentando-os sobre as leis econômicas e relações
de produção escravistas, colocava os sistemas de
composição de conflitos na perspectiva da regulação
do modo-de-produção escravista, na legitimação
do poder político da aristocracia, bem como na
disseminação da ideologia desta classe dominante,
enfim, na perspectiva da proteção-reprodução das
relações sociais escravistas como um todo, de forma
mais vantajosa aos grandes proprietários de terras e
escravos. Verifica-se, aqui, a absolutização do relativo
no procedimento executório do sistema formulário,
pelo qual as pretensões normativas, que traduzem os
interesses da camada social dominante, a aristocracia,
são colocadas como regras e valores aceitos por todos,
independentemente das diferenciações existentes na
sociedade, na perspectiva desta proteção-reprodução
das relações sociais (FERRAZ JÚNIOR, 1998, p.
30-33).
Outrossim, era também no processo executório,
através da actio iudicati, que o direito das gentes, o
direito quiritário e o direito natural romanos procuravam
expressar em formas jurídicas as condições econômicas
de vida da sociedade escravista, repercutindo na tutela
jurisdicional das relações jurídicas cíveis, do qual o
sistema formulário era uma espécie. Desta forma, o
direito das gentes, ius gentium, formado pelas normas
consuetudinárias romanas, comuns a todos os povos e
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por isso aplicáveis não só aos cidadãos romanos, como
também aos estrangeiros em Roma, garantia a escravidão
universal, por delito penal, baseada na razão natural. Já
o direito quiritário, destinado exclusivamente, aos cidadãos romanos, garantia a escravidão obrigacional. Por
fim, o direito natural impunha o escravismo hereditário
(MONTESQUIEU, 2002, p. 250).
A execução dos bens do devedor consistia na venda
em bloco de todos os bens deste. Era a venditio bonorum. Esta foi criada em 118 a.C., em princípio apenas
contra o réu, mais tarde contra o réu confesso e o que
não se defendesse (ALVES, 1995, p. 227). Compunhase de três fases: 1 – Missio in bona; 2 – preliminares da
venda; 3 – venditio bonorum.
A missio in bona iniciava, propriamente, a execução
dos bens do devedor. Era introduzida por uma missio in
possessionem, sendo requerida por um dos credores ao
magistrado que iria determinar um curador para guardar
os bens provisoriamente. Eram publicados editais para
que todos tomassem conhecimento do fato, seja para se
habilitarem como credores, seja para pagarem a dívida
do réu, salvando o patrimônio deste (NÓBREGA, 1959,
p. 626-627).
Já na fase de preliminares de venda, passados 30 dias,
se o devedor fosse vivo, ou 15 dias, se o devedor fosse
morto, este era considerado infame e se nomearia um
síndico para efetivar a venda dos bens. O devedor ainda
poderia fazer uma cessão total dos bens, em favor do
credor, para escapar de ser considerado infame. O síndico publicaria em edital o inventário geral do devedor.
Após 10 dias, se o executado fosse vivo, e 5 dias se o
executado fosse morto, se realizaria a venda (MEIRA,
1988, p. 280-281).
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O sistema formulário de cognição de lides cíveis à base do processo civil romano clássico
71
Em relação à venditio bonorum, a venda seria feita
em leilão a quem desse o preço mais alto. Este ficaria
com todo o ativo. O produto da venda seria dividido
entre os credores da seguinte forma: em primeiro lugar
os privilegiados e depois os quirografários. Se o produto da venda não extinguisse a dívida, o executado não
se eximiria de pagar o restante, podendo haver nova
venditio bonorum sobre os futuros bens do executado
(ALVES, 1995, p. 227-229).
4 – O DIREITO HONORÁRIO COMPLEMENTAR
4.1. Os editos dos magistrados
O direito honorário era aquele baseado nos editos dos
magistrados que tinham força de imperium. Este direito coexistia ao lado do ius civile romano (NÓBREGA, 1959, p.
633). Os editos dos magistrados eram a fonte principal do
direito honorário, embora já existissem ao tempo das ações
da lei.
A partir de 367 a.C. se permitiu aos magistrados, que
exercessem funções judiciárias, a faculdade de publicar editos. Assim, Pretores, Edis Curis, Governadores e Questores
podiam criar editos. Estes editos eram um programa de ação
do magistrado em que se comunicavam ao povo as normas
que o Magistrado iria aplicar durante a sua administração
(geralmente de um ano). Esses editos eram feitos durante a
posse do Magistrado e não podiam contrariar o ius civile.
Inicialmente eram orais, com o tempo passaram a ser escritos
formando uma espécie de álbum, visto que eram escritos
em uma tábua de madeira revestida de gesso branco. Com o
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Fernando Joaquim Ferreira Maia
tempo se permitiu ao magistrado criar editos para preencher
lacunas no edito publicado.
Ao conjunto destes editos dos magistrados que tinham
o direito de fazer editos, o chamado ius edicendi, chamavase direito honorário. Este era verdadeira atividade criadora
de direito, visto que visava corrigir, suprir e esclarecer, de
acordo com o interesse público e baseado na eqüidade, o
direito civil (NÓBREGA, 1959, p. 116-118).
No sistema das ações da lei, o direito honorário só
podia ser aplicado a não cidadãos. Foi com a Lei Ebúcia,
esta instituindo o sistema formulário, que se permitiu a sua
complementaridade ao direito civil, ainda junto com as ações
da lei.
Uma característica do direito honorário é que ele se
estendia apenas até a jurisdição do magistrado que elaborou
o edito, sem atingir a lei que se aplicava a todo o território
romano. Posteriormente, várias normas honorárias foram
positivadas no direito civil.
O ápice da aplicação do direito honorário, e ao mesmo
tempo o início de sua decadência, se dá com o edito perpétuo, introduzido em 117 d.C., com o Príncipe Adriano,
que compilou todos os editos já anteriormente publicados,
imutando-os, ao mesmo tempo subordinando o Magistrado
ao edito perpétuo, não podendo mais publicar novos editos.
Desta forma, o edito perpétuo acabou engessando as normas
honorárias.
No período das ações da lei, o edito dos magistrados,
como já dito, só podia ser aplicado aos não cidadãos, sendo
o ius civile aplicado aos cidadãos romanos. Já no período
formulário, os editos dos magistrados complementavam o
direito civil, sendo aplicado a cidadãos romanos, e podendo,
inclusive, negar casos sobre a proteção do ius civile.
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O sistema formulário de cognição de lides cíveis à base do processo civil romano clássico
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4.2. As diversas modalidades de editos
No processo formulário os magistrados podiam intervir
nos conflitos entre particulares. Essa intervenção processavase sobre quatro modalidades seguintes: 1 - Stipulationes
praetoriae;2 - missiones in possessions;3 – interdicta;4 restitutiones in integrum.
Em relação à modalidade stipulationes praetoriae, estas
eram promessas verbais impostas pelo magistrado que deseja
fazer nascer um vínculo de obrigação entre duas pessoas, num
certo número de hipóteses prevista pelo edito (CRETELLA
JÚNIOR, 1991, p. 433).
Se o estipulante não comparecesse, o magistrado poderia
obrigá-lo a comparecer. As estipulações poderiam ser: pretorianas (fundadas no imperium do magistrado, geralmente de
natureza cautelar), judiciais (ocorriam na fase apud iudicem,
tendo por objeto o cumprimento da sentença ou outra ordem
judicial), comuns (quando ocorressem os pressupostos previstos nas estipulações pretorianas e judiciais).
Já a missiones in possessiones era uma autorização,
a requerimento do interessado, para este tomar posse dos
bens do devedor, em caráter conservatório e, geralmente,
provisório (NÓBREGA, 1959, p. 628).
Há vários tipos de missiones in possessiones: missio
in rem (tratando-se de bem particular, sendo empregada no
caso de damnum infectum e no caso do réu estar ausente
ou não quiser se defender), missio in bona (tratando-se de
um conjunto de bens, sendo empregada para resguardo do
direito de credores e destes em relação ao insolvável ou ao
que se recusa a se defender) (NÓBREGA, 1959, p. 628),
missio ventris nomine (concedida a favor de mulher grávida),
missio furiosi nomine (concedida ao curador para a guarda
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do patrimônio dos dementes) e outras mais (TUCCI; AZEVEDO, 1996, p. 117).
Em relação à interdicta, esta era uma ordem oral dada
pelo magistrado ou governador de província, a pedido de um
dos litigantes, para por fim a divergência entre eles, seja para
preservar atos positivos ou impedir a prática de determinados
atos. Em relação à primeira categoria, chamavam-se decreta
e compreendiam os interditos exibitórios e restitutórios. Em
relação à segunda categoria, chamavam-se interdicta e compreendiam os interditos proibitórios. O procedimento era
rápido, tendo o magistrado apenas que conceder ou negar o
pedido, examinando os fatos (ALVES, 1995, p. 235-237).
Os interditos restitutórios ou exibitórios davam-se
quando o magistrado ordenava a restituição ou exibição de
alguma coisa. Eram proibitórios quando o magistrado determinava uma abstenção.
De uma maneira geral, os interditos tinham natureza
tutelar, pois o magistrado os concedia baseado em que os
fatos alegados fossem verdadeiros. Se a ordem fosse acatada
pelo réu, o processo se encerraria. Se a ordem não fosse
acatada, em se tratando de interdito proibitório, procedia-se
per sponsionem. Neste caso, antes de completar um ano da
concessão do interdito, as partes voltariam ao magistrado e
aí o réu prometia pagar certa quantia ao autor se provado que
os fatos baseados para a concessão do interdito eram verdadeiros e, por sua vez, o autor prometia o mesmo ao réu se
aqueles fatos fossem falsos. Redigia-se uma terceira fórmula
facultando ao réu cumprir o interdito se o autor provasse que
o réu o descumpriu (ALVES, 1995, p. 235-237).
Feito isto, as três fórmulas seguiam para o iudex que
condenaria ou absolveria o réu. Se o interdito fosse destinado
tanto ao autor quanto ao réu, o mesmo procedimento seria
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O sistema formulário de cognição de lides cíveis à base do processo civil romano clássico
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repetido duas vezes. O iudex, então, proferiria uma sentença
para cada fórmula.
Em se tratando de interditos restitutórios ou exibitórios,
o procedimento aplicável era o per formulam arbitrariam.
Este era mais simples. Uma vez concedido o interdito, uma
das partes ou ambas, desde que imediatamente, podiam
requerer a designação de um árbitro para apurar se os fatos
eram verdadeiros ou não. Seria, então, redigida uma fórmula
in factum concepta, em que seriam colocados os fatos que
serviriam de base para o interdito e após se introduziria uma
cláusula arbitrária.
Na fase apud iudicem o iudex, se assim, entendesse,
mandava o réu cumprir o interdito. Se este se recusasse, o
iudex condenaria-o a pagar uma quantia estimada pelo autor
em juramento (ALVES, 1995, p. 237).
Por fim, a modalidade restitutiones in integrum era uma
providência extraordinária tomada pelo magistrado contra
ato regularmente realizado, restabelecendo o ato de direito
anterior, para não contrariar a eqüidade (NÓBREGA, 1959,
p. 630). Era uma criação pretoriana, visando conter os excessos do direito quiritário. Pela restitutiones in integrum os
negócios jurídicos celebrados, ou formalidades processuais
regularmente observadas, eram tidos por não realizados,
retornando-se à situação anterior à realização destes.
Assim sendo, a restitutiones in integrum podia ser aplicada para a proteção dos menores de 25 anos, em negócios
jurídicos prejudiciais, nas obrigações feitas por coação, ou
havendo dolo, erro, ausência da parte interessada por estar a
serviço do Estado, incapacidade da parte, venda dolosa, bem
como em todos os casos em que o juiz entendesse correta
a restituição ao estado anterior das coisas (MEIRA, 1988,
p. 279).
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A restitutiones in integrum devia ser formulada até um
ano do conhecimento da ocorrência do prejuízo. Uma vez
formulada, o magistrado, examinando os fatos, concedia ou
não a rescisão. Concedendo, passava-se à instância rescisória
que teria a finalidade de esmiuçar as conseqüências da rescisão, operando-a
De certo, o fato de o processo formulário restringir as
partes litigantes à fórmula e o crescente emprego da cognição
extraordinária (procedimento inicialmente administrativo,
mas que vai aos poucos penetrando em toda sociedade, pela
qual o príncipe concentrava a competência judiciária), motivada pela mutação do Principado à monarquia absoluta, o
Dominato, acabou por sepultar este sistema processual.
5 – DO APOGEU AO OCASO DO ORDENAMENTO
PROCESSUAL FORMULAR NA ROMA CLÁSSICA
Por tudo o que se expôs, nota-se que o período que se
estende da fundação de Roma à ascensão de Diocleciano,
foi a época de ouro da civilização romana. Foi neste interregno de mil anos que os romanos construíram um Estado
Nacional, ampliaram suas fronteiras, desenvolveram sua
cultura e a impuseram-na, enriqueceram, exploraram
todas as possibilidades que o sistema escravista poderia
oferecer, sofreram e enfrentaram as contradições deste
sistema.
Mas foi da preocupação em se garantir a unidade de
seu território e dos territórios que iam sendo conquistados,
bem como com a disseminação da ideologia da aristocracia perante as outras classes sociais em Roma e perante os
povos dominados e, ainda, com a institucionalização do
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O sistema formulário de cognição de lides cíveis à base do processo civil romano clássico
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escravismo no território romano, que se deu grande preocupação ao problema do direito e, neste, ao da composição
de conflitos: o sistema jurídico tinha que ser único, envolver
todo território e legitimar a jurisdição, esta como expressão
do poder estatal, neste território, sobre tudo e sobre todos,
visando a legitimação, a manutenção e o desenvolvimento
do modo-de-produção escravista.
A evolução dos sistemas de composição dos conflitos em
Roma, as ações da lei e o processo formulário, marcados pelo
direito civil e pelo direito honorário, bem como a mutação
verificada nas instituições políticas e nas fontes do direito, em
Roma, foram determinados pela evolução do contexto em que
o processo de produção escravista estava inserido dentro do
quadro de correlação de forças e pelas contradições na ordem
sócio-econômica. Este quadro opunha as diversas camadas
sociais na Roma antiga: a aristocracia, a plebe, os escravos
e os pequenos e médios proprietários de terras e escravos.
Assim, é, à luz das relações sociais de produção e das leis
econômicas escravistas, dentro de uma visão dialética, que se
deve entender o processo civil romano clássico. Até porque,
não se deve procurar entender o processo civil romano com
base nos seus comentadores da era contemporânea, visto
que os romanos entendiam as suas instituições à luz dos seus
valores e da realidade da sua época.
Assim, pode-se, seguramente, com base no que foi
exposto, dizer que o sistema formulário foi uma continuação aprimorada do sistema das ações da lei. Abandonouse o sistema totalmente oral das ações da lei e sua rigidez
procedimental e se introduziu uma fórmula escrita que
servia de base para continuação do processo, mantendo,
porém, certa oralidade e instância plana, característica
das ações da lei.
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As ações da lei, na prática, traduziram uma tentativa de se
positivar os costumes romanos empregados para solução de
conflitos. Traduziram, também, a pressão da plebe em garantir
seus direitos escritos em lei. Porém, pecou pelo rigor excessivo
do procedimento que, embora oral, acabou por dificultar as
partes, sobretudo aqueles que não eram aristocratas, em litigar
em juízo. Outrossim, o fato de que o Estado romano estava
sobre a égide da aristocracia, fazia, conseqüentemente, as suas
instituições favorecerem a aristocracia, visto que esta controlava
as magistraturas, contrariando, assim, os interesses da plebe.
O que se observa, é que durante certo desenvolvimento
do sistema escravista, face o crescimento do Estado romano,
a partir da última guerra púnica, as ações da lei começaram a
não corresponder às exigências da nova realidade: o fato de a
produção de riqueza ter se desenvolvido, o aumento das trocas
comerciais entre Roma e outros Estados, a expansão do território romano, o aumento da tributação dos povos conquistados
e da produção do trabalho escravo, este usado em larga escala em
todas as atividades econômicas (principalmente a agrária), além
do aumento da população sobre o controle do Estado romano.
O rigor formalístico das ações da lei era incompatível com este
novo contexto e a adoção de um novo sistema processual era
mais que uma necessidade, era uma exigência.
A grande vantagem do sistema formulário é que ele
reduziu a rigidez formal oral do sistema das ações da lei,
possibilitando ao magistrado intensa atividade criadora, a
qual já se verificava no sistema anterior, mas teve no processo formulário pleno desenvolvimento através dos editos
dos magistrados. Porém, face o fato do processo formulário
restringir as partes litigantes à fórmula e o crescente emprego da cognição extraordinária (procedimento inicialmente
administrativo, mas que vai aos poucos penetrando em toda
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sociedade, pela qual o príncipe concentrava a competência judiciária), motivada pela mutação do Principado à
Monarquia Absoluta (ou Dominato para alguns), acabou por
sepultar este sistema processual.
Outrossim, as três fases que marcaram o nascimento,
erguimento e apogeu do Estado romano (Realeza, República
e Principado) são, além de períodos históricos propriamente
ditos, formas de Estado. Ao lado da essência opressora estatal e ao lado do modo-de-produção em que o Estado e a
sociedade estavam assentados e da classe social que exercia
o poder do Estado, figuravam os mecanismos que faziam se
manifestar na sociedade os fatores acima levantados, dando
forma ao Estado. Todas as instituições do poder estatal que
ora caracterizaram a Realeza, a República e o Principado
correspoderam às diversas formas que o Estado aristocrático
romano foi tendo ao longo do escravismo.
O Principado, na verdade, corresponde a uma transição
entre a República e o Dominato, sendo uma fase de reversão
de muitas conquistas sociais alcançadas pela plebe e escravos
durante a República. É no Principado que Roma atinge sua
expansão máxima e consolida sua hegemonia perante os
outros povos conquistados, através da pax romana. A plebe
e os escravos são totalmente derrotados, tendo a aristocracia afastado qualquer perigo ao sistema escravista. Nesta
etapa, também, são germinados os fatores que iriam ser
responsáveis pela decadência e fim da civilização romana
em 565 a.C.
Por fim, vale aqui reafirmar que o processo formulário,
bem como os diversos períodos históricos, não existiu ou
surgiu de maneira uniforme ou abrupta, mas coexistiu com
o sistema das ações da lei, ao longo do tempo, em períodos
de transição.
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Recife – ano 3 – n. 3 – p. 27-84 – 2008
85
JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA NO
BRASIL APÓS A CONSTITUIÇÃO DE 1988:
LINHAS GERAIS SOBRE O DEBATE
Flávia Danielle Santiago Lima1
RESUMO
O presente trabalho pretende explicar os fatores de
transferência das decisões políticas para as agências judiciais,
fenômeno conhecido sob o título de “judicialização da
política”, e suas peculiaridades no Brasil. Para alcançar tal
finalidade, serão analisadas as condições dos debates constituintes e suas conseqüências na formulação do texto promulgado em 1988, especialmente no que concerne às expectativas
quanto a sua capacidade de intervenção nas relações sociais.
Visualizar-se-ão suas decorrências no meio jurídico, com
breves notas acerca do chamado ativismo judicial.
ABSTRACT
The present paper intends to explain the factors of
transference of the political decisions to the Judicial Power,
phenomenon known as “Judicialization of the Politics”, and
1 Advogada da União, Mestra em Direito Público pela Universidade Federal de
Pernambuco, Professora da Pós-Graduação Sapere Aude (Faculdade Salesiana)
e Professora da Faculdade Maurício de Nassau.
Revista do Curso de Direito da Faculdade Maurício de Nassau –
Recife – ano 3 – n. 3 – p. 85-111 – 2008
86
Flávia Danielle Santiago Lima
its peculiarities in Brazil. To achieve this goal, the conditions of the constitutional discussions will be analyzed,
as well their consequences for the formulation of the text
promulgated in 1988, specially the topics about the expectations before its capacity to interfere at the social relations.
The consequences of these conditions will be studied in
the legal environment, with brief notes about the so-called
judicial activism.
SUMÁRIO
1. Notas introdutórias: abertura política e emancipação
social no Brasil; 2. Diversidade de grupos políticos e soluções
de compromisso na Carta de 1988; 3. A disputa por posições
políticas e o empenho pela efetividade do caráter emancipatório da Constituição; 4. Características gerais do conceito
de judicialização da política na obra de Tate e Vallinder; 5.
A juridificação do sistema político e das relações sociais no
Brasil; 6. Das críticas à noção de judicialização: necessidade
de avaliação das circunstâncias políticas e sociais para o
estudo do fenômeno; 7. Referências
1 – Notas introdutórias: abertura política e emancipação social no Brasil
O texto constitucional brasileiro de 1988 é caracterizado
por seus dispositivos de caráter aberto, que prevêem a participação democrática na determinação dos seus conteúdos.
A carta respalda-se teoricamente numa perspectiva social,
dirigente e também compromissária da fórmula constitucioRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
Recife – ano 3 – n. 3 – p. 85-111 – 2008
Judicialização da política no brasil após a constituição de 1988: linhas gerais sobre o debate
87
nalista, que tem entre seus objetivos a redução das desigualdades sociais (STRECK, 2002, p. 29).
No âmbito das instituições brasileiras, verifica-se a
reorganização entre os poderes estatais, pois a função jurisdicional, tradicionalmente apartada das discussões de cunho
político, converte-se no foco da mobilização de determinados
grupos, para que responda às demandas para efetivação das
conquistas democráticas. O Judiciário, desde então, constituiu-se num dos mais importantes canais institucionais para
obtenção de decisões que demandam negociação política
(FARIA, 1996, p. 37). A execução do projeto constitucional
demanda, por isso, a compatibilização de uma cidadania
reivindicatória com uma magistratura apta a cumprir sua
função (KRELL, 2002, p. 15).
Certamente que a possibilidade de que a atuação judicial
controle as decisões dos poderes majoritários traz uma série
de argumentos favoráveis e contrários à sua legitimação
democrática. Todavia, a questão impõe aos juristas e cientistas políticos o dever de atribuir contornos mais precisos ao
problema, com vistas à realidade política nacional, na análise
das suas origens, e, ainda, na definição das suas conseqüências no plano das relações sociais e políticas.
Ganhou notoriedade o conceito de judicialização da
política, nos meios acadêmicos – tanto no ambiente jurídico
quanto no âmbito das ciências sociais – e nos próprios
veículos de comunicação, utilizado no estudo do fenômeno
jurídico no momento da consolidação da Constituição de
1988. A expressão surgiu no trabalho de Neal Tate e Torbjörn Vallinder, “The global expansion of judicial power”,
de 1995, em que os autores traçam as características de um
fenômeno ocidental de recrudescimento da interação entre
judiciário e política.
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Flávia Danielle Santiago Lima
O presente artigo pretende fornecer hipóteses para a caracterização da judicialização da política em terras brasileiras,
ao tratar dos elementos que definem o conceito, nos moldes
originais, para explicar a transferência do poder político para
as agências judiciais, que não implica – cabe advertir – no
chamado ativismo judicial. Para a finalidade aqui intentada,
serão expostas as condições dos debates constituintes, e
suas conseqüências na formulação do texto promulgado,
especialmente no que concerne às expectativas diante da sua
capacidade de intervenção nas relações sociais. Visualizarse-ão suas decorrências no meio jurídico, a fundamentar o
movimento de direcionamento ao direito e suas instâncias,
com breves notas acerca da receptividade dos juristas a estas
idéias.
2 – Diversidade de grupos políticos e soluções de compromisso na Carta de 1988
A Assembléia Nacional Constituinte de 1987 foi instaurada durante o governo de José Sarney com o objetivo de
debater a nova Constituição Brasileira. A carta vindoura seria
o ápice da transição política iniciada no final da década de 70
e que permitiu, por quase toda a década de 80, a convivência
de um processo gradativo de redemocratização, simultânea
à vigência do Ato Institucional n.º 5, que respaldou juridicamente a ditadura militar.
Embora tenha sido um processo comandado pelos militares em resposta às pressões exercidas por parte das elites
nacionais, a transição política para a democracia no Brasil
decorreu da negociação entre diversos setores. Referidos
grupos introduziram “novas condições e tendências na
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Judicialização da política no brasil após a constituição de 1988: linhas gerais sobre o debate
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operação do sistema político, contrastantes com a tradição
de centralização política no Executivo federal, que vinha
acompanhando a adoção do modelo desenvolvimentista e do
corporativismo desde os anos 30”, como relembram Castro
e Carvalho (2002, p. 115).
Não houve uma ruptura institucional. Foram privilegiados os acordos que favoreceram um processo lento
e gradual, que encontrou resistência nas classes médias
urbanas, como exemplificado no movimento de DiretasJá. Optou-se por manter a governabilidade e as rotinas do
processo decisório, sendo nítido um processo de transição
negociada.
A redução dos custos institucionais de transição,
porém, teve a contrapartida da diminuição dos campos
das escolhas institucionais possíveis, especialmente as
relacionadas com as regras dos processos deliberativos
(MORAES FILHO, 2003, p. 191). O Poder Executivo
manteve-se firme como o principal agente condutor das relações políticas, em detrimento das inúmeras forças sociais
que participaram da transição à democracia (AVRITZER,
1995, p. 117).
Como toda negociação política, convivia-se, ao lado da
comunhão acerca de determinados princípios, com a carência
de “elementos de consenso sobre as políticas concretas e as
soluções a serem implementadas pelo novo governo, tampouco quanto à direção que se dará ao processo de mudança.”
(ABRANCHES, 1988, p. 8). Por isso, a redemocratização
institucional brasileira implicou em descontinuidades e desajustes entre as forças que a orientaram.
Foi num espírito de ampla coalizão de forças que os
trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte foram
iniciados. Pela diversidade dos grupos envolvidos, não
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se sabia quais os rumos que os trabalhos teriam, pois não
havia um grupo hegemônico que reunisse condições de
impor seu projeto ao país. Existia, todavia, a responsabilidade de criar as condições jurídicas para a estabilização
das instituições governamentais, de sorte que as demandas,
nos termos da democracia representativa, fossem processadas pelos meios institucionais, tanto legislativos quanto
judiciais. Abria-se aos constituintes o desafio de assegurar
instrumentos normativos para a promoção de mudanças
sócio-econômicas, aptas a garantir a legitimidade do sistema
político e jurídico.
A indecisão sobre os mais diversos temas perdurou
durante todo o processo constituinte. Havia conflitos entre
nacionalistas e os favoráveis à abertura ao capital estrangeiro;
ruralistas e defensores da reforma agrária; desenvolvimentistas e os partidários do Estado Mínimo; e parlamentaristas e
presidencialistas, dentre inúmeros outros grupos divergentes.
Só restava a esses setores aceitarem soluções de compromisso, com a positivação de princípios de conteúdo mais aberto,
ou a remissão à posterior regulamentação em lei ordinária
das questões constitucionais.
A divergência entre os interesses envolvidos originou
um texto constitucional volumoso, mas que adiava para
o futuro os debates sobre os temas mais controversos.
Constatava-se, como lembra Faria, um claro descompasso
entre as transformações políticas desejadas e as “determinantes sociais das transformações jurídicas possíveis”
(FARIA, 1989, p. 15-17). E, neste contexto, a efetivação
das promessas exprimidas na Carta Constitucional foi delegada para um momento posterior, na esperança de arranjos
políticos que permitissem sua concretização (VIANNA,
1999, p. 39- 41).
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Judicialização da política no brasil após a constituição de 1988: linhas gerais sobre o debate
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Igualmente, as expectativas em relação ao resultado dos
embates a serem travados no futuro eram diversas, a depender
do ponto de vista defendido. Como pontua Souza Junior,
“as forças emergentes viam no compromisso a probabilidade de complementação da obra redemocratizadora,
especialmente no seu viés reditributivo, pelas mãos de um
futuro parlamento mais inclinado a tais propostas; as forças
tradicionais apostavam em um mero simbolismo nas conquistas alardeadas, o que as tornava inofensivas para o status
quo.” (2004, p. 119)
Foi possível impor uma ampla regulamentação, conferindo maior estabilidade a determinadas decisões tomadas
(BONAVIDES, 1996, p. 74). Os grupos comprometidos
com a transformação econômica e política, se não tiveram
condições de impor suas diretrizes no texto, conseguiram
recusar as soluções convencionais do constitucionalismo
liberal. Foram determinados novos institutos relacionados
à dimensão democrática da Constituição e vinculou-se
o Estado a um maior envolvimento na regulação social,
mediante extensa pauta de direitos sociais (FARIA, 1989,
p. 17-8).
A Constituição de 1988 é uma obra em aberto às futuras
gerações, que assegura as condições procedimentais para a
discussão dos seus conteúdos (VIANNA, 1999, p. 41). Além
da abertura dos seus preceitos, houve a ampliação dos sujeitos políticos aptos a decidirem o futuro do Estado (SOUZA
JUNIOR, 2004, p. 122). Os mecanismos de participação popular foram alargados, assim como os meios de canalização
de expectativas populares às instâncias de poder, que devem
constituir-se em arena para a discussão das normas.
Exprime, portanto, a tentativa de resgate, após décadas de
regime autoritário, do compromisso da sociedade brasileira
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com o ideal democrático e redistributivo. Daí afirmar-se ainda
hoje, decorridos quase vinte anos da sua promulgação, que
o texto constitucional é uma “confissão de que as promessas
de realização da função social do Estado ainda não foram
cumpridas” (STRECK, 2002, p. 85).
3 – A disputa por posições políticas e o
empenho pela efetividade do caráter
emancipatório da Constituição
A discussão sobre os conteúdos constitucionais, portanto, encontra amparo no texto constitucional, que adotou
mecanismos da democracia representativa e participativa. A
previsão dos meios de canalização das expectativas da “comunidade de intérpretes”, como o amplo rol de legitimados a
propor ação direta de inconstitucionalidade e os mecanismos
de defesa popular dos direitos coletivos e difusos - ação civil
pública e ação popular - ou ainda, as amplas possibilidades
de reclamações aos poderes públicos, permitem dizer que a
norma assenta os meios institucionais para os embates sobre
as linhas concretas das suas diretrizes.
O constituinte, que não podia estabelecer um projeto
pré-determinado de vida em comum, optou por ratificar
suas condições de realização, ao adotar certo relativismo
em alguns dos seus preceitos. A norma superior, assim, é
vista como uma plataforma a garantir legitimidade para
que cada um dos setores sociais inicie a competição para
imprimir ao Estado uma orientação (ZAGREBELSY, 1999,
p. 13-14).
A positivação de princípios de conteúdo mais aberto e a
constante remissão à posterior regulamentação em lei ordináRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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Judicialização da política no brasil após a constituição de 1988: linhas gerais sobre o debate
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ria das questões constitucionais mais palpitantes delegaram a
efetivação das promessas exprimidas na carta constitucional
para um momento posterior, na expectativa de que os arranjos
políticos permitissem sua concretização. E, como já afirmado
neste trabalho, as esperanças em torno do resultado destes
arranjos dependiam do ponto de vista defendido. Como se
sabe, a aceitação do protagonismo das instituições jurídicas
depende da capacidade de visão dos seus operadores quanto
ao fenômeno (CAPPELLETTI, 1999, p. 113).
Para Feitosa, é um reflexo do constitucionalismo na
América Latina, em que “as normas, ao lado de possuírem
capacidade prescritiva e vinculante, são consideradas uma
expressão de desejos, ou seja, o norte, o horizonte para onde
se deseja conduzir o processo social” (2003, p, 253).
Trata-se, em escala global, de uma conseqüência natural
da ampliação do âmbito jurídico sobre as demais esferas
sociais. Consoante anota Galanter, um dos aspectos desta
crescente interferência do direito é justamente a disposição
dos atores políticos em se envolver estrategicamente no
“jogo do direito”, que oferece uma constante oportunidade
de discussão das questões morais, para o que denomina de
combate simbólico – mas respaldado em objetivos materiais – entre interesses conflitantes. Neste sentido, o protagonismo jurídico é apoiado por estas finalidades pontuais,
ancoradas em “advogados especializados e com iniciativa
para os empreender” e que encontram, ao final, a receptividade dos juízes para desempenhar tal papel (GALANTER,
1993, 126, 124).
E se, no âmbito das constituições pluralistas, cada setor
representa uma determinada interpretação do direito, alinhada com seus interesses, no caso brasileiro, vislumbra-se
dois caminhos interpretativos na experiência posterior à
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promulgação da Constituição. Há setores que discordam das
suas diretrizes e outros que procuram retirar do texto toda a
carga eficacial possível. Os primeiros recorrem às “teses e
interpretações despistadoras” e, apoiados na tradição privatista, passam a supervalorizar os textos infraconstitucionais.
Já os segundos partem em busca da efetividade e enfatizam
os valores e princípios neles consagrados.
Desde 1988, os dois grupos destoantes capitanearam
as interpretações sobre os conteúdos constitucionais.
Defende-se até a existência de um “movimento político
teórico” sem precedentes na história jurídica brasileira
- o “constitucionalismo brasileiro da efetividade”. Seu
objetivo é desenvolver mecanismos dogmáticos e processuais para efetivação do texto, com a aceitação do seu
caráter emancipatório (SOUZA NETO, 2003, p. 14-17).
Assume-se que a luta política pela eficácia constitucional é também uma busca jurídica. A doutrina jurídica foi
influenciada pelas discussões teóricas européias, que já
discutiam a primazia constitucional desde o período de
afirmação das suas cortes. Obviamente, o debate europeu sofreu adaptações frente à realidade nacional, com
o reconhecimento e combate ao formalismo jurídico que
ainda repercute na formação dos juristas. Por outro lado,
o histórico de desigualdade social e política da sociedade
brasileira converteu-se num fator de reforço do empenho
pela normatividade constitucional.
Como afirma Streck, o direito deve ser visto como um
“campo necessário de luta para implantação de promessas
modernas”, embora o autor reconheça que este esforço teórico pela legalidade não significa o abandono das lutas políticas nos Poderes Executivo e Legislativo e dos movimentos
sociais (2002, p. 80).
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O interessante no direcionamento ao campo constitucional das esperanças progressistas é que a solução dos
problemas brasileiros, até o inicio dos anos 90, era vista
sob “um discurso mais alternativo, em alguns casos até
anti-estatal”. Como bem observa Adeodato, “os acontecimentos posteriores os fizeram agarrar-se à Constituição,
que se tornou uma espécie de âncora das novas esperanças
bem-intencionadas”(2003, p. 88). No mesmo sentido, são
criticados os exageros na visão transformadora e até messiânica do texto e da jurisdição constitucional (FEITOSA,
2003, p. 246-247).
4 – Características gerais do conceito
de judicialização da política na obra
de Tate e Vallinder
Em vista deste reconhecimento doutrinário, das potencialidades da Constituição de 1988, os juízes foram
chamados para atender aos chamados para a consolidação
das conquistas democráticas. A instituição, desde então,
tornou-se o canal para a concretização do texto. As tensões
do sistema político foram deslocadas para os procedimentos
judiciais. Pode-se falar, assim, em judicialização da política,
conceito das ciências políticas e sociais, trazido ao Brasil na
análise do fenômeno jurídico no momento de consolidação
constitucional, como visto.
O termo judicialização da política decorre da obra coletiva organizada por Neal Tate e Torbjörn Vallinder, “The
global expansion of judicial power”, de 1995, em que os
autores, conjuntamente com outros pesquisadores, traçam
as características de um fenômeno ocidental de recrudesciRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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mento da interação entre o poder judiciário e as instituições
políticas, com referência ao estudo de casos.
Analisados os contextos jurídicos e políticos dos Estados
Unidos, de países da Europa Ocidental, da Austrália, Estados da zona de influência da extinta União Soviética e até
países da África e da América Latina, toma-se como ponto
de partida a noção de que o encaminhamento das demandas
políticas ao Poder Judiciário é uma tendência mundial, típica
das democracias contemporâneas.
Para os autores, a expansão da arena judicial nos âmbitos
tradicionalmente ocupados pela política é decorrência da
maior visibilidade dos Estados Unidos, a pátria da revisão
judicial, como modelo democrático, após a falência dos regimes políticos comunistas (TATE; VALLINDER, 1995, p.
2). Ainda que cientes da diversidade de causas a proporcionar
o fenômeno, a depender de cada contexto político e social,
Tate e Vallinder ponderam outros fatores, de ordem geral, que
também contribuíram para a popularidade da esfera judicial,
como a crise pós-guerras na Europa e as transformações no
âmbito da teoria jurídica.
A judicialização da política tem dois aspectos. O primeiro
decorre dos controles que os tribunais exercem da atividade
legislativa e executiva quando provocados, com respaldo constitucional, conforme já fundamentado nos itens anteriores. Já
o segundo refere-se à influência que o procedimento judicial
– caracterizado pela existência de duas partes opostas, pela
decisão de um terceiro imparcial e pelas garantias da ampla
defesa e do contraditório – passou a ter hoje na formulação
dos procedimentos da Administração e dos Parlamentos de
forma geral. As duas citadas perspectivas de judicialização
da política, ainda que diferenciadas, possuiriam as mesmas
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Judicialização da política no brasil após a constituição de 1988: linhas gerais sobre o debate
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raízes políticas, mas não necessariamente ocorrem de forma
conjunta num dado sistema (TATE, 1995, p. 18-23, 28).
Interessante notar que, desde o início do trabalho, avalizase a conveniência de pesquisar a expansão da arena judicial
com assento nas condições institucionais e comportamentais
que permitem sua existência. Além da disposição dos atores
institucionais, determinadas condições políticas incentivam o
processo de judicialização da política. Geralmente, esta se dá
em sistemas que prevêem a democracia política, que é uma
condição necessária, mas não suficiente para sua emergência.
A determinação constitucional da separação entre os poderes
também favorece o fenômeno, ao estabelecer a competição
e o controle recíproco entre as esferas de poder – apesar da
postura comum ser a não interferência judicial no espectro
de competências já definido.
Faz-se necessário o reconhecimento de um rol de direitos
fundamentais – com especial destaque para garantias de
cunho político – que admita a participação dos cidadãos
nos procedimentos institucionais. Referidos direitos não
precisam ser expressos numa constituição formal 2,3mas
devem, por seu conteúdo, facultar aos excluídos do processo
decisório o recurso às vias judiciais para efetivar os direitos
previstos (TATE, 1995, p. 29).
Outrossim, constata-se que as condições institucionais
devem ser acompanhadas pela disposição dos atores políticos
em utilizar os procedimentos judiciais para firmar seus interesses. Observa-se na obra dos autores uma tênue distinção entre
2 O exemplo de Israel sempre é citado, uma vez que o país, que dispõe de uma
Corte Constitucional, não conta com uma constituição nos moldes semelhantes
a outros sistemas políticos. Em 1992, foram promulgadas leis com o intuito
de garantir direitos frente ao sistema político, que não podem ser infringidas,
a não ser que beneficiem os valores do estado de Israel, por um fim valioso e
que não exceda o razoável (Basic Law – human dignity, Basic Law – freedom
of occupation e Basic Law – The Government). (HIRSCHL, 2004, p. 124)
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a efetiva crença na existência do direito alegado ou o mero
interesse político (CASTRO, 1997, p. 150). Talvez a dificuldade em traçar tal diferença decorra, como visto ao longo do
presente livro, na aproximação – ou até identificação, como
sustentam alguns – entre direito e política, típica do movimento
constitucionalista. A interpenetração entre o discurso legal e
o político, para Stone, é uma característica que gera consenso
entre os estudiosos do tema (STONE, 1995, p. 206).
Com atenção ao comportamento dos atores políticos,
note-se que Tate assevera a relevância da disposição dos
grupos de interesse e das oposições na utilização dos tribunais. Assim, a judicialização da política traz implícita a idéia
de que o encaminhamento de expectativas às instituições
judiciais é conseqüência primordial dos processos de desconsideração das minorias políticas nos procedimentos da
democracia participativa. Privilegia-se a questão política, e
não social, na caracterização do conceito.
Para que isso ocorra, os grupos políticos têm de entender
ser vantajosa a busca do Judiciário, seja para obter o efetivo
reconhecimento dos direitos que vislumbram defender, em
detrimento da vontade da maioria, seja pela possibilidade de
obstruir determinadas políticas governamentais.
Os tribunais tornam-se o meio de discussão das decisões
políticas quando impossível o debate entre oposição e governo
na arena pública ou nos momentos em que o desacordo entre
Executivo e Legislativo impede a condução das atividades
políticas. A judicialização seria decorrência da ineficiência
dos mecanismos da democracia tradicional.
A crise das instituições majoritárias, de outra ponta, reverbera na percepção que os cidadãos têm do sistema político,
e reforça a confiança nas potencialidades do Poder Judiciário.
É possível que, chamados a decidir sobre um determinado
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tema cuja solução mostre-se desvantajosa politicamente,
os titulares dos poderes majoritários deixem a questão em
aberto, na espera de uma decisão judicial que ponha termo
ao problema (TATE, 1995, p. 28-36).
Na outra ponta, os operadores jurídicos devem aceitar,
de alguma forma, estas incumbências. O novo papel da jurisdição depende da disposição dos juízes em aumentar seu
âmbito de atuação, partindo para a discussão das atividades
dos outros poderes. Quando, em alguns momentos, o tribunal se exime de prolatar decisão sobre determinado tema,
alegando questões procedimentais, há um interesse político
em manter o atual status. Portanto, para que se afirme, no
plano concreto, a judicialização deve-se contar com a atuação
proativa dos magistrados, no sentido de uma efetiva intervenção no sistema político, com a fixação de interpretação
diferenciada frente aos poderes majoritários.
5 –A juridificação do sistema político e
das relações sociais no Brasil
A publicação do texto “O Supremo Tribunal Federal e
a Judicialização da Política”, de Faro de Castro, de 1997,
foi o marco desta discussão em terras brasileiras. No mesmo período, Teixeira, em dissertação que analisa as Ações
Diretas de Inconstitucionalidade propostas perante o Supremo Tribunal Federal, de 1990 a 1996, também utilizou a
categoria, para apreciar os impactos destas ações em nosso
sistema político.
A discussão da judicialização da política – e posteriormente, das relações sociais – aqui, a despeito da ampla
divulgação do termo, é vista com reservas por alguns coRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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mentadores, tanto no que tange aos próprios pressupostos
da teorização inaugural quanto à adaptação da pesquisa no
exame da atuação dos atores institucionais.
Em linhas gerais, os estudiosos concordam que os
pressupostos adotados por Tate no seu trabalho podem
ser verificados aqui. A CF-88, ao estabelecer novos parâmetros organizativos para o Estado brasileiro, trouxe as
condições procedimentais inafastáveis para a ocorrência
do fenômeno. A garantia de uma esfera de competência
razoavelmente bem descrita a cada um dos poderes estatais
possibilita a verificação – senão no seu plano ideal – de uma
certa identidade com o princípio da separação de poderes,
condição relevante para a canalização de expectativas ao
Judiciário. E o extenso catálogo de direitos fundamentais
– e seus instrumentos de garantia – consignados no texto
constitucional finaliza os três requisitos normativos para a
judicialização.
O comportamento dos atores políticos brasileiros
também corresponde aos padrões gerais dos sistemas judicializados. Com efeito, não bastava a mera previsão dos
instrumentos, se estes não fossem incorporados à prática
dos diversos setores. No Brasil pós-1988, afere-se que os
grupos de interesse, juntamente com a oposição política,
têm esperanças no caráter contramajoritário da jurisdição
constitucional. Não é à toa que, com respaldo no universo
das ADINs propostas até 06.2003, 26,31% tiveram no pólo
ativo confederações sindicais ou entidades de classe – 740
das 2813 ações – e 20,97% foram intentadas pelos partidos
políticos – 590 do total. Dentre as ADINS propostas pelos
partidos, estas em sua maioria são de autoria das oposições,
sendo inegável – ao menos no que se refere à busca dos atores
políticos – um processo de judicialização.
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Os partidos minoritários, ao direcionar seus questionamentos ao Supremo Tribunal Federal (STF), buscam integração na comunidade permanente de intérpretes do texto
constitucional, em conformidade com os moldes previstos
em seu texto. Os embates entre os grupos políticos opositores
acerca da interpretação adequada dos preceitos constitucionais é conduzido às portas do Judiciário (VIANNA, 1999,
p. 91-95). O encaminhamento de demandas às instituições
judiciais seria favorecido, no Brasil, pela incapacidade das
instituições majoritárias em dar provimento às demandas
sociais.
Como pontua Sadek, o próprio modelo institucional
combina judicialização da política e politização da justiça. No
plano fático, a visibilidade dos tribunais pode ser creditada
aos ajustes econômicos, políticos e sociais vivenciados nos
últimos anos, que alteraram características primordiais da
sociedade brasileira. A adaptação de toda a infra-estrutura
estatal às exigências do mercado internacional certamente
seria discutida nas vias judiciais (SADEK, 2004, p. 8).
Após a definição dos aspectos gerais da judicialização no
Brasil, o termo ganhou notoriedade nos meios acadêmicos.
Sem prejuízo das demais contribuições, trabalho dos mais
influentes sobre o tema é a obra coletiva de Vianna et al, cuja
abrangência e profundidade analítica trouxeram novas perspectivas a serem investigadas pela literatura política nacional.
Os autores elegeram como ponto de partida as reações dos
operadores políticos – sociedade e de agentes institucionais
– após a promulgação da Constituição de 1988. Entendem
que alguns dos grupos alijados dos processos deliberativos
apropriaram-se discursivamente dos valores de igualdade
referenciados no texto fundamental, com o fito de provocar
os órgãos judiciais a assumir a agenda redistributiva em
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detrimento das escolhas do eleitorado, que admitem estar
submetido às falhas do sistema representativo.
As peculiaridades nacionais trazem ao processo de delegação de perspectivas políticas ao Judiciário um tratamento
positivo por parte dos autores. Afirma-se uma espécie de
“conexão entre a democracia representativa e a participativa”,
proporcionada por uma série de instrumentos normativos de
questionamento popular da gestão governamental –ações
civis públicas, por exemplo. O compartilhamento do objeto
constitucional é uma maneira de assegurar a participação dos
grupos minoritários na condução da agenda política.
Interessante notar que a heterogeneidade da sociedade
brasileira encontra ressonância nas demandas propostas
perante o STF, segundo os autores, que se referem aos mais
distintos objetivos, tanto restritos quanto universalistas. O
art. 103 da CF-88 abriga essa diversidade de interesses, ao
facultar a propositura de ação direta de inconstitucionalidade
(ADIN) a uma ampla gama de legitimados.
O desempenho de todos estes legitimados foi avaliado
na pesquisa de Vianna et al , a partir dos objetos das ações
propostas, temas e demais fatores pertinentes. O trabalho
dos atores institucionais, de modo geral, não causa grandes
surpresas. A novidade é a utilização da Corte Constitucional pelos Executivos estaduais e pela Procuradoria-Geral
da República, num típico mecanismo da judicialização,
para controlar as iniciativas dos legislativos estaduais.
O controle dos parlamentares pelos outros titulares de
poder – admitindo-se a inserção do Ministério Público
nesta perspectiva – é uma singularidade brasileira frente
ao consenso doutrinário acerca da difusão constitucionalista como mecanismo de proteção das minorias sociais
e políticas.
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Consigne-se que o papel dos Governadores de Estado
e do chefe do Ministério Público Federal afigura-se fundamental para o sucesso da jurisdição constitucional aqui.
O objetivo destes legitimados, comumente, é questionar a
legislação produzida na esfera estadual. Os governadores
pretendem, na maioria dos casos, “defender a governabilidade e racionalizar a Administração Pública”, das investidas
parlamentares, especialmente no momento de promulgação
das Constituições Estaduais – início dos anos 90.
Não se pode esquecer que a escolha dos temas pelos
legitimados ativos é influenciada pelos julgados já proferidos pela Corte. Os autores, e os operadores jurídicos que os
apóiam na busca dos tribunais, organizam-se em vista destas
decisões, para assegurar a superação dos requisitos formais
que poderiam impedir o seguimento das ações, e permitir
uma sentença de mérito.
Mas são as matérias submetidas ao STF que delimitam a
esfera de apreciação do tribunal. A predileção pela discussão
da Administração Pública, como interpretam Vianna et al,
“repercute negativamente sobre as possibilidades de o
STF se identificar mais claramente com a filosofia da Carta
de 88, cuja intenção era a de favorecer a efetivação dos seus
grandes princípios programáticos, e não a de criar uma instância para as controvérsias das diferentes corporações sobre as
questões de Direito Administrativo.” (1999, p. 150-151)
Vianna el al¸ na obra que avalia o problema da judicialização da política no Brasil, ainda traz a importante implicação do fenômeno de incorporação do direito ao cotidiano
da vida brasileira – a judicialização das relações sociais.
Trata-se, em breves palavras, da constatação de que o
direito exerce importante papel na regulação da sociabilidade
e das práticas sociais. Alcança as questões de natureza priRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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Flávia Danielle Santiago Lima
vada, estendendo-se ao terreno das relações pessoais e até
das relações econômicas e de consumo – objeto dos direitos
coletivos e difusos. A judicialização das relações sociais seria
mais um produto da “agenda igualitária e da sua interpelação
por grupos e indivíduos em suas demandas por direitos, por
regulação de comportamentos e reconhecimento de identidades” (VIANNA et al; 1999, p. 22).
Ao lado da utilização das ações de cunho coletivo, verifica-se no Brasil um movimento razoavelmente consolidado
de acesso à justiça, que permitiria a penetração dos procedimentos jurídicos na vida das camadas menos favorecidas,
incrementando a busca pelo reconhecimento dos direitos. Foi
a discussão do direito ao acesso à justiça que permitiu a consolidação dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, tentativas
de aproximação com as questões cotidianas dos brasileiros.
6 – Das críticas à noção de judicialização: necessidade de avaliação das circunstâncias políticas e sociais para o
estudo do fenômeno
A discussão da judicialização da política – e posteriormente das relações sociais – no Brasil, a despeito da ampla
divulgação do termo, é vista com reservas por alguns comentadores, tanto no que tange aos próprios pressupostos da
teorização de Tate quanto à adaptação do tema na análise da
atuação dos atores institucionais.
Inicialmente, as críticas são direcionadas à dimensão
progressista da obra do autor, que supõe o fenômeno como
uma espécie de evolução natural da afirmação das minorias
nos contextos democráticos. O relacionamento entre o JuRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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Judicialização da política no brasil após a constituição de 1988: linhas gerais sobre o debate
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diciário e os demais atores políticos não resta bem esclarecido
no conceito inicial. O autor estaria voltado a uma concepção
formal das atribuições e relações dos poderes (KOERNER;
MACIEL, 2002, p. 17-19). Para que ocorra a judicialização,
contudo, não bastaria assentar os mecanismos de recurso
ao direito, mas haver a possibilidade de censura aos órgãos
majoritários, com expressos resultados nas decisões por
eles tomadas. Segundo Oliveira, o “ciclo da judicialização”
completa-se quando o Judiciário marca uma posição política
e ideológica antagônica àquelas predominantes nas instituições majoritárias, opondo-se, assim, às políticas por ela
adotadas (OLIVEIRA, 2005, p. 564).
A verificação dos efeitos da interferência judicial fazse, por conseguinte, indispensável. Para Stone, estes podem
ser imediatos ou implicarem numa reorganização ulterior
das atividades políticas, para amoldá-las às imposições judiciais, de forma a evitar prejuízos futuros. O autor advoga
a necessidade de pesquisas aptas a “medir” os impactos das
sentenças judiciais no âmbito político. A maior dificuldade,
contudo, residiria na constatação empírica das conseqüências
indiretas dessas imposições na organização da estrutura e
funcionamento dos poderes públicos (1995, p. 207-8).
São inevitáveis, em dadas situações, tensões entre os
tribunais e demais órgãos da vida pública. Para minimizar
sua ingerência nos demais sistemas sociais e firmar-se como
órgão relevante para o quadro institucional, as cortes se
esmeram na formulação de mecanismos jurídicos de apaziguamento das tensões políticas, de modo a relativizar o
impacto das suas resoluções.
Alguns juristas propugnam por uma atuação conjunta do
“circuito” juízes-Corte-Parlamento para superar as questões de
inconstitucionalidade, para não deixá-las sob exclusiva responRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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Flávia Danielle Santiago Lima
sabilidade dos membros do tribunal constitucional (GROPPI,
1999, p. 8). Mais comum é que as cortes inclinem-se a exprimir
meras admoestações ao legislador, para que este regulamente
a situação analisada, sem qualquer efeito vinculante.
Ademais, a tentativa de imprimir contornos globais, homogeneizantes e perenes ao fenômeno, como decorrência da análise
de casos pontuais, olvida as especificidades de suas causas num
dado contexto. O entendimento desta problemática hoje depende
da avaliação da diversidade de causas que proporcionam a expansão do Judiciário nos temas reservados à política, partindo-se
de cada contexto social, a delimitar as conseqüências do tema
naquela situação (CARVALHO, 2004, p. 16-17).
A partir destas censuras à utilização do conceito inicial
de judicialização, Maciel e Koerner defendem que os estudos
sobre o comportamento dos atores políticos brasileiros sejam
comentados em vista das peculiaridades históricas e culturais
da nossa sociedade. Com respaldo nestes dados seria possível aferir o fenômeno sob o “enfoque das dimensões intra e
inter-institucionais assim como a relação entre o conteúdo
das decisões e as expectativas dos sujeitos”, obtendo-se
uma visão mais adequada das suas causas e conseqüências
(KOERNER; MACIEL, 2002, p. 10).
Em que pese o otimismo de parte da doutrina, também é
indispensável, na análise da judicialização da política, discutir
a receptividade da perspectiva substancialista nos quadros da
própria magistratura, avaliando se, paralelamente ao direcionamento de expectativas dos cidadãos e até dos agentes políticos
às vias judiciais, verifica-se a aceitação pelo Judiciário deste
papel, em suas instâncias ordinária e superior.
Desde já, pode-se adiantar que pesquisa que abordou,
dentre outros, o tema da judicialização da política entre os
magistrados, conclui que estes não atribuem importância à
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Judicialização da política no brasil após a constituição de 1988: linhas gerais sobre o debate
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discussão no que concerne ao seu trabalho, no plano geral.
Após a análise dos dados coletados, Pinheiro finaliza que “a
visão predominante entre os magistrados é de que a ‘judicialização da política’ é provavelmente mais relevante para
o sistema político do que para explicar os problemas com
que se defronta o Judiciário” (2001, p. 20).
Todavia, não se pode desconhecer que a própria discussão destes temas, no Brasil, já é de todo modo um sinal de que o processo
redemocratizador viabilizado pela Constituição de 1988 repercutiu
na agenda da sociedade brasileira. É, como afirma Lobato, um “sinal
da consolidação das nossas instituições democráticas” (LOBATO,
2001, p. 48). Porém, não se deve perder de vista o fato de que a
“novidade” constituída pela atribuição deste importante papel ao
direito não pode substituir a política e os seus instrumentos.
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Formação universitária,
exercício profissional
e especialização em direito
João Maurício Adeodato
Resumo
Este artigo tem por objetivo ressaltar as discordâncias
entre as entidades governamentais competentes no que concerne à política de educação jurídica no Brasil, levadas a
efeito pelos Ministérios de Educação e Cultura e de Ciência
e Tecnologia, procurando um distanciamento crítico adequado. Compara as políticas públicas e privadas, atentando
para o problema da qualificação docente diante da expansão
da área de direito.
Palavras-chave: Educação jurídica. Política governamental e ensino jurídico. OAB e formação profissional.
1 Professor Titular da Faculdade de Direito do Recife, Pesquisador 1-A do
CNPq, Ex-membro da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da
OAB (1995-2000 e 2006) e Coordenador do Curso de Direito das Faculdades
Maurício de Nassau
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João Maurício Adeodato
Abstract
This paper aims to put light to the very different policies
applied by government agencies in what concerns juridical
education in Brazil, specially the Ministries of Culture and
Education and Science and Technology. It compares this
public policy to the growth of private initiative, focusing the
problem of docent qualification in face of the extraordinary
expansion of law faculties in the last ten years.
Key words: Legal education. Govern policies and legal
teaching. Ordem dos Advogados do Brasil and professionalization.
Sumário: 1 – Introdução: O estado da arte no que diz
respeito a discordâncias institucionais. 2 – As argumentações
que fundamentam as discrepâncias. 3 – Os problemas específicos da área de direito. 4 – Aferição de qualidade docente
e pós-graduação. 5 – Dois mundos a conciliar: o público
e o privado diante da área de direito. 6 – Especialização e
profissionalização do docente.
1 – Introdução: O estado da arte no que
diz respeito a discordâncias institucionais.
Nos anos imediatamente posteriores à edição da Portaria
1886, em 1994, a Comissão de Ensino Jurídico do Conselho
Federal da Ordem dos Advogados do Brasil tinha seu trabalho
facilitado por uma grande identidade entre seus membros e
as Comissões competentes do Ministério da Educação. São
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Formação universitária, exercício profissional e especialização em direito
115
exemplos disso a primeira Comissão do Exame Nacional
de Cursos, antigo “Provão”, e as diversas Comissões da
Secretaria de Ensino Superior, cujas composições incluíam
membros da própria Comissão da OAB. Hoje, diversamente,
nota-se disparidade de perspectivas entre as duas instituições.
Um exemplo disso é a Comissão instituída pelo MEC em
outubro de 2006, sem qualquer comunicação à Ordem,
depois de a Comissão de Ensino Jurídico ter encaminhado
várias sugestões, fruto de trabalhos imediatamente anteriores,
realizados a convite do próprio MEC, os quais foram e
permanecem simplesmente ignorados.
Há outra falta de unidade em relação ao trabalho desenvolvido pelas diferentes instituições que se ocupam do ensino
jurídico no país, tais como o Conselho de Pesquisa e PósGraduação em Direito (CONPEDI), a Associação Brasileira
de Ensino do Direito (ABEDi) e o Colégio Brasileiro de
Faculdades de Direito. Dentre outros aspectos, lamentam a
falta de conexão entre si.
Dentro da própria OAB, por seu turno, também detecta-se
falta de homogeneidade entre a CEJ e a Comissão de Exame
de Ordem, sem contar aquela existente entre as mesmas duas
comissões em seus âmbitos seccionais. A CEJ do Conselho
Federal tem enfrentado dificuldades, por exemplo, porque
algumas seccionais não enviam os pareceres e nem sequer os
dados solicitados (estatísticas de Exame de Ordem, realização
e relatórios de visita às faculdades etc.), seja no que concerne
aos processos de autorização, seja de reconhecimento.
A principal discordância entre a CEJ e a Comissão de
Exame de Ordem, em seu âmbito federal, parece dizer respeito exatamente aos conteúdos que devem estar presentes
no currículo das faculdades de direito. Claro que ambas as
comissões têm suas próprias atribuições a cuidar, dentre as
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116
João Maurício Adeodato
quais ressalta, no que concerne à Comissão de Exame de
Ordem, o problema de sua unificação nacional, a qual, apesar
de óbvia em um país no qual a licença para advogar não se
restringe a âmbitos estaduais, enfrenta resistências tenazes.
No conteúdo, o Exame de Ordem permanece mnemônico,
isto é, testa mais a memória do que qualquer outra atividade
mental, e dogmático, no sentido de exigir conhecimentos
baseados em meros relatos descritivos do direito positivo.
Isso contrariamente às recomendações da própria Comissão
de Ensino Jurídico do Conselho Federal, que rejeita projetos
de cursos de direito de cunho preparatório para esses tipos de
exames e concursos e procura induzir ao ensino de disciplinas
que despertem mais a crítica e a criatividade,
Do outro lado, na esfera interna do Ministério da Educação, também percebem-se concepções díspares, quando
não antagônicas. Aqui cabe registrar aquela existente entre
as políticas de graduação, a cargo da Secretaria de Ensino
Superior, SESu, e de pós-graduação stricto sensu, sob o
comando da Fundação Coordenadoria de Aperfeiçoamento
do Pessoal de Nível Superior, a CAPES. Como é de conhecimento geral e debatido na grande mídia, há uma política
francamente expansionista da parte da primeira, inclusive ignorando solenemente pareceres fundamentados em contrário
da CEJ, conduzindo a uma expansão do ensino privado e à
autorização e credenciamento de mais de mil faculdades de
direito no momento no país. Do lado da CAPES, os pedidos
para autorização de cursos de mestrado, para não falar nos de
doutorado, encontram um índice de mais de noventa por cento
de rejeição. Isso levando em conta a íntima relação entre os
dois setores, propugnada pela Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, a qual exige um percentual de mestres
e doutores nos cursos de graduação que jamais encontrará
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Formação universitária, exercício profissional e especialização em direito
117
satisfação diante das políticas dos dois órgãos, ainda que
submetidos ao mesmo Ministério, diametralmente opostas.
Nada disso sói estranhar neste país. Dois exemplos farão
corar o leitor.
O primeiro deles é o caso do Mestrado em Direito da
Universidade Federal de Goiás. Não se quer aqui criticar os
critérios da Comissão da Área de Direito da CAPES, mas
simplesmente chamar atenção, como diz o subtítulo acima,
para as discordâncias institucionais. Esse Curso de Mestrado
foi descredenciado pela CAPES, sob diversos argumentos
técnicos, cuja propriedade, repita-se, não está aqui sob
julgamento. Ocorre que cabe ao Governo Federal, e daí ao
Ministério da Educação, prover condições para o bom funcionamento de instituições a seus cuidados. Um curso de
mestrado tradicional, em instituição pública federal, único
existente há 19 anos, em uma região reconhecidamente carente nesse ponto, há três anos tenta, debalde, voltar ao sistema
nacional de pós-graduação em direito. E um órgão do próprio
governo descredencia o que o governo não fez.
Outro exemplo vem da Universidade Federal de Pernambuco. Com um Programa de Pós-Graduação em Direito consolidado e tradicional, em uma região ainda hoje carente na
área, foi incentivada por sua Reitoria e pela própria CAPES,
ao credenciar seu Curso de Doutorado em 1996, a qualificar
os corpos docentes de faculdades no seu entorno por meio
dos mestrados e doutorados interinstitucionais, à época
denominados “cursos fora de sede”. Com a extraordinária
demanda reprimida, provocada pela expansão da graduação,
além dos óbvios dividendos políticos, a Reitoria da UFPE
houve por bem assinar convênios com diversas instituições,
a certa altura, sem cuidar de avaliar se haveria condições
institucionais para o devido atendimento dos pleitos.
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João Maurício Adeodato
De repente o Programa da Faculdade de Direito do
Recife se viu ameaçado de rebaixamento ou mesmo
descredenciamento, abandonado pela própria Reitoria que o
colocara nessa situação. Isso não chegou a ocorrer e o rasto
desse trabalho foi dos mais auspiciosos: Universidades como
a Federal de Alagoas, a Federal do Rio Grande do Norte,
a Federal do Piauí, a de Fortaleza e muitas outras tiveram
alavancados seus próprios programas de pós-graduação
devido ao trabalho da Faculdade de Direito do Recife. Hoje
é indicador de excelência ou “solidariedade”, na avaliação
da CAPES, o fato de uma instituição promover cursos fora
de sede. Ora, pois, tudo está bem quando acaba bem.
Uma última referência se faz útil, esta apenas para
menção, quanto à superposição de funções entre a
CAPES e o Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico, o CNPq, vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, ministério mais infenso
a pressões políticas, cujas competências e critérios para
concessão de bolsas e fomento à pesquisa apresentam
notória desconexão.
2 – As argumentações que fundamentam
as discrepâncias.
Da perspectiva da OAB, a preocupação central é com
o mau desempenho da profissão, que pode provocar e vem
de fato ensejando danos irreparáveis à sociedade. Causam
espécie considerações ainda hoje persistentes sobre sua
competência para o exercício das funções delegadas para
a Comissão de Ensino Jurídico, teclas reiteradas desde sua
criação, tema no qual cabe mera remissão dogmática às
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Formação universitária, exercício profissional e especialização em direito
119
normas jurídicas pertinentes. A competência da CEJ parece
indiscutível: embora não vinculante, ela é muito importante
como indutora de qualidade. No fundo, e aí vai uma opinião
pessoal, a qualidade dos cursos de direito depende de uma
ampliação de sua carga horária, meta que se pode observar na
política da CEJ desde sua criação. Um curso com seis anos
de duração, porém, tem contra si interesses economicamente
relevantes, em torno dos quais se unem alunos e empresários
do ensino.
Certamente a burocracia do MEC não vê com bons
olhos o que lhe parece um imiscuir-se indevido da OAB
em atribuições constitucionais e legais específicas.
As pressões para extinção do exame de ordem vêm ao
encontro de uma política de inserção formal de jovens
entre 18 e 24 anos no ensino superior, sob pressão dos
critérios da comunidade internacional, aliada ao pouco
investimento necessário à instituição de faculdades de
direito.
Do ponto de vista do MEC, coincidência entre governos
em outras áreas tão díspares, quanto os desses dois Presidentes da República que abarcarão 16 anos no comando do
país, é ao mercado que cabe decidir a inserção profissional
de enormes contingentes de formandos em direito, independentemente da necessidade, por parte da sociedade, de
seus serviços, ou de critérios qualitativos que lhes parecem
elitistas ou oriundos de reservas de mercado e temor de
concorrência.
O argumento é a baixa proporção de jovens entre 18 e 24
anos no terceiro grau no Brasil, atrás de países supostamente
mais atrasados da América Latina. A inserção desse público
no ensino superior vem privilegiar o curso de direito, encarregado de satisfazer as estatísticas oficiais que o governo vai
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João Maurício Adeodato
apresentar perante a comunidade internacional, alegadamente
devido a seu menor custo.
Por parte da OAB, o tema envolve complexas questões de
política interna. A utilização de critérios rígidos sobre o conhecimento das artes do direito no exame poderia configurar
uma medida de alto custo político, eventualmente provocando
perda de apoio no plano local e talvez até no nacional, o que,
a experiência tem mostrado, forneceria combustível para
eventuais oposições pregarem uma “abertura” de forte apelo
eleitoral. Poderia também ser disfuncional, para as Seccionais, que já enfrentam problemas de inadimplência, provocados pela proletarização da profissão, diminuir as receitas
provenientes do grande aumento no número de advogados
inscritos. Advogados influentes, mais administradores de
cursos preparatórios do que causídicos, constituem também
grupos de pressão que não podem ser ignorados.
3 – Os problemas específicos da área de
direito.
Parece fora de dúvida, a crer nos indicadores, que a área
de direito encontra-se em desvantagem diante de outros campos do conhecimento no Brasil, sejam as ciências “duras”,
sociais, teóricas ou aplicadas. Se procede a afirmação de
que as ciências biológicas e as matemáticas estariam acima
da ciência do direito, dentro de um “ranking” dos diversos
saberes, o ensino e a pesquisa em direito enfrentam o pior dos
mundos possíveis. As aulas-conferência não são um mal em
si, mas exigem professores altamente qualificados e, mesmo
assim, não podem ser exclusivas. O problema do direito com
os relatos descritivos do direito positivo que caracterizam
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Formação universitária, exercício profissional e especialização em direito
121
aulas, cursos e produção bibliográfica. A própria qualidade
do exame de ordem e dos concursos públicos vai na mesma
direção. Não se problematiza, não se ensina a pensar. Não
consideram o currículo do candidato, sua história pregressa...
Vários motivos levaram a esse estado de coisas.
Como a demanda por professores é muito grande e de
caráter recente na história do país, não houve tempo para
preparar esses profissionais. O resultado é um amadorismo
atroz, em geral fruto de um recrutamento de profissionais do
direito para os quais o ensino é diletante e a pesquisa que o
alimentaria é inteiramente desconhecida. O exame vestibular para o nível superior, na área de direito, praticamente
desapareceu devido ao crescimento da atividade privada e
ao número de vagas superior à demanda. Nas instituições
públicas, nas quais ainda persiste unicamente pelo caráter
gratuito das mesmas, o exame vestibular cai num pragmatismo dirigido pelos cursos secundários preparatórios, nos
quais as disciplinas importantes para o estudo do direito são
suplantadas por um tecnicismo dominado por disciplinas
inúteis. O corpo discente é assim selecionado ignorando as
necessidades específicas do aluno para o curso de direito:
são bons alunos, pelo menos no início, mas nem sempre
são os melhores.
Dentro da faculdade de direito, a situação torna-se ainda
mais complicada: professores descompromissados, ausentes
ou atrasados contumazes, excesso de turmas e de alunos, além
das querelas internas que atazanam a vida da universidade
pública. A penúria financeira das federais, aliada a uma
partidarização política do alunado e até do professorado,
nefasta diante do demagogismo eleitoral para escolha de
seus dirigentes, tudo isso leva a um crescente e progressivo
desinteresse dos alunos ao longo do curso. É impressionante
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Recife – ano 3 – n. 3 – p. 113-134 – 2008
122
João Maurício Adeodato
a decadência geral que a faculdade de direito pública lhes
causa.
A piorar a penúria, toda e qualquer iniciativa para
angariar recursos e melhorar os parcos ganhos dos professores é tachada de “privatização da universidade pública”,
atravancada com ações na justiça e temperada com mais
demagogia política. As fundações das universidades são
expostas como as grandes vilãs, os governos simplesmente
ignoram as necessidades de manutenção e aprimoramento
e o caos prossegue.
Mesmo que as ações do ministério público e de líderes
estudantis para impedir as especializações tenham sido vencidas em alguns juízos, e vencedora em outros, os professores
sem dedicação exclusiva, a grande maioria do corpo docente
qualificado na área de direito, simplesmente desistiram de
organizar e participar desses cursos; foram trabalhar na
iniciativa privada e nas parcerias público-privadas, como as
escolas ligadas aos tribunais e procuradorias, hoje muito à
frente das especializações públicas. Assim, os mesmos cursos
que tinham servido para complementar o financiamento da
faculdade pública, foram para o âmbito privado.
Do lado das faculdades privadas, a situação é inteiramente diferente. Embora isso não seja válido para todos os
cursos, certamente no curso de direito os alunos da universidade pública são os egressos das escolas privadas de nível
médio, pois sua muito melhor condição financeira lhes permitiu escapar da baixa qualidade da escola pública de nível
fundamental e médio. Isso causa uma das maiores injustiças
sociais no Brasil, fazendo com que o aluno com melhores
condições financeiras estude gratuitamente na faculdade de
direito pública e que o aluno mais sacrificado vá para a faculdade privada, sem condições de estudar e esfalfado por um
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Recife – ano 3 – n. 3 – p. 113-134 – 2008
Formação universitária, exercício profissional e especialização em direito
123
longo dia de trabalho. Claro que o ensino chamado público
não é gratuito a não ser para as famílias dos alunos; ele é
pago por esse povo pobre, que pelo menos nas faculdades
de direito não consegue entrar.
A pesquisa jurídica nas instituições privadas, porém,
ainda é aspiração distante, ressalvadas muito poucas exceções. Se criar um corpo docente além de horistas já se
afigura tarefa muito difícil, imagine-se viabilizar condições
de iniciação científica e dedicação ao estudo fora da sala. O
investimento alto e o insignificante retorno financeiro assusta
os empresários e a falta de pressão das entidades governamentais lhes dá o devido respaldo.
4 – Aferição de qualidade docente e pósgraduação.
Mas a situação do ensino e da pesquisa em direito no
Brasil também apresenta horizonte mais esperançosos, pois
a discussão sobre o profissional de direito que se quer no
Brasil não se esgota no terceiro grau. Deixando de lado a
educação fundamental, que também exige a experiência dos
especialistas, cada vez mais passa a pós-graduação a ocupar
lugar de destaque, seguindo, aliás, tendência mundial. A
demanda revela-se no grande número de novos cursos de especialização (lato sensu) surgidos no país, incluindo aqueles
promovidos no ministério público, na magistratura estadual,
na justiça federal. Quanto à pós-graduação em sentido estrito,
já estão credenciados mais de sessenta cursos de mestrado
em direito, enquanto que, dos vinte cursos de doutorado,
só três têm mais de quinze anos de atividade. O número de
mestrados, por seu turno, era muitas vezes menor há dez
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João Maurício Adeodato
anos, o que dá uma dimensão da demanda, mesmo levando
em conta a extrema rigidez da CAPES no credenciamento
de novos cursos. Essa expansão parece ser inexorável.
Mesmo as instituições privadas de ensino jurídico
conscientizam-se da importância, qualitativa e empresarial,
da pós-graduação, nesse mundo de serviços especializados.
Se o ensino do direito pode ser visto pelos empresários
como um negócio, aos poucos já surge a consciência de
que qualidade e lucro não se opõem; muito ao contrário,
complementam-se. Por outro lado, sistemas de apoio
ao estudante menos abastado, concedendo-lhe créditos
educativos e bolsas, vêm cooperando para um acesso mais
democrático a essas escolas.
Já é antiga a discussão sobre se deve prevalecer uma
perspectiva generalista ou especializante na educação escolar.
Se esse problema já é crucial nos três anos que antecedem a
opção profissional do aluno, ingresse ele ou não no ensino
superior, do ponto de vista do ensino jurídico a preparação
fornecida pelo nível médio e o correspondente vestibular
parecem definitivamente inadequados. Não se trata de concepções pedagógicas excessivamente interdisciplinares, pois
não é esse o caso, mas sim de uma exagerada concentração
em conhecimentos específicos que muito pouco têm a ver
com as profissões jurídicas, enquanto que, por limitações
até de tempo, são bem menos numerosas e, em existindo,
mais negligenciadas, disciplinas fundamentais para o estudo
do direito como lógica, ética, retórica, história, línguas estrangeiras, noções gerais de política e cidadania etc.
Causa espécie o fato de tantos jovens desejarem ingressar
nos cursos jurídicos e as matérias essenciais a esses estudos
serem inteiramente negligenciadas nos exames vestibulares
e no seu corolário, no ensino de segundo grau. Se a demanda
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Recife – ano 3 – n. 3 – p. 113-134 – 2008
Formação universitária, exercício profissional e especialização em direito
125
pelas profissões de físicos, engenheiros, químicos e biólogos, espelhando o mercado de trabalho, é tão reduzida, não
se compreende a insistência de conteúdos programáticos
sobre mitoses, meioses, moles e vetores. Uma reforma que
já começa a se delinear em algumas poucas escolas deve
ampliar matérias mais úteis aos futuros juristas. Para que a
mudança não cause o prejuízo ao contrário para os estudantes
com inclinações mais técnicas e tecnológicas, os currículos
seriam opcionais, como os antigos clássico e científico.
Claro que a grande necessidade é por escolas e cursos
profissionalizantes, toda essa discussão só tem sentido porque
a preocupação aqui é com a educação jurídica universitária,
o terceiro grau. Essas opções pedagógicas continuam a constituir problemas também no curso de graduação em direito,
o qual necessita fornecer ao aluno uma educação humanística mais geral, uma formação técnica nos fundamentos do
direito positivo e as habilitações específicas para a prática
profissional.
Esses muitos problemas discentes não podem ser separados de sua contraparte principal, qual seja, um corpo docente
que jamais se submeteu a qualquer modalidade de aferição
acadêmica, cujo currículo reduz-se a uma manipulação dos
colegas e das lideranças estudantis. Na melhor das hipóteses,
um concurso na juventude distante, bem sucedido para uma
carreira jurídica burocrática, pouco ajuda nas habilidades
acadêmicas de um professor. Claro que há advogados e juizes
com dimensão universitária, dependendo de sua historia de
vida, mas a grande maioria é de diletantes. Isso para não falar
dos professores que invectivam contra pesquisas, cursos e
titulações e que sequer concursos ou experiência profissional
naquelas áreas dogmáticas possuem, além das sinecuras
públicas que lhes foram porventura presenteadas.
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126
João Maurício Adeodato
Ajudando a superar todas as dificuldades enfrentadas pelos
juristas, porém, os programas de estudo e pesquisa em seus
diversos níveis têm crescido mais e mais em todo o país.
5 – Dois mundos a conciliar: o público e
o privado diante da área de direito.
Apesar da argumentação pretensamente objetiva e geral,
as ações opostas à pós-graduação parecem ter um fundamento
nitidamente pragmático e, por motivo deste caráter existencial de sobrevivência, esses críticos atuam denodadamente
em defesa de seus interesses, sobretudo no que concerne
aos ambientes no serviço público. Ultrapassados em todos
os sentidos, eles temem a pós-graduação, como um mundo
desconhecido, um mundo no qual não viveram e cuja importância não querem compreender.
Nas universidades públicas, por exemplo, não corresponde à verdade a afirmação de que os critérios para progressão na carreira de magistério dependem exclusivamente
da pós-graduação. Por um lado, é certo que, em universidades
de qualidade, o entendimento é que ter defendido uma tese de
doutorado simboliza simplesmente o fim da carreira de aluno;
não é preciso ir ao exterior para encontrar esta perspectiva,
pela qual o bom professor precisa apresentar muito, muito
mais do que isto. Hoje, até acabar com a tese no concurso
público para professor titular acabaram.
Por outro lado, contudo, em universidades menos
qualificadas, é perfeitamente possível progredir na carreira se
o docente, mesmo sem experiência profissional em pesquisa,
até sem ter realizado qualquer trabalho de maior fôlego, vem
produzindo trabalhos outros, como artigos, pareceres e incluRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
Recife – ano 3 – n. 3 – p. 113-134 – 2008
Formação universitária, exercício profissional e especialização em direito
127
sive decisões em revistas especializadas, tem publicado em
congressos, é convidado para ministrar cursos e palestras em
outras universidades, vem compondo bancas examinadoras
de concursos públicos jurídicos, ainda que não-acadêmicos,
vem cooperando junto a órgãos de pesquisa sérios, em suma,
“tem currículo”. O que não se pode é nivelar por baixo e
aceitar como título acadêmico uma banca de advocacia bem
ou mal sucedida ou a escolha política para participação em
tribunais superiores, conquistas sem dúvida admiráveis,
mas que nada têm a ver com ensino, pesquisa ou extensão
universitárias.
Se pode haver advogados, procuradores, ministros e
desembargadores com dimensão universitária, basta olhar
para ver os muitos a quem a ciência do direito é inteiramente
estranha, o que não é nenhum demérito, desde que se perceba a diferença. A atividade dogmática é um dos objetos
dela, mas é ignorante e falaz confundi-la com a atividade
científica. O profissional em formação não se deve deixar
enganar pela mágoa impotente que subjaz aos últimos cantos
de cisne que combatem os critérios de excelência acadêmica,
sobretudo a pós-graduação, estertores já extintos em todas
as universidades decentes do mundo e prestes a calarem-se
mesmo aqui na periferia.
Como estratégia bem sucedida de preparação para a pósgraduação e ao mesmo tempo de integração entre graduação
e pós-graduação aparece o Programa Integrado de Bolsas
de Iniciação Científica (PIBIC), fomentado pelo Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq) em cooperação com as universidades, sobretudo
as federais. A área de direito tem participado, ainda que
timidamente. Mesmo diante dos dados quantitativos
referentes à progressiva privatização do ensino superior,
sobretudo na área jurídica, a absoluta predominância das
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João Maurício Adeodato
universidades públicas em relação ao PIBIC demonstra
uma relação qualitativa inteiramente diferente, na qual
estas levam grande dianteira. Inobstante a queda no ensino
público superior, seu alunado ainda é, sem dúvida, o melhor.
Para atrair uma clientela mais capacitada, dentre outras
estratégias, as universidades privadas que perseguem a
qualidade têm procurado instituir seus próprios programas
de iniciação científica, com ou sem apoio do governo,
muitas com sucesso.
Nas faculdades de direito públicas, a exigência de dedicação exclusiva, regime de trabalho que impede o professor
de exercer outras atividades, incluindo ensino e pesquisa
em outra instituição, tem provocado êxodo de professores e
funcionários, diminuição de regime de trabalho e de dedicação por parte de profissionais qualificados, atraídos pelo
mercado, mas também menos interesse de pessoas melhor
preparadas em trabalhar nelas.
No âmbito privado, o aumento de faculdades de
direito tem muitas causas e facetas: o governo não tem
o ensino superior nem a pesquisa como prioridades, o
empresariado viu que alguns cursos podem ser lucrativos,
a profusão e a confusão legislativas facilitam as coisas,
além de conflitos de competência (os conselhos estaduais
autorizam faculdades de direito pertencentes a autarquias,
por exemplo, sem passar por qualquer manifestação da
OAB).
O ponto bom é o aumento do mercado e vagas de
trabalho para os professores de direito. Não vêm à toa
as disputas internas na magistratura ou no ministério
público, que chegaram até o Supremo Tribunal Federal,
a respeito de quantas aulas semanais seus membros podem assumir.
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Formação universitária, exercício profissional e especialização em direito
129
6 – Especialização e profissionalização
do docente.
A pós-graduação em direito no Brasil começa na
primeira metade do século passado, com a implantação dos
cursos de doutorado no Recife, Rio de Janeiro, São Paulo,
Belo Horizonte. Esses cursos tinham perfis relativamente
simples, pode-se dizer mais correspondentes aos mestrados
ou mesmo às especializações de hoje. A pós-graduação da
Faculdade de Direito do Recife, por exemplo, instituída em
1938, como curso de doutorado, apresentava apenas oito
disciplinas de trinta horas em sua grade curricular, sem
exigências de língua estrangeira ou produção científica
substancial. Tal qual em outros países como a Itália, por
exemplo, não havia nível de mestrado na pós-graduação
em direito. Tampouco eram padronizadas as estruturas
acadêmicas.
Na passagem para a década de 1970, com uma maior centralização e fiscalização por parte do governo, as exigências
doutorais passaram a ser maiores e mais unificadas, fazendo
com que se expandisse no país a criação de cursos jurídicos
de mestrado, em detrimento dos doutorados, muitos dos quais
foram, por assim dizer, rebaixados à condição de mestrados,
como no o caso do mestrado em direito na Faculdade de
Direito do Recife. A tradição anterior desses doutorados,
porém, parece ter feito com que os primeiros mestrados e os
demais que a eles se seguiram se encaminhassem para uma
excessiva complexidade: os poucos mestrados em direito
consolidaram-se como cursos longos, dispersos em seus
conteúdos, calcados em estudos que não se dirigiam às dissertações, fazendo com que a média de tempo de conclusão
se colocasse entre as mais altas e menos desejáveis das áreas
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Recife – ano 3 – n. 3 – p. 113-134 – 2008
130
João Maurício Adeodato
de conhecimento classificadas pela Fundação Capes e pelo
MEC.
Implantou-se assim, no Brasil, uma cultura de mestrados em direito com carga horária exagerada, consistindo de
disciplinas desconexas entre si e de corpos docentes isolados
em suas linhas de pesquisa e excessivamente burocráticos em
suas exigências curriculares. Não se deve esquecer, porém,
a importância desses primeiros mestrados na formação da
pesquisa jurídica e maturação científica da área. Este perfil
acadêmico começa a mudar com rapidez nos últimos anos
e aí a OAB, por meio de sua Comissão de Ensino Jurídico,
tem tido um papel importante na criação e apoio de exigências prévias para criação e manutenção de cursos jurídicos,
mesmo sendo um órgão de classe, na opinião de alguns desvinculado dessa sorte de problemas. Dentre elas, a exigência
de titulação que incentiva a demanda por pós-graduações
em direito.
A tendência parece ser a de simplificar e expandir os
mestrados, reservando às instituições mais sólidas a responsabilidade pelos cursos de doutoramento. O problema é que,
para consolidar um curso de mestrado, a instituição precisa
de doutores e não de mestres, problema que só pode ser solucionado enviando professores para cursar doutorados fora
do Brasil, opção cada vez mais difícil, diante da escassez
de bolsas para a área de direito, ou realizando doutorados
interinstitucionais ou itinerantes, dentro do país. Isso porque,
segundo cálculos da ABED; (Associação Brasileira de Ensino
do Direito), do outro lado, mais na base da pirâmide da educação jurídica no Brasil de hoje, está aparentemente consolidado um processo de aumento de possibilidades de acesso
à Universidade por parte da população, processo esse que já
há várias décadas teve início. Nesse sentido, continua sendo
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Recife – ano 3 – n. 3 – p. 113-134 – 2008
Formação universitária, exercício profissional e especialização em direito
131
crescente o número de cursos de graduação, aumentam-se
vagas em cursos já instituídos e mesmo novos centros universitários e universidades despontam a todo momento.
O nível de crescimento dos cursos de pós-graduação,
contudo, longe de acompanhar este ritmo, sequer tem feito
frente à demanda e às expectativas dos egressos do ensino
do terceiro grau, clientela em potencial para programas de
especialização, mestrado ou doutorado. Evidentemente, pelo
seu grau de aprofundamento e por suas exigências peculiares,
os cursos de pós-graduação não podem oferecer o mesmo
índice de crescimento em relação aos bacharelados. Mas essa
e outras discrepâncias parecem exageradas no que concerne
à área jurídica.
É sabido que investimento em educação é uma das vias
mais eficientes para possibilitar a mobilidade social. No
Brasil de hoje, entra na escola pública superior quem fez
escola básica privada e vice-versa. Excluindo-se estratégias
complicadas e de resultado duvidoso, na direção de “ações
afirmativas” que reservariam quinhão de vagas especificamente para os economicamente menos favorecidos ou
outros critérios, chega-se então a uma encruzilhada lógica
e, enquanto tal, muito simples: só há duas maneiras, as quais
não são excludentes, mas muito ao contrário conciliáveis,
para enfrentar o problema.
Uma delas é melhorar a qualidade do ensino público
fundamental, possibilitando aos mais pobres concorrência
leal pelas melhores faculdades de direito. A outra, melhorar
a qualidade da escola privada superior. Claro que sem deixar
cair o nível da escola superior pública, patrimônio ímpar
dentre países subdesenvolvidos como o nosso, asneira que o
governo já vem há muito praticando, infelizmente. A primeira
solução está realmente nas mãos do governo, é um problema
social. A segunda tem como estratégia básica incrementar a
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Recife – ano 3 – n. 3 – p. 113-134 – 2008
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João Maurício Adeodato
pós-graduação em direito nas instituições privadas, nas quais
investir na qualidade da infra-estrutura física (de informática,
biblioteca, instalações etc.) é relativamente simples; seu
grande problema é a qualificação docente.
Salta aos olhos a enorme desproporção quantitativa
entre graduação e pós-graduação em direito, a qual não
tem paralelo em qualquer das áreas do conhecimento em
que se tem estruturado o sistema educacional brasileiro.
Observe-se ainda, dentre as numerosas peculiaridades do
curso e do campo profissional jurídico, que a pós-graduação
não se dirige especialmente à formação de novos docentes,
notando-se uma demanda diversificada também da parte de
bacharéis sem especial interesse no magistério, mas com
pretensões de titulação e aprofundamento para inserção
e progresso em suas respectivas carreiras profissionais,
demanda a que a pós-graduação lato sensu não tem
conseguido responder em termos qualitativos. Que os
juristas precisam constantemente atualizar-se parece ser
um truísmo no mundo moderno. Os dados coletados e
analisados pela CEJ, nas pesquisas levadas a efeito pela
OAB, mostram que há uma grande demanda, também por
parte de agentes jurídicos desvinculados de atividades
acadêmicas, pelos cursos de pós-graduação, sejam cursos
curtos de atualização, sejam especializações, mestrados ou
doutorados. Todos os indicadores apontam na direção de
um mercado de trabalho cada vez mais dirigido à prestação
de serviços, ambiente do operador jurídico, mas sobretudo
a serviços especializados. Para setores mais complexos, em
suma, uma formação de quarto grau é primordial.
Tentem-se listar alguns entraves que encontra a
especialização e inserção profissional do advogado no momento:
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Recife – ano 3 – n. 3 – p. 113-134 – 2008
Formação universitária, exercício profissional e especialização em direito
133
a) As dificuldades encontradas pelas instituições de
ensino jurídico para qualificar seus docentes em nível de
Mestrado e Doutorado;
b) Os índices efetivos insuficientes de titulação dos atuais
professores, prejudicando a qualidade e a produtividade do
ensino e da pesquisa em direito, posto ser a titulação uma
condição prévia exigida pelas agências de fomento nacionais
e internacionais, daí as pouquíssimas bolsas;
c) A necessidade de desenvolver uma política de capacitação para todo o Sistema de Educação das IES, sobretudo
diante das exigências de titulação e produção científica colocadas aos cursos de graduação em direito pelo Ministério
da Educação;
d) A demanda no sentido de criar mecanismos de integração entre a Universidade e a comunidade profissional,
representada pelas diversas categorias de operadores jurídicos, visando aprimorar as práticas jurídicas forenses e não
forenses;
e) As dificuldades encontradas para publicação da
produção acadêmica e científica na área jurídica, pois há
poucos veículos com controle de qualidade e sua longevidade é ainda menor. O catálogo Qualis da CAPES, além de
problemas de informação sobre publicações estrangeiras,
pode ter uma maior divulgação e transparência de critérios,
tais como qualidade intrínseca dos trabalhos, curricula dos
autores, vinculação a uma instituição de prestígio, longevidade, dentre outros.
Implantam-se assim novas relações entre o ensino superior e a sociedade, procurando fazer do professor também
um pesquisador que atualiza o saber que transmite, pois
uma instituição de ensino superior deve ser caracterizada,
principalmente, pelo nível de seu corpo docente.
Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
Recife – ano 3 – n. 3 – p. 113-134 – 2008
134
João Maurício Adeodato
Face à função da universidade, no sentido de responder
aos desafios colocados pelas mudanças, o sistema de pósgraduação stricto sensu precisa ser colocado como maior estimulador ao progresso do conhecimento jurídico. No entanto,
em termos nacionais, apesar de algum apoio às instituições
promotoras desses cursos, mediante as agências de fomento,
a situação da pós-graduação, em especial a da área de direito,
não tem se desenvolvido da melhor forma, com muita política
e pouca sensibilidade para com as desigualdades regionais e
as parcerias institucionais.
Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
Recife – ano 3 – n. 3 – p. 113-134 – 2008
135
CONSIDERAÇÕES FILOSÓFICAS
SOBRE A PROVA
José Arlindo de Aguiar Filho
Resumo
O artigo procura desenvolver aspectos filosóficos da
concepção jurídica de prova no processo de conhecimento.
Em detalhe, retoma-se a concepção metafísica subentendida
de verdade como adequação e procura-se relacioná-la às
melhores definições e princípios do direito processual. No
desenvolvimento deste intercâmbio chegaremos à necessidade de superar a concepção correspondentista de verdade
no âmbito filosófico e jurídico, e por fim apontaremos uma
sugestão para ultrapassar este problema: uma noção mais
pragmática da verdade. Conceito já presente em casos como
a sociologia jurídica de Luhmann, exemplo que reposiciona
a problemática da prova no processo de conhecimento em
nova perspectiva e definição.
Palavras-chave: Verdade, Prova, Luhmann, Pragmatismo, Ceticismo.
1 Bacharel, Mestre e Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de
Pernambuco. Professor de Filosofia do Direito, Lógica e Argumentação Jurídica
na Faculdade Maurício de Nassau.
Revista do Curso de Direito da Faculdade Maurício de Nassau –
Recife – ano 3 – n. 3 – p. 135-149 – 2008
136
José Arlindo de Aguiar Filho
Abstract
This article seeks to develop a philosophical approach on
legal process evidence liability. The legal procedures design
always incorporates an adequatio metaphysics of truth. Here
we try to relate it to procedural law’s best definitions and
principles. In developing this connection we need to overcome
the traditional truth concept, both in philosophical and legal
understanding, and finally point out a suggestion to solve the
problem: a more pragmatic truth notion. Concept already present
in cases such as Luhmann’s law sociology, main example of
the possibility for a new perspective and definition for the
evidence problem concerning procedural law.
Key words: Truth. Proof. Luhmann. Pragmatism. Skepticism.
Sumário: Introdução: investigar o mistério do óbvio.
1. Entre a prova e a verdade. 2. A verdade e os limites da
comunicação. 2.1. Acerca da possibilidade de comunicar a
certeza sobre algo. 2.2. A prova e o ceticismo. 2.3. O
conhecimento sobre os próprios limites e o progresso da
ciência. 2.4. Superação pelo pragmatismo. 3. Conclusão: a
função da prova e sua verdade pragmática. (Referências).
1– Introdução: investigar o mistério do
óbvio
Um bom caminho para entender um gênio é confrontá-lo
com outro. Dostoievski apresenta através de seu personagem
Ivan nos “Irmãos Karamazov” a polêmica tese que “Se Deus
Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
Recife – ano3 – n. 3 – p. 135-149 – 2008
Considerações filosóficas sobre a prova
137
não existe, tudo é permitido”. Antes do russo, um francês
conhecido por seu ceticismo declarava que “Se Deus não
existisse, precisaríamos inventá-lo.”.
Estaria o autor de Crime e Castigo complementando
a afirmação de Voltaire? Ora se precisamos inventar Deus
deve haver algum problema muito grave na possibilidade
de sua inexistência. Precisamos inventar Deus, mesmo que
não exista, porque sem Ele tudo seria permitido. Estaríamos
condenados a nós mesmos como únicos juízes e guias da
nossa liberdade.
Mas que Deus inventado é este? Mais que uma moderna
e duvidosa teologia, o pensamento de Voltaire pode suscitar
questionamentos profundos sobre os limites do homem e,
por que não, do direito. O direito hoje compartilha, em sua
fundamentação cada vez mais atacada, a mesma necessidade
de invenção, a mesma natureza pragmática, com a idéia de
Deus do iluminismo.
Todos os dias, nós lidamos em nossos afazeres, com
práticas socialmente aceitas. Compartilhamos de instrumentos culturais tão enraizados que passam sorrateiramente
despercebidos como obviedades, manifestações indubitáveis
da natureza que logo revelam um abismo de perplexidade
ao mais breve questionamento. É comum a pergunta “Você
acredita em Deus?”, sem surpresas também a unanimidade
da resposta. Dada tão fácil percepção estranho é o fato de
não encontrarmos neste mar de unanimidades uma definição
razoável do que se deveria entender por Deus. Qualquer
tentativa de definição que ultrapasse duas linhas irá excluir
a unanimidade e entraremos num pântano de divergências
pouco visitado.
Não apenas Deus, mas uma série de conceitos absolutamente
fundamentais de nossa cultura permanece nesta situação. Cada um
Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
Recife – ano 3 – n. 3 – p. 135-149 – 2008
138
José Arlindo de Aguiar Filho
de nós possui uma compreensão do que é a felicidade, a verdade,
a justiça, a beleza e do que significa existir. Até o momento em
que somos perguntados sobre estas mesmas certezas! Neste momento somos lançados na perplexidade, o que era óbvio se torna
obscuro. A camada protetora que a cultura humana desenvolveu
para velar estes abismos sobre os quais vivemos nossas vidas é
muito mais fina do que gostaríamos de admitir.
Apesar disto não confundamos fragilidade com ineficiência. Nossos instrumentos para perceber o mundo podem estar
a poucos passos da obscuridade da qual nos retiraram, mas
são extremamente bem sucedidos em nos manter fora dela. A
unanimidade do óbvio é sua manifestação mais concreta.
De mesmo padrão, mutatis mutandis, é formado o direito.
Seus princípios e bases nos sustentam sobre obscuridades
com o mesmo frágil, mas eficiente, suporte do óbvio. Suporte
construído em nossa cultura através de séculos de experiência
jurídica pelos mais eminentes teóricos da justiça. Um exemplo pode esclarecer a dimensão do problema: a questão da
prova em direito processual.
Pergunto: Que significa provar alguma coisa? Mais além,
é possível provar alguma coisa?
2 – Entre a prova e a verdade
A grande maioria da população compreende o que significa provar alguma coisa. E mesmo que não expressem
com grande uniformidade este entendimento, muito intuitivo,
sua formulação deve se aproximar da definição usual de
prova. Quando intimamos alguém a provar algo temos em
mente que esta pessoa precisa demonstrar a verdade sobre
algo. Exemplos deste entendimento estão dispersos nos diRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
Recife – ano3 – n. 3 – p. 135-149 – 2008
Considerações filosóficas sobre a prova
139
cionários e manuais jurídicos. (THEODORO, 2007, p. 472;
MARQUES, 2003, p. 185), ainda seguindo nosso afamado
dicionário: “aquilo que atesta a veracidade ou autenticidade
de uma coisa.” (HOLANDA, 1997, p. 1408).
Esta concepção não foge ao esquema referido anteriormente. Também esta compreensão do homem médio, funcional, óbvia e aparentemente irretocável, esconde, e assim
diminui, a complexa operação que se realiza na atividade de
“provar alguma coisa”.
Primeira observação a ser feita: A prova tem um campo de
operação próprio, um objeto específico sobre o qual pode atuar.
Provar sempre se direciona para uma alegação. Não se provam
fatos, provam-se alegações. Existem alegações verdadeiras e
falsas, já os fatos são todos verdadeiros, não há fato falso. Tudo
que acontece, todo fato corresponde à verdade que ele mesmo
é. Não podemos provar coisas. Estas existem ou não, o
conhecimento desta existência é que pode ser verdadeiro ou
falso. E esta veracidade ou falsidade é que pode ser provada.
Afirmo que a bola é vermelha. Provo que a bola é de tal
cor apresentando a bola. Completo então, provado está que a
bola é vermelha. As sensações visuais que indicam ao homem
que a bola é vermelha são uma forma de comunicação. O
mundo se comunica, manifesta-se ao homem de inúmeras
formas. O resultado desta comunicação é o conhecimento.
Quando vejo a bola se forma uma certeza sobre sua cor, esta
certeza é o resultado que caracteriza a prova. Sem obter uma
certeza, a prova não prova. Esta certeza se refere à bola de
modo indireto. Eu, que vejo a bola, tenho certeza de que é
vermelha. O meu conhecimento sobre a bola, sobre a cor
da bola, foi provado através da observação. A comunicação
sobre alguma característica de um ente foi realizada e causou
um grau de certeza. Prova.
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José Arlindo de Aguiar Filho
O próprio ente sofreu alguma modificação? Não. O ente
antes e depois de ser provado continua o mesmo, indiferente
e idêntico a si mesmo. A atividade de provar não o afeta, pois
a prova não diz respeito a ele diretamente. Esta atividade afeta
o convencimento subjetivo das pessoas, não os objetos acerca
dos quais este mesmo convencimento se refere. Aquilo que
provo é a alegação, a afirmação, o conhecimento. Só alegação,
conhecimento ou informação pode ser verdadeiro ou falso.
Coisas, objetos, são alheios à certeza ou verdade. Coisas existem
e se manifestam, comunicam-se, com o homem. Daí para frente
nós trabalhamos, certeza e verdade pertencem ao homem não
ao mundo. Encontramos a primeira perplexidade sobre a qual
se sustentam as provas e fundamentações em geral.
O núcleo deste detalhe está na natureza de nossa compreensão da verdade. Verdadeiro e falso são qualidades do discurso
em nossa compreensão tradicional. Verdade é a correspondência
entre a idéia e a coisa, é a adequação. “adequatio intellectus et
rei”. A antiga idéia medieval traduzida em Tomás de Aquino
(1996, p.71) “Com efeito, o conceito de verdade consiste na
concordância entre a coisa e o conhecimento”, tem origem no
pensamento grego: “Negar aquilo que é e afirmar aquilo que
não é, é falso, enquanto afirmar o que é e negar o que não é, é a
verdade” (ARISTÓTELES, Metafísica, IV, 7, 1011 b 26 ss.).
3 – A verdade e os limites da comunicação
3.1. Acerca da possibilidade de comunicar a certeza
sobre algo
Conformidade entre o dito e o manifesto, entre o que se
pensa e o que é. Provar então significa comunicar para outrem
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Considerações filosóficas sobre a prova
141
a evidência da adequação entre sua alegação e o fato. Há
sérios questionamentos sobre a capacidade de esta definição
de verdade mostrar-se coerente com a vida humana e sua
transcendência fora de um modelo metafísico determinado
e cientificista, aparentemente superado como sistema
filosófico. A pós-modernidade parece ser a testemunha atônita
desta incapacidade com seus pensadores desconstrutivistas.
Nietzsche, Kierkegaard, Heidegger, Deleuze e Derrida são
seus mais gritantes exemplos. Mesmo sem entrar nesta
discussão que sem dúvida tornaria inviável a compreensão
de qualquer fundamentação, judicial ou não, sobre termos
de verdade do discurso, aceitemos a adequatio por ser o
parâmetro usual de nossa cultura.
Segundo ponto que deve ser explorado é corolário do
primeiro. Se toda prova opera sobre a comunicação de uma
evidência de alegações, a própria possibilidade de comunicação, este fenômeno complexo ao extremo, está sendo
afirmada e precisa ser detalhada. A transmissão de uma
pessoa para outra de um conhecimento é um fato que traz
dificuldades, e maiores ainda trará a transmissão de uma
certeza, de uma evidência.
A capacidade do homem em compreender o mundo já
implica em problemas, a comunicação que o mundo parece
ter com o sujeito em sua manifestação é característica da
transcendência do homem. Esta transcendência desafia a
dicotomia sujeito objeto numa afronta indireta ao princípio
da identidade, base de nossa lógica formal. Ainda mais,
num segundo nível, esta transcendência é comunicada ao
outro, o homem transmite para seu semelhante o mundo
que se manifesta para ele. Somos atingidos pelo mundo de
um modo tal que podemos fazer esta manifestação atingir
outras pessoas. Guardamos o mundo e sua manifestação em
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José Arlindo de Aguiar Filho
nós e podemos ser esta manifestação para outros, o mundo
pode literalmente falar através de nós. Esta fala secundária
do mundo através do homem para outro homem é a linguagem, é o discurso.
Nesta fala refletimos a manifestação dos fenômenos
objetivos. Digo a alguém que a bola é vermelha, na verdade
digo a bola se manifesta para mim como vermelha. O outro
compreende o que é bola segundo aquilo que o mundo manifesta para ele como bola e o mesmo para vermelho ou outros
conceitos. Provar aqui é uma tentativa de igualar manifestações singulares, absolutamente fora do âmbito de operação
das certezas. A noção subjetiva do mundo formada em sua
manifestação não se compartilha de modo uniforme, senão
seríamos todos indivíduos idênticos. Somos em nossa comunicação aquilo que o mundo comunica através de nós, e esta
mensagem, que é diversa, é misteriosamente compartilhada
em muitos aspectos. Este é o indizível milagre da linguagem,
também desafiador do referido princípio da identidade, mas
nunca idêntica em suas manifestações.
O que entendo por bola e por vermelho é diverso do
que meu interlocutor entende, e incrivelmente esta diferença
não interfere na possibilidade de comunicar. Acrescente-se:
parece que comunicar é exatamente a tarefa de igualar coisas
diferentes num conjunto de signos, aceitos, mas não uniformes que permitem ao homem ver através dos olhos uns dos
outros aquilo que o mundo manifesta para cada um. Como
provar que uma bola é vermelha se não há um vermelho
idêntico para todos, se não compartilhamos de uma idéia de
bola semelhante? Estarei comunicando minha certeza sobre
um fenômeno que é percebido pelos outros de modo diverso,
mas a certeza provém exatamente do modo como o fenômeno
se manifesta, daí não poder ser comunicado.
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Considerações filosóficas sobre a prova
143
3.2. A prova e o ceticismo
A Verdade e linguagem são pré-requisitos para
qualquer compreensão de uma prova. Percebemos pelo
brevemente exposto que nem um destes dois conceitos se
apresenta do modo como tradicionalmente são aplicados
no processo de produção de evidência judicial. Aqui mais
um milagre, mesmo sem estar de modo algum fundamentada a possibilidade de transmissão de evidências entre
duas pessoas, reside nesta premissa a base do processo
de conhecimento.
Sem a prova não há possibilidade de jurisdição. A prova
é elemento indispensável no ordenamento jurídico na forma
como este se desenvolveu em nossa sociedade. A prova,
no entanto, como toda instrumentalidade cultural, é uma
ficção insustentável frente ao questionamento metódico,
mas ao mesmo tempo eficiente e imprescindível meio de
realização de sua função: manter a ilusão da possibilidade
do fundamento.
Avizinha-se o secular fantasma do ceticismo. Górgias
de Leontino, cético que viveu na Sicília em finais do século
quinto a.C. cujo pensamento levou Platão a escrever um
diálogo inteiro a ele dedicado (PLATÃO, 1989, p. 20),
declarou que: (I) nada existe; (II) ainda que algo existisse
não se poderia conhecer; e, (III) ainda que se pudesse
conhecer algo, não se poderia comunicar esse algo a outrem. É impossível comunicar ao outro uma evidência da
verdade, se o fosse ainda assim seria impossível ter alguma
certeza quanto à verdade de seu próprio conhecimento,
e por fim, mesmo que pudéssemos conhecer a verdade e
comunicá-la, ela teria que existir, o que não é de modo
algum uma evidência.
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José Arlindo de Aguiar Filho
3.3. O conhecimento sobre os próprios limites e o
progresso da ciência
Aqui e acolá a realidade nos dá um lembrete de nossos
limites e aquilo que tínhamos como provado e seguro se
mostra obscuro e equivocado. Teorias científicas com séculos
de idade se revelaram mal fundamentadas, que dirá nossas
sentenças que, apesar dos alguns anos que levam para serem
expedidas, são rápidas olhadelas nos fatos comparadas com
a observação científica da natureza.
A história do conhecimento humano parece levar esta
lição de humildade em sua trajetória. No início ousavam os
antigos dizer quem era Deus e qual a sua vontade. Voltados
os olhos para a natureza queríamos conhecer as essências
ideais, a substância dos anjos, a verdade solipsista do eu,
conhecer a razão e conhecer a experiência.
Sabíamos cada vez mais quem é o homem e qual o
seu mundo. Incrivelmente, e paradoxalmente também,
cada vez sabíamos mais como é impossível conhecer
estes entes. Que melhor definição para os tempos atuais
que a de uma crise de fundamentos? O pensamento contemporâneo parece estar acordando, e sempre acordamos
despreparados, para a ficção que sustentamos durante
a modernidade de um fundamento racional para o conhecimento. Precisamos de duas guerras mundiais e uma
revolução socialista para nos acordar do sonho letárgico
do humanismo liberal em que viemos embalados desde a
França revolucionária.
Aponto alguns culpados em retirar o véu da realidade
em que nos encontramos hoje:
Medievais místicos proibiram o conhecimento racional
sobre o divino, supra-racional (ECKHART, 2006; SCHLAFRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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Considerações filosóficas sobre a prova
145
FER, 1996). Deus estava afastado de nosso alcance, e
compreendê-lo jamais configuraria uma ciência.
Kant vedou a metafísica, conhecimento do ser, à razão
pura (KANT, 1997). Estamos tolhidos de nossos mais caros
objetos de articulação com o mundo: Deus, a alma imortal
e o mundo são idéias transcendentais e não objetos de nossa
experiência. Ciência se tornou, pelas mãos dos neokantianos,
um modelo de conhecimento exato fundado em parâmetros
lógico-matemáticos.
Freud mostrou que o eu que conhecemos é uma ponta
consciente num iceberg de inconsciente. Nem mesmo nossa
própria mente, da qual estamos sempre próximos, pode ser
captada pela razão científica.
Heisenberg comparou a física a um jogo de dados, no escuro. Os próprios fenômenos naturais não mais se descrevem
como numa imagem espelhada da natureza. Sua descrição
da incapacidade do modelo de realidade utilizado pela física
antes da mecânica quântica:
“Nesses campos da física atômica boa parte da antiga
física intuitiva fica por certo perdida. Não apenas a aplicabilidade dos conceitos e leis da mencionada física, mas toda
representação da realidade que serviu de base às ciências
naturais exatas até a época atual da física atômica.” (HEISENBERG, 1990, p. 18)
Ou
“As leis da natureza formuladas em termos matemáticos
não mais determinam os próprios fenômenos, mas a possibilidade de ocorrência, a probabilidade de que algo ocorrerá.”
(HEISENBERG, 1990, p. 16)
Em recente estudo sobre a completude e consistência de
sistemas aritméticos, conforme narra Nagel (2003), Kurt Göedel
abalou as certezas em nosso último reduto, a matemática.
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José Arlindo de Aguiar Filho
Acompanhando o espírito da época, o direito, com o
positivismo jurídico, vem negar qualquer chance de fundamentação racional de um direito natural. Testemunha neste
sentido o esvaziamento dos conceitos de justiça e identificação do Estado com o Direito. (KELSEN, 2003, p. 140).
O estranho destas considerações é que quanto mais
limitado percebemos que é nosso saber maior o acúmulo e
desenvolvimento de instrumentos que pragmaticamente resolvem nossas necessidades e questões em relação às nossas
limitações. A falta de fundamento mais que um problema se
mostra uma fonte de inovação e superação para o homem.
Neste ciclo de crises e superações estará o progresso da ciência, ou talvez algo mais profundo: uma marcha constante da
própria humanidade. Mas em que direção? O eterno retorno
de que os filósofos tanto falam, quem sabe.
Kant nos deu a razão prática, os místicos o salto da fé,
Freud a psicanálise, Heisenberg a probabilidade, o positivismo a dogmática jurídica.
A funcionalidade dos princípios é sua única justificativa,
não são verdades descobertas. A base do direito está em
respostas pragmáticas para a percepção contemporânea da
impossibilidade de fundamentação do direito.
4 – Conclusão: a função da prova e sua
verdade pragmática
Esta é a riqueza e contribuição do jus positivismo e seus
sucedâneos, como o realismo jurídico, para nossa era de
crise nos fundamentos: a humildade do pragmatismo! Nada
se ganha em termos de legitimidade afirmando ser o direito
uma ciência. Hoje também as ciências não mais podem se
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Considerações filosóficas sobre a prova
147
dizer “naturais”, não mais temos reflexos exatos de um
mundo perfeitamente acessível às teorias da ciência. O direito não é ciência natural e por isso pode ser positivo, posto,
funcional. Percebamos o pragmatismo com que o realismo
jurídico de Alf Ross se coloca na tentativa de suprir a atestada
insuficiência de fundamentação do direito evidenciada pelo
positivismo:
“Podemos comparar essas normas positivistas a cristais
que se depositaram numa solução saturada que se conservam
graças a essa solução, mas que se destruiriam se fossem colocadas num líquido diferente; ou podemos compará-las a
plantas que morrem quando são arrancadas do solo nutriente
no qual cresceram. As normas jurídicas, tal como toda outra
manifestação objetiva da cultura são incompreensíveis se
as isolarmos do meio cultural que lhe deu origem. O direito
está unido à linguagem como veículo de transmissão de
significado, e o significado atribuído aos termos jurídicos
é condicionado de mil maneiras por tácitas pressuposições
sob forma de credos e preconceitos, aspirações, padrões e
valorações, que existem na tradição cultural que circunda
igualmente o legislador e o juiz.” (ROSS, 2003, p. 126)
Decisivo neste ponto do amadurecimento do direito a
contribuição de Luhmann: “Aquilo que a verdade realiza no
convívio social é a transmissão de reduzida complexidade.”
(LUHMANN, 1980 p. 25). Verdade é uma função de diminuição na complexidade de conceitos na sociedade. Este
é um razoável conceito para a verdade em nossos tempos de
pragmatismo. Ele pode ser aplicado ao instituto da prova e
teremos uma definição mais apropriada ao momento histórico: Provas são os instrumentos que simplificam a aceitação
de uma alegação. Nada mais.
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José Arlindo de Aguiar Filho
Como já estava em Ockham (GILSON, 1998, p. 798)
quanto mais humilde a versão, mais próxima ela está da
verdade. Sejamos homens, não deuses, este parece um bom
caminho para nossa humilde verdade. Parodiando os grandes,
se não existe o Direito, tudo é permitido? Tudo permitido.
Este é um bom (e pragmático) motivo para, caso não haja
Direito, inventar-mos um.
5 – Referências
AQUINO, São Tomás de. Questões discutidas sobre
a verdade. Coleção Pensadores, São Paulo: Nova Cultural,
1996.
ECKHART, Mestre. Sermões Alemães. Petrópolis:
Vozes, 2006.
GILSON, Etiene. A Filosofia na Idade Média. São
Paulo: Martins Fontes, 1998.
HEISENBERG, Werner. Problemas da Física Moderna. São Paulo: Perspectiva, 1990.
HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo Dicionário
Aurélio. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Lisboa:
Calouste Gulbekian, 1997.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2003.
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Considerações filosóficas sobre a prova
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LUHMANN, Niklas. A Legitimação pelo Procedimento. Brasília: editora Universidade de Brasília, 1980.
MARQUES, José Frederico. Manual de Direito Processual Civil. Campinas: Millennium, 2003.
NAGEL, Ernest. A Prova de Gödel. São Paulo: Perspectiva, 2003.
PLATÃO. Górgias. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1989.
ROSS, Alf. Direito e Justiça. Tradução de Edson Bini.
Bauru: Edipro, 2003.
SCHLAFFER, Johannes. O Peregrino Querubínico.
São Paulo: Loyola, 1996.
THEODORO Júnior, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 47.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
WAMBIER, Luis Rodrigues. Curso Avançado de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
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151
O LEGADO GREGO NAS MODERNAS
TEORIAS DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
Katsuzo Koike
Resumo
O principal objetivo deste trabalho é apresentar uma
análise sobre os possíveis vínculos entre o antigo pensamento
helênico e os conceitos centrais tratados pelas modernas
teorias da argumentação jurídica, no intuito de distinguir e
reconhecer alguns elementos teórico-filosóficos legados pela
tradição clássica grega ao estudo do direito. Nesse sentido,
são estudados os seguintes autores da moderna argumentação
jurídica: Luis Recaséns Siches, Theodor Viehweg, Chaim
Perelman e Robert Alexy.
Abstract
The aim of this study is to analyse the possible links
between the early Greek thought and the main concepts
1 Mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Membro
da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, Professor da Faculdade Integrada
do Recife e Professor da Faculdade Maurício de Nassau
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Katsuzo Koike
treated by the modern theories of legal argumentation, and
to consider and recognize the classical Greek tradition as a
theoretical legacy to the study of law. In this sense the text
deals with some of the modern authors of legal argumentation, like Luis Recasens Siches, Theodor Viehweg, Chaim
Perelman and Robert Alexy.
Sumário: Introdução. 1. A filosofia e o legado grego. 2.
Os gregos e a argumentação geral e jurídica. 3. Luis Recaséns
Siches. 4. Theodor Viehweg. 5. Chaim Perelman. 6. Robert
Alexy. 7. Conclusão.
Introdução
A linguagem argumentativa não pertence nem é exclusividade do direito, mas mantém laços estreitos com os grandes
temas sociais, éticos, políticos, filosóficos e jurídicos que
afetam de algum modo os problemas da existência humana.
E não por acaso, o estudo sobre a argumentação jurídica nos
remete ao antigo mundo grego, quando se demonstrou, pela
primeira vez no ocidente, o especial interesse pelo entendimento e aprimoramento das técnicas de argumentação, de
raciocínio e expressão; na verdade um interesse em dominar
cada vez mais o que os gregos chamavam logos – o verbo.
A teoria da argumentação jurídica é um campo de estudo
relativamente recente nos meios acadêmicos do mundo ocidental e mais precisamente do Brasil. Surgiu no Pós-Segunda
Guerra pela preocupação de alguns filósofos do direito acerca
de questões pragmático-linguísticas decorrentes da atividade
judicial, principalmente daquelas referentes às justificativas
levantadas pelos juristas nos contextos interpretativos e
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O legado grego nas modernas teorias da argumentação jurídica
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decisórios do direito. Essa abordagem teórica veio romper
com uma postura dominante de forte tendência formal-positivista do saber jurídico, firmando um caminho realmente
fecundo para a promoção de uma concepção humanamente
crítica, por parte dos operadores do direito, acerca de seu
saber e papel na sociedade.
Por tudo isso, o estudo atual do direito não pode prescindir nem deve ignorar os resultados teóricos das modernas
teorias da argumentação jurídica. Que se fale em racionalidade jurídica, dogmática de decisão, neoconstitucionalismo
ou no futuro do positivismo jurídico e da hermenêutica: tudo
parece convergir ao paradigma argumentativo, ao espaço
dialético dos discursos judiciais, bem como aos raciocínios
utilizados pelos juristas em sua atividade. Seguramente, a
filosofia do direito encontra-se atualmente diante de questões
que precisam de aprofundamento reflexivo, questões que se
não são totalmente “novas”, pelo menos têm servido para
aquecer o debate filosófico em nossos dias.
1 – A filosofia e o legado grego
Voltar o olhar sobre os velhos gregos significa voltar-se
sobre a própria existência do pensamento filosófico ocidental, sobre a matriz européia da tradição crítica do saber. E
seria injusto subestimar a força renovadora que emana das
antigas reflexões, que quando dispostas diante de questões
atuais, nem parecem tão antigas assim. Não errou Ortega y
Gasset (1989, p. 179) quando afirmou que “a filosofia inteira
é apenas uma imensa tradição”.
É reconhecido que o legado filosófico grego na Europa seguiu por caminhos tortuosos, da Antiguidade até
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Katsuzo Koike
hoje; acumulou dívidas importantes para com os latinos,
bizantinos, escolásticos, humanistas e mesmo com o mundo
árabe. O problema do legado grego no pensamento atual é
genético, e não uma mera coincidência, nem um vestígio
da produção intelectual de um povo cujo saber ainda desperta interesse. Até hoje a cultura grega continua fecunda
e capaz de enriquecer o debate filosófico (De la Torre,
1962, p. 10). Pelo menos é o que ela tem feito nos últimos
dois milênios.
Para o helenista da Universidade de Cambridge Moses Finley, morto em 1986, um “legado” não se restringe
à mera cópia, mas é uma forma de difusão de idéias e
ins-tituições, mesmo sem negar que isso também implique em seleção, rejeição, adaptação ou modificação
(Finley, 1998, p. 30). Já o historiador italiano Arnaldo
Momigliano (1984, p. 09) prefere não falar em legado
quando se trata de qualquer feito da cultura grega, pois
segundo ele, desde que os humanistas dos séculos XIV
e XV retomaram muitos dos modelos antigos, a questão
não deveria ser tomada no sentido de legado ou herança,
mas de “eleição consciente”. De modo que, as formas de
presença, utilização e alusão de antigos conceitos filosóficos dentro do pensamento jurídico atual demonstram
claramente um interesse não simplesmente “histórico”,
já que não se limitam à tentativa de reconstituir originariamente qualquer pensamento antigo. Em vez disso, existiu
e ainda existe um interesse teórico de buscar no passado
algumas respostas, alguns instrumentos conceituais válidos que ajudem a amenizar as inquietações e necessidades
das investigações modernas.
O conhecimento da antiga filosofia grega firmouse como condição necessária a uma sólida formação
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O legado grego nas modernas teorias da argumentação jurídica
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humanística, desde o período romano e durante toda a
Idade Média e Moderna. Entre os contemporâneos, foi
significativo o interesse sobre a época clássica por parte
de autores como Hegel, Nietzsche e Heidegger, para
não falar em outros nomes como Rodolfo Mondolfo e
Werner Jaeger, que difundiram a concepção de que os
gregos foram os verdadeiros mestres do saber ocidental
em filosofia, ciência, educação, ética ou política. Tampouco os grandes juristas do Novo e do Velho Mundo
puderam ignorar os antigos conceitos gregos, germens
dos mais importantes problemas filosóficos do ocidente,
por exemplo, o da idéia de justiça, que tem uma longa
história, ou o do conhecimento da verdade, questão central de todo saber crítico.
Para o âmbito deste trabalho, relacionamos em primeiro
lugar os três aspectos gerais do legado filosófico dos antigos gregos, aspectos que extrapolam o campo da filosofia
jurídica, já que configuram as bases teóricas de todo o pensamento ocidental:
A crença na certeza do pensamento racional: a razão
é uma faculdade segura e correta, capaz de alcançar a
verdade; nas ciências essa crença foi altamente produtiva,
mas ao monopolizar o saber, tornou-se prejudicial em
muitos aspectos. A certeza na razão surge nos racionalismos jurídicos modernos de maneira muito consistente e
influente. (Perelman, 1996, p. 361-558; Tamayo y
Salmorán, 2007, p. 21-88).
O reconhecimento da diferença entre ser e parecer,
entre essência e aparência: as idéias diferem das coisas,
e as ilusões estão longe do verdadeiro ser; essa visão se
conecta à antiga oposição entre Heráclito e Parmênides
diante do imutável /mutável, o que levou à discussão sobre
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Katsuzo Koike
a relação entre percepção sensível e realidade, nos sofistas,
em Platão e Aristóteles. Inaugurou-se na história ocidental
o debate sobre o conhecimento e a ontologia (Popper;
Petersen, 1998).
A identificação das relações entre teoria e prática: o
conhecimento empírico ou sensível difere, mas mantém
ligação estreita, com o conhecimento intelectual ou especulativo (Snell, 2001, p. 331; Mondolfo, 1968, p. 453).
A vida e o pensar práticos, para um grego do século IV
a.C., por exemplo, não se limitaria à técnica ou à produção,
mas envolveria o mundo político, ético e jurídico (Mas
Torres, 1995).
2 – Os gregos e a argumentação geral e
jurídica
O legado espiritual grego em termos de argumentação
surgiu entre os séculos VI e V a.C., dentro de um contexto
político de participação cidadã, de razoável liberdade de
expressão de idéias, de democratização político-jurídica,
de debates éticos e filosóficos, enfim, em um ambiente que
favoreceu a prática da retórica, da dialética, da filosofia e
da própria lógica enquanto expressões de racionalidade. De
modo que nossa identificação com os antigos gregos representa nada menos que o reconhecimento de uma herança
histórica, o interesse confesso pelo conteúdo tradicional do
humanismo clássico, como um thesaurus de saberes e de
modos de expressão que vem sendo preservado até hoje.
Após o predomínio das doutrinas positivistas sobre o
conhecimento jurídico no ocidente, cujo caráter formalista e
normativista de interpretação e aplicação do direito marcou
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O legado grego nas modernas teorias da argumentação jurídica
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toda uma geração de juristas, inclusive no Brasil, surge no
século XX, em muitos países, um tipo de reação intelectual,
em alguns autores fundada sobre ares humanistas, que tentou
abrir o direito ao debate ético e axiológico. Expressivo em
todo esse movimento foi o crescimento da valorização do
problema humano, em suas questões políticas e éticas, que
acabaria por tornar insatisfatórias as formalidades do positivismo jurídico (Faralli, 2006, p. 11). Foi dado destaque
cada vez maior a outras formas de racionalidade que não a
dos raciocínios puros, o que alimentou o crescimento das
abordagens pragmáticas sobre os velhos ares analíticos da
dogmática normativista do direito. Enrico Berti (1997, p.
229) fala em termos de uma retomada ou renascimento no
curso dos anos 60 e 70 da antiga filosofia prática, ou seja,
da práxis.
Podemos citar entre os autores que mais se destacaram
nesse contexto os professores Luis Recaséns Siches (19031977), Theodor Viehweg (1907-1988), Chaim Perelman
(1912-1984) e o alemão Robert Alexy, ainda em atividade.
Outros nomes de expressão poderiam ser lembrados e que
são ativos hoje em dia, como o inglês Stephen Toulmin, o
filandês Aulis Aarnio, o escocês Neil MacCormick e o professor espanhol da Universidade de Alicante Manuel Atienza.
Cada um deles contribuiu a seu modo para o desenvolvimento
dos estudos jurídicos, e que apesar de manterem algumas
diferenças teóricas entre si, fazem parte daquela tendência
filosófica do Pós-Segunda Guerra que tratou de realizar uma
revisão do paradigma positivista do direito, ao mesmo tempo
fundando uma abordagem na qual fosse repensado o papel
da razão e dos valores no discurso jurídico de interpretação
e aplicação do direito. É oportuno lembrar que esses autores
em geral, não trabalharam nem criaram suas teorias isolaRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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Katsuzo Koike
damente, já que a sua relativa contemporaneidade permitiu
e ainda permite um trabalho consciente e ao mesmo tempo
recíproco no campo da argumentação jurídica3.
Em termos da argumentação, vale à pena lembrar que
também surge da experiência clássica grega um conjunto de
práticas e preceitos que se tornaram orientações fundadoras do
pensamento discursivo-argumentativo do ocidente (Lloyd,
1993, p. 59 a 125 e 226 a 267 e 1992, p. 421-440):
Garantia de espaço livre e igualitário de comunicação
e expressão dentro de uma ordem política: a polis torna-se
o locus legítimo do debate, sendo criada uma autoridade
cidadã baseada no conhecimento e no papel cívico de cada
um, diferentemente do que ocorria dentro dos regimes arbitrários e divinamente instituídos do oriente; de certa forma,
delineou-se uma democratização da palavra.
O ser humano, em sua condição ético-política, tornase o centro do debate filosófico; os atores pioneiros dessa
tradição foram os sofistas, já no século V a.C. (Llanos,
1969). Estamos falando do início do humanismo europeu
3 Já em um artigo de 1963, Luis Recaséns Siches fez uma avaliação da obra
Tópica e Jurisprudência de Viehweg (Cf. Dianoia: Anuário de Filosofia,
México, 1963; pp.291-311) bem como tratou da Nova Retórica de Perelman
em outro artigo de 1974 na mesma revista (“La Nueva Retórica”, Dianoia,
1974; pp. 202-224) e escreveu a introdução da tradução espanhola do livro
De la Justice (pela UNAM, 1964), de Perelman, cujo original em francês é de
1945. Theodor Viehweg, por sua vez, no prefácio da 2ª edição de sua Tópica,
de 1963, reconhece a importância da idéia de razoável de Siches e da Nova
Retórica de Perelman; Chaim Perelman em sua Nova Retórica, de 1958,
utilizou elementos sobre o razoável e a tópica, mas apenas cita Viehweg na
bibliografia de seu livro. Robert Alexy em seu livro Teoria da Argumentação
Jurídica, cuja primeira edição é de 1978, faz uma revisão do pensamento de
Toulmin, Viehweg e Perelman. Na atualidade, Manuel Atienza, catedrático
de filosofia do Direito na Espanha, investigador das teorias da argumentação
no direito (Cf. Las Razones del Derecho, Madri, 1991), realizou importantes
entrevistas com estudiosos de argumentação jurídica para a revista espanhola
Doxa de filosofia, da qual é presidente: em 1993 entrevistou Toulmin; em
1998, Aarnio; em 1999, Peczenik; em 2001 Robert Alexy, entre outros.
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O legado grego nas modernas teorias da argumentação jurídica
159
que será o cerne de vários outros tipos de “humanismo” em
épocas posteriores, incluindo no direito.
Importância do logos para a formação do cidadão e para
sua relação com o poder, tanto em termos da vida prática
quanto pelo interesse em estudar e aperfeiçoar tudo o que
dissesse respeito à comunicação e linguagem; tal importância é visível pelo valor social dado pelos gregos à retórica,
gramática, ortoépia, dialética e ao discurso em geral. (Kerferd, 2003, p. 119-142).
Predomínio da palavra, do diálogo e não da violência ou
ameaça na resolução de controvérsias. A argumentação e a
retórica surgem nesse processo como expressões saudáveis
de pessoas livres e conscientes de seus direitos e deveres
cívicos; lembremo-nos de Platão quando este afirma que o
debate filosófico é “uma atividade própria de uma sociedade
de educação livre” (Leis, VII, 344b).
Uso da argumentação como um instrumento dialético
de raciocínio, mesmo antes da criação da lógica formal;
o cultivo da dialética como método para o tratamento de
questões conflituosas é o marco desse fenômeno; a prática
judicial grega, dentro do sistema políade, demonstra bem a
importância da dialética nesse contexto;
Necessidade de fornecer razões para a política ou o direito,
para a ética ou a justiça, da mesma forma que para os fenômenos naturais; esse foi outro aspecto da racionalidade grega, a
qual nunca se limitou ao rigor da lógica pura, mas que buscou
sempre fornecer sentido aos fenômenos, inclusive os humanos
(Boas, 1961, p. 56-128; Vaz, 2000, p. 36-134)
Portanto, a razão grega não se resumia ao plano formal,
mas esteve sempre implicada em um modo de vida, de participação política e eticamente fundamentada, onde a filosofia,
a retórica e a dialética foram os expoentes máximos de uma
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Katsuzo Koike
tradição de pensamento. O helenista Jean-Pierre Vernant
(2001, p. 41) chega a concluir que a racionalidade grega
foi de fato filha da cidade. Em um pequeno texto chamado
Les origines de la pensée grecque, de 1962, ele resumiu a
questão afirmando que “é no plano político que a razão na
Grécia primeiramente se exprimiu, constituiu-se e formouse” (Vernant, 1986, p. 94).
A partir deste ponto, será possível tirar algumas conclusões sobre o legado antigo nas atuais teorias da argumentação jurídica, pelo estudo de cada sistema teórico dos autores
em questão, pelo interesse de cada um diante do saber grego,
bem como pela análise de suas fontes intelectuais e dos principais conceitos por eles utilizados em sua obra cujo sentido
possa ser vinculado às raízes gregas de pensamento.
3 – Luis Recaséns Siches
O primeiro teórico em pauta é o professor espanhol Luis
Recaséns Siches, advogado, sociólogo e jusfilósofo, pouco
conhecido no Brasil, mas muito respeitado na literatura jurídica
latino-americana. É um autor de vasta obra, embora pouco
dela tenha sido traduzida ao português. Nasceu em 1903 na
Guatemala, de pais espanhóis, mas seguiu com dois anos de
idade para a Espanha, onde recebeu uma formação jurídica
primorosa. Nos anos 20 o jovem Siches já presenciara aulas
de mestres do quilate de José Ortega y Gasset em Madrid,
Giorgio del Vecchio em Roma, Rudolf Stammler em Berlin e
Hans Kelsen em Viena. Nos anos 30, esteve entre os intelectuais que foram exilados da Espanha durante a Guerra Civil.
Em 1937 foi recebido pelo governo mexicano para ensinar
filosofia na Universidad Nacional Autónoma de México
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O legado grego nas modernas teorias da argumentação jurídica
161
(UNAM), sendo esse acontecimento considerado um grande
marco para o pensamento jurídico latino-americano e motivo
de orgulho para os mexicanos. Siches morreu no México em
julho de 1977.
O esforço desse autor na filosofia do direito consistiu
em propor uma nova crítica da razão, como ele próprio
afirmou, que não vertesse nem por uma razão puramente
teorética, nem simplesmente por uma razão prática, mas
por uma razão dos problemas humanos, a qual chamouse “logos do razoável”, uma racionalidade acima de tudo
deliberativa ou argumentativa (Siches, 1976, p. 334). Ele
fala em um “fracasso da lógica tradicional” no âmbito da
interpretação do direito, pelos “estragos teóricos e práticos”
que ela produz, lembran-do que tais prejuízos são decorrentes da postura de não se considerar os valores sociais,
a realidade da vida histórica e nem a conexão entre meios
e fins dentro da atividade jurídica (Siches, 1956, p. 209).
O autor voltava-se contra o predomínio do pensamento
formalista no direito ocidental e a favor de um dado pragmatismo baseado na experiência vital e histórica (Siches,
1976, p. 349). Desse modo, a interpretação jurídica deveria
procurar raciocínios que não prescindissem do lado prático
das questões judiciais, pois o direito lida com a vida humana
real, com seus conflitos, valores e problemas. Para Siches,
o “logos del razonable”, como ele próprio chamou, é um
tipo de tratamento de certas questões que não significa um
abandono da lógica, mas que considera uma forma diferente de racionalidade, já que usa de critérios axiológicos
e sociais, em que o importante não é a aplicação lógica do
direito, nem o simples resultado (os fins) obtidos. O ponto
marcante dessa concepção de racionalidade tem suas raízes
no contexto da sociedade grega, quando os velhos mestres
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Katsuzo Koike
sofistas levaram a reflexão filosófica para os assuntos humanos, éticos e políticos (Siches 1971, p. 336).
Inspirado no humanismo de Ortega y Gasset, Siches
encontrou nos gregos alguns elementos fundamentais
para a construção de seu pensamento. Reconheceu neles
a responsabilidade pela introdução do gérmen da tradição
racionalista formal na filosofia, sobretudo pelas autorias
de Platão, Aristóteles e dos estóicos (idem, p.145), muito
embora, tenha encontrado na própria filosofia helena
alguns pontos cruciais para fomentar uma crítica ao formalismo lógico cristalizado pelos modernos. O logos é
um termo grego, e seu conceito é muito amplo. Mantém
em sua essência o uso correto de pensar e falar, calcular e
agir bem. Indica ordem e equilíbrio, clareza e bom juízo.
Em Aristóteles, Siches (1971, p. 343) considerou duas
vertentes da razão: a silogístico-matemática, e uma outra
não rigorosamente lógica chamada de dialética, voltada
ao mundo prático do humano, baseada na boa deliberação, nas opiniões aceitas e nos raciocínios prováveis; segundo ele próprio acrescenta, “é esta razão que inspira a
virtude da prudência” (Siches, 1976, p. 210). Assim, o
mestre espanhol vai atentar para a importância da noção
de phronesis em Aristóteles, um tema em suas palavras,
“actualísimo” (Siches, 1971b, p. 183-185), pois se trata
de um conceito que enfrenta as situações específicas da
vida prática, como o sentido ético que orienta as ações
humanas diante de problemas práticos, sociais, políticos,
jurídicos, o que superaria em muito o limitado plano da
lógica formal. Embora o termo “prudência” no sentido
antigo não contemple plenamente o logos do razoável no
âmbito jurisprudencial – no momento em que serve apenas
de diretriz aos enfoques dos problemas, sem os resolver
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O legado grego nas modernas teorias da argumentação jurídica
163
– pelo menos é um estímulo para prosseguir os futuros
estudos daquilo que o termo engendra (Siches,1976, p.
348).
No capítulo VI de sua Nueva Filosofia de la Interpretación del Derecho, de 1956, o autor procurou expandir
a concepção da antiga “equidade” presente nos escritos
aristotélicos, que segundo afirma, ainda conservam “un
perenne valor” para o direito nos finais do século XX. Na
sua visão, o mestre estagirita não explorara em sua Ética a
Nicômaco, todas as implicações que o termo sugeria, muito
embora oferecesse uma feliz contribuição à teoria da justiça,
que poderia auxiliar os juízes em seu trabalho decisório e
interpretativo das normas. Nas palavras de Siches (1956,
p. 04), Aristóteles havia oferecido “caminhos largos e
flexíveis, bem como fértil inspiração ao desenvolvimento
posterior do direito”.
Da vida e obra do professor Luis Recaséns Siches, resta
a imagem de um homem muito culto e perspicaz, ao mesmo
tempo humano, que soube colher os frutos intelectuais de
sua própria época sem ignorar os antigos clássicos, e cuja
intenção, entre outras, foi tentar abrir novos horizontes aos
operadores do direito, segundo uma postura mais razoável
que racional dentro da prática judicial.
O sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, que por
vezes o encontrara pessoalmente em alguns congressos, o
descreveu deste modo: “É assim um mestre com alguma
coisa dos antigos mestres gregos. Um hispano com um tanto
de helênico. Um intelectual complexo dentro de uma pessoa
singularmente simples” (Freyre, 1980, p. 356).
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Katsuzo Koike
4 – Theodor Viehweg
Outro autor, contemporâneo de Siches, também importante para a evolução da argumentação jurídica e do mesmo
modo herdeiro do pensamento clássico chama-se Theodor
Viehweg. Nascido em Leipzig em 1907, estudara direito nesta
cidade, mas chegando depois a Berlim, compareceu como
ouvinte nos seminários de filosofia de Nicolai Hartmann
(Ferraz Júnior, 1979:06). Tornou-se juiz de Direito até
a Segunda Guerra Mundial, quando enfrentou um período de
dificuldade por ter ficado desempregado. Depois da guerra,
volta a estudar e obtém a livre-docência na Universidade de
Munique, indo em seguida ensinar filosofia na Universidade
Gutenberg, em Mainz, pequena cidade do lado esquerdo do
Reno. Viehweg faleceu octogenário nessa mesma cidade, em
1988, como professor emérito. No entanto, deixou ali um
grupo de colaboradores e discípulos reunidos na chamada
Escola de Mainz, cujos estudos prosseguem até hoje dentro
da retórica e semiótica do direito, argumentação e comunicação jurídicas, ainda exercendo alguma influência nos estudos
da tópica (Sobota, 1991, p. 275-282).
Viehweg é um tipo raro de intelectual que deixou apenas
um único livro escrito, sendo o restante de sua obra pequenos
textos em periódicos de filosofia ou direito, sempre em torno
da Tópica, o tema central de sua vida. O seu livro foi intitulado Topik und Jurisprudenz, editado em 1953, aliás, trabalho
com o qual defendeu sua tese de livre docência em Munique,
no mesmo ano. Apesar de não ser uma obra extensa, o livro
terminou causando certo impacto na reflexão filosófica do
direito na Europa, a ponto de provocar o início do debate
sobre a argumentação jurídica em sentido específico. Foi traduzido ao português como “Tópica e Jurisprudência” apenas
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O legado grego nas modernas teorias da argumentação jurídica
165
em 1979, pelo professor de Direito Tércio Sampaio Ferraz
Júnior que fora aluno de Viehweg na Alemanha entre 1965
e 1968. O livro que hoje existe em quase todas as línguas
da Europa chamou a atenção dos filósofos do direito para
as questões jurídicas práticas, para o problema da dialética
e do modo tópico de raciocinar no direito. O autor pensou
em retomar para o direito a antiga função retórica da tópica,
sobretudo aquela apresentada nas obras de Aristóteles e
Cícero. Manuel Atienza (2002, p. 59) fala em uma “ressurreição do modo de pensar tópico ou retórico” que segundo
Viehweg (1979: 75-77), havia perdido espaço para as formas
dedutivas e sistemáticas do pensamento moderno.
“Tópicos” é o nome de uma obra de Aristóteles presente
no Órganon e trata basicamente dos argumentos dialéticos.
A raiz do termo vem do grego topos (pl. tópoi) que significa
“lugar”. Logo no início do texto, o mestre grego explica que
seu intuito foi encontrar um método de investigação que
partindo de opiniões geralmente aceitas (êndoxa), consiga
raciocinar “sobre qualquer problema que nos seja proposto”
(Top. I, 1, 100a, 18-20). A noção grega de topos, chamado
em latim locus, não foi bem esclarecida por Aristóteles em
suas obras. Em sua Arte Retórica (1403 a 17) ele explica que
“lugar” indica aquilo que inclui uma variedade de entimemas, ou seja, de raciocínios dialéticos. Isso quer dizer que
Aristóteles considerou topos um tipo de “lugar comum”, o
ponto de onde surgem os argumentos, lugar onde se guarda e
busca argumentos. Conhecer tais lugares tinha o efeito prático
de criar ou dispor de argumentos úteis segundo cada situação ou questão. A “tópica” é justamente a arte ou o estudo
de lidar com essa classe de argumentos diante da atividade
discursiva de raciocinar dialeticamente. Apesar de racional,
a tópica não é rigorosamente lógica, pois se integra ao mundo
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das opiniões discutíveis ou das coisas verossímeis. Por esse
motivo, pertence ao domínio da dialética, campo apropriado
para se tratar assuntos controversos, e não da analítica, que
lida com os raciocínios perfeitos. A tópica era uma arte já
praticada pelos sofistas, que tinham o hábito de guardar
consigo argumentos prontos sobre qualquer tema. O sofista
Górgias, por exemplo, declarava que para ele nunca faltava
argumento (Arist. Ret. III, 1418a 32). Mas foi Aristóteles
quem proclamou o termo “tópica” como uma disciplina de
estudo, um método de investigação de problemas, que depois Cícero vai utilizar em sua obra Tópica, no ano 44 a.C.,
como função retórica de descobrir e buscar premissas úteis
para uma argumentação, a ars inveniendi, muito valorizada
pelos juristas romanos e pela posteridade medieval. Afirma
Viehweg: “a tópica mostra como se acham as premissas, a
lógica recebe-as e as elabora” (Viehweg, 1953, p. 40).
O intuito da obra de Viehweg foi apresentar um método
para tratar as dificuldades práticas que o Direito enfrentava,
e fornecer uma alternativa às tendências normativistas do
positivismo que predominavam nos estudos jurídicos de seu
tempo. Por isso, reconsiderou a antiga noção aristotélica de
“aporia” para adaptá-la às novas exigências do Direito, tendo
a tópica como ponto de partida metodológico. “Aporia” em
grego significa literalmente “o que não tem saída” ou “impasse”; Aristóteles define dialeticamente aporia como uma
“igualdade de conclusões contraditórias” (Tóp. VI, 145b,
16-20). Assim, Viehweg vai opor o tipo de pensamento
aporético ou problemático ao modo sistemático de pensar,
aliás, como já havia feito Nicolai Hartmann inspirado no
próprio Aristóteles (García Amado, 1987, p. 164), e
que depois Recaséns Siches também vai propagar. Mas
Viehweg não se limitou, como fez o estagirita, à análise de
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pensamentos contraditórios e sem solução, mas introduziu
no direito um método de resolver questões problemáticas
com uso da razão prática e não por mero raciocínio lógico
formal. Ele notou que tanto na aporética filosófica quanto na
jurisprudência romana predominava o modo tópico de pensar,
e que isto também seria útil para tratar as questões jurídicas
(Viehweg, 1953, p. 56). Quer dizer que a tópica aproxima
o direito das questões discutíveis, as mais variadas, sobre o
homem, seus valores, fins, interesses, circunstâncias, coisa
que Aristóteles não havia cogitado nem em sua dialética,
nem em sua metafísica.
A visão sistemática de direito, com seus próprios conceitos e formalidades, visa chegar a conclusões segundo a
coerência e unidade racional do discurso, enquanto a tópica
pretende discutir as premissas para os casos concretos, segundo os valores previamente aceitos e os fins socialmente
válidos. No fundo, Viehweg pretendeu um direito aplicado
em um ambiente argumentativo e socialmente útil. Apenas
por isso, a tópica jurídica não se torna incompatível com a
Lei positiva, nem é geradora de insegurança jurídica, mas
torna a aplicação do direito dependente da dialética e dos
valores pregados pelo direito e pela comunidade. A tópica
de Viehweg não chega a ser considerada uma teoria da argumentação jurídica, muito embora tenha surgido como um
método fértil para o tratamento “retórico” do direito, como
disse Viehweg (1979: 102), que considerava o lado pragmático das situações a base para qualquer discurso. Apesar
das limitações da tópica quanto às suas categorias e critérios
de aplicação (infelizmente não desenvolvidos por Viehweg),
sem dúvida que ela constitui atualmente uma referência
conceitual importante para os teóricos da argumentação e
a própria filosofia do Direito. (Atienza, 2002, p. 70-72 e
García Amado, 1987, p. 161-2)
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Katsuzo Koike
É crucial destacar que Viehweg não restaurou simplesmente em seus antigos moldes o pensamento tópico de
Aristóteles ou Cícero, mas viu nisso um modelo de raciocínio
que, dadas as devidas circunstâncias e adaptações segundo
dados interesses, seria consideravelmente proveitoso para os
seus atuais projetos jurídicos de renovar metodologicamente
a prática judicial. Basta notar que seus esforços teóricos no
campo da retórica até hoje alimentam o debate filosófico do
direito.
Tércio Sampaio Ferraz, que se tornou discípulo e amigo
pessoal de Viehweg naAlemanha relata traços de sua personalidade:
“Lia muito, sobretudo os clássicos, e tinha grande sensibilidade para a inovação. Daí seu gosto pela retórica antiga,
que ajudou a dignificar, e a moderna semiótica, que soube
valorizar” (Roesler, 2004, p. IX).
5 – Chaim Perelman
Outro autor de grande expressão, talvez aquele de maior
influência para a formação teórica das modernas teorias da
argumentação chama-se Chaim Perelman. Polonês de origem
judaica, Perelman nasceu em 1912 em Varsóvia, mas aos 13
anos mudou-se com toda família para Bruxelas, Bélgica, onde
estudou, trabalhou e formou família. Tornou-se um dos mais
reputados mestres da Universitè Libre de Bruxelles (ULB),
onde concluiu um doutorado em direito em 1934 e outro
de filosofia em 1938, quando fez um estudo sobre a lógica
de Gottlob Frege. O jovem Perelman iniciou seus estudos
baseando-se na lógica e no positivismo, inclusive tendo retornado à Polônia em 1936 para um curso de lógica junto ao
professor Theodore Kotarbiski e de outros eminentes lógicos
poloneses (Frank, 2003, p. 254).
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Já no final da Segunda Guerra, após assistir aos horrores do conflito e participar da resistência belga contra
os nazistas, seu interesse voltou-se contra todo tipo de
absolutismo, inclusive o filosófico. Assim, o autor inicia
nas ciências humanas e sociais um movimento que priorizou a importância da moral, dos valores e da justiça diante
do formalismo lógico e da ditadura da verdade científica.
Integrou a chamada Escola de Bruxelas, em conjunto com
seus mestres, os filósofos belgas Eugène Dupréel e Marcel
Barzin, e a partir de então realizou pesquisas importantes
dentro da filosofia da linguagem em geral e da argumentação jurídica em particular. A obra perelmaniana é extensa,
entre livros e artigos, bem como é grande a bibliografia
sobre suas idéias. O autor propõe uma postura argumentativa contra o predomínio do formalismo cartesiano no
pensamento europeu, que segundo ele, marcara a filosofia
nos último três séculos ao impor uma concepção de verdade em moldes objetivos, universais e demonstrativos.
Ele chama a atenção para a razão prática, ao esboçar um
pragmatismo lingüístico que terá na retórica o elemento
metodológico essencial para sua teoria, e no humanismo
o ideal político de justiça social e individual (ManelI,
2004, p. 191ss.). Seus escritos foram traduzidos para uma
dezena de idiomas, entre os quais o inglês, chinês, japonês,
hebraico, polonês, português, espanhol, alemão, italiano,
entre outros (Frank, 2003, p. 253).
Sem dúvida, sua obra mais expressiva dentro da teoria da
argumentação data de 1958, quando editou, em conjunto com
a pesquisadora licenciada em ciências sociais e econômicas
da própria ULB, Lucie Olbrechts-Tyteca, o trabalho intitulado Traité de l´argumentation. La nouvelle rhétorique, em
português traduzido como “Tratado da Argumentação. A
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Katsuzo Koike
Nova Retórica”. Nele, os autores procuraram reabilitar a
retórica – há séculos marginalizada como um saber aparente
e inferior – tornando-a uma disciplina fundamental para a
compreensão dos processos de raciocínio e da comunicação,
em sentido prático, que relaciona ação, discurso, valores e
interesses humanos. Em termos lingüísticos, a obra busca
estudar os recursos discursivos que permitem aumentar ou
provocar a adesão dos espíritos. O Tratado não é uma obra
de direito, mas suas idéias tornaram-se um campo promissor
para o estudo da argumentação e lógica jurídicas.
Em muitos outros escritos, Perelman demonstra seu
interesse sobre a práxis jurídica, a idéia de justiça, a lógica
jurídica e o discurso do direito. E com o crescimento da
demanda por parte dos juristas pelos estudos lingüísticos
entre os anos 60 e 90, e até os nossos dias, suas obras já se
tornaram referência na filosofia do direito, bem como têm
contribuído solidamente para o surgimento de outras teorias
da argumentação.
Seu ponto de partida, reconhecidamente, seguiu pela
antiga discussão entre retórica, filosofia e dialética, sobretudo a partir das contribuições da sofística e dos diálogos
de Platão, bem como do relevante legado de Aristóteles
nessa área. Logo na introdução do Tratado, afirma-se que
constitui um estudo consagrado à argumentação, vinculado
a “uma velha tradição, a da retórica e da dialética gregas”,
em ruptura com a racionalidade propagada por Descartes
(Perelman; Olbrechts-Tyteca, 1996, p. 01).
Como os outros autores da argumentação, Perelman não
se limitou a visitar ou reconstituir o pensamento antigo.
Disso ele tem consciência quando afirma: “é evidente que
nosso tratado de argumentação ultrapassará, em certos
aspectos – e amplamente – os limites da retórica antiga”
(PERELMAN, 1996, p. 6). No entanto, são bastante claras
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as dívidas de Perelman para com o pensamento antigo, e o
próprio autor o admite em algumas passagens de sua obra.
É evidente que ele estudou os livros de Aristóteles e Platão,
interou-se da obra dos sofistas, dos discursos dos oradores
Isócrates e Demóstenes, e do biógrafo historiador Plutarco,
sem falar dos livros dos oradores Cícero e Quintiliano, entre
os latinos. Pelo menos são esses os autores antigos presentes
nas referên-cias bibliográficas de seu principal trabalho, o
Tratado da Argumentação. Vale à pena, porém, procurar
conhecer até que ponto Chaim Perelman se serviu das antigas concepções e experiências no campo lingüístico para a
estruturação de sua teoria.
Uma pista que sugere o interesse de Perelman no antigo
pensamento grego talvez esteja na influência que recebeu de
seu mestre Eugène Dupréel (1879-1967), um admirador do
pensamento grego, que sem dúvidas passou esse gosto para
seu discípulo, mesmo que este não tenha se tornado um especialista em grego ou filosofia clássica. O próprio Perelman se
admira que Dupréel, sendo um homem “que tanto conhecia a
filosofia grega, não tenha percebido a importância da retórica
para sua própria filosofia”. (MANELI, 2004, p. 48)
A principal figura clássica dentro da obra de Perelman
é com certeza Aristóteles, com os escritos dedicados à linguagem e ao raciocínio, mais precisamente os Tópicos, os
Analíticos e a Arte Retórica, de onde Perelman e OlbrechtsTyteca descobriram a pertinência da retórica e da dialética
para seu projeto:
Tendo, pois, empreendido essa análise da argumentação em certo número de obras em especial filosóficas,
e em certos discursos de nossos contemporâneos,
demo-nos conta, no decorrer do trabalho, de que os
procedimentos que encontrávamos eram, em grande
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parte, os da retórica de Aristóteles; de todo modo, as
preocupações deste se aproximavam estranhamente
das nossas. (PERELMAN, 1997, p. 64)
Ao reabilitar o universo retórico sem a tradicional condenação ético-epistêmica pregada por Platão sobre a arte
retórica, Perelman põe em evidência – em pleno século
XX – a importância do estudo da retórica aristotélica, ou
pelo menos, a necessidade de sua reavaliação. Para Maneli
(2004, p. 185), o “ressurgimento criativo” da retórica de
Aristóteles foi a “conquista mais importante e abrangente
de Perelman”.
Mas não é preciso expor toda a construção teórica do
mestre de Estagira em retórica para reconhecer a presença de
suas idéias no trabalho de Perelman, em seus aspectos essenciais. A distinção entre demonstração e argumentação, ponto
crucial dentro da Nova Retórica, não representa um problema
inédito dentro da filosofia. O autor havia prosseguido com
a distinção de Hartman, Viehweg e Siches entre o pensar
sistemático ou logicamente científico, e o problemático ou
dialético. Como dissemos, Aristóteles havia cogitado e explicado a separação entre raciocínios apodíticos – aqueles
acerca das coisas necessárias, próprias das provas científicas
– e os dialéticos ou retóricos, próprios do contingente, do
mundo prático da ética e da política. Os primeiros lidam com
a verdade das coisas, a segurança total no que é necessariamente certo, pois seria esse o seu objetivo; já os raciocínios
dialéticos – em Perelman chamados argumentativos, por sua
vez, existem no mundo das controvérsias, naquele universo
do que é apenas aceitável ou verossímil, ou seja, justamente
o terreno das contingências, daquilo que pode ou não ser.
Nesse contexto, a tópica exerceu um papel fundamental nas
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teorias de Perelman, tanto em sua lógica jurídica, quanto na
formulação do conceito de “acordo”, na argumentação.
A Nova Retórica não significou simplesmente um renascimento da retórica, que conforme disse Perelman (1997, p.
89), havia sido reduzida pelo racionalismo a mero estudo
das figuras de linguagem. Pelo contrário, seu plano foi audacioso ao configurar uma lógica dos juízos de valor, por
ele chamada “lógica do preferível” (PERELMAN, 1997,
p. 69), que trouxe resultados relevantes ao paradigma das
ciências humanas.
Foi com a discreta figura de Lucie Olbrechts-Tyteca
que Perelman partilhou, a partir de 1947, o interesse sobre a
antiga arte retórica como ponto de partida para o projeto da
Nova Retórica. A pesquisa os levou para além do pensamento
retórico antigo, ingressou no estudo de uma lógica social com
conseqüências éticas, epistêmicas, jurídicas e lingüísticas.
O importante é notar que as idéias centrais de Perelman e
Olbrechts-Tyteca podem ser encontradas no antigo debate
entre Sócrates e os sofistas, e nas questões filosófico-retóricas
levantadas por Aristóteles, muito embora haja diferenças fundamentais entre a antiga e esta “nova retórica”, conforme bem
apresentou a professora argentina Maria de los Angeles Manassero (2005, p. 13-69). O interesse dos autores não recaiu
sobre os aspectos oratórios da linguagem, nem na sedução
do discurso, nas paixões do auditório, ou nas performances
e elocuções do orador em público, pois “tais problemas são
da competência dos conservatórios e das escolas de arte
dramática; dispensamo-nos de seu exame” (Perelman;
Olbrechts-Tyteca, 1996, p. 06). Em vez disso, seu
objeto foram as formas argumentativas do raciocínio, ou
seja, os aspecto lógicos vinculados à filosofia e dialética
(Manassero, op.cit., 27). Nesse sentido, pode-se afirmar que
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a retórica de Perelman é mais próxima da dialética do que da
oratória, mais voltada à retórica do que à lógica formal. “A
retórica difere da lógica”, diz Perelman (1997, p. 70) “pelo
fato de se ocupar não com a verdade abstrata ou categórica,
ou hipotética, mas com a adesão”. Na avaliação de Robert
Alexy (2001, p. 130), Perelman não estava tentando substituir
a lógica formal, mas seu esforço foi de acrescentar a ela um
tipo de argumentação prática, muito difícil de racionalizar.
Perelman postou-se ao lado dos sofistas em referência a
muitas das antigas concepções retóricas e dialéticas, mesmo
que isso não tenha sido afirmado expressamente pelo autor
em seus textos. É claro, no entanto, o interesse demonstrado
por ele pela sofística. Não por acaso, seu mestre e amigo
Eugène Dupréel havia escrito em 1948 o livro Les Sophistes,
no qual apresentara uma introdução sobre o movimento sofista
e os fragmentos relativos a Protágoras, Górgias, Pródico e Hípias. Essa obra também é citada na bibliografia do Tratado.
Os sofistas merecem, apesar da condenação histórica
sobre sua imagem, um reconhecimento de que representaram
um movimento crucial para afirmação do pensamento crítico
e do estudo da linguagem. No século XIX, Eduard Zeller
(1955, p. 88), autoridade no antigo pensamento grego,
conside-rou a sofística o fruto da revolução mais radical em
termos de modo de vida e pensamento que o povo grego
jamais produziu. Alguns aspectos do movimento sofista são
claramente reconhecíveis na filosofia de Perelman: primeiro,
o sentido antidogmático da sofística (Pinto, 2002, p. 2526), mostrado por uma postura crítica diante dos absolutos,
da verdade, do bem ou da justiça. O pluralismo de Perelman
não se afasta, na prática, do relativismo pregado por alguns
sofistas. Quando Perelman identifica a retórica com o que
ele chama de “lógica do preferível”, de certa forma está
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compactuando com o relativismo pragmático dos velhos
sofistas, que consideravam o “melhor” mais importante
que o verdadeiro ou falso, conforme ensinava Protágoras
(Guthrie, 1995, p. 177), e que concediam mais atenção aos
argumentos verossímeis que aos verdadeiros, como pregaram
Górgias e Tísias (Platão, Fedro, 267). A verdade, tanto em
Perelman quanto nos sofistas, vai dividir o interesse reflexivo
da filosofia com outros valores, como o útil, o melhor, o
bom, o certo, o justo. O trabalho da persuasão retórica não
é descobrir a realidade, mas sim fazer o público aceitar e
acreditar naquilo que o discurso se propõe, justamente um
dos objetivos centrais do Tratado, muito embora Perelman
não tenha partilhado do ceticismo sofista, no caso de Górgias,
nem do radical subjetivismo, como em Protágoras, por
exemplo. Mas como não lembrar de Protágoras quando lemos
Perelman discutir sobre força e eficácia dos argumentos, em
relação ao assentimento e consenso do auditório sobre uma
tese? Para o autor belga, a eficácia de uma argumentação é
medida pelo grau de adesão provocado pelo discurso sobre
os auditórios (particular ou universal). Pelo que se sabe,
Protágoras foi um dos primeiros sofistas gregos a lidar com a
questão de argumentos fortes e fracos, e seu critério também
era a aceitação do público. Na interpretação de RomeyerDherbey (1999, p. 26) sobre esta idéia de Protágoras, um
discurso pessoal não partilhado é fraco; mas quando este
discurso “encontra a adesão de ou-tros discursos pessoais,
este discurso, reforçando-se com os outros, torna-se discurso
forte (krêiton logos), e constitui a verdade”.
O interesse da filosofia jurídica pela linguagem e pela
argumentação no século XX aproximou ou conduziu os
pensadores modernos a voltar os olhos sobre a sofística.
Basta reconhecer que foi Protágoras, no século V a.C., quem
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iniciou “o discurso sobre o discurso”, quando tornou o logos um objeto de estudo (SCHIAPPA, 2003, p. 197). Zeller
(SCHIAPPA, 2003, p. 81) chega a afirmar que Protágoras e
Pródico foram os fundadores de uma investigação científica
da linguagem.
A dialética vista como técnica de tratar opiniões contrárias sobre algum assunto também é um legado sofístico,
e hoje em dia constitui um elemento básico para as teorias
da argumentação. Desde a época antiga, a dialética foi uma
atividade de fundo prático identificada não apenas com a
filosofia, mas vinculada à vida política e jurídica da pólis.
Em outro terreno, o humanismo presente no pensamento
perelmaniano, embora diferente do antigo, também é essencialmente um legado da época clássica. Os sofistas, além
de seu antropocentrismo filosófico, propagaram um tipo de
humanismo preocupado com as necessidades práticas dos
cidadãos, em sua postura ética e pública. A palavra grega
“philantropia” indicava o amor à humanidade ou a boa vontade para com as pessoas, algo louvável tanto para indivíduos
quanto para o próprio Estado, conforme a concepção do
orador Isócrates ainda no século IV a.C. O filólogo alemão
Werner Jaeger, no livro Paidéia, de 1934, alimentou a idéia
de que os sofistas foram os fundadores do humanismo ocidental, de fato os divulgadores de um ideal educacional de
formação cidadã. O grande expoente desse antigo humanismo
foi Isócrates, sofista e orador contemporâneo e adversário
de Platão em Atenas. Não por acaso, Isócrates foi um dos
autores gregos prediletos de Perelman, estando citado no
Tratado em mais de vinte passagens. Segundo Maneli (2004.
p.07), o esforço de Perelman diante das causas da razão e
do humanismo levou-o a “superar certos axiomas e regras,
às vezes considerados sagrados”. Como não lembrar da
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época sofista, quando se fala em quebra de paradigmas ou
revolução cultural?
A contribuição dos estudos de Perelman para as modernas teorias da argumentação dificilmente poderia ser mensurada com exatidão. O seu principal trabalho, o Tratado da
Argumentação, nos seus quase cinquenta anos de existência,
tornou-se um marco sólido dentro dos estudos lingüísticos
da filosofia contemporânea.
Mieczyslaw Maneli, professor na Universidade de
Nova Iorque, aluno e amigo pessoal de Perelman, assim o
descreveu: “Ele era profundo, mas escrevia para pessoas
comuns. Nunca deixava transparecer sua erudição;
falava e escrevia para persuadir, convencer e estimular o
pensamento”(Maneli, 2004, p. 07). Perelman faleceu em
janeiro de 1984, em Bruxelas, mas deixou muitos seguidores
e admiradores em todos os continentes, que ainda prosseguem
na sua trilha de estudo e aprofundamento das análises teóricas
e filosóficas envolvendo a retórica, a racionalidade jurídica
e a argumentação.
6 – Robert Alexy
Outro renomado pensador contemporâneo na área da
argumentação jurídica é o alemão Robert Alexy, professor de
direito público e filosofia do direito da Universidade ChristianAlbrechts, de Kiel. A importância do autor verifica-se pelo
prestígio acadêmico que sua obra conquistou nos últimos
anos, e por ter ele transformado a argumentação jurídica em
um campo teórico-metodológico do direito, na realidade,
tornou-a uma disciplina filosófica no campo jurídico.
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Nascido em 1945 em Oldenburg, Robert Alexy estudou
direito na Faculdade de Direito da Universidade GeorgAugust em Gottingen. Um detalhe em sua formação é que
durante anos ele também esteve matriculado na Faculdade
de Filosofia da mesma universidade, o que resultou em
seu grande interesse pela filosofia jurídica (Atienza,
2001, p. 671). Sua tese de doutorado defendida na mesma
universidade em 1976 intitulou-se Theorie der Juristischen
Argumentation, e foi editada como livro dois anos depois,
com o mesmo título. É uma das mais influentes obras
atuais de argumentação no direito; em pouco tempo ganhou
tradução em várias línguas européias, o que sem dúvida
tornou Alexy bastante conhecido no campo da filosofia
do direito. Em português o livro foi chamado “Teoria da
Argumentação Jurídica”. Segundo Atienza (2002, p. 170),
a obra de Alexy, por sua importância e difusão, junto com o
livro de Neil MacCormick Legal reasoning and legal theory
(1978), estabelecem o que pode ser chamado de teoria
“padrão” (standard) da atual argumentação jurídica.
Alexy propõe uma sofisticada teoria da argumentação
jurídica que pretende retratar o discurso racional como teoria
da fundamentação jurídica para as decisões judiciais. Ele
oferece uma abordagem analítica acerca das fundamentações
no campo jurídico (Seoane, 2005, p. 106), utilizando em
sua tarefa as noções de razão prática, com base em Kant, e
de verdade consensual que teve em Jurgen Habermas sua
principal inspiração. Alexy não alimentará mais o prisma
“retórico” da argumentação, como o fez Perelman, já que
a retórica não seria um terreno propício ou confiável para
a racionalização do discurso prático. O próprio Perelman
não havia conseguido demarcar o papel da lógica diante da
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adesão dos auditórios, fator que é essencial para o estudo
dos argumentos (Alexy, 2002, p. 137-138).
O subtítulo de sua obra principal é “a teoria do discurso
racional como teoria da argumentação jurídica”. Na expressão “discurso racional”, tanto o termo “racional” quanto
“discurso” são provenientes da palavra grega “logos”. Alexy
procurou desenvolver uma teoria da argumentação jurídica
revisando e analisando teorias anteriores e contemporâneas,
como as de Perelman, Viehweg, Esser e Toulmin, partindo
da concepção pós-positivista de direito, como um discurso
voltado para problemas práticos. Muito se tem falado no
racionalismo alimentado por Alexy no estudo do discurso
jurídico, mas esse autor, embora longe de uma abordagem
histórica, termina por perpetuar uma tradição iniciada com
os gregos, a de legitimar a ciência jurídica e as próprias
decisões judiciais segundo os critérios da razão. Porém, em
seus escritos, não se oferece uma clara concepção de racionalidade, conforme bem lembra Seoane (2005, p.110). Sua
concepção geral de direito não é positivista, sobretudo pelo
papel que a moral e os princípios exercem em sua teoria,
mas é fortemente inspirada pela filosofia analítica. A lei,
por si só, nada resolve, como ele próprio defende: “a lei
escrita não cumpre a tarefa de prover uma justa resolução
dos problemas legais” (Alexy, 2001, p. 34). Tanto a lei,
quanto a dogmática e os precedentes apenas demonstram o
caráter institucional do direito. É preciso então um aspecto
argumentativo prático para ligar o direito a uma dimensão
crítica e ideal (Atienza, 2001, p. 672).
Alexy (2001, p.36) concebe a argumentação jurídica
como um caso especial da argumentação prática geral. Para
o autor, a racionalidade prática envolve questões de procedimentos orientados por regras e limites. No caso do direito, o
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discurso trata de problemas práticos que obedecem a limites
da ordem jurídica vigente (Alexy, 2001, p.213). Assim, ele
busca oferecer uma “teoria geral do discurso prático” e conclui que o direito trabalha com uma “pretensão de correção”,
o que significa estar baseado na idéia de que seu discurso
possa ser racionalmente fundamentado segundo o contexto
legal. Na sua concepção, a própria justiça é um critério de
correção, vinculado à possibilidade de fundamentação ou
justificação, mediante razões (Alexy, 2003, p. 163).
Não é exagero afirmar que assim ele também seguiria
a tendência tradicional da scientia grega, qual seja, a da
racionalização do discurso, na crença de que desse modo, as
resoluções práticas do direito se tornassem “legítimas, certas
ou seguras”; sobretudo, passíveis de serem fundamentadas.
O pensar bem e com clareza foi uma marca essencial do
desejo grego de buscar a verdade com inteligência, e do
mesmo modo, uma marca expressiva das idéias de Alexy.
Nas palavras de José Seoane (Alexy, 2003, p.186): “a
teoria da argumentação jurídica de Alexy recorre a um afã
de certeza e segurança”.
Alexy não precisou se aprofundar no pensamento grego
para estruturar a sua teoria. Muitos dos elementos teóricos
por ele tratados tocam em problemas fundamentais do pensamento antigo. Mas esse autor reconheceu, em entrevista a
Atienza, que Aristóteles fora um dos três grandes pensadores
da história da filosofia do Direito, junto com Hobbes e Kant;
segundo ele próprio: “Aristóteles, com sua análise teleológica
da ação humana, estabeleceu uma pedra fundamental pra toda
investigação do comportamento social e por isto, do direito”
(Atienza, 2001, p. 679). Ele admite que um dos momentos importantes do discurso prático judicial é o prudencial,
aquele baseado do pensamento ético aristotélico, quando a
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razão prática trabalha de modo a considerar dado contexto
para decidir o que é correto (Seoane, 2005, p. 186).
As regras do discurso racional, que Alexy tanto priorizou
em sua teoria, já eram bem conhecidas e exigidas na dialética
grega. Por exemplo, ele cita como regras básicas da racionalidade do discurso: igualdade entre os que discursam; possibilidade de todos tomarem parte do discurso; todos poderem
problematizar qualquer asserção, bem como expressar suas
opiniões; (Alexy, 2001, p. 294). Outras regras, que também
considera são a proibição de contradição no discurso, clareza
lingüística, seguir a verdade empírica, etc. (Alexy, 1993, p.
48). Tais regras, entre várias, são no mínimo compatíveis com
o ambiente político inaugurado nos tempos da democracia
grega, quando a política tornou-se uma atividade participativa, mais do que uma disciplina teórica a respeito do poder,
quando a retórica tornou-se um instrumento de poder, e o
livre debate surgia como uma possibilidade cidadã legítima
e uma prática civilizada e racional.
Em 1986, Alexy lança o livro Theorie der Grundrechte
(Teoria dos Direitos Fundamentais), através do qual buscou
trazer ao campo jurídico argumentativo as relações entre o
Estado democrático de direito e os direitos fundamentais.
Sua intenção inclinou-se sobre a institucionalização de
certos valores e princípios, ou seja, ele tentou estabelecer
que os direitos fundamentais devam ser positivados dentro
do ordenamento e exigíveis legalmente (Duarte, 2003,
p. 121-135). Essa obra é uma das mais representativas para
os estudos constitucionais da atualidade sobre os direitos
fundamentais. O discurso sobre a razão prática em Alexy é
inseparável do discurso ético e do problema da vida política
dos homens, questões cuja estrutura, nas devidas proporções,
não é nem um pouco recente. Mesmo que autores como
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Alexy, MacCormick e Aarnio não estivessem pensando nos
antigos quando construíram suas teorias argumentativas de
justificação racional do discurso e das decisões judiciais,
eles estavam seguindo outra tradição iniciada com os gregos:
refletir criticamente sobre problemas humanos de modo não
apartado das questões políticas e jurídicas, e acreditar que
os saberes válidos decorrem da avaliação racional. O fato de
os gregos terem se ocupado e escrito sobre lógica (incluindo
a informal), dialética e retórica já é suficiente para afirmar
a dependência e dívida das idéias dos modernos autores de
argumentação ao pensamento clássico.
7 – Conclusão
Um direito mais aberto aos interesses e valores comuns,
um direito mais humano em termos éticos, e não arbitrário,
tornou-se ultimamente uma exigência primordial das sociedades democráticas contemporâneas. A flexibilização das
leis em casos específicos, dentro de critérios interpretativos
racionalmente determinados também vem se tornando uma
tendência recorrente de muitas situações legais. Não por
acaso, os operadores da lei que hoje seguem essa linha reencontraram no modelo antigo de prudência e equidade um caminho
frutífero, socialmente vantajoso e teoricamente viável.
Agora se pode falar em método da razão prática e do
discurso racional, que considera nas decisões o caso concreto especificamente, que seja sensível ao humano, ao
contingente, ao bem comum, ao justo, em seus meios e
fins. Não sem motivos, o ponto crucial das atuais teorias da
argumentação é a capacidade de justificação racional das
decisões judiciais.
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Os gregos estudaram e inauguraram o tratamento racional e argumentativo para solucionar as questões conflituosas
que se apresentavam diante do pensamento e diante da vida
prática. Eles também mostraram preocupação com a arte de
bem deliberar com prudência e sabedoria, sem se desvincular do correto funcionamento do logos. Isócrates, o grande
mestre de oratória ateniense, elogiava seus concidadãos
dizendo que eles, mais dos que os outros, eram educados
na arte da prudência e do verbo. Isso exigiu um maior desenvolvimento das técnicas lingüísticas e chamou a atenção
para uma investigação mais apurada sobre o fenômeno da
linguagem humana em seu prisma prático e politicamente
concreto. Desse modo foi que surgiu a arte retórica como uma
prática discursiva, política e ao mesmo tempo judicial, pela
necessidade de legitimação social dos interesses, pela defesa
de idéias nas praças, nos tribunais públicos e assembléias
populares. A dialética, por seu turno, configura a arte discursiva de gerir as diferenças de opinião e de trabalhar teses
controversas com habilidade verbal. Tal arte é imprescindível em muitas ocasiões da vida jurídica atual. No entanto, a
maior contribuição dos gregos para o pensamento jurídico
ocidental não está nem nas leis que eles formularam, nem no
brilhantismo de seus oradores e filósofos, mas na divulgação
de sua experiência política e na abertura da discussão ética
sobre a justiça.
Tentou-se, neste trabalho, demonstrar que os pontos de
partida epistemológicos e pragmáticos das atuais teorias da
argumentação jurídica provêm da experiência grega em torno
da linguagem, bem como de suas reflexões sobre o tema. O
contexto histórico das póleis possibilitou a livre expressão, a
contestação de opiniões, o confronto de idéias sobre assuntos
diversos. Aqui, o movimento educacional sofista representa
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um aspecto crucial de afirmação da dialética e da retórica
no mundo ocidental, no momento em que ele questionou a
noção de discurso verdadeiro, considerou o peso do verossímil e da conquista persuasiva, refletiu sobre a moral, o
ensino das virtudes, a política, a justiça. A herança grega se
faz presente quando a dialética e a retórica ressurgem como
métodos renovadores para o pensamento crítico no direito.
O trabalho epistemológico de Aristóteles, com seu intuito
sistemático, também favoreceu essencialmente a estrutura
teórica que possibilitou o surgimento das argumentações
jurídicas.
A argumentação jurídica nada mais é que a postura
discursiva de conferir ou confirmar validade às decisões judiciais, mormente com o crivo da razão. Todo o esforço dos
divulgadores da abordagem argumentativa do direito diz respeito ao objetivo de imprimir racionalidade à realização dos
procedimentos decisórios legais. Os conceitos, os problemas
dialéticos e retóricos desenvolvidos pelos antigos gregos têm
exercido um papel fundamental na renovação metodológica
empreendida pelas atuais teorias da argumentação jurídica.
As lições dos antigos, em sua densidade reflexiva, continuam
a alimentar e fornecer respostas a muitas indagações, e o seu
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UMA CRÍTICA À IDEOLOGIA
JUSNATURALISTA NOS PRINCÍPIOS
CONSTITUCIONAIS DO DIREITO
DO TRABALHO
Lorena Freitas
RESUMO
O objetivo deste artigo se insere num campo interdisciplinar entre filosofia e direito do trabalho. O propósito é
identificar um possível referencial ideológico nos princípios
constitucionais do trabalho, quais sejam o valor do trabalho e
a dignidade da pessoa humana. O artigo explicita a preferência da dogmática do direito do trabalho pelo direito individual
ao direito coletivo. Nossa tese aqui desenvolvida é a de que
tais princípios refletem o paradigma jusnaturalista na problemática do direito do trabalho.
Palavras chave: Direito do trabalho. Princípios. Ideologia. Jusnaturalismo.
ABSTRACT
The aim of this article is inserted in a common field
between Philosophy and Labour Law. The purpose is to
1 Mestra e Doutoranda em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade
Federal de Pernambuco e Professora da Faculdade Maurício de Nassau
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identify a possible ideological reference on the constitutional
principles as value of work an dignity of human being. It
explains how the dogmatic theory of labour law prefers the
individual than collective perspective. Our thesis developed
here is that principles reflect the natural law paradigm on
labour law debates.
Keywords: Labour Law. Principle. Ideology. Natural law.
Sumário: 1. Considerações iniciais; 2. Acerca dos princípios do valor do trabalho e da dignidade da pessoa humana;
3. O realismo jurídico como fundamento teórico para uma
crítica da ideologia no direito; 4. A preferência ideológica
pelo direito individual do trabalho ao direito coletivo; 5. A
tese de que os princípios refletem a prevalência do paradigma
individualista e que não seriam mais que herança de um
referencial jusnaturalista.
1 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O propósito do estudo consiste em identificar como os
princípios do valor do trabalho e da dignidade da pessoa
humana, princípios constitucionais do trabalho, refletem um
paradigma individualista que privilegia o direito individual do
trabalho ao direito coletivo do trabalho, quando este último
é a própria fonte do Direito do Trabalho.
Ou seja, o direito do trabalho resultante do welfare state,
cujo objetivo era, inicialmente de contrabalançar o prestígio do socialismo e conduzir os trabalhadores pela via das
reformas não conseguiu (e não consegue, por sua própria
gênese e fundamentos) superar o seu caráter individualista
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e parcial, enfim de mantenedor do estado de coisas existentes. Ele não desaliena o trabalhador não porque faça a
apologia do trabalho, mas porque não supera a separação
entre quem produz e seu produto, cujo fundamento é a
propriedade privada.
Nesse sentido o Professor Everaldo Gaspar (2008, p.121,
122) diz que
O Estado Liberal tinha consciência de que seria
impossível evitar, abortar, eliminar os antagonismos
entre classes – capitalista e proletariado - bem como
a organização coletiva dos operários. Por isso, tratou
primeiro de tolerá-los para, em seguida, reconhecêlos. Mas, é preciso assinalar que tal reconhecimento
deu-se nos estritos limites da concepção jurídica por
ele traçada. [...]
O ápice desta tendência aconteceu a partir da
década de quarenta do século passado, sobretudo,
com o nascimento do Estado Providência.
Este projeto político - Estado do Bem-Estar Social –
estruturou-se a partir de uma arquitetura jurídica, que
combinava desenvolvimento econômico e políticas
públicas voltadas para a seguridade social e para
o pleno emprego. Daí consolida definitivamente a
glorificação do trabalho subordinado [...].
Enquanto não for superada essa cisão, essa
alienação, as discussões sobre o próprio valor do
não-trabalho, do ócio etc, serão nada mais do que
manifestação do trabalho pois, ainda que o trabalho se torne (pelo avanço tecnológico) residual
na sociedade futura - ou na de hoje – ainda assim
restará o problema pelo qual aquele que produziu
a tecnologia que nos liberta do trabalho e nos
ofereceria o ócio, esse também estaria alienado
(cindido, separado) do que produziu.
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A tese se desenvolve discutindo como esta questão do
individualismo, de uma concepção de homem egoísta - cuja
esfera, Marx apontou, é a sociedade civil, espaço onde o
indivíduo atua como proprietário privado, ainda que o seja
apenas de sua força de trabalho cujo lugar de venda é o
mercado – expressa a própria ideologia capitalista. Nesse
sentido o realismo jurídico serve de fundamento teórico para
enfrentar a problemática da ideologia no direito.
Por isso, metodologicamente optamos pela forma de ensaio, no sentido que Adorno confere ao termo3, por ser mais
adequada à feitura de um paper, que tem um caráter sobremaneira mais criativo e livre de trazer hipóteses e não uma
tese, logo as apresentando de forma aberta, sem pretensões de
chegar a uma resposta fechada, mas principalmente por encarnar a sensação de desbravamento que de forma literária o poeta
espanhol Antonio Machado expressou nos versos “caminhante,
não há caminho, o caminho se faz ao caminhar”.
Assim, preferimos pela forma de ensaio para ressaltar
não tão só dúvidas e o caráter problemático do tema, mas
propriamente como estamos enfrentando-as. Aproveitandonos desta justificativa da forma como o trabalho se apresentará para também trazer à colação a linguagem fluida que
por ora optamos no uso da primeira pessoa do plural, mais
representativa para tratar de inquietações teóricas como aqui
se fará.
3 Para Adorno, o ensaio não trabalha com a regra do jogo da ciência e da teoria
organizada, mas com a premissa de que a ordem das coisas seria a mesma
das idéias, daí esta forma não perseguir uma construção fechada na medida
em que não quer captar o eterno, preferindo o transitório. Naquilo em que é
enfaticamente ensaio, o pensamento se libera da idéia tradicional de verdade
(ADORNO, 1986, p. 174-176).
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Assim, o trabalho arvora-se a enfrentar algumas
problemáticas que reforçam sua característica ensaística, e que se resumem no afastamento que optamos
da discussão nos marcos da dogmática jurídica tradicional. Daí, o texto adquire um caráter mais reflexivo
e zetético 4 que doutrinário e manualesco para tratar
destes princípios do direito constitucional do trabalho.
Estes fatores indicam a provisoriedade das hipóteses a
serem trabalhadas no texto como nossa tese/ proposta
de análise crítica.
2 – ACERCA DOS PRINCÍPIOS DO VALOR DO TRABALHO E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A Constituição Federal de 1988 traz como princípios
fundantes da República Federativa do Brasil, aqueles que o
servem de esteio e que traçam as suas diretrizes. Tal característica de fundamento enfatiza o caráter e natureza de valor
que estes princípios representam.
Os princípios “são a síntese dos valores mais significativos para um ordenamento jurídico”, o que nos leva a
concluir que sempre que estivermos frente a um princípio,
teremos também encontrado um valor reconhecido pelo
respectivo sistema legal (BARBOSA, 2008). Estes estão
dispostos no artigo 1º. da Constituição Federal, quais
sejam: princípios federativo, republicano e democrático
4 Os enfoques zetético e dogmático são dois entre os diferentes ângulos pelos
quais o direito como objeto pode ser estudado. A perspectiva zetética, de zetein,
perguntar, perquirir, tem sua característica principal na abertura constante para
o questionamento dos objetos, sua função especulativa há um descomprometimento com a solução de conflitos, oposta à perspectiva dogmática, de dokein,
doutrinar, responder. (FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 39 ss).
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de direito, fundamentados da soberania, na cidadania,
na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do
trabalho e da livre iniciativa, no pluralismo político (incisos I a V), além do princípio da tripartição dos poderes
(artigo 2º.).
O valor do trabalho não foi inscrito apenas na
edição de 88, as constituições anteriores já o traziam:
Constituição Federal de 1937, Art. 113. “A todos cabe o
direito de prover à própria subsistência e à de sua família, mediante trabalho honesto. O poder público deve
amparar, na forma da lei, os que estejam na indigência”;
Constituição Federal de 1967: “Título III. Da Ordem
Econômica e Social. Art. 160: A ordem econômica e
social tem por fim realizar o desenvolvimento nacional
e a justiça social, com base nos seguintes princípios: ...
II. valorização do trabalho como condição da dignidade
humana”.
Na atual Constituição, além do já citado art. 1º. temos
também: “Da Ordem Econômica e Financeira – Capítulo
I - Dos princípios gerais da atividade econômica. Art. 170.
A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho
humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos
existência digna, conforme os ditames da justiça social,
observados os seguintes princípios: ... VIII - busca do pleno
emprego...”.
Para fins deste ensaio o objetivo é destacar os
princípios do valor do trabalho e a dignidade da pessoa
humana e a primeira questão que colocamos está na
perspectiva idílica que tantos doutrinadores tratam do
tema, visão esta que preferimos chamar de ideológica
no sentido de que se mostra como uma consciência invertida, na conceituação de Marx (MARX; ENGELS,
2005, p.11-12).
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O princípio do valor do trabalho 5 é apresentado
pela doutrina predominante 6 como meio de identificar
e exaltar o objeto trabalho subordinado que passou a
ser a forma predominante; o trabalho livre, em decorrência encarnou-se como sinônimo de preguiça, sendo
inclusive em algumas situações juridicamente punível
por leis penais, ou seja, incide um qualificativo negativo sobre trabalho livre. É o caso, por exemplo, da lei
das contravenções penais, que pune a vadiagem no seu
art. 59:
Art. 59 - Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade,
sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure
meios bastantes de subsistência, ou prover a própria subsistência mediante ocupação ilícita.
Pena: Prisão simples de 15 dias a 3 meses
O paradigma do direito do trabalho, seu objeto, ainda é
o trabalho subordinado. A ideologia do trabalho subordinado
se fortalece na crença e exaltação das virtudes do trabalho,
do qual a expressão mais incisiva é analisada em Max Weber
na Ética protestante e o espírito do capitalismo onde a moral
calvinista exaltava o trabalho como forma de louvor a deus e
5 Não estamos com isso dizendo que o trabalho não tem valor, tem papel fundamental na integração das pessoas, além de uma função psíquica na constituiçao
do sujeito e de sua rede de significados (PINTO, 2007, p. 11).
6 Um exemplo desta visão ideológica do trabalho está em: “Sabiamente, detectou a CF que o trabalho em, em especial o trabalho regulado, assecuratóriode
certo patamar de garantias ao obreiro, é o mais importante veículo (senão o
único) de afirmação comunitária da grande maioria dos seres humanos que
compõem a atual sociedade capitalista, sendo desse modo, um dos mais relevantes (senão o maior deles) instrumentos de afirmação da democracia na
vida social” (DELGADO, 2004, p. 169).
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não mais como mero castigo7 pela prática do pecado original8
e sim como louvor – de forma que nossa compreensão do
trabalho é impregnada dessa milenar visão de mundo.9
Uma questão que podemos analisar sobre elemento
ideológico da norma está, por exemplo, na identificação de
princípios, a priori e ontologicamente diversos, mas que se
apresentam juntos no inciso IV, art.1º., “os valores sociais
do trabalho e da livre iniciativa”.
A livre iniciativa expressa de forma mais clara como um
pilar do liberalismo econômico e os valores sociais do trabalho antes deveriam não se resumir ao trabalho subordinado,
pelo que a redação, numa forma mais explícita, poderia ser
assim dita: os valores do trabalho subordinado, interesse das
classes dominantes e ideologicamente compartilhados como
sociais”. Desta forma é que temos uma congruência de valores entre os dois princípios. Vale lembrar que a norma não
é redigida de forma tão clara porque a tornaria disfuncional
(SOBOTA, 1996, p. 251-273).
Assim, os interesses dominantes são apresentados como
sendo o interesse comum de todos os membros da sociedade.
7 Em nossa opinião, o calvinismo, cujo foco central é a idéia da “predestinação”, se não foi a principal vertente, seguramente está entre elas, no sentido
de religiosidade do capitalismo ascendente, em oposição à vocação feudal do
catolicismo. Para eles – e é neste sentido que fala Weber – “o mundo existe
para servir à glorificação de deus (...) e este caráter é partilhado pelo trabalho
(...)” (WEBER, 2002, p. 75-95, 82-83).
8 Ver o Gênesis, capítulo 3º , versículo 19, que afirma claramente: “Por teres
pecado, comerás o pão com o suor de teu rosto” (BÍBLIA SAGRADA, 2002,
p. 127).
9 No mesmo sentido – e Weber foi um leitor atento de Marx – este lembra que
“Lutero venceu a servidão pela devoção porque a substituiu pela servidão
da convicção. Acabou com a fé na autoridade na medida em que restaurou a
autoridade da fé. Converteu os sacerdotes em leigos porque já tinha convertido
os leigos em sacerdotes e libertou o homem da religiosidade externa porque
erigiu a religiosidade em seu coração. Emancipou o corpo das cadeias porque
subjugou com cadeias os corações.” (MARX, 1992, p. 118).
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Pois, como diz Marx, as idéias dominantes nada mais são
do que a expressão ideal das relações materiais dominantes,
as relações materiais dominantes concebidas como idéias;
ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante
(MARX; ENGELS, 2005, p. 63).
Conforme Professor Everaldo Gaspar (2008, p. 84), foi
a classe capitalista quem inventou o Estado Liberal e reivindicou para si a edição das leis, inclusive das leis trabalhistas,
centradas no tal princípio protetor do contrato individual de
trabalho. E todo conteúdo normativo veio para benefício
dessa classe dominante, não o contrário.
Acerca do princípio da dignidade da pessoa humana,
resta também uma crítica por a expressão ter um caráter mais
retórico que preocupação efetiva, pois se torna inócua tal
fundamentação principiológica do nosso Estado quando se
verifica que a realidade desprestigia o ideal da democracia.
Os níveis de exclusão e diferenciação de classes atestam
para uma compreensão restritiva da dignidade da pessoa
humana, ou seja, como se humanos apenas existissem nas
classes dominantes, visto os humanos dominados não serem
percebidos pelo sistema; a dignidade da pessoa humana que a
norma consagra só se efetiva num espaço pequeno e economicamente limitado. Por isso que Marx, em A questão judaica
critica severamente a concepção burguesa dos direitos humanos mostrando-a como exaltação dos direitos privados do
indivíduo egoísta, isto é do proprietário e os opõe aos direitos
do cidadão, estes direitos políticos par excelence (MARX,
1991, p. 41-42), muito embora, como reconhece o próprio
Marx, a emancipação política não implica em emancipação
humana (MARX, 1991, p. 37) visto que tal atividade pressupõe a existência do Estado e do Direito, formações sociais
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que existem pelo simples fato de que reina na sociedade uma
cisão a ser superada.
Tal individualismo no sistema capitalista se reflete nesse
homem egoísta, esfera onde “as mais importantes operações
do trabalho são reguladas e dirigidas segundo os planos e
as especulações daqueles que aplicam os capitais” (MARX,
2004, p. 46).
Para aprofundar tal perspectiva crítica que aqui esboçamos sobre estes princípios constitucionais do direito do
trabalho, passamos a expor o referencial que esteia nosso
ponto de vista sobre a ideologia no direito do trabalho.
3 – O REALISMO JURÍDICO COMO FUNDAMENTO TEÓRICO PARA UMA CRÍTICA DA IDEOLOGIA NO DIREITO
Por realismo jurídico temos um movimento doutrinário
de cunho anti-metafísico que se desenvolveu nos EUA e
países escandinavos e situa-se na linha de concepções que
rechaçam a jurisprudência mecanicista da escola da exegese
e se caracteriza por um ceticismo frente às normas e conceitos
jurídicos. Esse ceticismo é uma forma de reação contra a
atitude de um legalismo normativista. Assim o realismo não
se limitou apenas em dizer que as normas jurídicas não são
dotadas de virtudes prévias assinaladas pelo formalismo
jurídico. E quanto à sua a atitude anti-metafísica, acima
mencionada, tal postura o leva a buscar constituir uma ciência
empírica do direito voltada a descrever a realidade jurídica
(FERREIRA, 2006, p. 700).
Os realistas compartilham da perspectiva de que a lei
não seria um processo de deduções de decisões corretas dos
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princípios jurídicos estabelecidos, mas, antes, um contínuo
processo ou adaptação experimental de tomada de decisão
em determinados casos, numa tentativa de chegar a soluções
que sejam corretas apenas no sentido de que realmente
funcionaram no contexto social em que agiram. (LLOYDE,
1998, p. 267).
A principal corrente no realismo jurídico é a que tem
origem nos EUA na década de 1920, e é esta que se utiliza
de uma concepção pragmática no trato do fenômeno jurídico,
pois concebem o direito como aquilo que é aplicado nos
tribunais.
A realidade jurídica assim se fundaria na conduta
efetiva dos juízes, sendo decisivo o estudo de como
agem, independentemente do que declaram. A escolha
da norma jurídica assume uma característica de justificação a posteriori, ou seja, “da conclusão tomada com
fundamento na íntima convicção do magistrado. Daí que
para o realismo americano a certeza do direito só existiria
plenamente se os juízes fossem seres estereotipados”
(FERREIRA, 2006, p. 700). Focando no tema de como
os juízes decidem, temos as idéias de Cardozo, que em
A Natureza do Processo Judicial, o seu mais importante
livro, o autor liga a teoria jurídica à prática dos tribunais,
deixando claro que o juiz é um criador de direito, logo,
capaz de dirigi-lo no sentido da maior utilidade social
(CARDOZO, 1978, p. 17).
O livro é o resultado de quatro conferências que proferiu
na Universidade de Yale em 1920. Discursando sobre como o
juiz decidia, ele mostra a figura do magistrado como agente
ativo, criador do direito, que interpreta a consciência social
e lhe dá efeito jurídico, e que é exatamente nesta tarefa que
auxilia a formação e modificação própria consciência que
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interpreta, onde descoberta e criação reagem uma sobre a
outra.
Uma série de indagações sobre o que faz o juiz quando
decide uma causa inaugura sua fala, tais como: a que fontes
de informação o juiz recorre como guia, em que proporção
permite que estas influenciem no resultado, em que proporção deveriam contribuir. Por meio de uma metáfora, diz que
o dia-dia nos tribunais é como preparar um estranho composto onde todos estes ingredientes entram em proporções
variáveis e que não lhe cabe dizer se o juiz deveria ou não
prepará-lo, o fato é que diante de todos está o preparo, assim
toma a construção do direito pelo juiz como uma realidade
da vida e expõe da maneira mais realista, logo distante de
tendências moralizantes se deve ou não ser assim, mas tão
somente diz que é assim a natureza, no sentido da essência
do processo judicial.
Mas o fundamental é que em tal “infusão” entra alguns
princípios, mesmo que indeclarados, inarticulados e subconscientes. É por aqui que também ideologias são transmitidas,
assim não nega que o processo de decisão é ideológico, e
alerta que distinguir entre o consciente e subconsciente é
tarefa difícil, pois “não poucas vezes eles flutuam perto da
superfície” (CARDOZO, 1978, p. 52).
Conclui, citando James Harvey ao dizer que “as nossas crenças e opiniões, assim como os nossos padrões de
procedimento, vêm-nos insensivelmente como produto de
nossa convivência com outros homens”. (CARDOZO, 1978,
p. 156).
Constituem elementos subconscientes: instintos herdados, crenças tradicionais, convicções adquiridas, e a resultante é uma visão da vida, é essa resultante ou um sentido que
pode dizer onde cairá a escolha (CARDOZO, 1978, p. 53).
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São, portanto, as ideologias, partes inerentes ao processo
decisório, e antes ainda, a própria maneira de perceber o
direito. Quando nos reportamos ao direito do trabalho, assim
como qualquer outro ramo do direito poderia ser trabalhado
numa perspectiva crítica, percebemos de antemão como o
próprio conceito de trabalho é carregado de pré-compreensões.
Especificamente como objeto deste ensaio, trabalhamos a hipótese de que a preferência ideológica pelo
direito individual do trabalho ao direito coletivo é fruto
dessas ilusões referenciais dos juristas, que se esteiam,
por seu turno, como reflexos no direito da ideologia
capitalista. A própria crise no mundo do trabalho pode
ser vista como tendo sua gênese nessa própria crise da
ideologia individualista que norteia o próprio direito em
geral e também o direito do trabalho entendido como
direito burguês porque visa “proteger” o trabalhador, mas
também protege o pilar sagrado do mundo do trabalho que
é a propriedade privada.
4 – A PREFERÊNCIA IDEOLÓGICA PELO DIREITO INDIVIDUAL DO TRABALHO AO DIREITO
COLETIVO
A origem do direito do trabalho está associada às
lutas de classe: proletário x capitalistas, de forma que a
fonte deste ramo do direito está no que a doutrina identifica como o direito coletivo do trabalho. Contudo, a teoria
dogmática jurídico-trabalhista não reconhece essa primazia, o estudo do trabalho quase exclusivamente se reduz
aos institutos do direito individual do trabalho e assim
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na figura do operário, trabalhador subordinado, assim ao
formular os princípios deste ramo do direito, deu pouca
importância ao Direito Sindical (ANDRADE, 2008, p. 99,
102).
Esta percepção equívoca ratifica a concepção que toma
como preguiça qualquer sinal ou ato de desestímulo, digamos, ao trabalho subordinado (ANDRADE, 2008, p. 113).
Sentimento consagrado por Gonzaguinha na música Guerreiro Menino: “e sem o seu trabalho/ um homem não tem
honra/ e sem a sua honra/ se morre, se mata/ não dá pra ser
feliz”.
Uma das justificativas para tal consciência teórica
invertida está na supremacia ideológica do trabalho
alienado10 sobre o trabalho livre em face do racionalismo
instrumental a serviço da produção e do desenvolvimento
econômico. Isso tudo se dá pelo papel ideológico que
cumpre o direito: controle social e discurso de justificação. O fato de juristas democratas poderem atuar dentro
desse espaço não nega tal caráter do direito, antes pelo
contrário.
Ainda apontamos como conseqüências desta visão centrada no trabalho alienado, e, também, por se tratarem de
particularismos do Direito Individual e não, de fundamento
de validade desse ramo do direito. a impossibilidade de
considerar-se como princípios do Direito do Trabalho as
variantes apresentadas pela sua clássica teoria geral (ANDRADE, 2008, p.189).
10 Sobre tal alienação diz Marx que “o trabalho mesmo se torna um objeto, do
qual o trabalhador só pode se apossar com os maiores esforços e com as mais
extraordinárias interrupaçoes. A apropriação do objeto tanto aparece como
estranhamento que, quanto mais objetos o trabalhador produz, tanto menos
pode possuir e tanto mais fica sob o domínio do seu produto, do capital”
(MARX, 2004, p. 81).
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5 – A TESE DE QUE OS PRINCÍPIOS REFLETEM A
PREVALÊNCIA DO PARADIGMA INDIVIDUALISTA E QUE NÃO SERIAM MAIS QUE HERANÇA DE
UM REFERENCIAL JUSNATURALISTA
A preponderância do paradigma individualista no direito
do trabalho, como tratamos, tem uma íntima ligação como
discutimos em torno da ideologia capitalista, que vai se desenhar no enaltecimento do trabalho subordinado e alienado
em detrimento do trabalho livre.
Tal visão de mundo deturpada e deturpadora tem identidade com as idéias jusnaturalistas, visto esta ser igualmente
uma forma ideológica de evidenciar a tese de que o trabalho
é sagrado e a propriedade é direito inerente.
Partimos da noção de que direito natural, tanto no
sentido de princípios inatos ou a priori, da própria natureza, como se identificava na physis na antiguidade
clássica, ou na natureza divina, com o jusnaturalismo
teológico da idade média, ou ainda no sentido de direito
inerente à razão como no jusnaturalismo antropológico
ou racionalista, este direito natural estaria em todos os
tempos e lugares, assim assumindo valores transcendentes e imutáveis.
Com a positivação crescente dos direitos, em especial pelas Declarações de Direitos do século XVIII e da Declaração
Universal dos Direitos Humanos do século XX, e em seguida,
estes sendo positivados no âmbito interno dos respectivos
ordenamentos jurídicos das sociedades, o juspositivismo
promoveu uma positivação de valores fundamentais, de
forma que “positivou o direito natural”, promovendo então
o próprio enfraquecimento da dicotomia direito positivo x
direito natural (FERRAZ JR, 2003, 171).
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Dessa forma, os princípios expressam alguns valores
jusnaturalistas, com sua inerente vagueza, e caracterizados pela transcendência e imutabilidades de seus
postulados, de modo que é valor “sagrado” o trabalho
e a propriedade privada direito ontológico à natureza
humana, como se sempre houvera existido. Aqui lembramos, para concluir, Rousseau que no Discurso sobre
a origem e os fundamentos da desigualdade entre os
homens diz que “o verdadeiro fundador da sociedade
civil foi o primeiro que, cercando um terreno, teve a
idéia de dizer, ‘este é meu’, e encontrou pessoas bastante
ingênuas para acreditarem”(ROUSSEAU, 2002, p. 7).
Neste mesmo sentido que a propriedade foi “criada”,
também se criaram idéias para falar de trabalho, para
legitimar concepções individualistas, para se exaltar
princípios como o valor do trabalho e a dignidade da pessoa humana que insertos no texto constitucional figuram
como normas programáticas no sentido de prometerem
um ideal que se perfaz na retórica.
6 – REFERÊNCIAS
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Gabriel (org). Theodor Adorno. São Paulo: Ática, 1986.
ANDRADE, Everaldo Gaspar Lopes de. Princípios do
direito do trabalho e seus fundamentos teórico-filosóficos:
problematizando, refutando e deslocando o seu objeto.
Recife, 2008, Prelo. (texto disponibilizado pelo autor em
primeira mão para estudo e discussão na disciplina oferecida
em 2007.2, PPGD/ UFPE).
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Uma crítica à ideologia jusnaturalista nos princípios constitucionais do direito do trabalho
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BARBOSA, Maria da Graça Bonança. O princípio
fundamental do valor social do trabalho frente à livre
iniciativa e sua possível concretização pelas decisões da
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CARDOZO, Benjamin. A Natureza do Processo Judicial e A Evolução no Direito. Trad. Leda Boechat. 3.ed.
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A PEC 233/08 E A PRETENSÃO DE
MODIFICAÇÃO DOS “GRILHÕES DE
HERMES”1: A tentativa de
alocação, imprópria, do IVA no
lugar do ICMS1.
Luiz Edmundo Celso Borba2
Resumo
O presente texto objetiva a discussão acerca da natureza
jurídica do ICMS, com base na Constituição Federal de 1988
e na Lei Complementar de No: 87/1996; no sentido de apresentar as características normativas deste tributo e de conceitos a ele atrelados, como circulação, mercadoria, serviços,
e as características próprias do federalismo fiscal, neste que
é o imposto de maior incidência econômica no Brasil. Após
1 Quando me refiro aos “Grilhões de Hermes”, uso essa metáfora para demonstrar
que, tanto o ICMS, quanto o seu, pretenso, substituto, o IVA, são tributos incidentes
sobre o comércio e as comunicações; portanto seus limitadores, ao acarretarem
custos, de ordem fiscal, a tais atividades. Vale a lembrança que, na Mitologia Grega,
Hermes é o Deus protetor do comércio e das comunicações, portanto, tais tributos
“de certa forma” estariam “limitando” os seus “poderes”, quase como se adotassem
a forma de grilhões. Mais informações sobre a mitologia grega, dentre as inúmeras
fontes existentes, estão disponibilizadas em: <http://www.suapesquisa.com/musicacultura/deuses_gregos.htm>, texto coletado em 16 de Julho de 2008.
2 Advogado; mestre e doutorando em Direito pela UFPE; professor-pesquisador
membro dos grupos de pesquisa (Análise Retórica do Direito; e Pragmatismo)
da Pós-Graduação em Direito – CNPQ/UFPE; professor da graduação e pósgraduação do Curso de Direito da FMN. Com Curriculum Lattes na página:
<http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4736638U2>.
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a fixação destas bases, será debatida as alterações propostas
pela PEC 233/88, diante da natureza e preceitos deste tributo, instituídas pela Magna Carta, em relação à validade das
disposições da Reforma Tributária proposta.
Palavras-chave: PEC 233/08, IVA, ICMS, Reforma
Tributária, e inconstitucionalidade.
Abstract
This paper aims to discuss the legal nature of the ICMS
based on the Federal Constitution of 1988 and the Supplemental Law No: 87/1996, to be characteristic of this normative tribute to him and concepts coupled, as movement, goods,
services, and the characteristics of the fiscal federalism, in
that it is the duty of greater economic impact in Brazil. After
the establishment of these bases, the proposed amendments
will be debated by the PEC 233/88, given the nature and limits of this tax, imposed by the Constitution, in relation to the
validity of the provisions of the Tax’s Reform Proposal.
Key Words: PEC 233/08, IVA, ICMS, Tax’s Reform
and inconstitutionality.
Sumário: Introdução. 1. Bases constitucionais para a
criação do ICMS e suas características formais. 2. A mercadoria. 3. Os serviços. 4. A proposta do, federal, IVA trazida
pela PEC 233/08. Considerações finais. (Referências.)
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INTRODUÇÃO
A intenção do Autor, no presente texto, reside na caracterização da natureza jurídica do Imposto sobre a Circulação de
Mercadorias e Serviços (ressalvando que os últimos são exclusivamente concernentes ao transporte interestadual, intermunicipal e para o setor de comunicações) como a fonte principal
de aquisição de receita para os estados membros da República
Federativa Brasileira e do Distrito Federal, conforme previsão
do Texto Maior em sua regra de conduta de tombo 155, II; bem
como o bojo da Lei Complementar de nº. 87/1996, nos seus
artigos 1º, 2º, e sucessivos (BALEEI-RO, 1996, p. 218).
Ressalte-se o fato do ICMS viabilizar a autonomia e
independência financeira dos estados membros e do Distrito
Federal, inclusive com suporte nos princípios da autonomia
e do federalismo instituídos como “certos” pelo Artigo 3º
da Lex Mater (SILVA, 1998, p. 479-483, 589-687), algo que
torna difícil, senão impossível, com base na Carta Magna, a
criação do IVA (Imposto sobre o valor adicionado ou agregado) pretendido pelo Poder Executivo Federal, diante das
propostas da mini reforma tributária.3
O ICMS gera a necessidade de entendimento da sua
materialidade e características dispostas no texto constitucional, diante da sua importância, como mencionado, para a
autonomia político-administrativa dos estados membros da
Federação Brasileira e o Distrito Federal garantindo o prin3 Dentre as propostas para alteração do Sistema de Tributação Nacional, através
da “famigerada” (em termos de inconstitucional) reforma tributária, a principal
modificação reside na mudança da competência e titularidade tributárias sobre
a circulação de mercadorias dos Estados e do DF para a União, porém tal postura termina por quebrar o pacto federativo e a inegável autonomia financeira
que cada Pessoa Jurídica de Direito Público Interno necessita. Portanto, a
justificativa de tentar se evitar a “guerra fiscal” entre os estados membros da
federação não deve prosperar, caso contrário a base de nossa administração
pública e sua estrutura seriam dilaceradas.
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Luiz Edmundo Celso Borba
cípio constitucional da isonomia das pessoas constitucionais
(BORGES, 1975).
E como o ICMS tem um grande impacto na economia
e nas finanças brasileiras, o legislador constitucional, prudentemente, dedicou-lhe especial atenção, a ponto de ser
o imposto com maior número de disposições sobre a sua
instituição (mais de 25 regras); tal característica, por si só,
habilita-nos a um estudo mais próximo da Carta Magna
(GRECO e LORENZO, 2001, p. 529).
Há, contudo, outros veículos normativos lidando com o
ICMS, no âmbito federal, com destaque à Lei Complementar
de nº: 87/1996, assim como as leis complementares: 92/1997,
99/1999 e 102/2000 por trazerem inovações à primeira e
estas serão analisadas, quando oportuno, com o intuito de
demonstrar a efetivação, infraconstitucional, dos preceitos
da Magna Carta.
Será ponderada, em sucessivo, a viabilidade da minireforma tributária, tramitando no Congresso Nacional, por
iniciativa do Executivo Federal Brasileiro, com o afã de evitar guerras fiscais e a instabilidade política e administrativa
decorrentes.
A opção do trabalho se restringir ao estudo constitucional do ICMS, dá-se por questões óbvias, pois o
cerne da presente pesquisa está em discutir as bases e
princípios deste imposto e a sua conseqüente aplicabilidade ao comércio; sendo, o Texto Constitucional, mais
do que satisfatório para tal intento, sem, no entanto, não
estar descartada a possibilidade de uso destas normas,
emendando o texto da Carta Magna, quando viável, já
que tais alterações se tornarão a própria Carta Política,
após aprovação.
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1. BASES CONSTITUCIONAIS PARA A CRIAÇÃO
DO ICMS E SUAS CARACTERÍSTICAS FORMAIS
O ICMS é o antigo ICM, porém bastante modificado e
alterado pela Constituição Federal de 1988, após o acréscimo, principalmente, dos serviços (transporte interestadual,
intermunicipal e comunicações), mesmo quando tais fatos
geradores se iniciam no exterior, ainda que sejam bens destinados a integralizar o ativo fixo de uma pessoa jurídica
(HARADA, 2002, p384).
E esta previsão genérica do ICMS é encontrada no artigo
155, II da Constituição Federal de 1988, quando se dispõe:
“[…] compete aos Estados e ao Distrito Federal
instituir impostos sobre: … operações relativas à
circulação de mercadorias e sobre a prestação de
serviços de transporte interestadual e intermunicipal
de comunicação, ainda que as operações se iniciem
no exterior […]”
Estas operações, segundo Geraldo Ataliba e Cléber
Giardino podem ser entendidas assim:
“[…] Operações são atos jurídicos; atos regulados
pelo direito como produtores de determinada eficácia
jurídica; são atos juridicamente relevantes; circulação
e mercadorias são, nesse sentido, adjetivos que restringem o conceito substantivo de operações […]
[…] Os autores que vêm no ICM um imposto sobre
circulação ou sobre mercadorias estão ignorando a
Constituição; estão deslocando o cerne da hipótese de
incidência do tributo, da operação […]” (ATALIBA
e GIARDINO, s/d, p. 105 e 106)
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Desta maneira os autores tentam alertar para o imperioso
cuidado à expressão operação, pois ela envolve a negociação
devida4 entre duas ou mais partes, podendo se apresentar
em diversos ciclos obrigacionais autônomos, gerando a
produção de efeitos jurídicos entre o(s) sujeito(s) passivo(s)
e o ativo de uma obrigação tributária; e caso não se verifique
tais pressupostos haverá desatenção à hipótese de incidência
do ICMS, e consoante ao princípio da tipologia tributária,
inexistirá subsunção e, consecutivamente, o fato gerador de
uma admissível obrigação tributária.
Neste sentido, ponderem-se os seguintes apontamentos
de José Souto Maior Borges: 5
“[…] O ICM incide sobre a circulação de mercadorias e as tributa, conforme ensinou Rubens Gomes
de Sousa, como um fato econômico unitário, embora
complexo, porque desenvolvido por estágios sucessivos desde o produtor originário até o consumidor
final.
Todavia, o fato econômico bruto da circulação de
mercadorias não é tributado pelo ICM senão como a
“deformação” operada pela regra jurídica, que incide
não sobre a circulação em si, mas sobre as ‘operações’
a ela relativas e mediante as quais essa circulação
econômica se processa […]” (1975, p. 157)
4 No sentido de adequadas às disposições do ordenamento jurídico, portanto
incidentes sobre condutas empresariais, envolvendo a atividade de fornecedores/produtores de bens e serviços e os seus compradores ou consumidores,
estes últimos tratados e definidos pelo CDC.
5 Meu orientador no mestrado em Direito da UFPE, responsável pela “ruptura” das
minhas perspectivas puramente dogmáticas, diante da necessidade de não tornar
o Direito um círculo fechado, pois o conhecimento deve ser holístico, algo que
propicia a filosofia e outras áreas cognoscitivas, em seus mais variados ramos.
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Assim, a operação mencionada não implica na mera
existência da circulação de mercadorias ou prestação de
serviços, há o imperativo tratamento e tipificação legal
de quais produtos ou atividades serão tributados, até
por que o ICMS é caracteristicamente seletivo, ante os
ditames do inciso III, do parágrafo 2º do Artigo 155 da
Constituição Federal vigente, conforme será mais bem
explanado adiante.
Complementando o raciocínio aqui exponsado:
“[…] Operações, no contexto, exprime o sentido de
atos ou negócios hábeis para provocar a circulação
de mercadorias. Adquire, neste momento, a acepção
de toda e qualquer atividade, regulada pelo Direito, e
que tenha a virtude de realizar aquele evento […]
[…] soa estranho, por isso mesmo, que muitos continuem a negar ao vocábulo ‘operações’ a largueza
semântica peculiar das ‘operações jurídicas’ para
entende-lo como qualquer ato material que anime a
circulação de mercadorias. Eis aqui o efeito jurídico
sem a correspondente causa jurídica, a eficácia do Direito desvinculada de algo investido de juridicidade.”
(CARVALHO apud MELO, 2003, p. 14)
Entendida a necessidade de observar os parâmetros do
termo “operação”, passemos à análise dos demais elementos
essenciais do ICMS. Roque Antônio Carraza, ao se manifestar sobre a capacidade tributária ativa relacionada a este
imposto, leciona:
“[…] Percebemos, assim, com facilidade, que o
ICMS é um imposto de competência estadual e disRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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trital. Os Estados e o Distrito Federal, mediante lei
ordinária podem instituí-lo (ou sobre ele dispor).
Mas, é sempre bom, lembrarmos que a União também está credenciada a criar o imposto, por força do
que estabelecem os artigos 147 e 154, II, ambos da
Constituição Federal. De fato, é esta pessoa política
que poderá fazer nascer, ‘in abstracto’ (no plano legislativo), o ICMS, seja nos Territórios (se voltarem a
ser citados, já que, no momento, inexistem), seja em
todo o território nacional, ‘na iminência ou no caso
de guerra externa’. São duas hipóteses excepcionalíssimas, é certo, mas que não infirmam a assertiva
de que a União também desfruta de competência
legislativa para criar o ICMS.” (CARVALHO apud
MELO, 2003, p. 14)
Como dito por ele, a titularidade ativa da União só se
justifica em casos raríssimos e que demandem celeridade na
instituição do ICMS, ante a inarredável urgência e cogência
desta situação de guerra, de ameaça à soberania nacional ou
de um país aliado. Restando claro o fato destas hipóteses
específicas de incidência ficarem ao largo do presente trabalho, por restrições limitativas (metodológicas) claras, não
se duvidando de um tratamento em outro trabalho de cunho
mais direcionado, diante da especificidade da matéria.
Passando para o próximo passo, a circulação de mercadorias compreende na tradição de um bem de uma pessoa
para outrem, havendo neste decurso a previsão legal deste
comportamento em uma hipótese de incidência legítima, e
tipificada de forma clara e harmoniosa com o ordenamento
jurídico em vigor, no sentido de demonstrar a mudança de
titularidade patrimonial entre as partes envolvidas.
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Essa circulação poderá se dar de forma reiterada, caso
em que deverá ser afastada a cumulatividade do ICMS, com
o fito de evitar a bitributação e/ou o bis in idem (este no caso
do sujeito ativo tributar em duplicidade o mesmo bem, ainda
que em etapas diversas e sobre valores já lançados).
A mercadoria, outro importante aspecto para o ICMS,
tem sua conceituação no direito mercantil, e será melhor esmiuçada no próximo item, significando um produto, serviço
ou bem, ao qual um indivíduo venha a vender ou revender
com o objetivo de lucro.
Então, o aspecto temporal é de sumária relevância,
havendo a necessidade de fixação do momento da saída da
mercadoria do estabelecimento de um determinado sujeito
passivo, observando a seguinte lição de José Eduardo Soares
de Melo:
“A ‘saída’ – eleita pelo legislador como elemento
do fato gerador (Lei Complementar nº 87/96 – art.
12, I) – compreende o aspecto de tempo previsto na
norma, uma vez que os fatos imponíveis ocorrem em
um determinado momento, porque, nesse instante,
nasce o direito subjetivo para a pessoa de direito público e, correlatamente, uma obrigação para o sujeito
passivo.” (2003, p. 21)
Em outras palavras, a saída é o elemento temporal do fato
gerador, havendo a correta apuração dos fatos e adequação à
hipótese de incidência prevista, deslanchando no fenômeno
conhecido como subsunção. Assim, a hipótese de incidência
tem aspecto fundamental e para tanto o operador jurídico haverá de se vincular ao tipo previsto pela norma e os ponderar
de acordo com cada situação, concomitantemente, com os
princípios da anterioridade e irretroatividade.
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O exato momento da saída deverá estar, destarte, previsto na hipótese legal de incidência, inclusive de forma
a tentar afastar interpretações extensivas, com impossível
ocorrência na seara tributária por ficarem fora das bases
principiológicas constitucionais, ao diferirem das garantias pétreas da vinculabilidade (afastamento de posturas
interpretativas discricionárias em razão tributária) e da
tipologia (as características aplicáveis ao caso concreto
são aquelas descritas no tipo tributário, na norma, em
coordenação com o princípio da estrita legalidade), não
se deve olvidar.
Neste sentido leciona Paulo de Barros Carvalho:
“Compreendemos o critério temporal da hipótese
tributária como o grupo de indicações, contidas no
suposto da regras, e que nos oferecem elementos para
saber, com exatidão, em que preciso instante acontece
o fato descrito, passando a existir o liame jurídico que
amarra devedor e credor, em função de um objeto – o
pagamento certo da prestação pecuniária […]
[…] O marco de tempo deve assinalar o surgimento
de um direito subjetivo para o Estado (no sentido
amplo) e de um dever jurídico para o sujeito passivo.
Exacerbando a observação desse fenômeno, porém,
os estudiosos, os legisladores e os jurisprudentes
passaram a dar o nome de fato gerador dos impostos
justamente ao critério temporal estabelecido na lei
para cada um, o que muito contribui para o desalinho
teórico formado em derredor de gravames como o
IPI e o ICMS, cuja consistência material sempre
experimentou profundas divergências conceptuais.”
(2002, p. 257 e 258.)
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Assim a saída é o marco temporal necessário para a
geração da obrigação tributária, envolvendo o responsável
pelo pagamento do ICMS, razão de ser desta, e o sujeito
ativo de tal enlace obrigacional, dotado do poder-dever de
arrecadar o tributo, por força do princípio da vinculabilidade
aos ditames normativos, razão de ser de todo este complexo
e intrincado ciclo intersubjetivo. E tais ponderações revelam,
claramente, uma ação econômica.
A saída, destarte, implica na “retirada” do bem de dentro
dos limites físicos do estabelecimento, mas sempre devendo
haver o fenômeno econômico, existindo a clara evidência da
prática mercantil. Sim, pois é característica de todo e qualquer tributo, a ser cobrado sobre o patrimônio, a conseqüente
riqueza implicada ao devedor tributário, ao sujeito passivo
de uma obrigação tributária; caso contrário não haveria
conduta tributária típica. Muito embora, os Fiscos estaduais
venham trabalhando com “suposições” de circulação e até
mesmo dos valores envolvidos, a exemplo das antecipações
e das pautas tributárias. Condutas manifestamente ilídimas
e inconstitucionais, mas costumeiras.
Não seria correto, como explicita Roque Antônio Carraza
(2003, p. 44), cobrar o ICMS quando a mercadoria “sair” do
estabelecimento por causa de um roubo, de um incêndio, uma
enchente, etc. Assim, a saída da mercadoria, efetivamente,
passa ao largo de um conceito simplório de movimentação
geográfica do bem, por ter de se correlacionar com fatores
econômicos, patrimoniais, atrelados ao trato mercantil e por
tal motivo o controle da produção deve ser estadual e não
federal, dando melhores condições de fomento tributárioeconômico (incentivos) ou o contrário, sem se ferir o artigo
151, I da Constituição Federal de 1988.6
6 Esse é o conhecido princípio constitucional-tributário da uniformidade
geográfica, um dos corolários da isonomia tributária.
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Observados os ditames do artigo 155 e o inciso II da Carta Magna vigente, não há como não mencionar o parágrafo
segundo e incisos desta mesma pauta de conduta, pois estes
dispositivos continuam a demonstrar as bases e caracteres do
ICMS. Por isto passo a analisar cada um destes incisos, com o
intuito, não de encerrar a matéria e seus extensos vieses, mas
de municiar os conhecimentos mínimos e imperiosos, todavia
sendo subsídios aptos, ao entendimento das características
e natureza jurídica do ICMS; bem como e a viabilidade de
sua aplicação prática.
O inciso I traz uma das mais importantes características
do ICMS, a não-cumulatividade, possibilitando a compensação dos valores já pagos em relação a este imposto,
em suas fases anteriores de produção, venda e revenda, de
forma a se preservar a capacidade contributiva do sujeito
passivo e evitar a bitributação e o bis in idem, sobre um fato
gerador que já havia ocasionado uma obrigação tributária,
com seu respectivo crédito tributário já liquidado através de
lançamento (BORGES, 1975, p. 158 e 159).
Faz-se oportuna a menção do seguinte excerto, produzido por Marco Aurélio Greco e por Anna Paola Zonari de
Lorenzo (2001, p. 547):
Para controle do atendimento à não-cumulatividade,
isto é, para se saber se houve a violação de tal exigência, o modo mais simples é aplicar a regra segundo
a qual o imposto total (somados os recolhimentos
efetuados em todas as etapas do ciclo) não pode ser
maior que a multiplicação da alíquota aplicável pelo
valor da última operação do ciclo econômico (ao
consumidor final). Se o resultado apurado ultrapassar
aquele valor, em alguma etapa do ciclo houve cumulação do imposto, vale dizer, foi recolhido imposto
maior que o devido.
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O inciso II, continuando no método retrotranscrito para
este trabalho, aparece de forma suplementar ao inciso anterior, impondo a inviabilidade da compensação de valores,
para a extinção parcial do crédito tributário, em casos onde
a mercadoria, em fases anteriores de produção e/ou beneficiamento, tenha sido agraciada com a isenção ou a nãoincidência, acarretando, inclusive, na anulação do crédito a
ser compensado em operações antecessoras e não isentas, ou
seja créditos anteriores.
Ora, tal inciso se apresenta como um contra-senso ao
disposto no primeiro inciso, até por que foge a característica
maior do ICMS que é a não-cumulatividade. E sobre este
conteúdo Kiyoshi Harada dispõe:
Este inciso é uma reprodução do texto da EC nº 23, de
1º-12-1983, que foi aprovada com o fito de esvaziar as
decisões da Corte Suprema em sentido contrário, isto
é, permitindo o crédito nestas situações: RTJ, 99:661
e 1208, 100:197, 102:195 e 868, 117:767. Entretanto,
esse inciso deverá ser interpretado com restrição. A
legislação ordinária, ao implementar esse dispositivo
constitucional, não poderá ferir o princípio maior
e basilar do ICMS que é o da não-cumulatividade.
Havendo isenção ou não-incidência legalmente qualificada, de permeio, na quarta etapa de circulação da
mercadoria, por exemplo, poderá a lei exigir o estorno
de créditos correspondentes à terceira etapa, bem como
coibir o crédito na etapa posterior, ou seja, na quinta
etapa. Não poderá abranger todas as etapas anteriores
à isenção, nem todas as etapas subseqüentes à isenção
ou não-incidência, sob pena de se produzirem cumulatividades por comportas e barragens, aumentando a
arrecadação do imposto, pelo emprego do instituto da
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isenção, invertendo o efeito que lhe é próprio. (2002,
p. 384 e 385)
Passando ao inciso III, do parágrafo 2º do Artigo 155 da
Carta Política Nacional, traz-se a característica da seletividade ao ICMS, conferindo ao legislador a possibilidade de
selecionar as mercadorias e os serviços previstos na hipótese
de incidência deste imposto, de acordo com a sua essencialidade, conferindo-lhes diferentes alíquotas.
É graças à seletividade que os Estados e o Distrito Federal, obedecendo aos limites impositivos da Lei Complementar
de nº: 87/96, podem ter um determinado controle sobre a
economia, onerando ou desonerando uma determinada espécie de bem ou serviço. Assim, o ICMS é um tributo que não
possui, via de regra, alíquotas uniformes ao se possibilitar,
salvo as exceções do inciso IV do parágrafo 2º do Artigo 155
da Constituição Federal, a graduação de alíquotas.
Assim, o inciso IV é uma complementação ao inciso
III, por falar da necessidade de haver resoluções do Senado
Federal para o estabelecimento de alíquotas aplicáveis às
operações e prestações interestaduais e de exportação, com
o fito maior de evitar a “guerra fiscal” entre os estados membros da federação, bem como o Distrito Federal, garantindo
a, mencionada, isonomia entre as pessoas constitucionais.
Tenta-se uma uniformização de alíquotas garantindo uma
“certa” isonomia entre os sujeitos ativos do ICMS, assim
como o faz o inciso V, neste caso, para valores mínimos e
máximos das alíquotas instituídas para as operações internas.
Isto porque o ICMS, mesmo sendo um imposto estadual e
do Distrito Federal, desencadeia seus efeitos em todo o território nacional, por ser, indiscutivelmente, o tributo de maior
incidência no Brasil. Daí a tentativa de implementação do
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IVA, até justificável “na prática”, mas dificilmente aceitável
pelo Texto Constitucional e suas cláusulas pétreas.
Por seu turno, o inciso VI trata, ainda, sobre a questão
de preservação do equilíbrio fiscal entre os possíveis sujeitos
ativos do ICMS, através da estipulação da inviabilidade da
instituição de alíquotas internas superiores àquelas previstas
para as operações interestaduais.
O inciso VII guarda especial relevância ao presente trabalho, no tangente ao comércio eletrônico-digital, ao dispor
que nas relações onde as mercadorias ou serviços tenham
consumidor final localizado em outros estados membros da
federação, portanto envolvendo um outro sujeito ativo.
Deve-se observar, contudo, a caracterização dos elementos de uma obrigação tributária, como: sujeito ativo, sujeito
passivo (estes dois pólos subjetivos, de forma indubitável,
devem estar identificados e qualificados), causa (lei) e o
objeto (prestação positiva ou negativa fruto de uma hipótese
de incidência prevista em lei). (MARTINS, 2003, pp. 149
e 150)
Nestes casos, obedecendo-se ao inciso VIII, o valor relativo à diferença entre os estados ou o Distrito Federal, com
alíquotas dessemelhantes, caberá ao sujeito ativo que adote
a alíquota maior, obviamente, o destinatário da mercadoria
ou serviço. Bem lembra Kiyoshi Harada (2002, pp. 383 e
384): “A distinção havia sido julgada inconstitucional pelo
STF. Para mantê-la, foi promulgada a EC nº: 23/83 que foi
incorporada ao texto na Constituição de 1988.”
Continuando na caracterização deste importante tributo para os estados e o Distrito Federal, o inciso IX, na sua
alínea “a”, instituía a incidência do ICMS sobre a entrada
de mercadoria importada, mesmo esta tendo sido adquirida
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para integralizar o ativo fixo da empresa destinatária final
do bem.
A alínea “b” deste inciso atesta a incidência do ICMS
sobre o valor total da operação, quando as mercadorias
fossem fornecidas concomitantemente com serviços não
previstos pela legislação tributária municipal, o que se
revela controverso por haver um alargamento da hipótese
de incidência deste tributo, contrariando os princípios da
vinculabilidade, tipologia e estrita-legalidade, além de
que há o ingresso do Estado em uma competência tributária que não pode ser delegada, ante a inviabilidade de
tal procedimento, por força do Artigo 7º do CTN e dos
artigos (145 a 162) da Constituição Federal de 1988, que
compõem o título II do capítulo VI: Sistema Tributário
Nacional.
Voltando à questão da importação de mercadorias prevista no inciso IX, há de se repassar os seguintes excertos
laborados por Kiyoshi Harada:
Segundo a jurisprudência pacífica de nossos tribunais, o fato gerador ocorre na entrada da mercadoria
no estabelecimento do importador e não no desembaraço aduaneiro, como prescrevem as legislações
estaduais. Ver Súmula 577 do STF.
Bem de consumo ou aquele integrante do ativo fixo
não caracteriza mercadoria, pelo que a Suprema
Corte havia decidido pela inconstitucionalidade
da exigência do imposto, o que resultou na EC
nº: 23/83, incorporada ao texto da Constituição
atual. Todavia, o STF decidiu que esse inciso IX
não se aplica às operações de importação de bens
realizadas por pessoa jurídica, para utilização em
exames radiológicos. (RE 185.789-SP, Rel. Min,
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Ilmar Galvão, Boletim Informativo STF, nº: 176.
No mesmo sentido: RE 203.075, DJU de 29-10-99).
(2002, p. 385)
Não bastando tais incongruências e despautérios, os problemas foram, ainda mais, alargados pela Emenda Constitucional de nº: 33/2001, tendo o inciso IX, alínea “a”, recebido
a atual redação:7
a) sobre a entrada de bem ou mercadoria importados
do exterior por pessoa física ou jurídica, ainda que
não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer
que seja a sua finalidade, assim como sobre o serviço
prestado no exterior, cabendo o imposto ao Estado
onde estiver situado o domicílio ou o estabelecimento
do destinatário da mercadoria, bem ou serviço.
Prosseguindo, no inciso X fica instituída a imunidade do
ICMS para a exportação de produtos industrializados, excluídos os semi-elaborados definidos por lei complementar,
no caso a de nº: 65/1991, bem como para as operações que
destinem a outros estados: petróleo (inclusive lubrificantes),
combustíveis líquidos e gasosos deles derivados; e energia
elétrica, embora os estados venham tentando burlar tal dispositivo, através da celebração de convênios, mesmo que
inconstitucionais e ferindo aos princípios da vinculabilidade,
tipologia e estrita-legalidade.
7 Este é um sério problema acometendo o ordenamento brasileiro, pois quando
normas são consideradas inconstitucionais, há fortes pressões políticas para
se alterar a Carta Magna, mesmo quando tal tarefa é impossível e municia a
paulatina destruição da ordem jurídica posta, provocando perigosas máculas
à segurança jurídica do cidadão no Estado, que sequer cumpre as pautas de
conduta por ele criadas.
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Luiz Edmundo Celso Borba
Vinculabilidade, posto que a conduta do sujeito ativo
de uma obrigação tributária tem de estar atrelada ao ordenamento jurídico, não se visualizando isso em tais casos.
Tipologia, ou tipicidade, tributária, por se ferir o comando
normativo maior, a Carta Política Brasileira, ao se aumentar
o espectro das hipóteses de incidência, através de convênios,
vilipendiando o princípio maior da estrita-legalidade, por ser,
só a lei, o instrumento inovador no âmbito tributário, devendo
provir do legislativo, salvo raras exceções previstas na Carta
Magna, nas quais não se adequam os convênios.
Voltando ao assunto a medida normativa conferindo
imunidade para o ICMS de bens a serem exportados, tem a
louvável visão de facilitar a exploração e evitar a bitributação, pois certamente o país destinatário de tais bens tributará
esta mercadoria, bem ou serviço, com o intuito de proteger o
seu mercado nacional, ás vezes com carga superior à casual
naquele país, internamente, em um exercício próprio do
Direito Econômico.
Não seria correto adotar outra postura senão a da alínea
“a” do inciso X do parágrafo 2º do Artigo 155 da Carta
Magna, alterada pela Emenda Constitucional nº: 42/2003,
para evitar o problema e assegurar a devida compensação
do montante já pago anteriormente.
Há também o acréscimo da alínea “d” a este inciso, através da Emenda Constitucional de nº: 42/2003, no que tange
às prestações de serviços de comunicações nas modalidades
de radiodifusão sonora e de sons e imagens de recepção livre
e gratuita.
O inciso XI trabalha na exclusão da base de cálculo do
ICMS do valor do imposto sobre produtos industrializados,
quando uma operação for realizada e esta for suficiente para
caracterizar o fato gerador para estes dois impostos. Claro,
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A PEC 233/08 e a pretensão de modificação dos “Grilhões de Hermes”: A tentativa de alocação...
pois caso contrário o sujeito passivo seria ainda mais onerado,
bitributado acima de sua capacidade contributiva, arcando
com um cálculo do ICMS acima do valor do IPI, ou seja,
pagando tributo sobre tributo, algo inadmissível.
Por fim, o último inciso do parágrafo 2º do Artigo 155
da Carta Magna, institui o comando de ser da competência
legislativa de uma Lei complementar: a) definir os contribuintes do ICMS (neste caso diria ser mais conveniente o
uso do sujeito passivo, por haver a responsabilidade tributária
indireta, na maioria dos casos incidentes); b) dispor sobre a
substituição tributária; c) disciplinar a forma adequada para
a compensação deste imposto;8 d) fixar para efeito de constituição e arrecadação do crédito tributário, a definição de
estabelecimento responsável, o local das operações relativas
à circulação de mercadorias e das prestações de serviços;9 e)
afastar a incidência do ICMS, nas exportações de produtos e
serviços além dos citados no inciso X alínea “a”; f) a previsão
nas hipóteses de incidência de casos para a manutenção do
8 Sobre este assunto, Kiyoshi Harada (2002, p. 386), na nota de Rodapé de
nº: 130, informa: “Atribui-se ao legislador eqüidistante a tarefa de instituir o
regime de compensação de impostos entre os Estados que, se implementado,
poderá minimizar os inúmeros problemas decorrentes de efeitos econômicofinanceiros deste imposto,que ultrapassam as fronteiras estaduais. Em razão
do princípio da não-cumulatividade, este imposto ficaria melhor se inserido
no âmbito da competência da União.”
9 Elemento, também, essencial à presente pesquisa, pois inexiste uma previsão em Lei Complementar de “fixação do lugar” do início da operação no
ambiente virtual, algo que é impossível em termos práticos, por que os meios
eletromagnéticos são extremamente cinéticos, mas deveria, ao menos, ser
convencionado, mas, ainda infelizmente, não o foi, tornando inconstitucional
a incidência do ICMS. Ressalto que abordei esta matéria em artigo específico
no volume anterior desta revista.
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crédito tributário, relativamente à remessa para outro Estado
e exportação de serviços e mercadoria; g) regular a forma
como, mediante deliberações dos estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos
e/ou revogados, segundo os princípios da estrita-legalidade,
vinculabilidade e tipologia; h) esta alínea foi trazida ao texto
constitucional pela Emenda de nº: 33/2001, fazendo necessária a definição, em Lei Complementar, de quais combustíveis
e lubrificantes incidirá o ICMS, uma única vez, qualquer que
seja a sua finalidade, independente dos postulados do inciso
X, alínea “b”;10 i) a Emenda Constitucional de nº: 33/2001,
por fim, a fixação da base de cálculo de modo que o montante
do imposto a integre, também na importação do exterior de
um bem, mercadoria ou serviço.
Por estas e outras razões o ICMS desempenha o papel
de um dos tributos mais complexos do Sistema Tributário
Nacional, pois na prática os titulares deste imposto, seus
sujeitos ativos, tendem a desrespeitar o texto constitucional
com o objetivo de aumentar a sua incidência, gerando uma
série de impropérios do tipo dos aqui apresentados, e que se
repetem, agora, no comércio eletrônico-digital, como será
visto no 11º capítulo do presente trabalho.
A sua operacionalização é complicada porque não envolve apenas os interesses dos estados e do Distrito Federal,
mas também da União, responsabilizada pelo equilíbrio
fiscal entre os possíveis sujeitos ativos do ICMS, através
10 Este inciso, em várias alíneas, revela um desconcertante contra-senso e a
Emenda Constitucional, por si só, ante ao choque evidente ao texto da Magna
Carta, mostra-se inconstitucional, ainda que existam alterações nela através do
mecanismo “adequado”, não há como se aquilatar modificações relativas às
cláusulas pétreas, como as que definem e especificam a natureza e características do ICMS, por ser este um acordo que assegura a autonomia e independência dos Estados e do D.F., bem como compõe os direitos fundamentais
do contribuinte, intocáveis.
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A PEC 233/08 e a pretensão de modificação dos “Grilhões de Hermes”: A tentativa de alocação...
da elaboração de Lei Complementar, quando necessário, e
as pressões políticas são tremendas, por tal conta, pondo o
direito muitas vezes de lado.
Sobre o tema se manifesta, em igual sentido, Kiyoshi
Harada:
O ICMS, atualmente, é um dos tributos mais complexos, complicados e de difícil operacionalização.
Com o advento da Lei Complementar referida no
art. 155, § 2º, inciso XII, da CF, era de esperar que
fosse regulamentada ‘a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções,
incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e
revogados’, como manda a Carta Magna. (Art. 155,
§ 2º, XII, g.)
Todavia, Lei Complementar nº: 87, de 13-9-1996,
editada com fulcro na disposição constitucional retro
apontada omitiu-se completamente sobre o assunto
em razão dos vetos opostos pelo Executivo, talvez,
por pressões de governo estaduais. Dessa forma,
continua regendo a matéria a Lei Complementar nº
24, de 7-1-1975, que permite aos Estados integrantes
da mesma região geoeconômica, sob os discutíveis
auspícios do Confaz – poderoso órgão da União –
celebrar convênios através de seus Secretários, para
serem ratificados por decretos do Executivo e não
pelo Legislativo, como deveria ser.
Além de não disciplinar matéria de sua competência,
essa Lei Complementar nº 87/96 veio promover a
federalização do ICMS como que antecipando a
Reforma Tributária, em tramitação no Congresso
Nacional. Tanto é que, em troca da desoneração fiscal nas operações e serviços destinados ao exterior,
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o art. 31 prevê pela União, até o ano 2002, [Não
sabemos a razão desse limite com possibilidade de
se estender até o ano de 2006 (§ 4º do art. 31). É
provável que os legisladores tenham previsto, até
lá a elaboração de um novo pacto federativo em
matéria de discriminação de rendas tributárias.],
recursos esses a serem apurados com base na efetiva
arrecadação do ICMS no período de julho de 1995
a julho de 1996.
Por conta dessas transferências, a União ficou autorizada a emitir títulos da dívida pública, sem maiores restrições que não sejam aquelas referentes às
condições e aos limites globais fixados pelo Senado
Federal, além de buscar outras fontes de recursos.
Isso é bastante preocupante. Emissão de títulos
vinculados, entre nós, é sinônimo de desvio e novas
fontes de recursos, normalmente, acaba implicando
criação de novo tributo.
Essa Lei Complementar, aprovada de afogadilho,
embora necessária do ponto de vista econômico,
contém inúmeras inconstitucionalidades. (2002, pp.
387 e 388)
Infelizmente, muitas vezes, procedimentos temerários
são tomados no sentido de aumentar o alcance das hipóteses
de incidência existentes, e o mais preocupante é quando se
tornam regra no nosso País, ainda que se revelem inconstitucionais ou abusivos em relação aos direitos fundamentais
dos contribuintes. Tal procedimento vem se avolumando,
execravelmente, em especial quando observada a postura
dos fiscos estaduais e distrital em correlação com o comércio
eletrônico-digital.
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Trazidos ao presente texto os elementos necessários à compreensão do ICMS, faz-se oportuna, ainda que em um breve
estudo, a análise dos termos: mercadoria e prestação de serviços,
em decorrência da aplicação do ICMS no mercado pátrio.
2 – A MERCADORIA
A mercadoria desempenha um relevante papel para a
aplicação do ICMS, por conta da operação relativa à sua
circulação, sem haver o esquecimento dos serviços, que
não serão alvo da presente abordagem, por uma questão
metodológica, mas não se descarta o seu tratamento
futuro, em outros trabalhos. Para tanto será conceituada
a mercadoria, assim como haverá a definição de suas
características, e um escorço da viabilidade, ou não,
da aplicação de tais preceitos no âmbito do comércio
eletrônico-digital.
A mercadoria é um bem móvel sujeito à prática mercantil cíclica, constituindo seu maior objeto; para sua análise e
estudo há o dever de obediência aos ditames da legislação
mercantil, observando a destinação do móvel, relativa à venda e revenda com o objetivo de auferir lucros (CARRAZA,
2003, pp. 40 e 41). Só após se estar ciente da destinação
do bem, será possível determinar se o mesmo é, ou não,
mercadoria.
Há a necessidade de atenção a tais comandos, para se
evitar a confusão dos bens considerados como mercadorias,
em relação aos demais. Para tanto o operador do direito
haverá de utilizar as definições próprias do direito civil e
do direito comercial, diante dos desígnios do Artigo 110 do
CTN, marco impeditivo de possíveis alterações ao conteúdo
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e alcance de institutos próprios de outros ramos do direito,
em especial de direito privado. (GRECO e LORENZO,
2001, p. 535)
Desta maneira, o conceito de mercadoria se atrela, por
força do tipo previsto no regime jurídico em vigor, à inarredável finalidade de compra e venda, sendo mais restrito
o seu conceito, do que o dos demais bens, por ser apenas
uma espécie deste gênero. O ICMS, então, foi pensado pelo
constituinte, indubitavelmente, como tendo um fato gerador
haurido por uma transmissão mercantil, hipoteticamente
prevista.
Para o ICMS o termo mercadoria terminará se atrelando
aos conceitos de: operação, circulação, prática mercantil e
lucro (como fenômeno econômico), tendo por base a revenda,
tanto que saindo da circulação, não mais poderá ser considerado com mercadoria (MELO, 2003, p. 19). Corroborando
com as afirmações acima:
A confirmação de que um bem integrado ao ativo
deixa de ser mercadoria para fins de incidência do
ICMS está no art. 21 da Lei Complementar n. 87/96,
que na sua redação original determinava o estorno
parcial do crédito utilizado quando da sua aquisição,
se, em determinado prazo, ele vier a ser objeto de um
dos eventos ali enumerados, e na redação dada pela
Lei Complementar 102/2000, prevê o creditamento
paralelo à razão de 1/48 avos ao mês. Se há obrigação
de estorno do crédito fracionado, é porque a operação
subseqüente (p. ex. alienação do bem do ativo) não
está sujeita ao ICMS, pois, se estivesse, o creditamento integral e a sua manutenção plena seriam de rigor
por força da regra da não-cumulatividade. (GRECO
e LORENZO, 2001, p. 536)
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Carvalho de Mendonça traz uma diferenciação e conceituação das várias fases pelas quais passa o bem móvel
(quando considerado mercadoria):
as coisas quando objeto de atividade mercantil, por
outra quando objeto de troca de ‘circulação econômica’ tomam o nome de mercadorias. Commercium
quasi commutatio mercium. A coisa, enquanto se
acha na disponibilidade do industrial, que a produz,
chama-se produto, manufato ou artefato; passa a ser
mercadoria logo que é objeto de comércio do produtor ou do comerciante por grosso ou a retalho, que
a adquire para revender a outro comerciante ou ao
consumidor, deixa de ser mercadoria logo que sai da
circulação comercial e se acha no poder ou propriedade do consumidor. (MELO, 2003, p. 17)
Há, então, a problemática de se adequar o conceito de
mercadoria às novas vertentes comerciais existentes, entre
elas o comércio eletrônico-digital, até porque elas não foram
pensadas pelo legislador constituinte de 1988, por não existir
no País, tal prática comercial à época, como elucida José
Eduardo Soares de Melo:
O download (transporte de arquivos da Internet para
outro computador, ou transferência de dados de um
micro para outro micro, como é o caso de fornecimento de produtos, bens e serviços de diversificada
natureza – passagens aéreas, publicidade, leilões,
banco-eletrônico, consultorias, files revistas, músicas,
etc.) também não caracteriza ‘mercadoria’. Na web
(área multimídia da internet) é possível a realização
de serviços centralizadores (as informações são baiRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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Luiz Edmundo Celso Borba
xadas pelo provedor para o usuário), ou possibilitar
que o usuário obtenha os elementos diretamente dos
micros onde estejam os produtos (filmes, músicas,
etc.), de seu interesse.
No primeiro caso o computador solicita serviços de um
servidor, que dispara pesquisa em outros servidores, vindo
(o mesmo computador) a receber as respostas que o servidor
obteve. Na segunda situação (sistema peer–to–peer- colega a
colega, ou ‘entre partes’), o computador envia pesquisa para a
rede; as máquinas ligadas à rede respondem se podem atendêlo; o usuário escolhe uma conexão e recebe resposta.
Este bem ‘digital’ não consubstancia as características
de âmbito legal (art. 191 do Código Comercial), e constitucional (art. 155, §3º) de mercadoria,além de que o respectivo
‘software’ representa um produto intelectual, objeto de cessão de direitos, de distinta natureza jurídica, o que tornaria
imprescindível alteração normativa.”(2003, pp. 19 e 20)
Estes argumentos são suscetíveis de um merecido debate já propiciado no número 02 da presente revista, por
agora ressalto a relevância e vulto tomado pelo comércio
eletrônico-digital e a discussão, muitas vezes, motivada por
um bem tributado como mercadoria, mas que poderia ser
serviço e vice-versa.
Fato igualmente necessário de ser ponderado, nas informações trazidas por José Eduardo Soares de Melo, reside na
afirmação das hipóteses de incidência atuais serem inaptas
para alcançar a prática mercantil, em ambiente cujo plano
de fundo sejam os meios eletrônicos-digitais.
Coaduno, perfeitamente com tais pensamentos, os quais
sempre dediquei defesa, não querendo com isto afastar a incidência do ICMS, jamais! Apenas há de se lutar pela correta
aplicação imposto, após sejam tomadas as necessárias mediRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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A PEC 233/08 e a pretensão de modificação dos “Grilhões de Hermes”: A tentativa de alocação...
das legislativas, no sentido de inovar o ordenamento patrício
e se respeitar os princípios ligados aos direitos fundamentais
do contribuinte.
3 – OS SERVIÇOS
A Constituição Federal também prevê a incidência do
ICMS sobre serviços não alcançados pelo imposto, municipal, sobre os serviços de qualquer natureza – ISS (ou nem
todas, pois ficam excluídos, além dos serviços passíveis ao
ICMS, os não constantes na restritiva lista de incidência deste
tributo municipal). Tais serviços são os de comunicações,
transportes intermunicipais e interestaduais.
Em relação a estes serviços, há a clara e necessária explicitação de uma maior intenção dos esforços da presente
pesquisa, no tangente às comunicações, posto que em relação
aos transporte, o comércio eletrônico-digital poderá marcar,
tão somente, o início da operação e não outras fases a serem
constatadas e dadas em meio físico.
A questão, como já mencionado, reside no ICMS ser
oriundo do antigo ICM e a inserção dos serviços, vem com
uma adaptação deste imposto, propiciando a tributação de
serviços não alcançados pelo ISS, relativos às municipalidades, assim como os prestados juntamente com a venda,
ou revenda, de mercadorias de forma una. (GRECO e LORENZO, 2001, p. 538)
A prestação de serviços, seguindo o caminho trilhado por
Júlio Maria de Oliveira (2001, p. 76 e 77), surge da junção de
dois vocábulos: a) prestação – indicando o efeito de prestar,
dar ou fazer algo, em suma; e b) serviço – a ação ou o efeito
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de servir, exercer uma função ou desempenho de préstimos
úteis, proveitosos. (FERREIRA, 2001, p. 592 e 672)
Assim, a prestação se origina do latim praestatio, do
pra-estare, exprimindo a ação de dar ou satisfazer algo a
ser cumprido. A prestação é, via de regra, o objeto maior
da obrigação, sendo mútua entre as partes, assim como nas
obrigações tributárias. Atualmente a prestação se vincula
mais proximamente às obrigações de dar (prestação de coisas), obrigações de não-fazer ou fazer (prestações de fato).
(OLIVEIRA, 2001, p. 76 e 77)
Os serviços, analisando-os individualizadamente como
feito com a prestação, vem do latim servitium, exprimindo
o estado de ser servo, escravo ou de quem trabalha para um
amo. Atualmente implica em um acúmulo ou complexo de
atividades exercidas em favor de uma entidade jurídica,
pessoa ou corporação para outrem (Idem, p. 77).
O serviço, nos moldes do Direito Civil, é a atividade
lucrativa efetuada em favor de outrem, através de atividades
físicas e intelectuais. Júlio Maria de Oliveira traz uma gama
de possíveis acepções para a prestação de serviços, nos seguintes termos:
Considerados os vocábulos prestação e serviços em
conjunto, ter-se-á expressão prestação de serviços,
que, segundo entendemos, caracterizar-se-á pelos
seguintes elementos:
(i) o fornecimento de um objeto, no caso de um
fazer de um prestador de serviços, em prol de um
outro sujeito de direito;
(ii) o fazer referido possui nítido caráter econômico, na medida em que sua realização faz nascer
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um dever de contraprestação pelo contratante da
prestação em face do prestador;
(iii) daí que se mostra impossível uma prestação
de serviços que não envolva dois ou mais sujeitos de direito, algum(ns) no pólo das prestação e
outro(s) no pólo da contratação (relação jurídica,
portanto irreflexiva);
(iv) o serviço se caracterizará pelo desempenho
de atividade ou trabalho intelectual em prol de outrem, que resulte numa obra (utilidade) tangível ou
intangível (material ou imaterial). (2001, p. 78)
4 – A PROPOSTA DO, FEDERAL, IVA TRAZIDA
PELA PEC 233/08.11
A proposta de emenda constitucional (doravante,
PEC) de número 233/08, trata da proposta de reforma tributária de iniciativa do Poder Executivo Federal, ao Congresso,
mostra que o Imposto sobre Valor Adicionado (doravante,
IVA) “pretende” ser um super-imposto federal. A base sobre
a qual incidirá será mais ampla que a de todos os demais
tributos do País e equivalerá às bases somadas do Imposto
sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e do
11 Por questões metodológicas, pelo espaço disponível par apresentação do
presente texto, apenas abordarei os aspectos mais viscerais da Proposta de
Emenda Constitucional 233/08, a respeito do ISS e do ICMS (este último
cerne do presente artigo), não abordando outros tributos incidentes sobre o
sistema produtivo.
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Imposto sobre Serviços (ISS); ou seja, será cobrado sobre,
praticamente, todas as atividades econômicas.12
Inclusive, o próprio Governo lança uma cartilha para
explicar a natureza e “benefícios” do IVA,13 no intuito de
tentar demonstrar que a reforma tributária terminaria por
desburocratizar e alavancar o crescimento do País, evitando
embates fisciais entre os municípios e estados membros da
federação brasileira, além do Distrito Federal; ao mitigar
distorções entre as cargas tributárias destes diferentes entes
federativos, procurando garantir uma “certa” igualdade de
tratamento.
Principalmente, segundo posição exarada por este
órgão ministerial, quando o País se encontra em uma fase
de crescimento econômico, carente de uma maior “desburocratização fiscal”, para mover seu crescimento de forma
satisfatória. Acontece que a defesa de tal posicionamento,
embora lógica e salutar, representa uma realidade um tanto
quanto complicada, pois a CF de 88, diante do apresentado
nos capítulos anteriores, veda a quebra do federalismo, da
territorialidade, até porque se contraria a adoção de políticas econômicas regionais, além do vilipêndio, inevitável,
da soberania e autonomia política e financeira das pessoas
jurídicas de Direito Público, em especial o DF, os estadosmembros e os municípios.
Este aspecto precisa ser visualizado, pois como querer
que posturas “uniformizadas” gerem um desenvolvimento,
12 O texto que serve de base de pesquisa, para tais afirmações, resulta da leitura
da própria PEC 233/08, que, entre outros sítios, está disponível em: <http://
www.camara.gov.br/sileg/integras/540729.pdf>, coletado em: 16 de
Junho de 2008.
13 A cartilha explicativa, elaborada pelo Ministério da Fazenda, da PEC 233/08,
pode ser visualizada em: <http://www.estadao.com.br/ext/especiais/2008/02/
Cartilha-Reforma-Tributaria.pdf>, texto coletado em: 16 de Junho de 2008.
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A PEC 233/08 e a pretensão de modificação dos “Grilhões de Hermes”: A tentativa de alocação...
“igual”, para as diferentes regiões de um País com características continentais? Não é sem razão, que a CF de 1988 institui
as competências tributárias, dividindo a carga tributária entre
os entes federativos, de forma a assegurar meios hábeis de
receita às várias esferas da administração pública, como se
observa nos seus artigos 145 a 169, quando trata do Sistema
Tributário Nacional e as regras Financeiras, orçamentárias,
aplicáveis.
Tentando “resolver” este, inquebrantável, embate, o governo trabalha com a hipótese de utilizar a menor alíquota do
IVA para o setor de serviços, para que sua carga não aumente
de forma a obstaculizar o crescimento econômico; mas essa
definição terá de ser feita por lei complementar, já que a
emenda não estabelece o número de alíquotas do imposto.
Mas e até a formulação, complicada, de tais normas, qual
seria o cenário fiscal?
A proposta de reforma prevê ainda que o IVA será regido
pelo princípio da noventena, ou seja, mudanças de alíquotas
passam a valer 90 dias depois de aprovadas pelo Congresso,
e não no ano seguinte. Outro sério problema, pois, ao meu
ver, o princípio da anteriroridade é ferido mortalmente com
estas “soluções” práticas, mas impossíveis sob a égide Constitucional (art. ISO, III, “a” e “c”).
Desta forma o Executivo Federal vende a imagem
de querer descomplicar o cenário tributário nacional, até
mesmo de minoração da carga tributária, medidas que são
plenamente louváveis, mas não da forma que está sendo proposta, até porque há manifesta inconstitucionalidade, diante
do retromencionado; e o, suposto, benefício se tornará um
problema grandioso de ordem política, em primeiro plano, e
posteriormente de ordem judicial, diante da inevitável enxurrada de ações movidas contra tais medidas, não só por parte
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Luiz Edmundo Celso Borba
dos contribuintes, mas, até mesmo, pelos entes federativos
prejudicados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Vistas tais hipóteses há a constatação do incrível alcance do ICMS e suas implicações em relação à economia,
ponderando-se as mercadorias e os serviços passíveis à
operação de circulação, prescrita na Magna Carta e nas
normas infraconstitucionais federais (leis complementares)
e estaduais (leis ordinárias).
Assim, é clara a demonstração da total improcedência de
modificação da ordem tributária, no sentido de criar o IVA
em substituição ao ICMS; posto que a Carta Magna, e seu
inafastável federalismo; jamais14 suportariam tal estrutura
tributária, pois ela vai de encontro à personalidade jurídica
do Estado Brasileiro e seus limites de atuação política sobre
a propriedade privada.
Além do mais, a União Federal teria sérios problemas
para viabilizar tratamentos tributários de acordo com as características produtivas de cada estado-membro da federação,
pois o ICMS atua como incentivador, ou desencentivador,
de atividades de circulação de bens e serviços, diante do
princípio da uniformidade da tributação, consagrado pela
Magna Carta Brasileira em seu artigo 151, inciso I.
Daí outro forte motivo para não o federelalizar, pois o
controle e incentivo dos mercados estaduais estaria extremamente obstaculizado, em razão de um motivo menor e
14 Salvo com a quebra da atual ordem jurídica e instituição de uma nova, com
base em outras políticas do Estado para com a Sociedade e outros Estados
Soberanos.
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A PEC 233/08 e a pretensão de modificação dos “Grilhões de Hermes”: A tentativa de alocação...
contornável através de convênios entre estados, uma “possível” “guerra fiscal”.
“Provavelmente” a União não opta por tal caminho, diante
do desgaste político e das implicações normais de aprovação,
cada vez que necessário, de normas estaduais que atuem de
forma uníssona no território nacional, ao envolver vários entes
políticos, com diferentes anseios e prioridades. A discussão e
o convencimento seriam de extrema complexidade.
É claramente mais “fácil” (sic) resolver a questão de uma
só vez, mesmo que isso acarrete em sério gravame jurídico,
político e social. A história nos mostra que tais atalhos têm
um alto custo social e geram o consecutivo descrédito na
ordem jurídica, pois criam uma falsa impressão de que o
Executivo “pode” tudo.
E isso “é” o IVA (na prática): a sonegação das bases e
princípios cogentes ao Sistema Tributário Nacional, diante
da adoção de medidas assecuratórias para a eficiência do
Mercado Brasileiro em um mundo globalizado, usando-se
de uma, injustificada, “celeridade”, para se fazer o “melhor”
para a Sociedade Brasileira (sic); ou seja é a busca por soluções sem guarida legal. O IVA é uma forma de unificar
as regras sobre circulação de mercadorias, para o fortalecimento e segurança ao MERCOSUL, ou qualquer outra
zona de mercado comum. Tenta-se justificar a ilegalidade
e inconstitucionalidade com a utilitarista operacionalidade
econômico-jurídica (fatores que nem sempre servem aos
anseios sociais mais lídimos).
A Carta Magna já traz os mecanismos viáveis e estes
implicam na fixação de resoluções do Senado Federal, pois
a competência tributária, sobre a circulação de mercadorias
e os “serviços de massa”, deve ficar a cargo dos Estados e
seus representantes; jamais da União, caso contrário, também
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Luiz Edmundo Celso Borba
devemos pensar no fim do federalismo e da autonomia administrativa das pessoas jurídicas de Direito Público, sempre
que isso obstaculizar a iniciativa econômica.
Não podemos nos esquecer, dando ênfase às probabilidades, do que poderia acontecer de “pior”: a União Federal retendo recursos que devem ser repassados, só por alguns dias,
dois ou até mesmo três (apenas), para os estados–membros
da federação. O caos seria tremendo e as implicações as mais
catastróficas; portanto, não há autonomia sem independência
financeira e o ICMS é a mais alta fonte de receita tributária
em nosso País.
Mais uma vez, a história nos mostra que o excessivo controle e poder da União tendem a gerar políticas que não atendem aos
anseios da maioria, tão somente fortalecem o Executivo Federal
e subordina as instâncias inferiores da administração pública.
Diante disso, a nossa “luta” contra a PEC 233/08 é necessária
companheiros, caso contrário os malefícios serão insanáveis,
assim como a interferência na autonomia administrativa e na
própria integridade política e jurídica do Texto Maior.
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CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2002.
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Luiz Edmundo Celso Borba
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MARTINS, Sérgio Pinto. Manual de Direito Tributário. São Paulo: Atlas, 2003.
MELO, José Eduardo Soares de. ICMS Teoria e Prática. São Paulo: Dialética, 2003.
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Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
Recife – ano 3 – n. 3 – p. 209-244 – 2008
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O PAPEL DO JUIZ NA PRODUÇÃO
DA CONSCIÊNCIA INCLUSIVA E PARA
A EFETIVAÇÃO DA INCLUSÃO: O JUIZ
CIDADÃO E AGENTE POLÍTICO
Marcílio Florencio Mota1
S umário: Introdução. 1. A consciência inclusiva: formação, informação e políticas para promover a inclusão. 1.1.
A maioria dos brasileiros como excluídos. 1.2. As minorias
discriminadas. 2. O juiz, sua atuação cidadã e como agente
político para a inclusão. 2.1. O juiz em atuação cidadã. 2.2.
O juiz como agente político para a inclusão. 3. A consciência
inclusiva do juiz e a linguagem jurídica. 4. A hermenêutica a
favor da inclusão. 4. Considerações finais. (Referências).
INTRODUÇÃO
As linhas que seguem são motivadas pela discussão sobre
a efetivação dos direitos trabalhistas, principalmente encampada pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça
do Trabalho – ANAMATRA – ainda que não as vinculemos
a específica efetivação dos direitos dos trabalhadores.
1 Especialista em Direito do Trabalho pela Universidade Católica de Pernambuco, Mestre em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, Juiz
Titular da 1a Vara do Trabalho do Paulista e Professor da Faculdade Maurício
de Nassau.
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Marcílio Florencio Mota
O tempo é deveras oportuno, ao menos por dois aspectos
fundamentais: inicialmente, em vista da constatação de que
o Direito do Trabalho deve seguir a onda que preconiza a
efetivação dos direitos mais que a importante fixação deles
num diploma legal qualquer. Em segundo lugar, pela crescente atenção que os juízes têm recebido dos demais atores
sociais no que respeita ao seu trabalho para a efetivação de
direitos.
Num primeiro instante, discorreremos sobre a consciência inclusiva, sua formação e informação, sobretudo a partir
da constatação da exclusão, da avaliação de alguns dos fatores
que a promovem e a partir da perspectiva de substancial alteração no status quo a partir da difusão de políticas inclusivas
e da atuação jurisdicional inclusiva.
Na seqüência, trataremos da importância do trabalho
do juiz na formação da consciência inclusiva e também
na efetivação da inclusão. Aqui abordaremos a atuação
do juiz pela ótica de uma postura cidadã, em cooperação
com outros agentes sociais para a transformação pela
educação e, num segundo momento, tendo em vista seu
papel no conjunto dos operadores jurídicos, a partir do
qual exerce importância fundamental para a efetivação
de direitos.
Como conseqüência da proposta de trabalho, cuidaremos
mais particularmente de dois aspectos da atuação do juiz: a
linguagem e a hermenêutica.
É certo que precisávamos delimitar o objeto de nosso
trabalho, afinal são praticamente inesgotáveis os temas
relacionados ao labor do juiz, pelos quais ele pode revelar
uma atuação cidadã e também para a efetivação de direitos.
Temos, contudo, visão maior, a de que os aspectos eleitos
são fundamentais, basilares, através dos quais se dá, mais
Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
Recife – ano 3 – n. 3 – p. 245-277 – 2008
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O papel do juiz na produção da consciência inclusiva e para a efetivação da inclusão: o juiz cidadão...
expressivamente, a percepção da importância social do
juiz.
Por último, oferecemos as considerações finais e as
referências.
1 – A CONSCIÊNCIA INCLUSIVA: FORMAÇÃO,
INFORMAÇÃO E POLÍTICAS PARA PROMOVER
A INCLUSÃO
Os dias atuais, em grande parte das sociedades, têm
sido caracterizados pela inquietação promovida pelo reconhecimento de que nós não temos conseguido promover a
igualdade material entre todas as pessoas, pressuposto do
bem-estar geral para o qual os estados e as organizações
sociais foram pensados pelos seres humanos3.
Mais. Aflige-nos, ainda, a constatação de que grande
parte do problema foi criada justamente por falhas em nossas
organizações. Porque nós e nossos predecessores não tivemos
a formação necessária para o fomento da inclusão e, antes,
assumimos a exclusão.
Porém, de que estamos falando especificamente ao tratar
de inclusão? A inclusão é, no seu sentido etimológico, a ação
de pôr para dentro. Nesse caso, pôr para dentro as pessoas
que estão fora, os periféricos ou marginais. Mas, pôr para
dentro de onde? Não para dentro de um lugar específico, por
óbvio, todavia, para permitir que todas as pessoas participem
em igualdade de condições dos bens sociais e, o deles mais
3 A revelação dessa perplexidade são os inúmeros organismos vinculados à
Organização das Nações Unidas – ONU - para a promoção de melhoria nas
condições das pessoas, de que são exemplos o PMA (Programa Mundial da
Alimentação), o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), e o UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância).
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Marcílio Florencio Mota
fundamental, o de atuar com percepção de poder para a realização pessoal e para as transformações do mundo.
Assim, chegamos ao que pretendemos tratar neste trabalho por “excluídos”. Os excluídos são aqueles aos quais se
nega a formação e a informação para a transformação pessoal
e do grupo social a que pertence. Esses são aqueles que, muitas vezes como conseqüência da falta da percepção de poder,
são alijados do gozo dos bens produzidos por todos.
Excluídos são também aqueles que sofrem restrições ou
impedimentos quanto a um agir transformador ou gozo de
bens em vista de alguma condição peculiar, embora possuam,
eventualmente, consciência de que detêm parcela do poder4.
1.1 A maioria dos brasileiros como excluídos
À maioria da população brasileira se nega a formação
e as informações necessárias à compreensão do status de
pessoa com todas as implicações dele decorrentes. Falamos
aqui, principalmente, do contingente populacional atingido
pela falta de escolas e pela precariedade das que existem
(SOLARI, 1984).
Parte significativa da população brasileira não tem acesso
à escola simplesmente porque não há escolas que comporte
todos. Não menos lamentável e triste, porém, é o caso dos
milhões que não vêem na escola, porque precária, uma instância capaz de alterar a sua sorte na vida. A escola pública
no Brasil perdeu, há pelo menos três décadas, a condição de
instituição suficiente à promoção de ascensão social (SALOMÃO, 2006).
4 A formulação da idéia de excluídos considera, primordialmente, o Brasil,
porém é igualmente aplicável à maioria das nações.
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O papel do juiz na produção da consciência inclusiva e para a efetivação da inclusão: o juiz cidadão...
O descrédito na escola pública, por sua vez, é o resultado
de políticas de desvalorização do ensino público, das escolas, suas estruturas, seus equipamentos e, principalmente,
do desrespeito dos governos aos profissionais da educação
(SOLARI, 1984).
Há que se dizer, por outro lado, que o estado de abandono a que chegou a escola pública no Brasil não foi obra
do acaso. Foi opção dos vários governos que se sucederam,
nas três esferas de poder (federal, estadual e municipal), em
vista de uma visão inconseqüente do papel do Estado nas
sociedades atuais e, sobretudo, pela submissão impensada
das políticas de governo e de Estado aos ditames do poder
econômico, o qual não tem compromisso com as pessoas,
nem com as nações, nem com o futuro das gerações (SOLARI, 1984).
Não é sem razão que temos uma absurda concentração
de riqueza e um estado de verdadeira guerra civil em vista da
violência urbana. Ambos são os resultados mais visíveis do
desastroso caminho político trilhado desde a ditadura militar
(décadas de 60 e 70) até o governo Lula, inclusive.
No Brasil, resta a infeliz constatação de que milhões
são alfabetizados apenas formalmente, de que não intencionamos arregimentar professores vocacionados para as
nossas escolas públicas e que continuamos a permitir que
nossas crianças se sintam mais atraídas pelo mundo marginal das drogas ou do trabalho precoce incompatível com
a escola do que pela vida regular, capaz de lhes conferir a
dignidade de pessoa.
Quanto ao primeiro aspecto, falamos dos chamados
analfabetos funcionais. Pessoas alfabetizadas, que sabem
ler e escrever, mas que não são capazes de compreender o
mundo e a importância do saber, do refletir, para a sua próRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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Marcílio Florencio Mota
pria transformação e realização e para o bem estar de todas
as pessoas5.
Os professores vocacionados e melhor preparados, por
sua vez, são atraídos para a escola privada, que remuneram
em condição mais digna o nobre trabalho a que se dedicam.
O serviço público já não é atrativo por assegurar alguma
estabilidade no trabalho, apenas.
O trabalho precoce, muitas vezes fundamental à sobrevivência da criança e dos adultos de uma família, não é opção,
mas imposição da vida, quando não o é a vida marginal desde
cedo. Nos grandes centros urbanos mais e mais crianças são
atraídas para o “exército” do tráfico (MV BILL; ATHAYDE,
2006), para uma obtenção imediata de recursos em troca de
um fim de vida demasiadamente antecipado.
Nesse quadro, a inclusão da maioria da população brasileira passa, necessariamente, como amplamente diagnosticado por todos os estudiosos da matéria, por uma “revolução”
na educação.
É urgente que se reverta, o quanto antes, o tratamento
dado pelos governos à escola pública e gratuita. Ela tem de
ser de tal modo universal e eficaz ao ponto de competir com
as melhores escolas privadas e de permitir, em seu seio, o
encontro das diferentes classes sociais para, por fim, ajudar
a produzir a igualdade necessária na distribuição de renda,
a qual é pressuposto da paz interna nas sociedades contemporâneas.
5 Alexa Salomão relata na Revista Exame de 27/09/2006: “Em 2003, o Sistema
Nacional de Avaliação do Ensino Básico identificou que 55% dos alunos matriculados na 4ª série do ensino fundamental eram praticamente analfabetos e mal
sabiam calcular. Na 8ª série, menos de 10% dos estudantes haviam adquirido
competência para elaborar textos mais complexos. Como conseqüência, cerca
de 75% dos adultos têm alguma deficiência para escrever, ler e fazer contas,
o que acarreta um efeito devastador sobre sua capacidade de se expressar”.
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O papel do juiz na produção da consciência inclusiva e para a efetivação da inclusão: o juiz cidadão...
Para a revolução na educação, por óbvio, os governos,
em especial o governo federal, grande concentrador de
poder no nosso regime, terão de rever a política produzida
pela “teoria do estado mínimo”. Terão de impor o interesse
nacional, nas pessoas e no futuro das gerações brasileiras
aos organismos internacionais gerentes do capital especulativo.
Nesse contexto, fica reservado aos professores o papel
de principais agentes promotores da transformação social.
Para isso precisam ser estimulados com salários dignos,
proporcionais a sua importância para a sociedade, com uma
carreira que permita atualização de conhecimentos e progressão funcional e com um sistema de aposentadoria que
lhes permita segurança quanto ao futuro.
As famílias precisarão ser estimuladas a levarem suas
crianças à escola. A situação de momento, que se alterará somente a partir de cinqüenta anos da “revolução” na educação,
exigirá a adoção de políticas governamentais de incentivo
financeiro às famílias que dirijam seus filhos à escola. O
certo é que a escola pública capaz de competir com a escola
privada será, por esse status, por si só, por ser instrumento
de ascensão social, capaz de despertar o interesse de todas
as crianças e famílias (MACEDO, 2004).
1.2 As Minorias Discriminadas
As minorias discriminadas e, destarte, excluídas, são
contingentes populacionais, grupos, que sofrem restrições
ou impedimentos quanto a um agir transformador ou gozo
de bens em vista de alguma condição peculiar, embora possuam, eventualmente, consciência de que detêm parcela do
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Marcílio Florencio Mota
poder. Podemos arrolar, como tais, os grupos de deficientes
físicos, os negros, os homossexuais e os índios.
Aos deficientes físicos são impostas restrições e impedimentos os mais variados. Uma primeira grande dificuldade
vivenciada por eles é a da ordem de relações sociais (LINS,
1979). As escolas no Brasil, com suas estruturas e pedagogia, não foram preparadas e ainda resistem ao recebimento
de pessoas portadoras de deficiência entre as pessoas não
portadoras6.
Nesse quadro, gerações foram formadas com a cultura
de que os deficientes físicos não podiam ser incluídos, que
deveriam figurar num grupo apartado do convívio com as
pessoas ditas “normais”. Ao menos dois grandes problemas
foram criados por esse modo distorcido de ver as relações
entre as pessoas: a exclusão passou a ser tida com algo normal; e as pessoas “normais” e os deficientes foram privados
de uma convivência capaz de promover o conhecimento
mútuo, pelo qual é possível o descobrimento das diferenças
e das habilidades recíprocas, tudo pressuposto ao respeito e
ao fomento dos relacionamentos entre as pessoas.
Outro relevante problema para os portadores de deficiência são as chamadas barreiras arquitetônicas (LINS,1979).
As cidades, os prédios, as construções públicas de um modo
geral não foram projetadas em se pensando nas necessidades
dos portadores de deficiência. O acesso deles, então, aos bens
públicos, educação, cultura, lazer etc. são obstados por essa
arquitetura excludente.
6 A novela “Páginas da Vida”, exibida na Rede Globo de Televisão, tratou desse
problema. Em alguns de seus capítulos abordou o tratamento discriminatório
de uma professora a uma criança portadora da Síndrome de Dawn. Citamos a
novela pela relevante contribuição, nesse ponto, para o diagnóstico do problema
e para a educação inclusiva, conforme bem observa Artur da Távora em “A
Telenovela Brasileira”.
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O papel do juiz na produção da consciência inclusiva e para a efetivação da inclusão: o juiz cidadão...
Por sua vez, os negros no Brasil passam por um tipo
peculiar de discriminação, de tipo disfarçado, o qual, porém,
é forte gerador de exclusão. Não são tratados com discriminação ostensiva, no mais das vezes, mas subliminar, da qual
toda a cultura nacional está impregnada.
Aos negros a sociedade brasileira tem negado papel
social relevante. Poucos, em percentual insignificante, são
os que chegam à universidade pública, gratuita entre nós, e
menos ainda os que exercem cargo que revela poder, seja
no serviço público ou na iniciativa privada. Aos negros o
Brasil também impõe a pobreza como conseqüência da cor
da pele.
No que respeita aos deficientes físicos, em boa hora a
Confederação Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB – os
elegeu como alvo de “Campanha da Fraternidade”. A abordagem escolhida também não poderia ser mais feliz, o “vir
para o meio”, conforme o Evangelho de São Marcos capítulo
3, versículo 3, revela a preocupação com os dois principais
problemas enfrentados pelos deficientes físicos na nossa
ótica, o relacional humano e o físico-arquitetônico.
Numa primeira perspectiva, o convite de Jesus, o perfeito, no sentido de chamar para o meio um deficiente físico,
ensina aos não portadores de deficiência a necessidade e a
possibilidade do relacionamento entre pessoas diferentes, o
que, como vimos acima, foi ensino que nos foi negado na
escola, nossa primeira comunidade. Veja-se, a propósito, que
o homem da mão ressequida (Marcos, 3,1) estava, fisicamente, no interior da sinagoga, estava fisicamente incluído, mas
não estava relacionalmente incluído.
Diz a pedagogia de Jesus, igualmente, que é preciso
permitir que os deficientes físicos ingressem no mundo
particular, hermético, criado pelos não portadores de deRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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254
Marcílio Florencio Mota
ficiência, para o qual são convidados apenas aqueles com
os quais os “normais” se identificam imediatamente. Aliás,
essa identificação meramente física, superficial, não espiritual, acaba sendo obstáculo a que se pratique o ensinamento
fundamental da doutrina cristã, o “amar ao próximo como a
si mesmo”, na medida em que o deficiente não é o próximo
nesse mundo particular.
Por outro lado, esse convite para o meio também nos
impõe reflexão sobre as barreiras físico-arquitetônicas que
criamos, eventualmente sem a percepção disso, a que pessoas
diferentes possam acessar nosso mundo. Mais que a reflexão, porém, o ensinamento de Jesus nos diz da necessidade
de que todas as pessoas, organizações e governos derrubem
os obstáculos postos à inclusão física, moral e espiritual
dos deficientes a partir da construção de caminhos plurais,
acessíveis a todos.
Porém, se é certo que a lição de Jesus em Marcos 3:3
é dirigida, num primeiro sentir, aos que excluem, ou seja,
para aqueles que integram a maioria, os não portadores de
deficiência, como um exemplo pessoal de que é necessário
convidar os deficientes para o mundo dos não deficientes,
não é menos relevante perceber nela um estímulo à ação dos
próprios excluídos.
Vem para o meio, disse Jesus a um portador de deficiência.
Nesse convite, há a lição para os excluídos quanto a ser possível
ingressar no mundo criado pelos não deficientes, de que eles
podem atuar decisivamente para a inclusão. Jesus, vendo o
homem da mão ressequida, convidou-o a que se aproximasse
a fim de receber a cura. Sem a efetiva cooperação dele, Jesus
não teria operado o milagre, a cura, a inclusão.
Com a sua ação, aquele homem nos ensina que para a
inclusão é preciso que os deficientes atuem com coragem e
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O papel do juiz na produção da consciência inclusiva e para a efetivação da inclusão: o juiz cidadão...
procurem, a partir da educação, da atuação reivindicatória e
da política, vencer os obstáculos à inclusão.
Em relação aos negros, mais recentemente temos discutido e começado a praticar no Brasil as chamadas políticas
de discriminação positiva. Por elas, reservamos tratamento
diferenciado aos negros com o objetivo de melhorar as condições do conjunto das pessoas excluídas em razão da cor de
sua pele. Uma das significativas políticas, nesse sentido, é o
da reserva de cotas para o acesso dos negros às universidades,
mundo fechado dos brancos.
Embora essas políticas sejam objeto de controvérsia, inclusive entre os próprios integrantes dos diversos
movimentos negros, que argumentam que políticas dessa
ordem só produzem mais preconceito e discriminação,
experiências bem-sucedidas noutros países nos apontam
para a necessidade de sua ampla adoção neste país, ao
menos para que da prática delas tiremos lições quanto à
sua real importância para a inclusão dos negros (GOMES,
2003).
2 – O JUIZ, SUA ATUAÇÃO CIDADÃ E COMO
AGENTE POLÍTICO PARA A INCLUSÃO
Nesse ponto nos ocupamos das formas possíveis de
atuação do juiz na sociedade de modo a que ele coopere
com os demais agentes sociais para a educação inclusiva
e para a efetivação da inclusão das pessoas e dos grupos
marginalizados.
Destacamos, nesse primeiro momento que, no nosso sentir, todas as pessoas são chamadas pela vida à compreensão
do mundo, de suas circunstâncias e para as transformações
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256
Marcílio Florencio Mota
necessárias à sua própria realização e das demais pessoas
no mundo.
Por outro lado, essa realização como pessoa, no mundo,
se dá pelo exercício da cooperação com as outras pessoas
para a obtenção das condições mínimas de vida digna para
todos7.
A pessoa se realiza, então, quando vive dignamente,
quando obtém pelo trabalho as condições mínimas para a
sua sobrevivência, e quando percebe que atuou eficazmente
para que o conjunto das pessoas também se realize a partir
da própria experiência de trabalho e em cooperação com
outras pessoas.
Aliás, a percepção de que a vida chama à compreensão
do mundo e de seus desafios distingue a pessoa formada da
pessoa alienada, sendo que a alienação também é produto
desejado da dominação. Noutro dizer, os alienados são, no
mais das vezes, vítimas do poder que pretende negar a realização do outro em virtude de uma visão equivocada de que a
realização do outro é contra a sua própria realização. O poder
exercido na perspectiva de que a realização do outro é contra
a realização pessoal é poder alienado, inclusive8.
Então, a vida desafia as pessoas para que com sua
atuação educativa e com seu trabalho ajudem outras
pessoas a se compreenderem construtoras da realização
pessoal e das demais. A essas duas formas de atuação,
7 Alberto Rodríguez, especialista em educação do Banco Mundial e coordenador
de um estudo sobre as condições da educação nos países emergentes, disse,
em entrevista a Alexa Salomão, publicada na Revista Exame de 27/09/2006:
“Há muito tempo, sabemos que as deficiências do Brasil na educação afetam
a distribuição de renda e o crescimento pessoal dos indivíduos”.
8 Grande parte do sucesso de expressivas corporações é justificada pela capacidade que os administradores têm de perceberem que necessitam fazer os
demais integrantes da corporação compreender que são responsáveis pelo
êxito da instituição e partícipes dos resultados obtidos.
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O papel do juiz na produção da consciência inclusiva e para a efetivação da inclusão: o juiz cidadão...
no caso do juiz, chamamos atuação cidadã e como agente
político.
2.1 O juiz em atuação cidadã
Como é possível perceber das linhas que traçamos supra, entendemos como atuação cidadã aquela em difusão
da educação para a informação e a formação da pessoa. O
cidadão atua em cooperação com a outra pessoa para que ela
possa se realizar pelo próprio trabalho e a partir da ajuda que
ministrar às outras pessoas para o descobrimento do papel
delas no mundo.
Ganha relevo em nossos dias, nesse sentido, o chamado
“trabalho voluntário” (PEREIRA, 2003). Por esse instrumento, organizações da sociedade civil cooptam pessoas que têm
consciência da necessidade de sua atuação cidadã e a partir
dessas instituições atuam para as necessárias transformações
que as pessoas reclamam.
As diversas associações de magistrados no Brasil têm arregimentado juízes e atuado efetivamente em campanhas que
difundem a educação transformadora e inclusiva. Podemos,
nesse contexto, citar ao menos três programas de relevante
importância social: o da educação em torno de direitos das
pessoas, a campanha pela ética na política e a campanha pela
utilização de linguagem que permita a compreensão, pelo
homem médio, das coisas que se passam na Justiça.
Quanto ao primeiro programa, a Associação Nacional
dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA
– edita a “Cartilha do Trabalhador”, publicação em quadrinhos dirigida principalmente aos estudantes do ensino
fundamental maior e ensino médio, que instrui quanto aos
direitos dos trabalhadores e à forma de sua efetivação. O
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Marcílio Florencio Mota
programa é denominado de “Trabalho, Justiça e Cidadania”
e equipes de juízes do trabalho agendam visitas a escolas
para a entrega do material informativo e debate com os
estudantes sobre os temas, trabalho, justiça e cidadania
(ANAMATRA, 2006).
A AMATRA 6 – Associação dos Magistrados do Trabalho da 6ª Região –, que congrega os juízes do trabalho que
atuam em Pernambuco, divulga, periodicamente, ajuste de
visitas a escolas, dentre elas a que previa, na cidade de Cabo
de Santo Agostinho, a promoção da educação em torno de
direitos de cerca de 2,5 mil estudantes da rede pública do
município (ISTO POSTO, 2006, p. 7).
A campanha por eleições limpas é da Associação dos
Magistrados Brasileiros. A AMB diz que a “vigilância dos
juízes e da população resultará em eleições mais éticas” e
que sua intenção é quanto “a fornecer subsídios para que os
cidadãos denunciem ao Ministério Público Eleitoral quaisquer indícios de fraude” (AMB1, 2006).
A campanha em torno de eleições éticas se afigurou
extremamente oportuna naquele quadrante da vida nacional,
quando perto de findar a legislatura que mais foi objeto de
investigações na história do Brasil. Os escândalos se sucediam, inclusive no período eleitoral, e era fundamental que
todos os juízes e a população em geral colaborassem para a
construção de uma democracia isenta das mazelas que comprometem a legitimidade dos que exercem o poder político
(AMB2, 2006).
A utilização de uma linguagem que permita que as
pessoas em geral compreendam as coisas que se passam na
Justiça é o objeto da campanha, também da AMB, pela simplificação da linguagem dos operadores do direito. Através
dela a Associação dos Magistrados Brasileiros patrocinou
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O papel do juiz na produção da consciência inclusiva e para a efetivação da inclusão: o juiz cidadão...
palestras de afamado lingüista brasileiro, divulgou cartilha e promoveu concurso de monografias entre estudantes
universitários.
Identificamos ser relevante a iniciativa da representação
dos magistrados brasileiros no sentido de tentar diminuir
o fosso que separa o Poder Judiciário do povo (CALDAS,
1998) a partir da mudança na forma dos operadores jurídicos
expressarem suas petições, manifestações orais e decisões.
O Judiciário brasileiro ainda está distante do povo, mas
é alvissareiro notar que há um movimento e uma prática
crescentes na sociedade e na magistratura, ao menos desde
a Constituição de 1988, no sentido de tornar esse Poder mais
próximo do povo, de onde verdadeiramente o poder emana
e para o qual ele deve ser exercido.
Nesse contexto, a reflexão sobre a linguagem utilizada
na prática forense, a constatação de que ela é elemento de
inibição e fechamento e a busca da solução de sua simplificação como mecanismo de aproximação do Poder Judiciário
e o povo merecem todo o nosso aplauso.
2.2 O juiz como agente político para a inclusão
No tópico anterior abordamos a atuação cidadã do juiz,
perspectiva substancialmente do agir na informação e para
a formação da consciência inclusiva. Neste item trataremos
da ação do juiz na condição de agente político, em razão do
cargo que ocupa, como quem exerce poder, ou seja, como
quem decide com repercussão sobre a vida das pessoas.
A legitimidade do poder político é diretamente proporcional ao bem que ele promove ao conjunto das pessoas
destinatárias de suas ações. Nas democracias, então, a organização estatal é toda erigida sobre o pressuposto de que o
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Marcílio Florencio Mota
poder emana do povo, é exercido por concessão do povo e
para ele deve destinar as suas melhores ações.
O mundo nos revela, contudo, que, por razões as mais
diversas, porém principalmente geradas por formação deficiente das pessoas, aqueles que estão investidos do poder
político, inclusive nas democracias, exerce o poder, muitas
vezes, para o bem estar próprio, de familiares e de amigos,
em evidente desvirtuamento da finalidade da investidura9.
Embora esse tipo de distorção seja o mais grave no
exercício do poder, ele não é o único, e as falhas acabam
por promover uma baixa legitimidade dos poderes constituídos. As pessoas não confiam naqueles que exercem
o poder político, simplesmente porque não identifica nas
ações respectivas a promoção do bem estar geral de todas
as pessoas.
No sentido do que acima expusemos foi o resultado
de pesquisa de opinião promovida pelo IBOPE – Instituto
Brasileiro de Opinião Pública e Estatística. Em maio de
2005, o Poder Judiciário ficou em 11º lugar na confiança dos
entrevistados entre 18 instituições. Foi o melhor classificado
entre os poderes. Os que exercem mandato eletivo foram os
piores avaliados, vindo depois deles os partidos, a Câmara
e o Senado (IBOPE, 2006).
No Brasil, com muita evidência, as coisas se passam
assim, e o Poder Judiciário, sendo uma das expressões de
poder na República, lamentavelmente, também padece de
falta de legitimidade.
No nosso entender, o grande problema do Judiciário no
Brasil é o de não ser de eficácia universal.
9 Neste exato momento, por exemplo, estamos às voltas com o escândalo em
torno de gastos inexplicáveis de ministros do governo Lula com cartões corporativos.
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O papel do juiz na produção da consciência inclusiva e para a efetivação da inclusão: o juiz cidadão...
Não falamos aqui dos graves problemas de corrupção
entre os magistrados ou do nepotismo (ALBERTO JR,
2002), sendo esse último, até bem pouco tempo atrás, uma
grande mancha a envergonhar grande parte dos que integram
a Justiça.
Compreendemos que a ausência de eficácia universal
do Poder Judiciário no Brasil se manifesta por três aspectos
primordiais: a justiça não é acessível à maioria das pessoas; as
decisões são comprometidas pela perspectiva de manutenção
do “status quo”; e os que buscam a prestação jurisdicional
são frustrados pela morosidade ou pela falta de efetividade
das decisões que lhes são favoráveis (AMB, 2004). O acesso das pessoas ao Poder Judiciário é comprometido, primordialmente, pelo custo econômico da provocação
da atividade jurisdicional (PASETTI, 2002). Demandar
requer adiantamento de custas processuais, contratação
de advogado e despesas eventuais com autenticação de
documentos e auxiliares da justiça (perito, intérpretes,
tradutores etc.). Sabidamente, os organismos que ministram assistência judiciária gratuita não são em número e
em locais necessários ao atendimento da demanda real da
população.
Tem mais. A nossa experiência no foro nos proporciona o
conhecimento de que até o gasto com transporte é obstáculo
à ida das pessoas à justiça, o que é de compreensão quando
se sabe que 42,6 milhões de pessoas no país estão abaixo
da linha da pobreza10, segundo dados da Fundação Getúlio
Vargas (SPITZ, 2006).
10 Tivemos inúmeros contatos com pessoas, não apenas das cidades do interior
do Estado de Pernambuco, mas também da capital e da região metropolitana,
que manifestaram a dificuldade de procurar os órgãos da Justiça por falta de
dinheiro para o transporte. Alguns narraram caminhadas de quilômetros desde
sua casa até o órgão jurisdicional.
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Marcílio Florencio Mota
Juntem-se a esse fator econômico razões de ordem moral.
As pessoas, pela experiência das que acessam o Poder Judiciário, receiam, justificadamente, que não serão atendidas no
seu pleito de justiça ou que o seu caso se eternizará ou que,
ainda, a decisão que lhe é favorável não será efetivada.
A evidência mais dramática de que os juízes atuam
negando justiça ao povo é extraída da falta de punição dos
poderosos, o que tem ajudado a fomentar a corrupção na
política e a apropriação do dinheiro público pelos políticos,
por exemplo.11
O Poder Judiciário está afastado das pessoas, ainda, em
razão da demora nos julgamentos das causas ou da falta de
efetividade das decisões. Embora fatores externos ao Judiciário
contribuam para a demora na prestação jurisdicional e para a
falta de efetividade das decisões12, identificamos também certa
má vontade na atuação de alguns juízes, o que é forma deliberada, na maioria dos casos, de negar justiça às pessoas13.
No que respeita ao fator econômico como obstáculo ao
acesso à Justiça, estamos diante de um problema que não
diz respeito diretamente aos juízes enquanto agentes públicos. A atuação do juiz, no sentido de afastar as dificuldades
11 Felizmente, por uma série de fatores, desde o início da década de 90, em
especial pela prática da democracia de direito, ainda que em alguns pontos
desvirtuada, percebemos uma mudança no Poder Judiciário. Essa mudança
será certamente mais sentida quando as novas gerações de juízes, recrutados
por certames públicos efetivamente fiscalizados, chegarem aos Tribunais.
12 Pensamos como fatores externos, aqui, por exemplo, a questão orçamentária,
decidida pelos outros poderes, que repercute no número de servidores e no
material de trabalho, a deficiência da legislação e a má formação ética dos
advogados, muitos dos quais atuam intencionalmente para retardar e para
frustrar a efetividade das decisões.
13 Essa má vontade fica evidente, por exemplo, quando o juiz nega, injustificadamente, medidas de prevenção ou de antecipação do direito, ou ainda
quando produz muito menos do que é lícito esperar que produza em forma de
audiências e de decisões.
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O papel do juiz na produção da consciência inclusiva e para a efetivação da inclusão: o juiz cidadão...
econômicas de acesso, será muito mais na forma de atuação
cidadã.
Relativamente àqueles aspectos que enumeramos
como fatores morais que inibem o acesso das pessoas
ao Poder Judiciário, por óbvio, só a atuação do juiz
na condição de agente político para a inclusão poderá
afastá-los.
Fundamental será, então, que a sociedade, consciente da importância da formação integral das pessoas,
decida ministrar, a partir das famílias, a cada um, a
formação integral de que necessitam. Os magistrados
filhos dessa sociedade compreenderão a importância
do seu papel.
O certo, porém, é que nossas famílias e nossas
escolas (todos os níveis) revelam não mais terem compromisso com esse tipo de formação. A família está
desagregada, reproduzindo (des)valores, e as escolas
demasiadamente preocupadas com o sucesso profissional do seu cliente 14. O acolhimento do profissional pelo
mercado é o fim único, cujos meios de obtenção não
sofrem qualquer tipo de investigação no que respeita
ao conteúdo ético 15.
Nesse contexto, a chegada de pessoas das classes menos
favorecidas ao Poder, por si só, não será elemento indicador
de novos tempos. A essência está na necessidade de que
formemos bem as pessoas, quaisquer que sejam as classes de
onde emanem. É preciso que encontremos no bem-estar de
14 A privatização do ensino em muito contribui para que nossas escolas atuem
como empresas ruins, apenas fazendo negócios, tendo os seus alunos como
clientes não merecedores de atenção enquanto pessoas que são.
15A crise da pós-modernidade é, sobretudo, ética. Crise de perda de referências.
De deliberado desapego a nortes, como se todos os paradigmas experimentados
pelas gerações passadas fossem igualmente desprezíveis.
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todas as pessoas a finalidade de nosso ajuntamento e a partir
daí nos apropriemos do conteúdo ético fundamental.16
De qualquer sorte, a geração de juízes do momento poderá em muito contribuir para uma justiça inclusiva, o que se
opõe a uma justiça mantenedora do “status quo”, seja pelo
uso de uma linguagem acessível, que permita que o povo se
aproxime da Justiça e compreenda as coisas que passam em
seu interior, seja pela adoção de uma hermenêutica inclusiva,
aspectos que abordaremos mais detidamente nos tópicos seguintes, seja, ainda, pelo compromisso com a adoção de uma
postura que imponha a celeridade do processo e a efetividade
das decisões proferidas.
Nesse contexto, merecem louvor as alterações promovidas no Código de Processo Civil, muito delas de iniciativa
da corporação máxima dos juízes, com o objetivo de dotar o
processo civil brasileiro de mecanismos que proporcionem
celeridade e efetividade à atividade jurisdicional. Porém, os
mecanismos postos aos juízes de nada valerão se os magistrados não assumirem o compromisso pessoal de utilizá-los
adequadamente.
A observação é necessária na medida em que percebemos
que a magistratura é instância das mais resistentes ao novo,
às mudanças, como bem destaca Barbosa Gomes (1999).
Por incrível que pareça, em matéria de alterações do CPC
de 73, aqui e ali surgem viúvos do velho sistema, arautos
de “inconstitucionalidades” mil, vozes que põem em risco a
eficácia das mudanças legislativas que são hábeis sim a que
o processo civil sirva às transformações sociais que todos
anseiam.
16 Pessoalmente, tenho que precisamos retornar ao primeiro relacionamento.
Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo é a perfeita
junção do transcendente com o imanente, parcelas das quais todos nós somos
compostos e das quais, destarte, não podemos nos afastar.
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3 – A CONSCIÊNCIA INCLUSIVA DO JUIZ E A
LINGUAGEM JURÍDICA
A Bíblia Sagrada trás um curioso relato sobre quando
surgiu a diversidade de línguas entre os homens. Está no
Capítulo 11 do Livro de Gênesis. Deus provocou a diferença
de idiomas para que os homens não mais se entendessem.
Segundo o relato, os homens, em vista do perfeito entendimento proporcionado por uma única língua, intentaram impedir o propósito de Deus de povoar o mundo (Gênesis, 1:27-28).
Desejavam ficar numa única cidade e para isso construíram
uma torre, que também seria um símbolo desse desejo.
A linguagem, então, é claramente apresentada como um
instrumento capaz de proporcionar entendimento ou confusão
entre as pessoas (GUSDORF, 1995).
Aparentemente, um falar uniforme surge unicamente
para o entendimento entre pessoas que possuam vínculos
culturais. O certo, porém, é que a uniformidade também serve
para a exclusão dos que não mantenham o vínculo cultural,
no mais das vezes com intenção deliberada para manter a
cultura restrita aos integrantes do grupo (PAULUS, 1975).
A criação de uma linguagem peculiar por corporações
profissionais não foge à regra. Os seus integrantes, vinculados
culturalmente, buscam um maior entendimento entre si e, ao
mesmo tempo, consciente ou inconscientemente, intentam
privar os não integrantes do grupo do conhecimento que eles
julgam que deve pertencer com exclusividade à corporação
(GONÇALVES, 2002).
Em se considerando a primeira pretensão, ou seja, da utilização de uma linguagem uniforme para maior entendimento
entre os que integram o grupo específico, não há mal maior
nessa construção. Pelo contrário, ela é necessária mesmo para
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o desenvolvimento das ciências. Nesse caso se enquadra a
chamada “linguagem técnica” (GALVÃO, 2004).
Assim é que a linguagem técnica dos médicos, dos psicólogos, dos engenheiros, dos profissionais do direito etc. tem
uma função positiva. Ela proporciona o desenvolvimento das
ciências na medida em que os símbolos (palavras, no caso)
utilizados, possuem, por convenção, o mesmo significado
para todos os que integram a corporação. Essa convenção
pode ser para aplicação num espaço geográfico mais ou
menos restrito.
Vejamos o exemplo da expressão “competência”. Para
as pessoas em geral ela tem o significado de capacidade ou
habilidade para fazer algo. Entre nós, os profissionais do
direito, ela é empregada com um sentido próprio, qual seja,
o de medida da jurisdição. Destarte, quando falamos em
competência, com apropriação regular do conteúdo técnico
da expressão, estamos nos referindo à atribuição para o exercício da jurisdição num determinado território, em razão de
alguma matéria etc.
Todavia, é reprovável, sob todos os aspectos, a utilização
da linguagem corporativa para privar outras pessoas de conhecimentos no pressuposto de que eles devem permanecer
restritos ao grupo. O conhecimento, o saber, as descobertas
são patrimônio que não podem ser do domínio particular, de
grupos, como regra.
Aliás, o tipo de comportamento que prima pelo uso da
linguagem para cercear o conhecimento dos não integrantes
do grupo revela imaturidade social e é problema de gravidade proporcional ao poder que o profissional da corporação
detenha sobre as pessoas.
Explico: repercute mais o uso de uma linguagem restrita
entre os médicos e os juízes do que entre os mecânicos de
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automóveis, por exemplo. Os primeiros exercem um tipo de
poder vital sobre as pessoas, sobre suas vidas, sobre o seu
patrimônio e sobre sua liberdade.
Conscientes da importância da língua para a aproximação entre as pessoas e para a inclusão dos excluídos, os
juízes brasileiros desencadearam, há algum tempo, uma
campanha visando que os profissionais do direito e os
estudantes em formação superior na área despertem para
a necessidade da utilização de uma linguagem em suas
manifestações orais e escritas, inclusive no processo, de
modo a que ela não seja obstáculo a que as pessoas não
integrantes da “casta” compreendam as coisas que se passam na Justiça.
Nesse contexto, porque exercem poder sobre as pessoas,
que emana delas e que para elas deve ser exercido, é fundamental a adoção, pelos juízes, de uma postura que, a partir
da linguagem que usem, permita ao homem médio compreender seus atos, despachos, decisões e sentenças. É célebre a
anedota em torno de uma sentença ditada oralmente por um
juiz. Após a conclusão ele teria sido interpelado pela parte:
“afinal, eu ganhei ou perdi?”.
Uma das razões pela qual o povo não se identifica com o
Poder Judiciário é justamente a linguagem excludente utilizada pelos que operam o direito. A falta de identificação com
o poder, por outro lado, também é fato gerador da ausência
de legitimidade dele, Poder.
Assim, trazer o povo para perto do Judiciário, permitir
que o homem que não usa toga se identifique com o homem
que usa a toga, porque ambos usam linguagem idêntica,
proporcionará maior legitimidade ao Poder Judiciário e
com ela credibilidade e, possivelmente, maior celeridade
e eficácia.
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Nesse sentido, a linguagem é fator de inclusão. De
convite para que os que estão à margem possam participar
efetivamente do Poder.
4 – A HERMENÊUTICA A FAVOR DA INCLUSÃO
Os profissionais do Direito, denominados por alguns
de “operadores do Direito”, entre eles os juízes, têm como
incumbência principal, em seu trabalho, a interpretação
(hermenêutica) das normas que integram o sistema jurídico.
A concepção de um sistema de normas, por sua vez, é no
pressuposto de que regras são importantes para a disciplina
da vida societária e para a obtenção dos fins eleitos pela
comunidade. As regras do sistema, de produção estatal ou
privada, ao tempo que expressam os valores sociais, também
são mecanismos para a consecução dos objetivos traçados
(FREITAS, 2004).
É certo que quanto menos culturalmente desenvolvida
uma sociedade mais necessitará de prescrições coativas e de
meios repressivos para que o bem comum, razão do ajuntamento das pessoas, seja alcançado.
Tratamos por sociedades culturalmente atrasadas aqui
aquelas nas quais o respeito à pessoa, ao seu patrimônio moral
e econômico, não é praticado naturalmente, por educação,
como reconhecimento dos limites do agir individual próprio
e da dignidade do outro.
Nesse contexto, as sociedades periféricas, entre as quais
estamos incluídos, culturalmente atrasadas, reclamam à
existência de um sistema de normas que estatua com clareza
os objetivos sociais, que preveja mecanismos de repressão
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às infrações legais e uma estrutura judicial apta à efetivação
das normas e, por conseguinte, do bem comum.
É fácil notar, então, que os profissionais do Direito exercem papel de fundamental importância nas sociedades que
têm no sistema jurídico um importante instrumento para a
promoção do bem estar de todos. Eles são responsáveis pela
tradução do sentir dos representantes do povo (legisladores),
que não expressam através das normas a vontade pessoal,
mas do grupo social.
Por outro lado, os juízes, de um modo especial, quando
exercitam a interpretação das normas, podem ser responsáveis
pela promoção, pela efetivação do bem estar. Nesse sentido,
aliás, a regra do art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil,
Decreto-Lei n.4.657, de 04 de setembro de 1942.
O Poder Judiciário, assim, pode ser depositário de grandes expectativas sociais e no Brasil há um sentimento assim,
que é expresso pelo que se denomina na doutrina do Direito
Constitucional de “Densificação da Jurisdição Constitucional” (AGRA, 2005).
A sociedade brasileira, entre tantas contradições que
vivencia, experimenta também uma curiosa contradição
relativamente ao Judiciário.
Setores sociais, inclusive acadêmicos, vislumbram, no
exercício do poder político pelo Judiciário, na assunção das
funções que a Constituição lhe consagra, uma espécie de última instância a que as enormes desigualdades sociais sejam
reduzidas, o que significa, também, que os desvios dos outros
Poderes sejam por ele eficazmente corrigidos.
Setores outros vêem, na chamada “densificação da
jurisdição”, riscos para a democracia, pelo que chamam de
“governo dos juízes”. Acham um exagero que se atribua ao
Poder Judiciário o papel de promotor de políticas públicas,
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atuação que reconhecem exclusiva dos Poderes Executivo e
Legislativo.
O Poder Judiciário, por sua vez, por seus juízes, bem
expressa e justifica os pensamentos em contradição. Embora
reconheça o papel que lhe reserva a Constituição, não atua
regularmente de modo a justificar as atribuições concedidas.
É um Poder que, no mais das vezes, se nega a exercer poder
em proveito da maioria.
O sepultamento do Mandado de Injunção na primeira
oportunidade em que manejado não é exemplo isolado dessa
negativa de exercício do Poder em proveito do povo. Quase
todas as vezes que o Supremo Tribunal Federal é chamado a
decidir sobre constitucionalidade, como no caso recente da
análise da regra que impõe o regime do Código de Defesa
do Consumidor às instituições financeiras, os atores sociais
mais efetivos “perdem o sono”. Temem que o órgão maior
da Justiça decida contra o povo.17
Ora, a interpretação dos fatos sociais e do sistema jurídico, tarefa que se atribui aos juízes, é, destarte, fundamental à
manutenção do status quo ou para as transformações sociais.
Por outro lado, ser agente de manutenção ou de transformação é escolha que se impõe ao juiz, e que, como sabemos, é
também comprometida por sua formação e pela consciência
que ele possua do relevante papel social que exerce.
É nesse sentido, destarte, que propomos, para uma hermenêutica inclusiva, a aplicação, pelos juízes, do princípio
do “in dubio pro inclusão”, análogo aos que são praticados
no Direito do Trabalho – in dubio pro operário – (PLÁ
RODRIGUEZ, 1993) e no Direito Penal – in dubio pro réu
– (MORAES FILHO, 2006).
17 Felizmente, no caso a que nos referimos, a decisão do STF foi de acordo
com a melhor expectativa da sociedade.
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O papel do juiz na produção da consciência inclusiva e para a efetivação da inclusão: o juiz cidadão...
Com base no princípio do “in dubio pro inclusão”, toda
vez que o magistrado tiver de optar, no caso concreto, por
uma interpretação entre diversas possíveis, ele deverá escolher aquela que, objetivamente, proporcione a inclusão.
Entre transformação e petrificação das condições das pessoas,
deverá optar por promover a transformação.
Demonstração significativa dessa opção transformadora
restará evidente, por exemplo, quando os magistrados receberem as ações coletivas com menor resistência (BARBOSA
GOMES, 1999).
Como sabemos, nosso processo, de caráter individualista,
é utilizado por muitos juízes para uma postura resistente às
transformações que podem ser obtidas através dele. Felizmente, a doutrina de agora tem sido insistente quanto ao
caráter instrumental do processo.
Finalizamos esse tópico relembrando a máxima: “não
existe lei boa para juiz ruim e não existe lei ruim para juiz
bom”. Esperamos que muitos juízes sejam bons o suficiente
para atenderem ao clamor dos milhões de excluídos neste
país.
5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
A promoção da igualdade material, efetiva, é uma das
maiores preocupações do homem pós-moderno. Suas instituições, a partir do Estado, são pensadas e utilizadas para a
promoção do bem estar de todas as pessoas, pressupostos à
paz interna e mundial.
O trabalho para a promoção da igualdade, pela inclusão dos periféricos, destarte, é conseqüência, também, da
constatação de que os problemas relativos à pobreza e às
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desigualdades de um modo geral, inclusive pela prática do
racismo e de discriminações às mais diversas, foram gerados
por defeito na formação das pessoas.
À maioria da população brasileira se nega a educação
como bem mínimo, pelo qual a pessoa pode perceber sua
dignidade e atuar eficazmente para as transformações pessoal
e social. Nesse contexto, uma “revolução na educação”, pela
qual a escola pública seja universal e eficaz, é fundamental
a que a sorte de milhões de brasileiros seja efetivamente
alterada.
Negros e deficientes físicos, entre outros grupos, continuam marginalizados. Aos primeiros a sociedade brasileira outorga tratamento discriminatório dissimulado, cuja
verdadeira compreensão se obtém da constatação do não
acesso deles à formação de nível superior e a desempenho
de papéis sociais de poder. A dignidade do negro brasileiro,
no nosso sentir, só restará reconhecida a partir da prática
de ações afirmativas, dentre as quais a reserva de cotas nas
universidades é relevante exemplo.
Os deficientes físicos, por outro lado, ainda padecem
no Brasil os problemas decorrentes da exclusão relacional
e das barreiras arquitetônicas. Em boa hora veio, destarte,
a Campanha da Fraternidade da CNBB, que provocou a reflexão da sociedade brasileira quanto aos graves problemas
por eles enfrentados.
Nesse quadrante da vida nacional, os juízes são chamados a uma firme atuação cidadã e como agente político.
Quanto ao primeiro aspecto, são significativos os programas e
campanhas desenvolvidos pelas Associações de Magistrados
pelo Brasil.
A ANAMATRA (entidade nacional dos magistrados do
trabalho) e as AMATRAS (entidades regionais) desenvolRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
Recife – ano 3 – n. 3 – p. 245-277 – 2008
273
O papel do juiz na produção da consciência inclusiva e para a efetivação da inclusão: o juiz cidadão...
vem o programa “Trabalho, Justiça e Cidadania”, pelo qual
atuam para que estudantes do ensino fundamental e médio
sejam instruídos quanto a direitos dos trabalhadores e sua
efetivação.
A AMB – Associação dos Magistrados Brasileiros –,
por sua vez, promove relevantes campanhas em torno do
uso da linguagem entre os profissionais do direito, para que
permitam que as pessoas compreendam as coisas da Justiça,
e por eleições éticas.
Por outro lado, o juiz agente político compreende que
possui dois mecanismos fundamentais a uma atuação transformadora e inclusiva: a linguagem e a hermenêutica.
A linguagem acessível, técnica, porém livre dos jargões
do “juridiquês” é para a identificação do homem que não
veste a toga com o homem que veste a toga. Para aproximar
o Poder do povo, razão e destino das ações políticas.
A interpretação é o instrumento de efetiva transformação.
Ela pode revelar que não há lei ruim para juiz bem formado,
consciente de seu papel social, o qual adotará, em situações
extremas, o princípio do “in dubio pro inclusão”.
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ASPECTOS PROCESSUAIS E
CONSTITUCIONAIS DA INDENIZAÇÃO
DECORRENTE DE REVISÃO CRIMINAL
Mauro Alencar de Barros*
Renata Cortez Vieira Severino**
RESUMO
O presente artigo tem por objetivo analisar os aspectos processuais e constitucionais pertinentes ao disposto
no art. 630 do Código de Processo Penal, que estabelece
a possibilidade de o tribunal reconhecer o direito a uma
indenização pelos prejuízos sofridos pelo condenado cuja
ação de revisão criminal for julgada procedente. Para fins
de harmonização entre o art. 630 do CPP e a Constituição da República, entende-se que os tribunais criminais
devem reconhecer, na revisão criminal, a existência ou
não de erro judiciário e se este é ou não indenizável,
restando a fixação da indenização correspondente para
o juízo cível.
* Desembargador do Tribunal de Justiça de Pernambuco, Especialista em
Processo Civil pela Faculdade Maurício de Nassau/ESMAPE e Professor da
ESMAPE
** Mestre em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e Professora
da Faculdade Maurício de Nassau.
Revista do Curso de Direito da Faculdade Maurício de Nassau –
Recife – ano 3 – n. 3 – p. 279-307 – 2008
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Mauro Alencar de Barros; Renata Cortez Vieira Severino
Palavras-chave: 1. Revisão Criminal 2. Indenização
3. Procedimento
ABSTRACT
The present article has for objective to analyze pertinent
the procedural and constitutional aspects of art. 630 of the
Code of Criminal Procedure, that establishes the possibility
of the court to recognize the right to an indemnity for the
damages suffered for the convict whose action of criminal
revision will be judged originating. For ends of harmonization between art. 630 of the CCP and the Constitution, are
understood that the criminal courts must recognize, in the
criminal revision, the existence or of judiciary error and if
this it is not or not subject to indemnification, remaining
the setting of the corresponding indemnity for the civil
judgment.
Words-key: 1. Criminal Revision
Procedure
2. Indemnity
3.
Sumário: Notas introdutórias; Aspectos processuais e
constitucionais da indenização decorrente de revisão criminal; Considerações finais; Referências.
NOTAS INTRODUTÓRIAS
É cediço que a revisão criminal constitui espécie de ação
criminal de natureza constitutiva, prevista no artigo 621 e
seguintes do Código de Processo Penal (CPP), que pode ser
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Aspectos processuais e constitucionais da indenização decorrente da revisão criminal
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utilizada pelo condenado por sentença criminal transitada em
julgado para pleitear ao Poder Judiciário, a qualquer tempo,
o reexame de seu processo nas seguintes hipóteses: quando
a sentença condenatória for contrária ao texto expresso da lei
penal ou à evidência dos autos; quando a sentença se fundar
em depoimentos, exames ou documentos comprovadamente
falsos; e, ainda, quando, após a sentença, forem descobertas
novas provas de inocência do condenado ou de circunstâncias
que determinem ou autorizem a diminuição especial da pena
(art. 621, incisos I, II e III do CPP).
O objetivo do presente ensaio não é o de perquirir a
respeito das hipóteses de cabimento ou mesmo do processamento da revisão criminal, mas o de analisar os aspectos
processuais, de natureza cível, pertinentes ao disposto no
art. 630 do Código de Processo Penal, que estabelece a
possibilidade de o tribunal reconhecer, se o interessado o
requerer, o direito a uma justa indenização pelos prejuízos
sofridos pelo condenado cuja ação de revisão criminal for
julgada procedente.
Trata-se, obviamente, de uma indenização cível por
danos materiais e/ou morais concedida por órgão de jurisdição criminal, com reflexos na jurisdição cível, porquanto
o parágrafo primeiro do mesmo art. 630 dispõe, in verbis,
que: “Por essa indenização, que será liquidada no juízo cível,
responderá a União, se a condenação tiver sido proferida pela
justiça do Distrito Federal ou de Território, ou o Estado, se
o tiver sido pela respectiva justiça”.
O fato é que o Código de Processo Penal não estabelece
qualquer regra, além da acima referida, concernente ao
procedimento a ser adotado pelos tribunais criminais para
o reconhecimento desse direito à indenização decorrente de
revisão criminal, o que termina por acarretar orientações
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282
Mauro Alencar de Barros; Renata Cortez Vieira Severino
extremamente diversificadas no âmbito dos Tribunais de
Justiça brasileiros.
De uma leitura meramente perfunctória sobre o disposto no art. 630, §1° acima transcrito, é possível perceber
que o Código de Processo Penal determina que o direito à
indenização seja reconhecido pelo juízo criminal, restando
apenas a fixação do quantum indenizatório pelo juízo cível,
cujo montante deverá ser pago pelos cofres públicos, já que
resultado de um erro judiciário.
Como se vê, a matéria envolve discussões de caráter processual e constitucional, na medida em que surge a questão
relativa à imprescindibilidade ou não da participação da
Fazenda Pública, em contraditório, no processo de revisão
criminal, no qual será fixado o direito à indenização, já que
será ela a responsável pelo pagamento do valor correspondente.
Para a maioria dos tribunais brasileiros, desnecessária
se faz a citação da Fazenda Pública no processo de revisão
criminal em que seja pleiteada a indenização decorrente do
erro judiciário, a qual deverá participar apenas do processo
de natureza cível em que ocorrerá a liquidação do valor da
indenização.
A questão não é tão simples, entretanto. Reconhecer
o direito do condenado a uma indenização decorrente da
revisão criminal julgada procedente significa, sem sombra
de dúvidas, condenar a Fazenda Pública em indenização
por danos morais e/ou materiais, o que, em obediência aos
princípios do contraditório e do devido processo legal contidos na Constituição da República de 1988, exigiria, a nosso
ver, a citação do Estado ou da União para compor a lide e
para responder aos termos do pedido indenizatório ou, no
mínimo, encontrar uma solução alternativa que compatibiRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
Recife – ano 3 – n. 3 – p. 279-307 – 2008
Aspectos processuais e constitucionais da indenização decorrente da revisão criminal
283
lizasse o art. 630 do CPP com os princípios constitucionais
processuais anteriormente referidos. Esse é, pois, o objeto
deste ensaio.
O presente artigo foi resultado de um processo de Revisão Criminal julgado pela Seção Criminal do Tribunal de
Justiça de Pernambuco, de n° 152548-0, de Relatoria do Des.
Gustavo Augusto Rodrigues de Lima, no qual, após o voto do
Revisor, o Des. Alexandre Guedes Alcoforado Assunção, o
Des. Mauro Alencar de Barros (um dos autores deste ensaio),
pediu vista dos autos e proferiu voto divergente do Relator
e do Revisor, cujo posicionamento foi acompanhado pela
maioria dos componentes da Seção Criminal, presentes à
Sessão de julgamento.
Assim, por maioria de votos, no dia 21 de fevereiro
do ano em curso, julgou-se procedente a sobredita revisão
criminal, sendo que o voto de vista do Des. Mauro Alencar
de Barros foi o vencedor no que concerne ao direito à indenização decorrente do erro judiciário, o qual foi designado
para lavrar o acórdão, que restou assim ementado:
PENAL E PROCESSO PENAL. CONSTITUCIONAL. REVISÃO CRIMINAL. CONDENAÇÃO
DO REQUERENTE POR CONDUTA ATÍPICA.
DEFERIMENTO DO PEDIDO REVISIONAL À
UNANIMIDADE DE VOTOS. PLEITO DE FIXAÇÃO DE DIREITO À INDENIZAÇÃO DECORRENTE DE ERRO JUDICIÁRIO. ART. 630 DO
CPP. HARMONIZAÇÃO DO DISPOSITIVO
COM OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO
PROCESSO (CONTRADITÓRIO E DEVIDO
PROCESSO LEGAL). RECONHECIMENTO DO
ERRO JUDICIÁRIO INDENIZÁVEL. INDENIZAÇÃO A SER PLEITEADA NO JUÍZO CÍVEL
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Mauro Alencar de Barros; Renata Cortez Vieira Severino
COMPETENTE, COM A POSSIBILIDADE DE
PARTICIPAÇÃO DA FAZENDA PÚBLICA, EM
CONTRADITÓRIO. DECISÃO POR MAIORIA
DE VOTOS. 1. A conduta praticada pelo requerente, de dirigir veículo automotor sem habilitação,
constitui apenas ilícito administrativo, não podendo,
de per si, ser considerada como criminosa, exigindo
o art. 309 do CTB a evidência de perigo concreto
de dano, hipótese inocorrente no caso sub examine,
motivo pelo qual merece acolhimento o pedido revisional. 2. Quanto ao pedido de fixação do direito a
uma justa indenização em favor do requerente, em
virtude do erro judiciário, com base no art. 630 do
CPP, tem-se que diante dos inúmeros princípios e
garantias processuais assegurados na Constituição
democrática de 1988, não se vislumbra a possibilidade de haver condenação de quem quer que seja à
revelia, sem que lhe seja concedida a oportunidade
de influenciar o convencimento do órgão julgador.
Assim, o art. 630 do CPP, embora recepcionado pela
Constituição de 1988, deve ser harmonizado com os
princípios constitucionais do processo, notadamente
o contraditório e o devido processo legal, sob pena
de nulidade absoluta. 3. Em sede de revisão criminal, fixar o direito do requerente a uma indenização,
restando ao juízo cível tão somente a liquidação e
execução do valor, equivale a condenar o Estado a
uma indenização decorrente de responsabilidade
civil por atos jurisdicionais. Nesse caso, forçoso
seria promover a citação da Fazenda Pública para
responder aos termos do pedido, em obediência aos
ditames dos princípios do contraditório e do devido
processo legal. Tal solução, no entanto, traria para o
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Aspectos processuais e constitucionais da indenização decorrente da revisão criminal
285
juízo criminal discussões que são inerentes ao juízo
cível, relativas à responsabilidade civil do Estado,
além de que seria necessário suspender o julgamento
da revisão criminal, transformando-o em diligência,
o que acarretaria um prolongamento do feito, em
prejuízo de uma prestação jurisdicional efetiva. 4.
Por isso, buscando-se uma solução intermediária,
considera-se que, no juízo revisional, deverá ser
reconhecida (ou não) a existência de erro judiciário
e se este é indenizável, devendo toda a discussão
relativa à caracterização ou não da responsabilidade
civil do Estado, à existência ou não de danos e ao
eventual valor da indenização ser levada a efeito
no juízo cível. 5. No caso em apreciação, não há
dúvidas de que houve erro judiciário, porquanto o
requerente foi condenado por conduta considerada
atípica, conduta esta que já era atípica quando de sua
prática pelo requerente, em fevereiro de 2005. Ademais, não incide nenhuma das hipóteses previstas no
art. 630, §2º do CPP, porquanto o erro não pode ser
imputado ao requerente. 6. Destarte, pensa-se que
há erro judiciário indenizável, sendo que a indenização correspondente deverá ser pleiteada em ação
própria pelo requerente, a ser interposta no juízo
cível, ambiente próprio para as discussões relativas
à responsabilidade civil do Estado e, notadamente,
em respeito aos princípios do contraditório e do
devido processo legal. 7. À unanimidade de votos,
deferiu-se o pedido revisional, com a absolvição do
requerente e, por maioria de votos, reconheceu-se a
existência de erro judiciário indenizável, facultando
ao requerente postular a indenização correspondente em ação própria, no juízo cível. ACÓRDÃO
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Mauro Alencar de Barros; Renata Cortez Vieira Severino
Vistos, relatados e discutidos os presentes autos
de revisão criminal nº 152548-0, em que figuram,
como requerente, Damião Pereira de Lima e, como
requerido, o Ministério Público de Pernambuco,
acordam os Desembargadores componentes da
Seção Criminal do Tribunal de Justiça do Estado
de Pernambuco, por unanimidade de votos, em
deferir o pedido revisional, com a absolvição do
requerente e, por maioria de votos, em reconhecer a
existência de erro judiciário indenizável, facultando
ao requerente postular a indenização correspondente
em ação própria, no juízo cível, sendo que o Des.
Marco Maggi indeferia o pedido de indenização, por
considerar inexistente o erro judiciário na hipótese,
tudo consoante consta do relatório e votos em anexo,
que passam a fazer parte do julgado.
Em virtude da grande relevância do tema, transformamos
o voto em artigo científico, no qual sugerimos uma solução de
harmonização entre o art. 630 do CPP e os princípios constitucionais processuais do contraditório e do devido processo
legal. Passamos, nesse ínterim, à sua exposição.
1 – ASPECTOS PROCESSUAIS E CONSTITUCIONAIS DA INDENIZAÇÃO DECORRENTE DE
REVISÃO CRIMINAL
Na Revisão Criminal n° 152548-0, de Relatoria do Des.
Gustavo Augusto Rodrigues de Lima, em tramitação na Seção
Criminal do Tribunal de Justiça de Pernambuco, o requerente
formulou pedido revisional, em virtude de ter sido condenado
pela prática do delito de direção de veículo automotor sem
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Aspectos processuais e constitucionais da indenização decorrente da revisão criminal
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permissão ou habilitação para dirigir, nos termos do art. 309
do Código de Trânsito Brasileiro (CTB).
Aduziu que o art. 309 do CTB, ao acrescentar ao
tipo penal acima referido a expressão “gerando perigo de
dano”, passou a exigir a ocorrência de perigo concreto de
dano quando alguém venha a dirigir sem permissão ou
habilitação, conforme a Súmula 720 do Supremo Tribunal
Federal.
Nesses termos, não tendo havido o pré-falado perigo
concreto, aduziu o requerente que praticou mera infração
administrativa, conduta considerada atípica para o Direito
Penal.
Quanto a esse aspecto do pedido, inexistiram maiores
controvérsias no julgamento da Revisão pela Seção Criminal.
À unanimidade de votos, reconheceu-se que a conduta do
paciente era efetivamente atípica.
Isto porque, em momento algum nos autos, ficou demonstrada – sequer foi mencionada, nem mesmo na denúncia – a
prática de direção perigosa por parte do requerente. Apesar
de ter confirmado em juízo que estava dirigindo sem habilitação, não houve o menor indício de que o requerente estava,
além dessa atitude, oferecendo perigo concreto de dano aos
demais motoristas ou aos transeuntes.
A conduta praticada pelo requerente tratava-se, portanto,
de mero ilícito administrativo, não podendo, de per si, ser
considerada como criminosa, exigindo o art. 309 do CTB a
evidência de perigo concreto de dano, hipótese inocorrente
no caso examinado.
Por isso é que, como dito alhures, à unanimidade de
votos, julgou-se procedente o pedido de revisão criminal,
desconstituindo-se, portanto, a sentença penal condenatória
e se absolvendo o requerente.
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288
Mauro Alencar de Barros; Renata Cortez Vieira Severino
Acontece que o requerente formulou um outro pedido,
com esteio no art. 630 do Código de Processo Penal, de fixação do seu direito a uma justa indenização pelos prejuízos
sofridos em decorrência dos fatos acima referidos, que, a seu
ver, caracterizavam erro judiciário.
Embora o art. 630 tenha sido inserido no Código de
Processo Penal desde a sua edição, em 1941, parece-nos que
a matéria ainda se encontra no terreno da incerteza, notadamente no que concerne ao procedimento para fixação dessa
indenização, que é de natureza cível, embora reconhecida
no âmbito da revisão criminal.
É certo que, com o pedido de indenização formulado na
inicial, a revisão criminal passa a apresentar uma cumulação objetiva heterogênea de ações penais (ou de pedidos):
uma constitutiva penal, de revisão da sentença e outra condenatória cível, de indenização pelos prejuízos sofridos. E
se diz cumulação heterogênea porque há um provimento de
natureza penal e outro de natureza cível, cumulados, em uma
única demanda.
A priori, o que nos chamou a atenção não foi o fato de
se poder reconhecer, na revisão criminal, o direito a uma
indenização de natureza cível contra o Estado em face da
possibilidade de um erro judiciário, mas o de negar ou de
não permitir ao Estado (Fazenda Pública) a possibilidade de
participação nessa demanda, em obediência aos ditames do
princípio do contraditório, já que será o sujeito passivo do
eventual direito à indenização reconhecido.
Nas várias pesquisas empreendidas na doutrina e na
jurisprudência pátria, quase nada há sobre o tema, repita-se,
especificamente no que toca à possibilidade (ou não) de participação do Estado no processo de Revisão Criminal, quando
houver pedido de fixação do direito à indenização.
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Aspectos processuais e constitucionais da indenização decorrente da revisão criminal
289
Uma das autoras que discorre sobre o assunto é Ada Pellegrini
Grinover (1997, p. 333), a qual considera que:
Essa pretensão civil, feita valer no juízo criminal,
tem peculiaridades no sistema brasileiro, porquanto
a Fazenda Pública – sujeito passivo da pretensão:
§1º do art. 630 – não é citada para se defender.
Somente o Ministério Público é parte passiva na
demanda revisional, de modo que se deve entender
que o parquet representa no processo não apenas o
interesse penal do Estado mas também o interesse
civil da Fazenda.
José Frederico Marques (1997), por seu turno, entende
que se o pedido é formulado diretamente na revisão criminal,
não há possibilidade de participação do Estado. No entanto,
se o pleito foi realizado ulteriormente, o Estado deve ser
ouvido.
A nosso ver, com a devida vênia aos doutrinadores acima
referidos, pensa-se que essa não é a solução que melhor se
coaduna com os pilares principiológicos da Constituição da
República de 1988. Explica-se.
Já ressaltamos acima que o Código de Processo Penal
entrou em vigor em 1941, época em que vigia a Constituição Federal de 1937, outorgada pelo Presidente Getúlio
Vargas em 10 de novembro do mesmo ano, mesmo dia em
que foi implantada a ditadura do Estado Novo. Constituição
pretensamente democrática, mas que evidenciava conteúdo
fortemente centralizador de poderes nas mãos do Presidente
e influenciado pelo fascismo.
A mencionada Carta Constitucional, segundo Sylvio
Motta e Gustavo Barchet (2007, p. 53), apresentava as
seguintes características: supressão do Congresso Nacional
Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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290
Mauro Alencar de Barros; Renata Cortez Vieira Severino
e dos partidos políticos; convergência de todo o poder para
o Executivo; restrições ao Poder Judiciário; limitação da
autonomia dos Estados-membros; e restauração da pena de
morte.
Da leitura do texto constitucional referido, constata-se
que não havia previsão de indenização a ser paga pelo Estado
por erro judiciário, tampouco eram garantidos o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal.
Justifica-se, então, a inexistência de norma no Código
de Processo Penal estabelecendo, na época de sua edição, a
possibilidade de participação do Estado (Fazenda Pública),
em contraditório, no processo de revisão criminal, quando da
formulação de pedido de fixação de direito indenizatório.
Hoje, diante dos inúmeros princípios e garantias processuais assegurados na Constituição democrática de 1988, não
se vislumbra a possibilidade de haver condenação de quem
quer que seja à revelia, sem que lhe seja concedida a oportunidade de influenciar o convencimento do órgão julgador.
O princípio do contraditório, erigido a norma constitucional fundamental, não admite sequer exceções, posto que vem
sendo considerado pela doutrina como absoluto, devendo ser
sempre observado, sob pena de nulidade do processo.
Mesmo quando o contraditório é diferido, como nas hipóteses de concessão de medidas liminares inaudita altera pars,
o mencionado princípio tem aplicação, só que é postergado
para depois da decisão, em virtude da urgência da medida
evidenciada no caso concreto.
Assim é que, apesar da indenização por erro judiciário
estar prevista na Constituição de 1988 como direito fundamental, no art. 5º, inciso LXXV, é preciso interpretar a
mencionada norma em consonância com os demais princípios e garantias de mesmo status constitucional, como são o
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contraditório e o devido processo legal, insertos no mesmo
dispositivo, em seus incisos LV e LIV, respectivamente.
Em suma, o direito à indenização por erro judiciário não
exclui, obviamente, a aplicação do princípio do contraditório
e, via de conseqüência, do devido processo legal.
Assim é que, a nosso ver, o art. 630 do CPP, embora recepcionado pela Constituição de 1988, deve ser harmonizado
com os princípios constitucionais do processo, notadamente
o contraditório e o devido processo legal, sob pena de nulidade absoluta.
Por isso, entendemos que não há como distinguir, para
fins de aplicação do princípio do contraditório, as hipóteses
de pedido de indenização formulado no bojo da revisão
criminal e pedido formulado ulteriormente, através de ação
própria.
Não há razões para a diferenciação. O contraditório deve
ser observado indistintamente, numa ou noutra situação,
porquanto não se pode admitir, na atual realidade constitucional, a condenação de alguém que não participou do
processo.
E tampouco se pode considerar o Ministério Público
como defensor dos interesses de natureza cível do Estado,
nem de modo excepcional.
Isto porque, desde a entrada em vigor da Constituição de
1988, o Ministério Público passou a não mais exercer a defesa
dos interesses do Estado que, em inúmeras vezes, podem ser
conflitantes com os reais interesses da sociedade.
Se o Ministério Público representa o interesse público
primário, não pode representar o denominado interesse
público secundário, das pessoas jurídicas de direito público,
o que terminaria por acarretar uma contradição no que tange
à colidência desses interesses.
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A defesa do Estado (lato sensu), obviamente, deve ser
promovida pelas suas respectivas Procuradorias e pela Advocacia da União, conforme o caso, nunca pelo Ministério
Público.
Ressalte-se que a Constituição da República expressamente veda a representação judicial e a consultoria jurídica
de entidades públicas pelo Ministério Público. É o que consta
do art. 129, inciso IX da Constituição:
Art. 129. São funções institucionais do Ministério
Público:
Omissis.
IX - exercer outras funções que lhe forem conferidas,
desde que compatíveis com sua finalidade, sendolhe vedada a representação judicial e a consultoria
jurídica de entidades públicas.
Do que se expôs, chega-se à conclusão de que, em sede
de revisão criminal, fixar o direito do requerente a uma indenização, tal como previsto no art. 630 do CPP, restando
ao juízo cível tão somente a liquidação e execução do valor,
equivale a condenar o Estado a uma indenização decorrente
de responsabilidade civil por atos jurisdicionais.
Nesse caso, forçoso seria promover a citação da Fazenda
Pública para responder aos termos do pedido, em obediência aos ditames dos princípios do contraditório e do devido
processo legal.
Embora não prevista no Código de Processo Penal, tal
solução foi adotada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais
(TJMG), conforme demonstra o seguinte julgado:
EMENTA: REVISÃO CRIMINAL – PRELIMINAR
– PEDIDO INDENIZATÓRIO CUMULATIVO
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– CITAÇÃO DA FAZENDA PÚBLICA – CONVERSÃO DO JULGAMENTO EM DILIGÊNCIA
– NECESSIDADE. Havendo pretensão indenizatória
em sede de revisão criminal, indispensável a citação
da Fazenda Pública, para integrar a lide, sob pena
de violação do contraditório. (Revisão Criminal nº
1.0000.05.422519-8/000, Relator para o Acórdão,
Des. ELI LUCAS DE MENDONÇA, j. 03.07.2007,
DJ de 19.09.2007)
No inteiro teor do julgado acima, ressalta o Desembargador Eli Lucas de Mendonça o que se segue:
“(...) Vislumbro necessidade da conversão do julgamento em diligência para citação da Fazenda Pública para
responder ao pleito indenizatório cumulativo constante da
inicial.
É que, havendo pretensão indenizatória em sede de
revisão criminal, indispensável se torna a citação da Fazenda Pública para integrar a lide, sob pena de violação do
contraditório. Na verdade, conquanto o Ministério Público
represente os interesses de ordem penal do Estado, como sujeito passivo, não está legitimado a fazê-lo relativamente aos
interesses de ordem civil - atribuição afeta à outra entidade,
in casu a Procuradoria-Geral do Estado - nos termos do art.
129, IX, da CF/88. (...)”
Ocorre que, na jurisprudência, não vislumbramos nenhuma outra decisão no mesmo sentido. Pesquisamos nos Tribunais de Justiça de Santa Catarina, Rio de Janeiro, Rio Grande
do Sul, São Paulo, Minas Gerais, Paraná e Bahia.
Encontramos diversos posicionamentos sobre o tema
da indenização, mas, com exceção do TJMG, nenhum outro
tribunal se pronunciou acerca do princípio do contraditório
e da necessidade de citação da Fazenda Pública quando
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da formulação de pedido indenizatório em sede de revisão
criminal.
Na maior parte das decisões, o direito à indenização é
reconhecido sem que haja qualquer pronunciamento acerca
da posição da Fazenda Pública nesse cenário, qual seja, o da
condenação sem contraditório.
No Superior Tribunal de Justiça (STJ), há decisão reconhecendo o direito à indenização sem qualquer referência ao contraditório ou à participação da Fazenda Pública.
Observe-se:
PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL.
REVISÃO CRIMINAL. ERRO JUDICIÁRIO.
DIREITO À JUSTA INDENIZAÇÃO PELOS PREJUÍZOS SOFRIDOS.
É devida indenização uma vez demonstrado erro
judiciário ex vi art. 5º, inciso LXXV, da Constituição Federal e art. 630 do CPP. In casu, restaram
devidamente comprovados os prejuízos sofridos pelo
recorrente, razão pela qual não há óbice a uma justa
indenização.
Recurso provido.
(REsp 253674/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER,
QUINTA TURMA, julgado em 04.03.2004, DJ
14.06.2004 p. 264)
No Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, há decisão que
extrapola os termos do art. 630 do Código de Processo Penal,
porquanto não apenas reconhece o direito à indenização como
também já fixa o valor correspondente. Senão vejamos:
“REVISÃO CRIMINAL. ROUBO AGRAVADO.
ARTIGO 157, §2º, INCISO I, DO CÓDIGO PENAL.
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Aspectos processuais e constitucionais da indenização decorrente da revisão criminal
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USO INDEVIDO DO NOME DO REQUERENTE
PELO VERDADEIRO CRIMINOSO. REEXAME
DA PROVA. PROVA NOVA. EXTINÇÃO DA
PUNIBILIDADE PELA OCORRÊNCIA DE
PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO EXECUTÓRIA.
RECONHECIMENTO DO DIREITO À INDENIZAÇÃO. ARTIGO 630, ‘CAPUT’, DO CÓDIGO
DE PROCESSO PENAL E ARTIGOS 5º, LXXV E
37, §6º, AMBOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
PROCEDÊNCIA EM PARTE DO PEDIDO.
(...)
Sendo assim, dá-se procedência, em parte, a presente
Revisão Criminal, para declarar extinta a punibilidade
pela prescrição da pretensão executória, na ação
criminal – processo nº 1986.3926 (TB 7294/87-9) –,
que tramitou perante o Juízo da 7ª Vara Criminal da
Comarca da Capital e, declarar a inocência de André
Luiz Marins, cujo nome foi indevidamente usado pelo
verdadeiro criminoso e para reconhecer direito a indenização em valor equivalente a cem salários mínimos”.
(TJRJ, Revisão Criminal nº 2004.053.00157, Des.
Maria Raimunda T. Azevedo, j. 18.10.2006).
No mesmo sentido, há decisão proferida pela 4ª Seção
do Tribunal Regional Federal da 4ª Região:
“PROCESSO PENAL. REVISÃO CRIMINAL.
PROCEDÊNCIA.ABSOLVIÇÃO POR ATIPIA DA
CONDUTA. INDENIZAÇÃO.
O condenado que, em sede de revisão criminal, é
absolvido por atipicidade dos fatos que lhe foram
imputados na ação penal em que exarada a sentença
revisanda, faz jus, nos moldes do art. 630 do CPP
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e do art. 5º, LXXV da CF, a uma justa indenização pelos danos materiais e morais decorrentes
do erro judiciário”. (ED na Revisão Criminal nº
2005.04.01.006340-5/SC, j. 15.03.2007)
No inteiro teor do acórdão, pode-se vislumbrar a fixação
do quantum indenizatório pelo Relator, o Desembargador
Federal Paulo Afonso Brum Vaz:
“(...) Assim, reconheço o direito do ora embargante a
uma justa indenização pelos danos materiais e morais.
A primeira consistente na devolução dos valores por
ele adimplidos a título de pena de multa e de prestação
pecuniária, corrigidos monetariamente pelos índices
oficiais e acrescidos de juros compensatórios de 6%
(seis por cento) ao ano, e a segunda ao equivalente
a 1/3 (um terço) do salário mínimo nacional vigente
no momento do pagamento por mês de prestação
de serviços à comunidade cumprida, valores estes a
serem liquidados na forma do prescrito pelo §1º do
artigo 630 da Lei Adjetiva Penal”.
Já no seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul, considerou-se que o pedido de indenização
deve ser formulado no juízo cível:
EMENTA: REVISÃO CRIMINAL. CONDENAÇÃO POR FURTO QUALIFICADO. ERRO DE
PESSOA. PROVA. INDENIZAÇÃO. PRESCRIÇÃO.
Não há nos autos elementos suficientes para análise
do alegado erro de pessoa. Pedido indenizatório que
poderá ser postulado em ação própria. Decorrido o
prazo prescricional entre o recebimento da denúncia
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e a sentença condenatória, é de ser declarada extinta a
punibilidade com fundamento nos arts. 109, V, e 110,
ambos do CP. (Revisão Criminal Nº 70017439076,
Segundo Grupo de Câmaras Criminais, Tribunal de
Justiça do RS, Relator: José Eugênio Tedesco, Julgado em 09/03/2007)
A nosso ver, em nenhuma dessas decisões, com a devida
vênia, evidencia-se a necessária harmonização entre as regras
e princípios envolvidos no caso em apreciação.
Como já dito alhures, para que se pudesse, nos termos
do art. 630 do CPP, reconhecer o direito do requerente a uma
indenização, seria obrigatória a citação da Fazenda Pública
para responder ao pleito indenizatório, sob pena de violação
ao princípio do contraditório.
Tal solução, no entanto, traria para o juízo criminal
discussões que são inerentes ao juízo cível, relativas à responsabilidade civil do Estado, além de que seria necessário
suspender o julgamento da revisão criminal, transformando-o
em diligência, o que acarretaria um prolongamento do feito,
em prejuízo de uma prestação jurisdicional efetiva.
Inobstante, não se pode condenar a Fazenda Pública sem
que esta participe do processo. É preciso, pois, encontrar uma
saída intermediária.
Por isso é que entendemos que a melhor solução para a
questão foi dada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo no
julgamento da Revisão Criminal nº 00914141.3/3-0000-000,
ocorrido em 22.11.2006, cujo Relator foi o Des. Guilherme
G. Strenger, cujo voto, em sua parte final, relativa ao pedido
indenizatório, foi proferido nos seguintes termos:
“Reconhecido, assim, o erro judiciário, ao Estado
cumpre indenizar o revisionado, nos termos do artigo
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5º, inciso LXXV, da Constituição Federal, e artigo
630 do Código de Processo Penal, devendo tal postulação ser formulada em ação própria”.
Na decisão acima, ficou reconhecido o erro judiciário e
que este é indenizável, sendo que o requerente, para obter a
indenização correspondente, deverá propor ação própria no
juízo cível.
Tal solução não torna o juízo revisional inócuo em relação ao pedido indenizatório e é a que melhor se coaduna
com o princípio do contraditório e do devido processo legal,
além de que não traz indevidamente para o juízo criminal
discussões de natureza cível. Explica-se.
Primeiramente, deve-se dizer que, embora o erro judiciário dê ensejo à ação de revisão criminal, nem todo
juízo revisional procedente considerará configurado o erro
judiciário.
Há inúmeras situações em que não se evidencia o erro
judiciário, mesmo quando o pedido é deferido. Há também
as situações em que há erro, mas esse erro não é imputável
ao Poder Judiciário e, portanto, não é indenizável, porquanto
provocado pelo próprio réu.
Pode-se mencionar, a título de exemplificação, a hipótese
de alegação de fatos novos na revisão, não existentes na época
do juízo condenatório. Nesse sentido, já julgou o TJRJ:
“Revisão criminal. Crime de estupro. Condenado
apresentando atrofia de membro superior em decorrência de poliomielite. Impossibilidade da prática
criminosa com a violência real descrita pela vítima.
Prova nova demonstrativa de que a sentença revisanda
contraria a evidência dos autos. Procedência do pedido revisional para absolver o requerente. Direito a
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indenização negado. Não possuindo o requerente, em
decorrência de seqüelas deixadas pela poliomielite,
força nem mobilidade em seus braços, necessárias
a subjugar a vítima, ainda que menor, para com ela
manter relações sexuais, notadamente em moradia
onde também dormiam irmãos da vítima e que nada
perceberam, havendo assim incompatibilidade entre
o relato da vítima de que teria havido violência real
e a condição física do apontado como autor do crime
de estupro noticiado nos autos, e evidenciando a nova
prova que a condenação está em dissonância com o
apurado, merece ser julgada procedente a correspondente revisão criminal, todavia, sendo indevida a
indenização pleiteada, por ter o Juízo julgado com as
provas que então dispunha. (TJRJ, Revisão Criminal
nº 1996.053.00035, Des. José Affonso Rondeau, j.
12.08.1998).
Nesse caso, não há erro judiciário. Há também as
situações em que há apenas redução de pena ou mesmo
modificação do regime de cumprimento da pena, em virtude
de alterações legislativas posteriores, o que também não
ensejaria erro judiciário.
Mesmo na hipótese de reconhecimento de atipicidade
da conduta, não é sempre se que considera ocorrente o erro
judiciário. Numa das decisões acima referidas, do TRF da
4ª Região, considerou-se que a atipicidade da conduta é fato
gerador da indenização.
Há, no entanto, decisão em sentido contrário, como a proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (Apelação Cível
nº 319.897-5/1-00, Rel. Des. Marcio Franklin Nogueira, j.
08.05.2007), da qual chamamos a atenção para o seguinte
excerto, em que referido órgão julgador aprecia a questão
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relativa ao direito à indenização e à responsabilidade civil do
Estado, mas no juízo cível, considerando inexistente o erro
judiciário em caso de atipicidade da conduta:
“Assim, especificamente no tocante ao caso dos autos, não se pode falar em erro judiciário. A absolvição
em grau de revisão criminal deu-se por entender a
Turma Julgadora ‘não constituir o fato infração penal’
(art. 386, III, do CP). Não se configurou qualquer erro
substancial, inescusável, imputável a dolo ou culpa
do juiz sentenciante. E sem isso, como visto, não há
se falar mesmo em responsabilidade indenizatória
do Estado”.
Esses exemplos demonstram que, uma vez deferido o
pedido de revisão, não se considera, automaticamente, configurado o erro judiciário.
Destaque-se que o próprio Código de Processo Penal estabelece hipóteses em que o erro judiciário não é indenizável:
a) se o erro ou a injustiça da condenação proceder de ato ou
falta imputável ao próprio impetrante, como a confissão ou
a ocultação de prova em seu poder; b) se a acusação houver
sido meramente privada (hipótese rechaçada pela doutrina
e jurisprudência).
Assim é que se, na revisão criminal, considera-se que
há erro judiciário indenizável, essa matéria não poderá ser
rediscutida no juízo cível.
Desse modo, não poderá o Estado, na ação ordinária
própria, alegar, por exemplo, que não há erro judiciário ou
que estão presentes as hipóteses excludentes previstas no art.
630, §2º do CPP, posto que tal matéria já terá sido apreciada
pelo juízo criminal.
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Destarte, ultrapassada a questão relativa à existência
de erro judiciário indenizável, a discussão, no juízo cível,
restringir-se-á à definição do direito à indenização.
E isso pode acontecer, a toda evidência.
Primeiro porque há uma importante discussão, própria
do juízo cível, relativa à responsabilidade civil do Estado.
Sabe-se que o art. 37, §6º da Constituição Federal estabelece a responsabilidade civil objetiva do Estado por atos
de seus agentes.
Acontece que, em se tratando de atos jurisdicionais,
não é pacífico o entendimento de que tal responsabilidade
é também objetiva.
No Supremo Tribunal Federal, há julgado considerando
objetiva a responsabilidade do Estado por erro judiciário,
prescindindo de demonstração da culpa ou dolo por parte
do agente público. Senão vejamos:
EMENTA: Erro judiciário. Responsabilidade civil
objetiva do Estado. Direito à indenização por danos
morais decorrentes de condenação desconstituída
em revisão criminal e de prisão preventiva. CF, art.
5º, LXXV. C.Pr.Penal, art. 630. 1. O direito à indenização da vítima de erro judiciário e daquela presa
além do tempo devido, previsto no art. 5º, LXXV,
da Constituição, já era previsto no art. 630 do C. Pr.
Penal, com a exceção do caso de ação penal privada
e só uma hipótese de exoneração, quando para a
condenação tivesse contribuído o próprio réu. 2. A
regra constitucional não veio para aditar pressupostos
subjetivos à regra geral da responsabilidade fundada
no risco administrativo, conforme o art. 37, § 6º, da
Lei Fundamental: a partir do entendimento consolidado de que a regra geral é a irresponsabilidade civil
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do Estado por atos de jurisdição, estabelece que,
naqueles casos, a indenização é uma garantia individual e, manifestamente, não a submete à exigência
de dolo ou culpa do magistrado. 3. O art. 5º, LXXV,
da Constituição: é uma garantia, um mínimo, que
nem impede a lei, nem impede eventuais construções
doutrinárias que venham a reconhecer a responsa­
bilidade do Estado em hipóteses que não a de erro
judiciário stricto sensu, mas de evidente falta objetiva
do serviço público da Justiça. (RE 505393/PE, Rel.
Min. Sepúlveda Pertence, j. 26.06.2007)
Tal decisão, entretanto, foi proferida por maioria pela
Primeira Turma, e há outras decisões da mesma Corte Superior considerando a necessidade de comprovação da culpa ou
dolo para fins de caracterização da responsabilidade estatal
por atos jurisdicionais. Nesse sentido, veja-se o seguinte
aresto:
EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO
ESTADO: ATOS DOS JUÍZES. C.F., ART. 37, § 6º. I.
– A responsabilidade objetiva do Estado não se aplica
aos atos dos juízes, a não ser nos casos expressamente
declarados em lei. Precedentes do Supremo Tribunal
Federal. II. – Decreto judicial de prisão preventiva
não se confunde com o erro judiciário ¾ C.F., art. 5º,
LXXV ¾ mesmo que o réu, ao final da ação penal,
venha a ser absolvido. III. – Negativa de trânsito ao
RE. Agravo não provido.( RE-AgR 429518 / SC, Rel.
Min. Carlos Velloso, j. 05.10.2004)3
3 No mesmo sentido, vide RE 219117 / PR.
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A controvérsia não existe apenas no STF. No TJRS, por
exemplo, considera-se a responsabilidade civil do Estado
por atos jurisdicionais subjetiva. Vide, a respeito, o teor da
Apelação Criminal nº 70017761073.
Considerando-se a responsabilidade subjetiva, deverá
o requerente comprovar a culpa ou dolo do agente público
(juiz), além de ter que demonstrar a existência dos danos,
morais ou materiais, decorrentes da ação estatal.
Ainda que se entenda ser a responsabilidade estatal por
atos jurisdicionais objetiva, o requerente não fica isento de
comprovar a existência desses danos, para que possa receber
a indenização correspondente.
A Fazenda Pública, por seu turno, no exercício pleno do
contraditório e da ampla defesa, poderá defender, na ação
própria a tramitar no juízo cível, a tese da responsabilidade
subjetiva ou mesmo alegar e demonstrar que não existiram
prejuízos. Pode também comprovar a existência de causas
excludentes da ilicitude – obviamente não as previstas no
art. 630, §2º do CPP, porquanto estas já foram apreciadas
no juízo da revisão criminal.
Por isso, entendemos que, no juízo criminal, deverá ser
reconhecida (ou não) a existência de erro judiciário e se este
é indenizável, devendo toda a discussão relativa à caracterização ou não da responsabilidade civil do Estado, à existência
ou não de danos e ao eventual valor da indenização ser levada
a efeito no juízo cível.
Nessa esteira e feitas tais considerações, tem-se que,
no caso da Revisão Criminal n° 152548-0, não há a menor
dúvida de que houve erro judiciário, porquanto o requerente
foi condenado por conduta considerada atípica. Ressalte-se
que a conduta já era atípica quando de sua prática pelo requerente, em fevereiro de 2005.
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Ademais, não incide nenhuma das hipóteses previstas
no art. 630, §2º do CPP, porquanto o erro não poderia ser
imputado ao requerente.
Destarte, pensa-se que há erro judiciário indenizável,
sendo que a indenização correspondente deverá ser pleiteada
em ação própria pelo requerente, a ser interposta no juízo
cível, ambiente próprio para as discussões relativas à responsabilidade civil do Estado e, notadamente, em respeito aos
princípios do contraditório e do devido processo legal.
2 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora o art. 630 do Código de Processo Penal estabeleça que o tribunal pode, a requerimento do condenado,
fixar direito a uma justa indenização pelos prejuízos sofridos
em decorrência do erro judiciário, não se pode condenar a Fazenda Pública a uma indenização sem que lhe seja conferida
a possibilidade de participação do processo em contraditório,
nos termos do art. 5° , LV da Constituição da República.
Assim, para que se pudesse, nos termos do art. 630 do
CPP, reconhecer o direito do condenado a uma indenização
por erro judiciário no âmbito da revisão criminal, seria
obrigatória a citação da Fazenda Pública para responder ao
pleito indenizatório, sob pena de violação ao princípio do
contraditório e, bem assim, do devido processo legal.
Tal solução, no entanto, traria para o juízo criminal
discussões que são inerentes ao juízo cível, relativas à responsabilidade civil do Estado, além de que seria necessário
suspender o julgamento da revisão criminal, transformando-o
em diligência, o que acarretaria um prolongamento do feito,
em prejuízo de uma prestação jurisdicional efetiva.
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Nesses termos, tem-se que, na revisão criminal, deve o
tribunal se limitar a reconhecer a existência ou não de erro
judiciário e a definir se esse erro é ou não indenizável. Assim,
o condenado, para que possa obter a indenização correspondente, deverá propor ação própria no juízo cível.
Deve-se destacar que tal solução não torna o juízo revisional inócuo em relação ao pedido indenizatório, uma vez
que há inúmeras situações em que não se evidencia o erro
judiciário, mesmo quando o pedido é deferido. Há também
as situações em que há erro, mas esse erro não é imputável
ao Poder Judiciário e, portanto, não é indenizável, porquanto
provocado pelo próprio réu.
Ademais, essa orientação não traz indevidamente
para o juízo criminal discussões de natureza cível, além
de ser a que melhor se coaduna com os princípios do
contraditório e do devido processo legal, porquanto
permite à Fazenda Pública, no exercício pleno dos referidos princípios constitucionais processuais, defender,
na ação própria a tramitar no juízo cível, a tese da responsabilidade subjetiva ou mesmo alegar e demonstrar
que não existiram prejuízos, além de poder também
comprovar a existência de causas excludentes da ilicitude – obviamente não as previstas no art. 630, §2º do
CPP, porquanto estas já teriam sido apreciadas no juízo
da revisão criminal.
Deste modo, entendemos que, no juízo criminal, deverá
ser reconhecida (ou não) a existência de erro judiciário e
se este é indenizável, devendo toda a discussão relativa à
caracterização ou não da responsabilidade civil do Estado, à
existência ou não de danos e ao eventual valor da indenização
ser levada a efeito no juízo cível, em estrita obediência aos
princípios do contraditório e do devido processo legal.
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Mauro Alencar de Barros; Renata Cortez Vieira Severino
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SUPERIOR TRIBUNAL DE TUSTIÇA. 5ª Turma. REsp
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Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
Recife – ano 3 – n. 3 – p. 279-307 – 2008
Aspectos processuais e constitucionais da indenização decorrente da revisão criminal
307
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS. Revisão Criminal nº 1.0000.05.422519-8/000, Relator para o
Acórdão: Des. ELI LUCAS DE MENDONÇA, j. 03.07.2007,
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO. Revisão
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www.tjsp.gov.br>. Acesso em: 16 fev. 2006.
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Revisão Criminal nº 1996.053.00035, Relator: Des. José Affonso Rondeau, j. 12.08.1998. Disponível a partir de: <http://
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO. Revisão Criminal nº 2004.053.00157, Des. Maria Raimunda T.
Azevedo, j. 18.10.2006. Disponível a partir de: <http://www.
tjmg.gov.br>. Acesso em: 16 fev. 2006.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO
SUL. Revisão Criminal nº 70017439076, Segundo Grupo de
Câmaras Criminais, Relator: José Eugênio Tedesco, Julgado
em 09/03/2007. Disponível a partir de: <http://www.tjrs.gov.
br>. Acesso em: 16 fev. 2006.
Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
Recife – v. 3 – n. 3 – p. 279-307 – 2008
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O EMBATE ENTRE AS TESES
BIOLOGISTA E SOCIOAFETIVA: QUAL
O MELHOR INTERESSE DO FILHO?
Renata Cristina Othon Lacerda de Andrade1
RESUMO
Diante da existência de uma dicotomia real de paternidades, uma socioafetiva e outra biológica, um dos critérios
deve sucumbir ao outro em casos específicos de atribuição
de paternidade quando obviamente os critérios se excluem.
Assim, em ação de investigação de paternidade, o critério
exclusivamente biológico deve ser afastado, se comprovado
que a paternidade socioafetiva atende ao melhor interesse
do filho, propondo este breve estudo soluções para casos
determinados de conflito de paternidades, verificando-se
que nestas hipóteses, impõe-se a aplicação do princípio da
afetividade.
Palavras-chave: paternidade – desbiologização – socioafetividade.
1 Advogada, Especialista e Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal
de Pernambuco e Professora da Faculdade Maurício de Nassau.
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Renata Cristina Othon Lacerda de Andrade
ABSTRACT
Due to the dichotomy that exists between socioaffective
and biological paternities, one of the criterias to establish
this tie should be excluded. For this reason, in legal actions,
the exclusive biological criteria should be excluded when
it is proved that the socioaffective paternity is better for
the child’s interest. This brief work tries to study specific
situations of paternity conflict, observing that in such cases
the affectivity principle should be applied.
Key-words: paternity – debiologization – socio-affectivity.
Sumário: 1 Introdução – 2 A afetividade como argumento jurídico – 3 O embate das teses biologista e socioafetiva a partir da Súmula 301 do STJ – 4 Hipóteses do mundo
fático – 5 Conclusões – 6 Referências.
1 – Introdução
Considerando que no estágio atual do direito de família
brasileiro o instituto da paternidade encontra-se diante de uma
dicotomia conceitual e que isso reflete diretamente sobre a
atribuição ou reconhecimento de paternidade de filhos extramatrimoniais (que não se encontram sob o pálio da presunção
pater is est), duas correntes se digladiam nos tribunais: a
teoria da afetividade e a do biologismo. A primeira tem como
fundamento a afetividade humana, construída no dia-a-dia,
nas relações cotidianas; a segunda tem como esteio a herança
genética, a ser facilmente comprovada pelo exame de DNA.
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O embate entre as teses biologista e socioafetiva: qual o melhor interesse do filho?
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Nessa travessia do novo milênio, em que se busca a nova
configuração familiar (FACHIN, 2001, p. 9-13), a palavra de
ordem é flexibilização. Flexibilizar a norma, permitir e ampliar
a interpretação, preencher nos casos concretos o conteúdo de
normas abertas e princípios norteadores. Não se pode tratar
com rigorismos, com regras fechadas ou generalizações o que,
por natureza, não se pode tipificar, sobretudo quando ainda
não se está assentado em certezas sequer relativas. A família
contemporânea e tudo o que está diretamente ligado a ela
encontra-se no meio de um processo de mudanças; justamente
por isso pode-se perceber o grau de incertezas, de experimentos, de desejos de estabilização. Contudo, não se pode dizer
ainda até quando esse estágio de coisas poderá durar, pois as
mudanças muitas vezes implicam readaptações culturais, o
que leva certo tempo para ser absorvido pela sociedade e pelo
Estado como um todo.
No caso da afetividade, por exemplo, a sociedade vem
absorvendo cada vez mais a suplantação da consangüinidade
pelo afeto nas relações familiares, em virtude de situações
que decorrem do cotidiano das pessoas e que as afetam diretamente, porém o Estado, sobretudo quanto aos Poderes Legislativo e Judiciário, ainda não conseguiu acompanhar os passos
dessas mudanças, o que fica evidente diante da ambigüidade
do Código Civil de 2002 e da impropriedade da Súmula 301
do Superior Tribunal de Justiça.
2 – A afetividade como argumento jurídico
É possível invocar a afetividade no direito de filiação
em duas perspectivas: como fundamento para o estabeleciRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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Renata Cristina Othon Lacerda de Andrade
mento de vínculos paterno-filiais e como forma de impedir
o rompimento destes mesmos vínculos, impossibilitando a
sua desconstituição. Nas duas situações, o que se tem é a
confirmação formal de uma realidade fática, através do reconhecimento formal de uma situação já existente, mas ainda
não juridicizada, seja para a manutenção de uma situação já
existente e juridicizada.
Embora o Código Civil de 2002 possa parecer ambíguo,
já que não abandona o uso das presunções e ainda as alia à
vinculação biológica, como nas hipóteses de presunção de
paternidade por inseminação artificial homóloga, não deixa
de ser referido como inclusivo da paternidade ampla e do
princípio da afetividade (LOBO, 2006, p. 3), decorrentes
dos arts. 1.593, que se refere ao parentesco natural ou civil,
conforme resulte de consangüinidade ou outra origem;
1.596, que transcreve a regra da igualdade entre os filhos,
presente na Constituição Federal de 1988, em seu art. 227,
§ 6º; 1.605, que consagra a posse do estado de filiação,
através de presunções veementes resultantes de fatos certos,
aqui exemplificadas pelo autor como os filhos de criação e
a adoção à brasileira (aquela que não observou os trâmites
legais); e 1.614, que possibilita o filho reconhecido rejeitar
esse reconhecimento, seja o pai biológico ou socioafetivo,
desde que não tenha havido ainda o registro público.
Diante disso, não se pode mais falar em paternidade
exclusivamente biológica como presunção de paternidade
legítima, devendo-se observar que os critérios para o reconhecimento de paternidade plena devem levar em conta
primordialmente a afetividade.
Decisões judiciais isoladas nesse sentido já podem ser
vistas no País, como a proferida pelo Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, José Ataíde Siqueira
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Trindade, que decidiu pelo reconhecimento da paternidade e
maternidade socioafetivas, em decorrência de situação fática
(filho de criação), mesmo possuindo o filho pais biológicos
referidos em registro civil. Ao argumento de que o pedido,
nesta hipótese, não é juridicamente impossível, por se tratar
de regularização de verdadeira filiação, por estar estabelecida
no terreno da afetividade, tendência que o julgador esclarece
decorrer do direito internacional, houve o afastamento da
tese biologista e a primazia da socioafetividade (Apelação
Cível Nº 70010408508, Oitava Câmara Cível, Tribunal de
Justiça do RS, julgado em 30/12/2004). No mesmo sentido,
decidiu a Desembargadora Maria Berenice Dias, ao determinar o prosseguimento de ação negatória de paternidade
cumulada com nulidade de registro de nascimento, para
permitir a investigação da existência de socioafetividade,
já que o pai, autor do feito, falecera no curso deste, e o recurso visava à regularização de legitimidade de parte. Neste
caso, o pai ingressara com a desconstituição do vínculo de
parentesco, após descobrir que o seu filho não fora fruto de
uma inseminação artificial heteróloga consentida por ele
próprio, mas sim de uma relação extraconjugal de sua esposa, motivo que fora alegado para fundamentar a negatória
(Apelação Cível Nº 70011878899, Sétima Câmara Cível,
Tribunal de Justiça do RS, julgado em 14/09/2005). Ainda,
em direção semelhante, o Desembargador Antônio Eduardo
Duarte, equiparou a posse de estado de filho à adoção, sob o
argumento de que o reconhecimento voluntário e consciente,
mesmo diante das dúvidas acerca da paternidade, torna o arrependimento inviável, a despeito da comprovada exclusão
de paternidade biológica por exame de DNA (Apelação Cível
nº 2005.001.40278, TJRJ, Terceira Câmara Cível, julgado
em 04.04.2006).
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Percebe-se, no segundo caso, que o pai registrara a criança
como sua filha e como tal a criara, vindo, após alguns anos,
vir a descobrir que a mesma não era resultado de inseminação
artificial heteróloga por ele autorizada, mas de concepção
natural, entre sua esposa e terceiro. Tomando conhecimento da
verdade, o pai ingressara com Ação Negatória de Paternidade,
vindo a falecer no curso da mesma, pelo que fora substituído
pelos seus irmãos. Claro está que se trata de uma paternidade
socioafetiva, até mesmo porque na mente do pai se tratava de
uma filiação decorrente de inseminação artificial heteróloga,
embora por ele autorizada. Assim, não se pôde desconstituir o
vínculo de filiação estabelecido, com base apenas na questão
da infidelidade da esposa, pois a relação paterno-filial já constituída teria o condão de afastar qualquer argumento contrário ao
princípio da afetividade, justamente o ponto que foi utilizado
como fundamento para o prosseguimento do feito. No último
julgado acima transcrito, apesar da ausência da expressão socioafetividade, é clara a opção por esta tese, quando o julgador
reconhece que, apesar da desvinculação biológica efetivamente
comprovada pelo teste de DNA, a paternidade já estabelecida
não poderia ser desconstituída por esse motivo.
Esse é também o pensamento de Paulo Lobo:
Toda vez que um estado de filiação estiver constituído
na convivência familiar duradoura, com a decorrente
paternidade socioafetiva consolidada, esta não poderá
ser impugnada nem contraditada. A investigação de
paternidade só é cabível quando não houver paternidade, nunca para desfazê-la (LOBO, 2006, p. 3).
É de se observar, porém, que no primeiro caso retromencionado, a decisão judicial foi mais além, possibilitando
a discussão jurídica de paternidade socioafetiva, inclusive
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nos casos de pais biológicos referidos no registro de nascimento, o que só vem demonstrar como a doutrina, a jurisprudência e – com muito menos razão, a legislação –, ainda
não encontraram um discurso único na matéria, sobretudo
diante de alguns julgados recentes que ainda privilegiam a
verdade biológica, como a proferida pelo Desembargador
Antônio Carlos Stangler Pereira, que declarou a verdade
biológica sobre a verdade socioafetiva, ao argumento de
que o reconhecimento de uma filiação, que não corresponde
à verdade biológica, poderá ser impugnado por falsidade
material ou ideológica, sobretudo nos dias de hoje, diante
do progresso da ciência, em relação à verificação de descendência biológica pelo exame de DNA e, ainda, que a
paternidade socioafetiva só encontra compasso quando a
afetividade provém de ambos os litigantes, estando ligada e
atrelada ao conceito de reciprocidade de sentimento e afeto
(Apelação Cível Nº 70007685290, Oitava Câmara Cível,
Tribunal de Justiça do RS, julgado em 15/04/2004). No
caso, o dado interessante é a antinomia entre afetividade
e litigância, não se podendo estabelecer uma vinculação
necessária entre a afetividade durante a fase processual e a
história dos ora litigantes, devendo o magistrado estar atento
a essas situações, pois de fato dificilmente se poderá encontrar afeto em pessoas que se encontram em lados opostos
pela relação processual que se impõe. Não obstante isso, já
se decidiu que a verdade biológica deve se sobrepor à verdade socioafetiva, quando excluída a paternidade biológica
pelo exame de DNA, ao argumento de que a paternidade
biológica há de ser respeitada, não importando outras
conotações (Acórdão nº 2.230, Ação Cautelar Inominada
nº 01.001782-8, Câmara Cível, Relator originário DesemRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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Renata Cristina Othon Lacerda de Andrade
bargador Ciro Facundo, Relator designado Desembargador
Eliezer Scherrer, Julgado em 24.02.2003).
3 – O embate das teses biologista e socioafetiva a partir da Súmula 301 do STJ
Um dado interessante que se pode perceber, a partir da
jurisprudência, e que já fora observado por Paulo Lobo, é
a constatação do estado de coisas, anteriormente à Súmula
301 do Superior Tribunal de Justiça, no que se refere à primazia ou exclusividade da origem genética para determinar
a paternidade, pois até a edição da Súmula 301, do Superior
Tribunal de Justiça, despontava a socioafetividade como
paradigma das relações paterno-filiais, em decorrência
inicialmente da Constituição Federal de 1988 e depois do
Código Civil de 2002. Mas, como dito, até a Súmula 301.
A partir da presunção de paternidade sumulada, houve um
retrocesso nesse estado de coisas, como se infere da decisão
proferida pelo Desembargador Paulo Furtado, anteriormente
à Súmula, que considerou prescindível a prova pericial do
exame de DNA, diante da suficiência da prova testemunhal
(Apelação Cível nº 29.669-6/01, Quarta Câmara Cível,
TJBA, Relator Desembargador Paulo Furtado)3, além de
outros julgados, que demonstram como vinham decidindo
os juízes nessa matéria. Após a edição da súmula, passou-se
a considerar o teste de DNA imprescindível, até mesmo para
se afastar a ouvida de testemunha, por entender que a prova
3 No mesmo sentido, os julgados: Apelação Cível nº 21.194-4/2004, TJBA,
Quarta Câmara Cível, Relator Desembargador Paulo Furtado; Apelação Cível
nº 4.432-4/2002, TJBA, Quarta Câmara Cível, Relator Desembargador Paulo
Furtado; Apelação Cível nº 6.396-2/2003, TJBA, Segunda Câmara Cível,
Relator Desembargador João Augusto Alves de Oliveira Pinto.
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já estava completa e suficiente. Assim, a prova testemunhal
deixou de ser suficiente para o convencimento do juiz, pois,
diante do poder discricionário a ele conferido, assiste-lhe a
faculdade de ouvir ou não as testemunhas e na quantidade
que ele entender suficiente para o seu convencimento. Nesse
sentido, “as testemunhas darão ao julgador o valor que
merecem de acordo com as circunstâncias da causa, em seu
livre convencimento” e, se não há indícios que coloquem em
dúvida o resultado científico, nada há que se contraponha à
certeza do resultado do exame pericial de pesquisa de impressões digitais de DNA (Apelação Cível nº 36.735-8/2004,
TJBA, Primeira Câmara Cível, relator Desembargador
Raimundo Antônio de Queiroz). Por fim, em perfilhação
clara à Súmula 301, a presunção de paternidade por ausência injustificada ao exame de DNA vem sendo largamente
utilizada, ao argumento de que a negativa na realização do
exame, caracterizada pelo não comparecimento na data livre
e antecipadamente fixada e pelas esquivas às intimações
com o fito de remarcá-lo, apesar de intimado o advogado,
que também não compareceu, traz consigo a presunção de
veracidade da paternidade contestada, situação que é corroborada pelo depoimento pessoal da parte, a confessar o
relacionamento íntimo mantido com a mãe do investigando
(Apelação Cível nº 34.869-3/2002, TJBA, Quarta Câmara
Cível, Relator Desembargador Paulo Furtado)4.
Nos casos apresentados, percebe-se claramente a mudança de pensamento do julgador, a partir das novas diretrizes
apontadas pela Súmula 301, no que se refere à recusa na
submissão ao exame de DNA, sendo que na primeira situa4 No mesmo sentido, os julgados: Apelação Cível nº 26.792-3/2000, TJBA,
Terceira Câmara Cível, Relator Desembargador Manoel Moreira Costa;
Apelação Cível nº 43.883-3/2000, TJBA, Primeira Câmara Cível, Relator
Desembargador Aloísio Batista.
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Renata Cristina Othon Lacerda de Andrade
ção o mesmo magistrado considerava desnecessária a prova
pericial, quando comprovada a paternidade por outros meios;
após o advento do DNA, sobretudo após a edição da Súmula,
o conjunto probatório nos autos só restaria completo se realizado o teste sangüíneo ou reconhecida a presunção pela não
realização da perícia técnica. A afirmativa de que “inexistem
argumentos científicos capazes de se contraporem à certeza
do resultado do exame pericial de pesquisa de impressões
digitais de DNA” (Apelação Cível nº 36.735-8/2004, TJBA,
Primeira Câmara Cível, Relator Desembargador Raimundo
Antônio de Queiroz), só tem sentido para a tese biologista, de
que a paternidade necessariamente se confunde sempre com
o vínculo biológico. Nesse sentido, não se poderia falar em
socioafetividade e com isso, estariam afastadas as hipóteses
de paternidade decorrente da adoção, da inseminação artificial heteróloga autorizada e da posse de estado de filiação.
Em que pesem as críticas ao determinismo biológico,
é possível compreender o motivo da edição da indigitada
Súmula em confronto com determinado momento histórico;
não se sustenta, porém, a sua manutenção hoje, diante dos
debates doutrinários – e que vêm timidamente influenciando
a jurisprudência, que passa a se dividir, para corrigir os
equívocos trazidos pelo instrumento normativo 301 do Superior Tribunal de Justiça, justamente diante da inutilidade
da súmula, “equivocada em seus fundamentos e violadora
dos princípios constitucionais” (LOBO, 2006, p. 3).
4 – Hipóteses do mundo fático
Um sem-número de situações pode ocorrer no cotidiano
e, preparado ou não, o juiz deve oferecer uma resposta.
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Dentre tantas situações que podem vir a existir, é possível
imaginar algumas, como as que se seguem: a) investigação
de paternidade, para constituir vínculo de filiação, sem que
o investigante tenha já constituído qualquer tipo de estado de
filiação, com o investigado ou com terceiro; b) investigação
de paternidade, para constituir vínculo de filiação com o
investigado, sob o fundamento do biologismo, tendo o investigante já constituído estado de filiação socioafetiva com
terceiro; c) investigação de paternidade socioafetiva, quando
o investigante tenha sido registrado por pai biológico sem
que tenha o investigante mantido com este estado de filiação;
d) negativa de paternidade, quando já tenha sido constituído
estado de filiação; e) negativa de paternidade, sem que tenha
havido estado de filiação; f) reconhecimento de paternidade
socioafetiva.
Talvez o direito vigente não seja tão justo em sua concretização
ao ser aplicado nos casos acima, mesmo assim o juiz deve
oferecer uma resposta. Atento à sua responsabilidade como
“agente transformador” (DIAS, 2002, p. 12) e agindo com
a ética do cuidado, sempre buscando a realização do que
lhe parece mais adequado para cada caso, o juiz tem à sua
disposição outras possibilidades, além da letra pura da lei.
Ele tem os princípios.
Assim, no primeiro caso (letra “a”), tratando-se daquelas
situações em que a pessoa tenha apenas o nome da mãe no
registro público e não tenha sido “adotada” afetivamente
por terceiro, normalmente um padrasto ou figura similar, a
doutrina vem apontando a imposição do vínculo biológico
como solução patrimonial, uma vez que o filho não pode
ficar em estado de abandono material, quando a mãe não
possa, sozinha, suprir todas as necessidades da criança. É
o direito ao pai, referido por Giselda Hironaka como um
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Renata Cristina Othon Lacerda de Andrade
direito de personalidade de conteúdo plural, que se compõe
de múltiplos sub-direitos, faculdades ou faces, escalonados
em graduações distintas, podendo, por isso mesmo, ser exercido pelo seu titular por partes, optando por um interesse
em detrimento dos demais, em respeito ao melhor interesse
da criança (com destaque em especial, referido pela autora,
para as situações de filiação incestuosa), e limitando a extensão do campo de incidência do exercício da paternidade
(HIRONAKA, 2000, p. 6).
Igual solução pode ser encontrada em autores franceses,
como Michel Dagot, Pierre Spiteri e Pierre Raynaud (apud
FACHIN, 1996, p. 38), que se referem à ação para fins de subsídios5, movida pelo filho biológico sem pai registral, que não
implica em reconhecimento de paternidade, pois não se trata de
investigação de paternidade. Não se trata, nessa hipótese, de provar ou pretender a paternidade, mas de estabelecer a medida de
5 Art. 342 do Código Civil dos franceses. Pela reforma do direito de família
francês, em 2005, cujo período de vacatio legis foi de um ano, iniciou-se em 1º
de julho de 2006, a vigência do novo direito de filiação, afastando as distinções
entre filhos naturais e legítimos, que permaneciam no Código Civil até esta
data. Manteve, porém, a lei civil francesa a ação para fins de subsídios de forma
independente da investigação de paternidade, sendo a primeira com vistas ao
pagamento de pensão alimentícia em função da vinculação biológica entre pai
e filho, e a segunda para instituir vínculo de paternidade plena (informações
extraídas do site: <www.parent-solo.fr>. Acesso em: 02 ago 2006). Tradução
livre da autora: “L’ordonnance a tiré lês conséquences de l’egalité entre lês
enfants, quelles que soient lês conditions de leur naissance: - Elle a supprimé
la distinction entre filiation legitime et naturelle qui avait perdu tout portée
juridique et pratique depuis quele législateur avait consacré l’egalité parfaite
entre les enfants quelle que soit leur filiation (...). L’action à des fins de subsides peut être demandée par l’enfant naturel dont la filiation naturelle n’est pás
établie. Elle consiste à reclamer une aide matérielle sous forme de pension à
celui qui a eu des relations intimes avec as mère pendant la période légale de la
conception. Même si lê père ou la mère étaient mariés par ailleurs, á l’époque,
l’action est recevable. La preuve des relations intimes peut être apportée par
des témoignages, des lettres ou une recherche d’ADN (que lê père supposé peut
refuser). Cette action est indépendante de l’action em recherche paternité”.
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sua responsabilidade. Nessa mesma linha de pensamento, Paulo
Lobo resolve a questão da pretensão patrimonial no âmbito
obrigacional, considerando razoável atribuir ao “filho sem pai”
um crédito decorrente do dano oriundo do inadimplemento dos
deveres impostos pela paternidade responsável, exemplificados
pelo autor como dever de assegurar educação, assistência moral,
sustento, convivência familiar, sem olvidar, ainda, com absoluta
prioridade, do direito à vida, à saúde, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, impedindo
por outro lado toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, deveres estes decorrentes
do art. 227 da Constituição Federal de 1988. O crédito referido
por Paulo Lobo equivaleria a uma quota hereditária, se o filho
herdeiro fosse (LOBO, 2006, p.7-8).
No segundo caso (letra “b”), se o investigante propõe ação
de investigação contra pai biológico, já tendo sido registrado
por pai socioafetivo, não haveria nenhuma possibilidade de
se desconstituir vínculo já devidamente cons-truído através
do estado de filiação. Assim, tal pedido há de ser considerado juridicamente impossível, pois a adoção é irrevogável,
no sistema jurídico brasileiro. Porém, na hipótese do filho
socioafetivo desejar conhecer a sua origem genética, cujo
direito é de personalidade (LOBO, 2003, p. 151), descabe a
ação de investigação de paternidade, para fins de determinação de paternidade, mas tão-somente para conhecimento
de identidade genética. O termo mais correto seria ação de
conhecimento de identidade genética, de rito ordinário, com
ampla produção de provas, primordialmente o teste de DNA,
este sim, o mais apropriado para legitimar a procedência do
pedido, pois de fato se trata de declaração de vínculo genético
entre as partes, que não induz paternidade (LOBO, 2003, p.
153). Assim, são duas as situações que devem ser claramente
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Renata Cristina Othon Lacerda de Andrade
separadas: o direito à paternidade é direito de família, realizase judicialmente através da investigação de paternidade e se
baseia na socioafetividade, que pode ser oriunda da filiação
biológica ou não (adoção, inseminação artificial heteróloga,
posse de estado de filiação); outro é o direito à identidade
genética, que deve ser esclarecido em ação de investigação
de vínculo genético, limita-se ao direito de personalidade
em conhecer a sua origem genética fazendo parte, portanto,
da esfera da identidade do indivíduo, sem, no entanto, gerar
vínculo paterno-filial e pode, ainda, originar um direito de
responsabilidade civil em face do genitor irresponsável.
Na terceira hipótese (letra “c”), o investigante busca a
determinação de vínculo paterno-filial com pai socioafetivo,
embora já registrado por pai biológico, sem que com este
tenha constituído estado de filiação, utilizando a tese da
socioafetividade sobre o biologismo. Esse parece ser o caso
típico do embate entre as duas teses. É preciso que se tenha
presente que o estado ideal de coisas é a reunião, dentro de
uma mesma relação paterno-filial, das duas perspectivas,
quais sejam: a origem biológica e a afetividade. Na esteira
do pensamento desenvolvido por Paulo Lobo de que nem
toda paternidade socioafetiva resulta da consangüinidade, o
direito à igualdade de paternidade a ser exercida nos casos de
adoção, de inseminação artificial heteróloga autorizada e de
posse de estado está assegurado, pois, nesses casos a filiação
é inviolável e, como tal, não poderia ser desfeito por decisão
judicial, ressalvada a hipótese de perda do poder familiar,
advertida pelo mesmo autor, que complementa: “a paternidade socioafetiva decorrente da posse de estado de filiação
não pode ser contraditada” (LOBO, 2006, p. 8). É possível
desenvolver o raciocínio em igual sentido, para afirmar que
ao julgador não é lícito desconhecer a posse de estado mesmo
Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
Recife – ano 3 – n. 3 – p. 309-327 – 2008
O embate entre as teses biologista e socioafetiva: qual o melhor interesse do filho?
323
que exista um pai registral biológico, afastando na hipótese
da letra “c” o pai biológico e anulando o registro civil, para
declarar a verdade real da socioafetividade.
Na quarta situação (letra “d”), em que o pai, na dúvida
quanto à origem de seu filho socioafetivo e, até então biológico, ingressa com ação negativa de paternidade para
desconstituir vínculo paterno-filial, a contradição à posse
de estado de filiação já consagrada desautoriza a anulação do registro civil, pela autoridade judiciária, pois deve
prevalecer no caso a continuidade da relação de família que
já estava estabelecida. A opção pela socioafetividade deve
levar em conta a posse de estado já constituída, sendo certo
que, embora na prática possa levar a situações difíceis entre
as partes, deve-se evitar um mal maior, retirando do filho o
único pai que até então aquele conhecia. Outro dado a ser
sopesado diz respeito à afetividade como princípio, pois nesta
condição a afetividade “é dotada de força normativa, impondo
deveres e conseqüências por seu descumprimento. Por isso,
não se confunde com o afeto como simples fato anímico e
psicológico” (LOBO, 2006, p. 8), afastando a insegurança
que tal princípio viria a causar, se a sua aplicação tivesse a
mesma ratio que nas relações matrimoniais em geral, em
que a sociedade só tem existência enquanto permanecer nas
partes o affectus que os uniu.
Na quinta hipótese (letra “e”), em que o pai apontado
pelo registro público resolve negar a paternidade biológica,
sem ter havido a posse de estado de filiação, duas situações
devem ser observadas preliminarmente: o direito do filho ao
pai e o direito do filho ao pai socioafetivo. Isto significa dizer
que, na ausência da posse de estado em relação ao autor da
negatória, por si só não autorizaria a anulação do registro,
diante do direito do filho a um pai, mesmo que limitado no
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Renata Cristina Othon Lacerda de Andrade
exercício do conteúdo múltiplo que preenche o conceito
de paternidade, como já visto e referido aqui em Giselda
Hironaka (2000, p. 6). De outra sorte, tivesse o filho constituído posse de estado de filiação com terceiro, a negatória
teria desfecho diferente, pois o mesmo direito que assiste ao
filho em desconstituir paternidade meramente biológica (sem
posse de estado) para privilegiar paternidade socioafetiva
regularmente constituída, assiste também ao genitor que não
constituiu relação paterno-filial com filho biológico, que
mantém posse de estado de filiação em relação à terceiro.
No sexto e último caso (letra “f”), em que o filho, na
posse de estado, vem a requerer a investigação de paternidade socioafetiva, esta deve ser reconhecida, em razão do
afastamento do biologismo exclusivo, da impossibilidade
de contraditar posse de estado regularmente constituída, do
reconhecimento da continuidade das relações de família,
da adoção da afetividade como princípio a impor deveres e
conseqüências pelo seu descumprimento. De fato, a solução
mais adequada para o caso é o reconhecimento da vinculação
jurídica de paternidade, estabelecida sobre a socioafetividade
e constituída na posse de estado de filiação.
5 – Conclusões
Sabe-se que a dinâmica das relações interpessoais humanas vem acompanhando as mudanças impostas pelo modelo
sócio-econômico do capitalismo no mundo ocidental, razão
porque toda e qualquer pretensão de generalidade cai por
terra. O recurso às normas e princípios de conteúdos mais
gerais e abertos, que possibilitam o preenchimento segundo
o caso concreto, é ainda a melhor tentativa para a solução das
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O embate entre as teses biologista e socioafetiva: qual o melhor interesse do filho?
325
contendas, especialmente em direito de família, pois como
visto, a aplicação da estrita legalidade, pode vir a autorizar
ainda mais abandonos de filhos, estes os mais prejudicados,
pois muitas vezes nunca tiveram e nunca vão ter nenhum
tipo de pai.
Sem perder de vista o fim último do direito, que é o de
promover a justiça, ao se utilizar o princípio da afetividade
como argumento jurídico, torna-se solução mais equilibrada no reconhecimento ou estabelecimento de vínculos
paterno-filiais não oriundos de vinculação biológica, como
nas hipóteses de investigação de paternidade, para constituir
vínculo de filiação, sem que o investigante tenha já constituído qualquer tipo de estado de filiação, com o investigado
ou com terceiro; investigação de paternidade, para constituir
vínculo de filiação com o investigado, sob o fundamento do
biologismo, tendo o investigante já constituído estado de filiação socioafetiva com terceiro; investigação de paternidade
socioafetiva, quando o investigante tenha sido registrado por
pai biológico sem que tenha o investigante mantido com este
estado de filiação; negativa de paternidade, quando já tenha
sido constituído estado de filiação; negativa de paternidade,
sem que tenha havido posse de estado de filho; reconhecimento de paternidade socioafetiva, entre outras.
Nesse sentido, conclui-se que a paternidade que se identifica hoje é plena quando conjuga os critérios biológico e
afetivo, porém, diante da impossibilidade dessa conjugação,
deve-se privilegiar a socioafetividade, sobretudo nos conflitos
de paternidade meramente biológica e paternidade afetiva já
constituída, pois a tese biologista adotada isoladamente, ou
seja, sem a associação necessária à socioafetividade para a
construção dos laços paterno-filiais, não se presta ao direito:
a uma, porque não induz à paternidade responsável, haja vista
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Renata Cristina Othon Lacerda de Andrade
o elevado número de crianças sem a indicação do nome do
pai em seus registros de nascimento; a duas, porque afasta a
socioafetividade nas situações em que haja rejeição paterna
exclusivamente biológica, uma vez que estaria autorizada a
desconstrução do vínculo socioafetivo em função do vínculo
biológico com terceiro; a três, porque, nessas hipóteses,
estaria o direito colaborando ainda mais com a elevação
dos números de filhos sem pai no país, o que, sob hipótese
alguma, poderia ser tolerado pelo sistema jurídico brasileiro.
Por fim, conclui-se que a adoção da tese biologista representa
um verdadeiro retrocesso ao moderno direito de família em
vigor no Brasil.
6 – Referências
DIAS, Susana. Entusiasmo brasileiro com DNA é
criticado. Disponível em: <http://www.comciencia.br/reportagens/cultura/cultura04.shtml>. Atualizado em 10 jul.
2003. Acesso em: 05 out. 2006.
FACHIN, Rosana Amara Girardi. Em busca da família
do novo milênio: uma reflexão sobre as origens históricas e
as perspectivas do Direito de Família brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade: relação biológica e afetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 1996.
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Se eu
soubesse que ele era meu pai... Jus Navigandi, Teresina, ano
Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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O embate entre as teses biologista e socioafetiva: qual o melhor interesse do filho?
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4, n. 41, maio 2000. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/
doutrina/texto.asp?id=529>. Acesso em: 26 jul. 2006.
LOBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao estado de filiação
e direito à origem genética: uma distinção necessária. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, n. 19,
Síntese, p. 133-156, ago-set. 2003.
______. Paternidade socioafetiva e o retrocesso da
Súmula 301-STJ. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1036,
mai. 2006. Disponível em: < http://jus2.uol.com.br/doutrina/
texto.asp?id=8333 >. Acesso em: 20 jul. 2006.
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Gênero, Direito e esfera pública:
condições de efetividade da Lei
Maria da Penha1 3
Renata Ribeiro Rolim2
Resumo
Apesar dos constantes avanços legislativos em favor
das mulheres, observa-se que parte das dificuldades
de implementação dos direitos reconhecidos está na
deficiência da formação dos operadores jurídicos para
lidar com as questões mais amplas – e, por isso, não
apenas dogmáticas – que envolvem as relações de
gênero e o Direito. Mais uma vez tal dificuldade se
apresenta, agora com a edição da Lei Maria da Penha,
considerada por muitos inconstitucional por ferir
1 Este artigo foi inspirado nas reflexões estimuladas pelas reuniões, ao longo
do segundo semestre de 2007, na Comissão de Políticas Integradas para o
Enfrentamento da Violência Doméstica e Sexista, da Secretaria Especial da
Mulher do Governo do Estado de Pernambuco – da qual a autora participa
como membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/PE – bem como
pelos nos cursos que a Escola Superior da Advocacia Professor Rui Antunes
tem promovido, juntamente com aquela Secretaria, sob o título “Direito e
Relações de Gênero – a aplicabilidade da Lei Maria da Penha”.
2 Doutora em Direitos Humanos e Desenvolvimento pela Universidade Pablo
de Olavide, Sevilha/Espanha, Pesquisadora do Núcleo de Documentação dos
Movimentos Sociais de Pernambuco da Universidade Federal de Pernambuco, Representante da OAB/PE na Comissão de Políticas Integradas para o
Enfrentamento da Violência Doméstica e Sexista do Governo de Pernambuco
e Professora da Faculdade Maurício de Nassau.
Revista do Curso de Direito da Faculdade Maurício de Nassau –
Recife – ano 3 – n. 3 – p. 329-353 – 2008
330
Renata Ribeiro Rolim
o princípio da igualdade perante a lei. Aprofundar
a discussão acerca da igualdade e da diferença sob
uma perspectiva de gênero e questionar o justo lugar
do jurídico na proteção das mulheres, no sentido de
contribuir para a construção de uma prática jurídica
crítica, são os objetivos deste trabalho.
Abstract
Despite the latest legal improvement in favor of
women, it is noticed that part of the difficulties when it is
to accomplish the rights is on the imperfection on part of
the legal academic education so that they are able to deal
with broaden matters – and, therefore, deal not only with
dogmatic ones – which involve the genre relations and
the Law. Once more, such obstacle is clear, now with the
recent passed Law entitled “Lei Maria da Penha”, which
is considered unconstitutional because it goes against the
equality principle. This research aims to make profound
study of equality and difference under a genre perspective and put in question what the Legal System role is in
order to support women’s rights, for contributing to more
straightforward legal practice.
Sumário: 1. Igualdade ou diferença? 2. Enfrentamento
da violência de gênero: o lugar da Lei Maria da Penha. 3.
Por uma prática jurídica crítica
1 – IGUALDADE OU DIFERENÇA?
Em 2001, a Fundação Perseu Abramo realizou uma
ampla pesquisa nacional e constatou que um terço das
mulheres (33%) admite já ter sido vítima de alguma forma
de violência física. O estudo demonstrou também que dentre
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Gênero, direito e esfera pública: condições de efetividade da lei maria da penha
331
as formas de violência física mais comuns destaca-se a
agressão mais branda, sob a forma de tapas e empurrões
(20%). Segundo ainda essa pesquisa, a responsabilidade
do marido ou parceiro como principal agressor varia entre
53% e 70% das ocorrências de violência em qualquer
das modalidades investigadas, excetuando-se o assédio, e
outros agressores comumente citados são o ex-marido, o
ex-companheiro e o ex-namorado que, somados ao marido
ou parceiro, constituem sólida maioria em todos os casos
(VENTURINI, 2004, p. 226-237).
Os estudos demonstram, portanto, que as mulheres estão
expostas a grande violência, que tem a peculiar característica de
ocorrer geralmente no seio das relações de intimidade e no âmbito
da vida privada, contrastando com a violência que acontece nos
espaços públicos e que se dá, em especial, entre os homens. Na
região metropolitana do Recife tais informações foram confirmadas pela pesquisa34 “Saúde da Mulher, Relações Familiares e
Serviços de Saúde do Sistema Único de Saúde em Duas Capitais
– Recife e São Paulo”, financiada pelo CNPQ e coordenada em
Recife por Ana Paula Portella, do SOS Corpo (Instituto Feminista para a Democracia): entre as usuárias do serviço de atenção
primária, 51% afirmaram ter sofrido violência física alguma vez
na vida por parceiro íntimo e 32% disseram que a violência adveio
de familiares (SCHRAIBER, 2007, p. 13-22).
Os dados dessas pesquisas foram colhidos antes
de 2006, mas ainda está muito presente na memória
das mulheres brasileiras, e mais especificamente das
pernambucanas, vítimas de violência doméstica o que
acontecia com seus agressores antes da Lei Maria da
Penha (Lei n. 11.340, de 07/08/2006). No que diz respeito
3 Para maiores informações acerca de pesquisas sobre violência contra a mulher
no Brasil e no mundo ver o site www.patriciagalvao.org.br
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Recife – ano 3 – n. 3 – p. 329-353 – 2008
332
Renata Ribeiro Rolim
à lesão corporal dolosa considerada leve pelo Código
Penal45 (tipo de violência mais freqüente, como constatou a pesquisa da Fundação Perseu Abramo), a Lei n.
9.099/95 praticamente legalizou a violência doméstica
ao permitir a conciliação, a transação e a suspensão
condicional do processo. De fato, pesquisas demonstram
que os índices desse crime aumentaram depois da Lei
dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (SAFFIOTI,
2004, p. 62/63).
No entanto, apesar de todas as críticas que se fizeram
a essa lei, à época certas juristas feministas viram nela um
ponto positivo com relação ao tratamento jurídico anterior.
Antes da Lei n. 9.099/95, a ação penal para a lesão corporal era pública incondicionada e com essa lei passou a ser
necessária a representação da vítima. Dizia-se que tal exigência tinha ao menos o mérito de considerar a vítima como
uma pessoa adulta, responsável pelos seus atos. A perspectiva
era de que o oferecimento de serviços de apoio e de políticas
públicas fortalecessem as vítimas e assim estimulassem as
representações.
Não constitui objetivo deste texto discutir sobre as possíveis
alterações que a Lei Maria da Penha fez no que diz respeito ao
tipo da ação penal para o processamento dos crimes de lesão
corporal dolosa leve5 . O que se quer levantar brevemente aqui
4 Lesões corporais dolosas de natureza leve, de acordo com o art. 129, caput e
§§ 1o, 2o e 3o, são as ofendem a integridade corporal ou a saúde de outrem mas
que não resultam: incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta
dias; perigo de vida; debilidade permanente de membro, sentido ou função;
aceleração do parto; incapacidade permanente para o trabalho; enfermidade
incurável; perda ou inutilização de membro, sentido ou função; deformidade
permanente; abordo ou morte.
5 Para uma análise sobre as mudanças legislativas proporcionadas pela Lei
Maria da Penha ver BARSTED, Leila Linhares. O avanço legislativo no
enfrentamento da violência contra as mulheres. In: LEOCÁDIO, Ecylene
; LIBARDONI Marlene (Orgs.). O desafio de construir redes de atenção às
mulheres em situação de violência. Brasília: AGENDE, 2006, p. 65-90.
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Gênero, direito e esfera pública: condições de efetividade da lei maria da penha
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é o fato de que, seja como for considerado o tipo de ação penal,
não se elimina uma dificuldade concreta: a violência doméstica
ocorre em uma relação afetiva, cuja ruptura geralmente demanda
intervenção externa. No entanto, uma das características da
violência doméstica é sua rotinização, o que contribui, tremendamente, para a co-dependência. Esse é um dos primeiros
elementos que lança luz sobre a ambigüidade das atitudes
de mulheres que em um dia apresentavam a queixa e, no dia
seguinte, solicitavam sua retirada. Com efeito, essa ambigüidade
é muito grande e compreende-se o porquê disto.
Embasadas em anos de experiência acumulada em cursos
de capacitação para o enfrentamento da violência contra a
mulher, Débora Menezes e Juliana Marcondes (2006, p.
126) afirmam que entre os
[...] fatores que contribuem para a permanência da
mulher em situação de violência estão a dependência
econômica e emocional do companheiro; o medo da
solidão; o apego a crenças religiosas e os valores
culturais e morais, [ao passo que entre os] fatores
que dificultam ou impedem a denúncia estão o medo
da represália, o medo das lesões serem agravadas, o
medo de perder os filhos e de ficar sozinha; a dificuldade em lidar com a socialização do problema e a
dificuldade em aceitar o marido como um ‘agressor’
e abrir mão da esperança de mudar de situação.
Com efeito, as agressões têm lugar em uma relação afetiva
com múltiplas dependências recíprocas. Contudo, por mais
que a Lei n. 9.099/95 tenha possibilitado um tratamento mais
brando para os agressores, não foi ela quem determinou que
para as lesões corporais leves praticadas contra as mulheres
a pena deveria ser o pagamento de multas (geralmente 60
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Renata Ribeiro Rolim
reais) ou a entrega de cestas básicas a uma instituição de
caridade6 . Em geral, concorda-se com a afirmação de que a
solução para a violência não está no agravamento das penas
– e essa é a orientação da Lei n. 9.099/95 – mas na certeza
da punição. Nesse sentido, podemos dizer que não foi essa
lei que fez com que a pena do crime de violência doméstica
mais cometido contra as mulheres se convertesse em um
pagamento pela agressão. Os efeitos da interpretação dessa
lei revelam a pouca importância que a sociedade atribui a
um fenômeno com conseqüências muito negativas para a
saúde orgânica e psíquica das mulheres e para a educação
das novas gerações.
Em razão de exemplos como esse é que muitas feministas
argumentam que as lutas no campo jurídico são inglórias, que
se deveria abandonar esse terreno porque o sexismo seria
uma atitude cultural e, portanto, passível de ser eliminada
apenas culturalmente. O “feminismo da diferença” – como
Joaquín Herrera Flores qualifica essa corrente teórica que,
entre outros temas, assim se posiciona – contrapõe-se ao
chamado “feminismo da igualdade”, que, ao contrário,
segundo esse autor, aposta suas fichas quase que exclusivamente na consecução de igualdade de oportunidades para as
mulheres e, nesse sentido, centra sua estratégia na criação de
leis pelas quais seja possível realizar um tipo de “discriminação positiva” para as mulheres, com o objetivo de assim
construir aos poucos uma sociedade igualitária e democrática
(HERRERA FLORES, 2005, p. 70).
Uma das principais críticas que frequentemente se faz
ao “feminismo da igualdade” é a de que essa corrente acaba
por essencializar a “diferença” – “a mulher” – e, como tal,
6 Há relatos que afirmam que em grande parte dos casos as mulheres agredidas
acabavam por pagar, elas próprias, tanto as multas quanto as cestas básicas,
cedendo às ameaças dos companheiros violentos.
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Gênero, direito e esfera pública: condições de efetividade da lei maria da penha
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por mais que se façam normas que prevejam uma “discriminação positiva” não se chega a superar o princípio liberal de
igualdade perante a lei. Em outras palavras, o “feminismo
da igualdade” acaba por despolitizar a questão por deixar
intactas as causas e as conseqüências que fazem com que as
diferenças que existem entre homens e mulheres acabem por
se converter em desigualdades. Melhor dizendo, as causas
e as conseqüências que fazem com que pelo simples fato de
ter nascido com um determinado sexo permaneça-se subordinada aos homens de sua mesma classe e relativamente com
menos poder que todos os homens.
Não é assim que ocorre no mercado de trabalho? A lei garante a mulheres e homens o acesso à educação, respeitando
as diferenças entre ambos. Nas faculdades e nas escolas se
admite uma licença especial em caso de gravidez e, imaginemos por um minuto uma situação ideal, a possibilidade de as
mulheres deixarem seus filhos em creches enquanto estudam.
Será que, mesmo nessa situação hipotética no Brasil mas
que ocorre em alguns países europeus, isso significaria que
a mulher não teria que se qualificar muito mais para disputar
com o homem o mesmo cargo, com igual salário?
Por outro lado, tal constatação nos autorizaria a fechar os
olhos para as diferenças e desigualdades reais e concretas entre
homens e mulheres no que diz respeito às condições econômicas, sociais e culturais sem as quais não se poderia construir uma
sociedade igualitária? Ao adotarmos a posição do “feminismo
da diferença” – que nega o papel do direito como lugar de luta
social – não se estaria caindo inadvertidamente no formalismo
abstrato e, consequentemente, na concepção de liberdade que
predomina hegemonicamente na tradição liberal do direito,
entendida em termos de autonomia individual? A liberdade
entendida como autonomia individual, lembre-se, considera
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que bastam direitos civis e políticos – como o direito de votar
e de ser votado, a liberdade de expressão e de imprensa – e um
mercado livre para que todos alcancem a igualdade.
Estamos, pois, diante de um impasse. Concentramos
nossos esforços em lutar por leis que acolham a diferença de
oportunidades reais para homens e mulheres mesmo sabendo,
desde já, que essas leis não atingirão o problema da desigualdade em sua raiz? Mesmo estando cientes que de “lei em lei”
que prevejam um certo tipo de “discriminação positiva” não
se chegará a uma sociedade igualitária? Ou, ao revés, não
percamos tempo com o direito? Dediquemo-nos diretamente
à combater o sexismo no plano ideológico-cultural?
Obviamente, se a resposta for na segunda direção, a Lei
Maria da Penha não teria sentido. Homens e mulheres que
cometessem algum tipo de violência doméstica deveriam
responder de igual maneira pelo mesmo dispositivo legal,
como era anteriormente com a Lei n. 9.099/95. No entanto,
diante do aumento dos índices de violência e assassinatos7
cometidos contra mulheres em todo o país, mas muito especialmente em Pernambuco, não foi esse o caminho escolhido.
Apostou-se no campo jurídico como um terreno importante
na luta contra a violência doméstica.
Contudo, para compreendermos a importância da Lei
Maria da Penha, em outras palavras, para não pedirmos
nem mais nem menos ao direito, é necessário enfatizar o
justo lugar que ocupa o jurídico na proteção das mulheres,
como também de todos que historicamente foram relegados
a uma posição subalterna na sociedade. Tal postura evita o
ceticismo com relação ao direito, mas também futuras frustrações por se ter apostado nele todas as fichas.
7 Pesquisas demonstram que a violência doméstica é gradativa. O agressor principia com agressões verbais, em seguida passa para lesões físicas leves e assim
por diante, podendo chegar, caso não seja impedido a tempo, ao homicídio.
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Gênero, direito e esfera pública: condições de efetividade da lei maria da penha
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2 – ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO: O LUGAR DA LEI MARIA DA PENHA
Já se disse que o direito não é uma ferramenta neutra. Se
é certo que o direito, assim como todo o aparato ideológico
do Estado, não é simplesmente um mero reflexo das relações
sociais e culturais dominantes, ele também pode ser usado
para transformar tradições e costumes. Mas, como?
O direito, afirma Joaquín Herrera Flores, é em primeiro
lugar uma técnica de domínio social que se coloca perante os
conflitos neutralizando-os a partir da perspectiva da ordem
dominante. E, em segundo lugar, é uma técnica especializada
que determina a priori quem é legitimado para produzi-la
e quais os parâmetros a partir dos quais se deve utilizá-la.
Daí a imensa força daquele que tem a autoridade de “dizer”
o direito – tanto o legislador como o juiz – no momento de
conformar atitudes e regular relações sociais em um sentido
ideológico e politicamente determinado. Por isso, alerta o
autor, é importante que não tenhamos desprezo pela luta
jurídica nem, por outro lado, confiança de que só por meio
dela se possa chegar a um tipo de sociedade não sexista
(HERRERA FLORES, 2005, p. 70/71).
Nesse sentido, toda leitura do fenômeno jurídico – assim
como de qualquer aspecto da realidade – se faz a partir de
uma postura política e ideológica determinadas. Em outras
palavras, o direito não oferece ao seu (sua) intérprete e/ou
aplicador (a) a possibilidade de fugir da posição particular
que ele/ela ocupa no interior dos conflitos sociais (e tal
posição tanto pode ser opositiva ou legitimadora do status
quo), nem dos parâmetros dominantes que conformam a
hegemonia em um espaço e em tempo determinados. Por
mais que se pretenda suprimir essas duas posturas, seja pela
Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
Recife – ano 3 – n. 3 – p. 329-353 – 2008
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Renata Ribeiro Rolim
afirmação de que o ordenamento jurídico é auto-suficiente e
pleno e que por isso só há uma decisão juridicamente correta,
seja pela negação da influência das ideologias na produção,
interpretação e aplicação do direito, não há como o (a) intérprete e/ou aplicador(a) aliviar a consciência ou eximir-se
de responsabilidade no momento em que lê o mundo e os
conflitos sociais por intermédio do direito.
Se com a Lei Maria da Penha abandonou-se o “feminismo da diferença” e se apostou na luta jurídica como
instrumento para a construção de uma sociedade igualitária –
reconhecendo ao mesmo tempo que o ideológico e o político
não podem ser excluídos do direito – temos que responder
a duas perguntas que propõe Joaquín Herrera Flores. Essas
duas perguntas estão intrinsecamente relacionadas, mas têm
conotações e conseqüências específicas: qual igualdade? E,
em seguida, igualdade de quê? (HERRERA FLORES, 2005,
p. 65-90)
Desde as revoluções burguesas do século XVIII fala-se
da necessidade de traços comuns entre os cidadãos para
a construção de um Estado Democrático. Segundo essa
perspectiva, deve haver um mínimo de homogeneidade entre
os cidadãos para que possam se entender como participantes
da vontade geral (HERRERA FLORES, 2005, p. 67). São
essas características comuns que fazem com que seja possível
falar da igualdade perante a lei: todos somos iguais perante
a lei, diz o art. 5º, caput, da Constituição Federal.
No entanto, muito cedo se constatou que a conquista da
igualdade de direitos não foi suficiente para apoiar ou para
impulsionar o reconhecimento e o respeito pelas diferenças,
nem muito menos propiciou a remoção das desigualdades sociais, econômicas e culturais. Ao responder a pergunta “qual
igualdade”, Herrera Flores considera fundamental identificar
Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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Gênero, direito e esfera pública: condições de efetividade da lei maria da penha
339
que a problemática apontada tem suas raízes fincadas na
figura clássica do “contrato” como fundamento da relação
social, figura que se situa na separação – fundamental para
o liberalismo político – entre política e economia. Ao partir
da constatação fática de que todos somos iguais perante a lei
a figura do contrato normaliza, legitima e legaliza posições
prévias de desigualdade com o objetivo de reproduzi-las
infinitamente (HERRERA FLORES, 2005, p. 58).
Mas não é só isso. A separação entre economia e política
é muito clara para nós hoje quando a analisamos do lado da
economia: parece muito claro que o mercado não é capaz
de distribuir os bens de forma igualitária. Mas será que as
conseqüências da separação entre economia e política são
tão claras quando analisadas do lado da política?
No processo de separação ideológica e irreal entre
economia e política também vai se instaurando, alerta Herrera Flores (Idem, p. 59-61), uma segunda separação muito
importante: aparece um espaço ideal/universal – o espaço
público – onde se moveriam sujeitos idealizados e idênticos
que gozam de igualdade formal perante a lei e, junto a tal
espaço, dando-lhe suporte mas guardando ao mesmo tempo
sua especificidade, surge a consciência de um espaço material/particular/doméstico – o espaço do privado – onde se
encontram não só os interesses econômicos dos sujeitos
“concretos”, mas também as relações que os ligam a outros
sujeitos no espaço doméstico, as crenças particulares e
as identidades sexuais e raciais. O contratualismo supõe,
portanto, a construção de uma percepção social baseada
na identidade que se dá no espaço público garantido pelo
direito e a expulsão das diferenças para o âmbito desestruturado, e invisível para o institucional, do privado. Assim,
as diferenças que existem entre homens e mulheres e entre
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Renata Ribeiro Rolim
etnias, por exemplo, ficam adstritas à esfera do privado sem
jamais adquirir visibilidade ou consideração públicas. Em
resumo, a formação da lei, expressão da vontade geral, não
leva em consideração as necessidades e os interesses dos que
se encontram nesse espaço.
Nesse sentido, para o liberalismo político a diferença
deve ser entendida como “diversidade”, como algo que
foge do padrão universal que nos faz partícipes da vontade
geral e que, por isso mesmo, deve ser apenas tolerada. E
esse padrão universal não é outro senão, como diz Jürgen
Habermas, o do homem, branco, proprietário e culto (2003,
p. 42/74). É dentro dessa perspectiva, portanto, que devem
ser vistas as várias tentativas de impedir a vigência ou de
restringir a eficácia Lei Maria da Penha que se baseiam no
princípio da igualdade entre os gêneros: impor um padrão
de ser, de sentir e de fazer que se convencionou identificar
com o masculino.
Por outro lado, se não separarmos o econômico do
político podemos dizer que o que ameaça a igualdade não é
a diferença. Como afirma Heleieth Saffioti (2004, p. 37),
[...] a democracia exige igualdade social. Isto não
significa que todos os socii, membros da sociedade,
devam ser iguais. Há uma grande confusão entre
conceitos como: igualdade, diferença, desigualdade,
identidade. Habitualmente, à diferença contrapõese a igualdade. Considera-se, aqui, errônea esta
concepção. O par da diferença é a identidade. Já a
igualdade, conceito de ordem política, faz par com
a desigualdade.
A igualdade, conceito de ordem política mas inseparável
do econômico, não é algo do qual devemos partir, mas uma
meta, um objetivo que apenas será conquistado se houver o
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Gênero, direito e esfera pública: condições de efetividade da lei maria da penha
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reconhecimento de que existem desigualdades econômicas,
sociais e culturais entre pessoas e grupos. O que se contrapõe
à igualdade, como afirmou a autora, não é a diferença, mas
a desigualdade de condições econômicas, sociais e culturais
que permitam ou que possibilitem a igualdade perante a lei,
perante o direito.
A Lei Maria da Penha, portanto, não pode ser considerada
– como muitos querem - inconstitucional por supostamente
possibilitar uma discriminação não permitida entre homens
e mulheres, conforme determina o art. 5o, I, da Constituição
Federal. Essa lei, fruto de anos de pressão e embates dos
movimentos feministas e da luta silenciosa de milhares de
mulheres constantemente agredidas por seus parceiros e
familiares, ataca a desigualdade existente entre homens e
mulheres ao reconhecer a especificidade da violência de
gênero e, assim, prever formas distintas de erradicá-la. Do
contrário, como podemos falar de igualdade de oportunidades para homens e mulheres no mercado de trabalho, por
exemplo, quando, segundo o Banco Mundial, a violência
de gênero causa mais danos e mortes às mulheres entre 15 e
44 anos do que doenças, como câncer e malária, ou mesmo
acidentes de trânsito e guerras; e quando um em cada cinco
dias em que as mulheres faltam ao trabalho é motivado pela
violência doméstica (PERNAMBUCO, 2007, p. 9)?
Agora sim podemos voltar à pergunta inicial: qual
igualdade? Igualdade de oportunidades, entendida como a
criação de condições, de meios, de recursos econômicos,
sociais e culturais que permitam a igualdade de direitos, que
possibilitem a igualdade perante a lei.
As questões que envolvem a segunda pergunta colocada por Joaquín Herrera Flores – igualdade de quê? – não
podem se limitar ao terreno jurídico, porque não se trata de
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igualdade perante a lei. No entanto, apesar de o direito não
ser a resposta para essa questão, tal não diminui em momento algum a importância da luta jurídica, pois, de acordo
com esse autor, o jurídico deve ser entendido como um dos
instrumentos mais importantes no momento de garantir
institucionalmente os resultados das lutas por igualdade
(HERRERA FLORES, 2005, p. 83). Sem o jurídico, como
seria possível registrar as grandes mudanças que ocorreram
nas últimas décadas em favor das mulheres? Sem a ajuda do
registro legal, como disseminar as pautas e as reivindicações
da mulheres? Como ganhar posições na sociedade civil em
favor da igualdade de gênero? Como tornar constantemente
visível as desigualdades econômicas, sociais e culturais entre os gêneros? Em uma frase, como converter as lutas por
igualdade em “uma língua que todos falem”? A Lei Maria da
Penha, afortunadamente, parece estar se convertendo nessa
língua comum.
A dificuldade surge quando se abandona a prática social
e se confia apenas nos resultados que foram registrados juridicamente, pois tais resultados – os resultados das lutas pela
igualdade de oportunidades, pela igualdade perante a lei –,
apesar de imprescindíveis, não têm o condão de alterar por si
só o processo histórico e social de diferenciação entre homens
e mulheres. Dado que ser homem e ser mulher é muito mais
uma questão que diz respeito aos modelos e as expectativas
socioculturais sobre ambos os seres do que simplesmente
uma determinação biológica, em outras palavras, considerando que a diferenciação entre os gêneros não é algo dado
direta e espontaneamente por suas anatomias, tal processo
de identificação/diferenciação não pode ser modificado
pelo direito. A eliminação do patriarcado, como processo
histórico e social que atribui valoração positiva ao universo
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Gênero, direito e esfera pública: condições de efetividade da lei maria da penha
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dos homens e que, concomitantemente, exclui socialmente
tudo o que se refere às mulheres, necessita que as mulheres
estejam “empoderadas”, isto é, que tenham as mesmas oportunidades econômicas, sociais, políticas e culturais que os
homens, mas como se trata da eliminação de uma relação
de poder que se baseia no medo e no controle, ele não é
suscetível de ser combatido apenas juridicamente.
É por isso que grande parte do feminismo de procedência
jurídica questiona a identificação total que comumente se
faz entre a práxis política e a atividade legislativa, como se
a política se reduzisse à produção de normas e, consequente­
mente, a igualdade fosse possível ser obtida mediante o
mero reconhecimento jurídico dela. Se as leis constituem o
lugar da representação do existente, afirma Herrera Flores,
o lugar da modificação e da transformação é a prática social
(2005, p. 85).
O grande mérito de Joaquín Herrera Flores em não se
deter na pergunta “qual igualdade?” e colocar a questão
“igual­dade de quê?” está no fato de que ele parte da existência
de uma situação de desigualdade. Portanto, longe de refletir
sobre as diferenças a partir de padrões universalistas a priori,
esse autor se preocupa em reconhecer as causas que fazem
com que as diferenças se transformem em desigualdades.
Por isso, ele diz que a problemática que nos apresenta o
conceito de igualdade deve ser situada nos espaços concretos, isto é, nos contextos precisos onde se produz a riqueza,
e consequentemente a pobreza, onde se reproduzem as divisões sociais, sexuais, étnicas e territoriais do fazer humano.
Nesse sentido, qual é o contexto e o conjunto das causas da
desigualdade e da diferença e como temos que caminhar
para solucioná-las colimando a construção de uma sociedade
igua­litária? São perguntas que se devem colocar todas e todos
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que não querem essencializar as diferenças nem eternizar as
desigualdades (HERRERA FLORES, 2005, p. 82-91).
Para analisar a problemática da igualdade e da diferença
com mais detalhes, Herrera Flores se apóia em Amartya Sen.
Para esse economista indiano, a diferença e a desigualdade
procedem fundamentalmente da diferente capacidade que o
sistema oferece no que diz respeito ao uso dos recursos disponíveis e das possibilidades de transformar esses recursos
em capacidades para atuar. Assim, para determinar o grau
de desigualdade na diferença não devemos nos fixar unicamente na falta de “meios”, de “recursos”, de “condições”
econômicas, sociais e culturais, mas levar em consideração
a injusta distribuição de possibilidades de funcionamento ou
de capacidades sociais de uso dos recursos disponíveis no
que diz respeito à “diferente” situação de homens e mulheres
no processo de divisão social, sexual, étnica e territorial do
fazer humano (HERRERA FLORES, 2005, p. 84/85).
Retomemos uma questão colocada anteriormente.
Quando se fala da necessidade de se criar creches para as
mulheres poderem estudar em condições de igualdade com
os homens parte-se do pressuposto de que a elas cabem o
cuidado dos filhos, no máximo os homens podem “ajudar”,
mas a responsabilidade é delas. Fica claro, portanto, que não
se trata apenas de lutar por meios e recursos que possibilitem
a igualdade perante a lei, a igualdade de oportunidades, mas
por um acesso igualitário e não hierarquizado a esses recursos
e a esses meios. Homens e mulheres deveriam se ocupar
igualmente dos cuidados domésticos com os filhos para que
todos tenham acesso e o uso igualitário da educação.
É por isso que não podemos tratar a igualdade separada
da liberdade. É por isso que não podemos apostar todas
as nossas fichas no direito. Necessitamos que as transforRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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mações se dêem na prática social. No entanto, ao mesmo
tempo, não podemos colocar como sinônimo de liberdade
a autonomia individual, porque isso nos levaria a separar
novamente o político do econômico. Em outras palavras,
não podemos desprezar a necessidade de meios e recursos
econômicos, sociais e culturais para atingirmos a igualdade
perante a lei, mas ao mesmo tempo – para resguardar as
diferenças, para que não nos orientemos por um padrão
universal a priori – deveríamos lutar pela construção de
espaços sociais nos quais os indivíduos e grupos possam
levar adiante suas lutas por sua própria concepção da dignidade humana.
A partir dessa posição, o principal objetivo da liberdade,
da atividade política, será o de construir subjetividades adequadas para a construção de relações sociais igualitárias.
Pensar o direito a partir de uma perspectiva materialista e de
totalidade, e não como algo ideal e desconectado dos contextos onde a vida é produzida e reproduzida, permite lidar
com a Lei Maria da Penha como um apoio para a criação
de uma subjetividade política antipatriarcal: fazer com que
as conquistas das práticas sociais se transformem “em uma
língua que todos falem”.
Nesses termos ganha sentido a reivindicação de um
direito à comunicação, de um direito à polifonia, a partir do
qual se reconheça a existência de muitos pontos de vista e se
proporcionem recursos e meios, especialmente tecnológicos,
para que a pluralidade seja uma verdadeira forma de vida e,
portanto, não se confunda com a superposição de consensos,
que deixa intacto o padrão a ser refletido.
A construção e a perpetuação da ideologia patriarcal
alcança a todos e a todas pelo simples fato de estar presente
em todos os instrumentos e instituições de socialização. De
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fato, os mecanismos de produção e de difusão são tão eficientes que a ideologia patriarcal muitas vezes não chega à
consciência, ao contrário, na maioria das vezes não percebemos que a carregamos em nossas veias. A família, a escola,
as igrejas são instituições que tradicionalmente ajudaram a
produzir e perpetuar o patriarcalismo e, como tal, a relegar a
existência feminina à esfera privada. No entanto, atualmente
nenhuma instituição desempenha melhor esse papel na esfera
pública que os meios de comunicação e, por isso mesmo,
merece todas as atenções dos que lutam por uma sociedade
igualitária.
Como afirma a jornalista feminista Ana Veloso (2007,
p. 15),
Local de embates políticos e espaço fundamental para
a democratização da vida cotidiana, a esfera pública
desponta como locus privilegiado para quem pretende
ascender ao poder ou para quem não quer abrir mão
dele. Isso acontece porque também é por meio dela
que se constroem e legitimam discursos. Ela funciona
como vitrine da vida social. E ninguém melhor do que
a imprensa para fazer sua refração. Não seria exagero
dizer que a mídia detém grande poder de sedução e
influência sobre a sociedade justamente por fazer a
mediação entre a esfera pública e a privada, ou melhor,
por sua capacidade de reproduzir, para um grande
número de espectadores, algum fato social.
Como é a imagem da mulher na mídia? Como os meios
de comunicação retratam a mulher e seu lugar na sociedade?
Para um(a) expectador(a) tolerante, bastam apenas alguns
minutos em frente à televisão, principal veículo de comunicação do país, para constatar que a programação das emissoras
primam pelo grotesco, pela incitação da violência e pelo desrespeito aos direitos das mulheres e de grupos minoritários.
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Gênero, direito e esfera pública: condições de efetividade da lei maria da penha
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Vale tudo em nome do entretenimento e da “informação”, ou
melhor, em nome do lucro fácil, camuflado por um suposto
atendimento ao “gosto do público”. Diga-se-lo sem rodeios:
trata-se de oportunismo e populismo. Oportunismo, porque as
emissoras se aproveitam das necessidades humanas de compensação que implica um cotidiano de inúmeras privações,
desemprego e baixa auto-estima. Enquanto o telespectador ri
de mulheres, lésbicas e homossexuais colocados em situações
vexatórias e caluniadoras, isto é, de grupos que são excluídos
social, econômica e politicamente na sociedade, ri inconscientemente de si mesmo. Populismo, porque a televisão
intervém na própria opinião e no comportamento do público,
em outras palavras, é um veículo formador de opinião e de
comportamentos. A neutralidade mercadológica de atender
ao “gosto do público” encobre, na verdade, uma ação realmente formadora de opinião e a exploração desse segmento
de mercado passa a ser a mesma coisa que “dar o que o
público quer”. Em suma, a tv não inventa comportamentos,
tendências ou valores, mas captura comportamentos e decide
a quais dar visibilidade, legitimidade, importância.
Contudo, mais do que um efeito “sócio-terapêutico” de
compensações psicológicas, a liberdade de expressão e o
direito de informar, geralmente invocados pelas emissoras de
televisão, têm repercussões ainda mais graves, pois a prática
da democracia pressupõe e objetiva a criação e a consolidação
de sujeitos sócio-políticos capazes de construir novas relações sociais, baseadas no respeito mútuo e na preservação
da dignidade humana.
Nesse sentido, como erradicar a violência contra as
mulheres se os meios de comunicação a retratam em uma
relação de subordinação diante do homem? Como extinguir
a violência contra a mulher sem transformar essa arena de
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formação e desempenho de identidades sociais? Não foi
à toa que em agosto de 2007 mais de 2,5 mil delegadas
da II Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres
destacaram, como um dos novos eixos prioritários do Plano
Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM), a criação
de mecanismos de controle social sobre o uso da imagem da
mulher nos meios de comunicação.
3 – POR UMA PRÁTICA JURÍDICA CRÍTICA
Quando manejado para construir igualdade de
condições econômicas, sociais, políticas e culturais entre
os gêneros e como base objetiva, concreta, para o processo
de produção de uma subjetividade antipatriarcal, o direito
converte-se em instrumento das lutas sociais por uma sociedade igualitária. Nesse sentido, um dos aspectos mais
importantes da Lei Maria da Penha está no fato de ter surgido
de pesquisas fundamentadas e de reivindicações concretas
que expressam o conjunto das lutas feministas no Brasil.
Lutas que têm nessa lei um ponto de apoio e não um resultado
final, não só porque, como se viu anteriormente, o direito
não resolve a questão “igualdade de quê”, mas também, e
talvez especialmente, pelo fato de que ele próprio é, na imensa maioria dos casos, ensinado conforme os parâmetros da
ideologia patriarcal e de uma suposta neutralidade política,
dificilmente superadas na prática profissional.
Por isso, interpretar e aplicar a Lei Maria da Penha faz
dessas práticas políticas uma tarefa arriscada. Os textos
jurídicos são aparentemente de natureza formal e, na maioria das vezes, também são interpretados com base em uma
lógica formal abstrata, por meio da qual o processo histórico
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Gênero, direito e esfera pública: condições de efetividade da lei maria da penha
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de onde resultam não pode se apresentar. Não é de se espantar, portanto, os inúmeros artigos e livros que passaram
a defender a inconstitucionalidade ora de alguns artigos ora
de toda a Lei Maria da Penha, em nome do princípio da
igualdade perante a lei.
A lógica formal abstrata no ensino e na prática do direito
alimenta-se de múltiplos fatores. É muito comum atribuir
a perpetuação de tal lógica à contribuição de uma certa
“pompa” que faz parte do imaginário do mundo jurídico.
De fato, o mistério conferido pela solenidade que ronda as
salas de audiência; a imponência dos edifícios que abrigam
as mais altas cortes do país; a indumentária sisuda a dar um
ar próspero sob o sol tropical; o manejo de regras e normas
cuja inteligibilidade é dificilmente acessível aos leigos muitas vezes fazem com que os estudantes dos cursos de direito
construam para si mesmos uma imagem ao mesmo tempo
privilegiada e distinguida de suas futuras práticas profissionais.
Há, porém, um outro fator que muito tem contribuído para
o ensino e a prática jurídicos formais: ingressar e poder
freqüentar as aulas do curso de direito representa uma possibilidade real de ascensão social que, para os mais altos
cargos da burocracia jurisdicional, implica ganhar mais de
cinqüenta vezes o salário mínimo do país.
Se a imagem “pomposa” do curso é logo desafiada
pelos primeiros contatos com extrema burocracia na tramitação dos processos e pela morosidade da justiça, a idéia de
que o direito constitui um mundo à parte, imune à extrema
desigualdade social que define a sociedade brasileira, é mais
difícil de ser abalada. Essa visão começa a ser construída
muito cedo, desde o primeiro ano de estudos, e permanece,
na maioria das vezes, ao longo de todo o curso, estendendose para a prática profissional. Assim, muito cedo os alunos
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tentarão reter uma grande quantidade de normas, dedicar-seão com afinco ao aprendizado das técnicas de aplicação das
leis, desdobrar-se-ão em perceber os problemas “jurídicos”,
a identificar as ambigüidades e contradições das normas e
quando são aplicáveis aos casos concretos. Tudo isso a garantir a “segurança jurídica”, a previsibilidade das decisões
para o bom funcionamento de um sistema fechado, circular,
hierárquico e, principalmente, coerente. Tudo passa como
se aprender o “direito” significasse saber o conteúdo das
normas e porque o sistema jurídico tem que ser como é.
Nas últimas décadas, as mulheres têm conquistado
maiores espaços no conjunto da sociedade brasileira, ampliando sua participação na produção da riqueza no mercado de
trabalho e nas esferas de decisão política. Tais conquistas
não foram, porém, amplas o suficiente para modificar os
papéis sociais que lhes foram destinados. Historicamente, o
direito positivo reforçou essa condição, cumprindo assim sua
função de controle social ao promover a desigualdade jurídica
da população feminina. A partir da década de 1980, com o
fortalecimento do movimento feminista, é que se delineou
uma tendência de reconhecimento formal dos direitos das
mulheres. A Constituição Federal, ao reconhecer a igualdade
entre homens e mulheres e por ter previsto amplos direitos
para as mulheres, foi um importante marco na luta pela
emancipação feminina. Desde então, outros direitos foram
garantidos, sendo importante ressaltar a ratificação integral
da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a
Mulher (Convenção de Belém do Pará).
Em que pesem os avanços na legislação, observa-se que
parte das dificuldades de implementação dos direitos reconheRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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cidos está na deficiência da formação dos/das operadore(a)s
jurídico(a)s para lidar com as questões mais amplas – e, por
isso, não apenas dogmáticas – que envolvem as relações de
gênero e o direito.
Daí a importância de, antes de estudar e aplicar a Lei
Maria da Penha, compreender as relações de gênero. Daí a
necessidade de exigir que o Ministério da Educação introduza, na estrutura curricular dos cursos de bacharelado em
direito, uma disciplina específica sobre os direitos das mulheres que problematize os aspectos sociológicos, históricos,
políticos, econômicos, culturais e jurídicos das relações de
gênero no país. Medida concreta nessa direção é incluir, de
forma específica, o direito das mulheres no edital do exame
para a Ordem dos Advogados do Brasil, à semelhança do
direito do consumidor, do direito da criança e do adolescente
e do direito ambiental.
O ensino do direito e das relações de gênero nos cursos
jurídicos é condição para uma prática jurídica crítica. E é
preciso que se diga que tal prática não se resume ao antiformalismo. É certo que não há formação técnica, dogmática,
que supra a necessidade de formação política, no sentido da
elaboração consciente, e de maneira coletiva, de uma visão
de mundo. No entanto, não há consciência das implicações
políticas das interpretações dos textos normativos que seja
capaz de, pelo menos no que diz respeito atualmente à imensa
maioria dos/das que ocupam os mais altos cargos da burocracia jurisdicional, alcançar a compreensão de uma situação de
carência e de opressão. Não se pode construir idealmente
soluções ou decisões que, em seu conjunto, sejam capazes
de suprir necessidades absolutamente distantes da realidade
cotidiana em que se vive.
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Renata Ribeiro Rolim
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pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade
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patriarcales. Bilbao: Universidad de Deusto/Cadernos Deusto
de Derechos Humanos, 2005.
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na perspectiva de gênero. In: LEOCÁDIO, Ecylene;
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SCHRAIBER, L. B. et al. Saúde da mulher, relações
familiares e serviços de saúde do Sistema Único de Saúde
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USP/FM, 2007.
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Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.
VELOSO, Ana. O discurso feminista na esfera pública.
Disponível em<http://www.ibase.org.br/modules.
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VENTURINI, Gustavo, Marisol Recamán e Suely de Oliveira.
A mulher brasileira nos espaços público e privado. São
Paulo: Perseu Abramo, 2004.
Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
Recife – ano 3 – n. 3 – p. 329-353 – 2008
355
DA PRESCRIÇÃO DO “FUNDO
DE DIREITO”
Sérgio Paulo Ribeiro da Silva1
Resumo
O presente trabalho tem por enfoque o fenômeno da
prescrição consumada em favor da Fazenda Pública, enfatizando aquela que afeta a pretensão incidente sobre o
chamado “fundo de direito”, isto é, no suposto direito que o
particular entende ter adquirido, do qual decorrerão efeitos
patrimoniais.
Com vistas às recentes discussões acadêmicas e
jurisprudenciais acerca do tema, a principal abordagem
da pesquisa residirá na distinção entre a denominada
prescrição do “fundo de direito”, daquel’outra incidente, unicamente, sobre as prestações decorrentes de
uma situação jurídica já estabelecida, com o objetivo
de demonstrar que a percepção equivocada do julgador,
a confundir uma com a outra, poderá conduzir uma das
partes a prejuízo patrimonial. Isto é, tanto pode obrigar
a Fazenda Pública a realizar pagamento de prestações
1 Especialista em Metodologia do Ensino Superior pela Universidade Católica
de Pernambuco, Professor da Escolar Superior da Magistratura de Pernambuco,
Juiz de Direito – assessor especial da presidência do Tribunal de Justiça de
Pernambuco e Professor da Faculdade Maurício de Nassau.
Revista do Curso de Direito da Faculdade Maurício de Nassau –
Recife – ano 3 – n. 3 – p. 355-375 – 2008
356
Sérgio Paulo Ribeiro da Silva
decorrentes de direito, cuja pretensão já se encontra prescrita, ou ainda, privar o particular de um direito quando
apenas as prestações dele decorrentes se encontravam
alcançadas pela prescrição.
Abstract
The present work deals with the institutes of prescription
and decadence in favor of the State (Treasury), emphasizing
how they affect the “essence of right”.
By observing the most recent academic and jurisdictional discussions concerning the subject, this research
will also bring the distinction between the extinctive
phenomenon, in order to demonstrate that a mistake on
interpreting the institute by the judge, confusing one
with the other, may lead one of the parties to a material
damage.
Key-Words: State, Prescription, Decadence, Effects,
Essence of right.
Sumário: introdução: Da prescrição do “fundo de direito”; 1 definições; 1.1 Prescrição; 1.1.1 Temporaneidade;
1.1.2 Pretensão; 1.1.3 Natureza (jurídica); 1.1.4 Efeitos; 1.2
Fazenda Pública; 2 A fazenda pública diante da prescrição; 3
A prescrição das pretensões contra a fazenda pública; 4 prescrição do “fundo de direito”; 4.1 Distinção (entre prescrição
do “fundo de direito” e prescrição incidente sobre prestações
de trato sucessivo); 4.2 Significação prática do tema; 4.3
Análise de um caso concreto; 5 conclusões; Referências.
Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
Recife – ano 3 – n. 3 – p. 355-375 – 2008
Da prescrição do “fundo de direito”
357
INTRODUÇÃO
Nossa análise – sem pretensões de ser percuciente –,
está na mira da prescrição que se consuma em favor da
Fazenda Pública, buscando focar a específica prescrição
que afeta a pretensão que recai sobre o chamado “fundo
de direito”, este consistente no suposto direito que o particular entende ter adquirido, do qual decorrerão efeitos
patrimoniais.
A um só tempo a prescrição é sanção – dirigida ao titular
do suposto direito que supostamente foi violado, e mesmo
assim permaneceu inerte – e instrumento de pacificação
social – ao garantir estabilidade às relações jurídicas.
E como não faz muito tempo que a idéia de prescrição,
como meio de extinção do direito de ação, circulava nos
meios acadêmicos, na doutrina e na própria jurisprudência,
é que, para possibilitar o diálogo, a reflexão do tema está
precedida da fixação de conceitos – antigos e novos –, como
de Fazenda Pública e de prescrição, adentrando nos aspectos
da temporaneidade, da pretensão, da sua natureza (jurídica)
e dos efeitos que produz.
Especificamente sobre a chamada prescrição do “fundo
de direito”, inicialmente distinguimo-la da prescrição que
recai unicamente sobre as prestações decorrentes de uma
situação jurídica já estabelecida, com o objetivo de demonstrar que a percepção equivocada do julgador, a confundir
uma hipótese com a outra, poderá conduzir uma das partes a
prejuízo patrimonial. Tanto pode obrigar a Fazenda Pública a
realizar pagamento de prestações decorrentes de direito, cuja
pretensão já se encontra prescrita, ou ainda, privar o particular
de um direito quando apenas as prestações dele decorrentes
se encontravam alcançadas pela prescrição.
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Recife – ano 3 – n. 3 – p. 355-375 – 2008
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Sérgio Paulo Ribeiro da Silva
1 – DEFINIÇÕES
1.1 Prescrição
1.1.1 Temporaneidade
Pelo que propõe este trabalho, não é de todo apropriado fazer incursões históricas acerca do instituto da
prescrição. Porém, um brevíssimo relato de sua origem
não deve ser desmerecido, pois serve de suporte para
uma melhor compreensão de sua natureza, sobretudo
no que diz respeito ao caráter da temporaneidade do
exercício dos direitos, dentre os quais o de ver reparado
o direito subjetivo violado. Nesse intuito, sirvo-me das
referências de Venosa:
Antonio Luís Câmara Leal (1978, p. 3) descreve a
história desse conceito etimológico. Quando o pretor foi investido pela lei Aebutia, no ano de 520 de
Roma, do poder de criar ações não previstas no direito
honorário, introduziu o uso de fixar prazo para sua
duração, dando origem, assim, às chamadas ações
temporárias, em contraposição com as ações de direito quiritário que eram perpétuas. Ao estabelecer que
a ação era temporária, fazia o pretor precedê-la de
parte introdutória chamada praescriptio, porque era
escrita antes ou no começo da fórmula. (VENOSA,
2008, p.538).
No dizer de Gonçalves (2007, p.467), o tempo é
o personagem principal da prescrição. Não há como
desprezar o fato que o tempo afeta o exercício dos direitos
subjetivos, cicatrizando lesões ocorridas no contexto
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Da prescrição do “fundo de direito”
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das relações (jurídicas) econômico-sociais. E Venosa
(2008, p. 535), com a percuciência de sempre, arremata:
“O decurso do tempo, em lapso maior ou menor, deve
colocar uma pedra sobre a relação jurídica cujo direito
não foi exercido.”.
1.1.2 Pretensão
Para Gagliano (2007, p. 455), prescrição é a perda
da pretensão de reparação do direito violado. Refletir
sobre o conteúdo do termo prescrição pressupõe, de
certo, refletir, também, sobre o termo pretensão.
Pretensão, pois, diz respeito ao poder ou ao direito de
exigir, do devedor em mora, o adimplemento da obrigação. Supõe, portanto, o inadimplemento de um dever
jurídico, ou, na expressão do Código Civil de 2002, a
violação de um direito (artigo 189): “Violado o direito,
nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela
prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206.”.
Colho das lições da professora Maria Helena Diniz:
A violação do direito subjetivo cria para o seu titular a pretensão, ou seja, o poder de fazer valer em
juízo, por meio de uma ação (em sentido material), a
prestação devida, o cumprimento da norma legal ou
contratual infringida ou a reparação do mal causado,
dentro de um prazo legal (arts. 205 e 206 do CC).
(DINIZ, 2005, p. 375).
Informa Gonçalves (2007, p. 467) que a pretensão
– Anspruch –, como expressão da exigibilidade da
prestação não cumprida, foi adotada entre nós – Código
Civil de 2002, artigo 189 – por influência do direito
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Sérgio Paulo Ribeiro da Silva
germânico, revelando, inequivocamente, que não mais
vigora a idéia segundo a qual a prescrição põe fim ao
direito abstrato de ação. Tanto é assim – que não extingue o direito de ação, no sentido processual – que o
acolhimento da exceção de prescrição pelo juiz se dá por
sentença de mérito (CPC, art. 269, IV), que, inclusive,
faz coisa julgada material (CPC, arts. 467 e 468).
1.1.3 Natureza (jurídica)
Prescrição é, essencialmente, sanção. É resposta à
inércia do titular diante da violação do seu direito. Essa
inércia do titular do direito violado, contudo, tanto pode
significar negligência do titular do direito, como pode,
também, traduzir mero desinteresse (=renúncia tácita)
do credor em obter a prestação que lhe é devida, muitas
vezes após sopesar a relação custo/benefício.
Nem por isso, é quase uníssona a consideração
segundo a qual a prescrição resulta do menoscabo do
titular do direito. Tanto é assim que Gagliano (2007, p.
455) dispara: “quem não tem dignidade de lutar por seus
direitos não deve sequer merecer a sua tutela”. Outro
não é o sentimento de Diniz (2005, p. 375):
Se o titular deixar escoar tal lapso temporal, sua inércia, dará origem a uma sanção adveniente, que é a
prescrição. A prescrição é uma pena ao negligente. É
a perda da ação, em sentido material, porque a violação do direito é condição de tal pretensão à tutela
jurisdicional. A prescrição atinge a ação em sentido
material e não o direito subjetivo; não extingue o
direito, gera a exceção, técnica de defesa que alguém
tem contra quem não exerceu, dentro do prazo esRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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Da prescrição do “fundo de direito”
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tabelecido em lei, sua pretensão. (DINIZ, 2005, p.
375). (grifo nosso)
Por isso, mantêm-se de pé, entre nós, a máxima:
dormientibus non sucurrit jus.
1.1.4 Efeitos
Uma vez consumada a prescrição, ou seja, decorrido determinado lapso de tempo indicado pela lei,
sem que, durante o seu interregno, o titular do direito
violado tenha feito uso da ação judicial adequada
exigindo a correspondente reparação – nem ocorrido
qualquer um dos fatos previstos em lei que impeça,
suspenda ou interrompa a contagem desse prazo –,
inexorável o resultado consistente na extinção da
pretensão.
Wald (2003, p. 227) salienta que a prescrição faz
convalescer uma lesão de direito no interesse social,
esclarecendo que o que prescreve não é o direito em si,
mas a lesão ao direito que convalesce.
Tanto é verdade que o direito material – além do direito abstrato de ação, como já salientado anteriormente
– não é afetado pela prescrição, no sentido de não ser
extinto, já que a lei admite como bom o adimplemento
da prestação, cuja pretensão de exigibilidade, já se
encontrava pulverizada pela prescrição, a ponto de não
assegurar qualquer direito de repetibilidade àquele que
tenha solvido a obrigação (CC, art. 882).
Também, verbi gratia, na hipótese de “cheques prescritos”, donde, como é sabido, a prescrição dissolve a
pretensão executiva, o direito de crédito deles decorrente
se mantém hígido a ponto de autorizar a correspondente
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Sérgio Paulo Ribeiro da Silva
cobrança através de ação ordinária (Lei do Cheque, arts.
61 e 62).
De outra parte, nossa doutrina – como também a
própria legislação, conforme dispositivos legais acima
indicados – acolhe sem maiores dificuldades a existência das chamadas obrigações naturais, às quais Ripert
(2000, p. 355 e 364) se refere como o “(...) dever de
consciência tomado em consideração pelo juiz em vista
dos seus direitos civis.”, cujo “(...) o laço obrigatório
pode ser sempre desfeito por uma execução voluntária.”.
E ainda sai com a seguinte tirada: “Certos autores chegam mesmo a dizer que a prescrição consegue apenas
paralisar o direito, mas não extingui-lo.”.
Sempre claro, Wald (2003, p. 228) sustenta que somente a responsabilidade decorrente da lesão ao direito
violado é atingida pela prescrição, senão vejamos:
Se invocarmos a idéia de que toda lesão de direito cria
uma responsabilidade em virtude da qual o prejudicado
pode recorrer à justiça para obter o ressarcimento dos
danos sofridos, podemos afirmar que a prescrição faz
desaparecer a responsabilidade, mantendo, todavia, em
vigor, mas desarmada, a relação originária. Tanto assim
é que, se for paga uma dívida prescrita, quem a pagou
não pode exigir a devolução do pagamento da dívida
prescrita. Este pagamento legitima-se pela existência da
obrigação originária, embora o credor já não possa, em
virtude do decurso do tempo, recorrer às vias judiciais
para cobrar o débito, equiparando-se a dívida prescrita
à obrigação natural. (WALD, 2003, p. 228).
Sob outra percepção, pode-se ainda afirmar, sem
vacilo, que o instituto da prescrição se presta também,
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Da prescrição do “fundo de direito”
363
como assevera Gagliano (2007, p. 454), como instrumento de garantia da pacificação social:
O exercício do direito por ações judiciais deve ser uma
conseqüência e garantia de uma consciência de cidadania, e não uma ‘ameaça eterna’ contra os sujeitos obrigados, que não devem estar submetidos indefinidamente a
uma ‘espada de Dâmocles’ sobre suas cabeças..
Além de estar a serviço da consolidação de direitos,
proporcionando segurança e estabilidade às relações
jurídicas, destaca Venosa (2008, p. 536) outro aspecto
relevante acerca da prescrição: “Não fosse o tempo
determinado para o exercício dos direitos, toda pessoa
teria de guardar indefinidamente todos os documentos
dos negócios jurídicos realizados em sua vida, bem
como das gerações anteriores.”.
São ganhos que o Direito – e seus destinatários –
não mais pode abrir mão, apesar de favorecer que as
obrigações permaneçam incumpridas. O lucro auferido
pela sociedade supera, em muito, o prejuízo sofrido por
cada indivíduo.
1.2 Fazenda Pública
No dizer do professor Leonardo da Cunha, a expressão
Fazenda Pública designa a pessoa jurídica de direito público
em juízo, pouco importando se a demanda verse, ou não,
sobre matéria estritamente fiscal ou financeira. É o que se
extrai das seguintes passagens:
O uso freqüente do termo Fazenda Pública fez com
que se passasse a adotá-lo num sentido mais lato,
traduzindo a idéia do Estado em juízo; em Direito
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Sérgio Paulo Ribeiro da Silva
Processual, a expressão Fazenda Pública contém o
significado de Estado em juízo. Daí porque, quando
se alude à Fazenda Pública, a expressão apresentase como sinônimo de Estado em juízo, ou, ainda, da
pessoa de direito público em juízo.
A expressão Fazenda Pública é utilizada para designar as pessoas jurídicas de direito público que figurem
em ações judiciais, mesmo que a demanda não verse
sobre matéria estritamente fiscal ou financeira.”.
(CUNHA, 2008, p.15).
Meirelles (1990, p. 617), por sua vez, esclarece que a
pessoa jurídica de direito público, quando em juízo, recolhe
essa denominação porquanto é o erário que terá de suportar
os encargos patrimoniais da demanda. Nessa mesma linha,
assevera Pereira (2008, p. 5) que “A expressão Fazenda Pública é normalmente evocada como representativa de feição
patrimonial das pessoas jurídicas de direito público interno,
tanto mais quando observadas sob a atuação judicial.”.
Merece também registro que essa expressão alcança qualquer
uma das entidades da administração pública direta: União, Estados e Municípios. Da indireta, por força do disposto no artigo 10
da Lei 9.469/97, estão compreendidas no seu conceito somente
as autarquias e as fundações públicas, ficando de fora, pois, as
empresas públicas e as sociedades de economia mista.
2 – A FAZENDA PÚBLICA DIANTE DA PRESCRIÇÃO
Lógico que a prescrição tanto pode beneficiar como
desfavorecer a Fazenda Pública, conforme seja o titular,
ou não, do direito subjetivo malferido. Prescrição em favor
da Fazenda Pública supõe que aquele que tinha direito à
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Da prescrição do “fundo de direito”
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prestação incumprida, o particular, tenha deixado – pouco
importa a razão, se por mero descaso ou por opção – de
exigir o cumprimento da respectiva obrigação no prazo
fixado em lei.
Se a prescrição, ao contrário, desfavorecer a Fazenda
Pública, é porque foi ela quem deixou de manejar a ação
adequada – em sentido processual –, a fim de afastar e/ou
sanar a lesão que afetava seu direito subjetivo.
Embora não esteja no foco destas reflexões, abro um
parêntese tão-somente para registrar que os prazos de prescrição, conforme seja a favor ou contra a Fazenda Pública,
prima facie, são diferenciados e ainda regidos por diplomas
legais diversos, salvo, naturalmente, as percucientes opiniões
em contrário.
Se em benefício da Fazenda Pública, salvo as ações reais e
outras hipóteses previstas em leis específicas, o prazo prescricional é de cinco anos, conforme o estabelecido no Decreto n°
20.910, de 6 de janeiro de 1932. Merece respeito, entretanto, a
exegese segundo a qual, sobretudo nas demandas indenizatórias,
esse prazo fica reduzido para os três anos fixados pelo Código
Civil de 2002, na medida em que o § 3° do artigo 206 não fez –
e não faz – qualquer ressalva relativamente à Fazenda Pública,
bem como em face do teor do artigo 10 do próprio Decreto n°
20.910/32, que, expressamente, ressalva que o prazo nele fixado
de cinco anos não prevalece sobre prazo menor fixado em lei e
regulamentos.
Se, em desfavor da Fazenda Pública, de acordo com
atual Código Civil, o prazo de prescrição – sobremaneira
nas ações pessoais que visem o recebimento de prestações
vencidas, o ressarcimento de enriquecimento sem causa
ou a reparação civil (CC, artigo 206, § 3°, II a V) –, é de
apenas três anos.
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Sérgio Paulo Ribeiro da Silva
3 – PRESCRIÇÃO DAS PRETENSÕES CONTRA A
FAZENDA PÚBLICA
O tema como visto, trata de hipótese em que a prescrição
se consuma em favor da Fazenda Pública. Essa prescrição,
porém, nos termos dos artigos 2° e 3° do Decreto n° 20.910/32,
respectivamente, tanto pode se referir a “(...) todo o direito
e as prestações correspondentes (...)”, como exclusivamente
“(...) as prestações, a medida que completarem os prazos
estabelecidos pelo presente Decreto.”.
Noutras palavras, a prescrição tanto está vocacionada
a extinguir pretensão relativa a um direito subjetivo em si,
que o sujeito julga ser titular, como única e exclusivamente
às prestações que decorrem de um direito já reconhecido, e
cuja execução é de trato sucessivo.
Na primeira hipótese, em que a prescrição extingue uma
pretensão a um direito subjetivo que o sujeito julga ser titular, a doutrina e a jurisprudência convencionaram se tratar
da chamada prescrição do próprio “fundo de direito”, que é
objeto de nossa preocupação.
4 – PRESCRIÇÃO DO “FUNDO DE DIREITO”
4.1 Distinção (entre prescrição do “fundo de direito” e
prescrição incidente sobre prestações de trato sucessivo)
Cumpre-nos, agora, esquadrinhar a chamada prescrição do “fundo de direito”, sobretudo para distingui-la
da prescrição que recai sobre meras prestações de trato
sucessivo, nem sempre bem percebida pelos operadores
do Direito.
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Da prescrição do “fundo de direito”
367
Quando o particular exerce pretensão – via ação judicial
–, verbi gratia, a uma determinada pensão que entende ser
de direito e que foi denegada pela Administração Pública,
ou seja, visa estabelecer (ou restabelecer) uma determinada
situação jurídica, a prescrição afetará a exigibilidade desse
suposto direito à pensão. Configurada a prescrição, o particular não poderá mais exigir que lhe seja deferida a pensão
requestada. É o caso da chamada prescrição do “fundo de
direito”.
A exigibilidade do pagamento das pensões mensais supõe o reconhecimento do direito à pensão. Só após tal reconhecimento é que nascem os efeitos patrimoniais decorrentes,
ou seja, só depois de certificado o direito – deferimento, por
exemplo, da pensão pelo órgão previdenciário – é que se
torna exigível a prestação periódica.
E quando o particular exercer pretensão tendo em vista
o simples pagamento de prestações – das pensões mensais,
por exemplo –, originalmente reconhecidas como devidas,
e mesmo assim não foram pagas, a prescrição recairá exclusivamente sobre a pretensão referente às parcelas anteriores
a cinco anos. É o caso de prescrição das prestações de trato
sucessivo.
A propósito, a matéria já mereceu, inclusive, a atenção
das Cortes Superiores de Justiça. O Supremo Tribunal Federal, quando ainda tinha jurisdição sobre direito federal,
editou a Súmula n° 443, com o seguinte enunciado: “A
prescrição das prestações anteriores ao período previsto em
lei não ocorre, quando não tiver sido negado, antes daquele
prazo, o próprio direito reclamado, ou a situação jurídica de
que ele resulta.”.
Assim também o fez o Superior Tribunal de Justiça,
editando a Súmula n° 85, com o seguinte enunciado: “Nas
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368
Sérgio Paulo Ribeiro da Silva
relações jurídicas de trato sucessivo em que a Fazenda Pública figure como devedora, quando não tiver sido negado
o próprio direito reclamado, a prescrição atinge apenas as
prestações vencidas antes do qüinqüênio anterior a propositura da ação.”.
Por fim, é digno de registro que a chamada prescrição do
“fundo de direito”, na lição de Cunha (2008, p. 74), ou decorre de expresso pronunciamento da Administração Pública,
denegando o pleito do interessado, ou da simples vigência
das denominadas “leis de efeitos concretos”, ou seja, daquela
lei, verba gratia, que altera situação jurídica estabelecida. A
lesão, afirma o doutrinador, não advém de ato administrativo,
mas com a simples vigência da lei.
4.2 Significação prática do tema
A percepção inadequada da questão pode conduzir o
titular do direito violado a sofrer novo dano – tão nocivo,
senão mais grave do que a própria violação do seu direito
material –, qual seja, o de se ver privado da possibilidade de
exigir o adimplemento da obrigação incumprida e/ou a correspondente reparação, tão-somente e por conta do aplicador
do direito, indevidamente, ter entendido estar configurada a
prescrição do “fundo de direito”, quando, de fato, tratava-se
de simples prescrição referente às prestações decorrentes de
um direito já reconhecido.
O inverso também é verdadeiro: não seria correto –
para não falar em injustiça –condenar a Fazenda Pública
a qualquer pagamento quando a pretensão do particular
está dissolvida pela chamada prescrição do “fundo de
direito”.
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Da prescrição do “fundo de direito”
369
Quando o aplicador do direito reconhece a prescrição
da pretensão que recai apenas sobre as prestações decorrentes de um direito já reconhecido, a perda daí decorrente
se limita àquelas parcelas correspondentes ao qüinqüênio
anterior ao ajuizamento da ação judicial, ficando ressalvadas,
conseqüentemente, além do próprio direito do qual decorrem tais prestações, as demais que ficaram de fora desse
qüinqüênio.
Ao contrário, quando o aplicador do direito decreta a
extinção da pretensão, pela prescrição, que recai sobre o
próprio direito do qual decorreriam as prestações, o prejuízo
adveniente ao titular do direito não se limitaria às parcelas,
mas, como visto, ao direito em si, de modo que esse sujeito
nada pode mais exigir.
4.3 Análise de um caso concreto
Para ilustrar e facilitar a compreensão, nada mais pertinente do que partir de uma situação concreta, como a que
cuida o Recurso Especial n° 534.671-CE (DJ: 31/05/2004,
p. 194), especialmente por conta do debate travado entre o
Ministro Francisco Falcão, relator do recurso, e o Ministro
José Delgado. Assim relata o Ministro Delgado:
Os autos atestam que José Ivan da Silva, em data de
08.11.83, quando se encontrava preso na Comarca
de Redenção, Estado do Ceará, foi linchado até a
morte, fato ocorrido dentro da cela. Em 10 de junho
de 1996, portanto, quase 13 anos do referido sinistro, a sua esposa promove ação de responsabilidade
civil, requerendo uma pensão mensal até completar
65 anos de idade. O juízo de primeiro grau julgou
extinto o processo, acolhendo argüição de prescrição.
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Sérgio Paulo Ribeiro da Silva
O Tribunal ‘a quo’, após afastar a prescrição, apreciou
o mérito, considerando parcialmente procedente o
pedido, concedendo a pensão a partir de 26.7.91, data
em que foi cumprido o lapso temporal de 5 (cinco)
anos imediatamente anteriores ao ajuizamento da
ação. O eminente relator deu parcial provimento ao
recurso especial do Estado. Este reivindica a aplicação das regras postas no Decreto 20.910/32.
Em seu voto, o Ministro Falcão, considerou, a exemplo
do tribunal a quo, que a prescrição consumada dizia respeito
tão-somente às prestações vencidas e não ao chamado “fundo
de direito”:
Primeiramente, no que concerne à prescrição da postulação da autora, entendo que esta não se configurou,
nos moldes como decidiu o acórdão vergastado. No
presente caso, a autora pleiteia a reparação de danos
por ato ilícito, em face da morte de seu cônjuge, requerendo o pagamento de pensão mensal. Com isso,
afigura-se o caráter alimentar e de trato sucessivo
da presente indenização, razão pela qual, no teor da
Súmula n° 85 desta Corte, a prescrição não atinge o
fundo do direito, mas tão-somente as parcelas anteriores ao qüinqüênio do ajuizamento da ação.
O Ministro Delgado, por seu turno, considerou que a
prescrição havia destruído a pretensão referente o próprio
direito de pensionamento:
Como bem posto, a hipótese tratada nos autos não
caracteriza relação jurídica reconhecida por lei de
trato sucessivo. Esta relação, com tal característica,
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Da prescrição do “fundo de direito”
371
exige que o direito se encontre reconhecido, tendo,
apenas, deixado de ser exercido. É exemplo constante
o pensionamento devido ao cidadão por determinação
legal ou por força de sentença, sem que tenha havido
efetivo exercício de concretizá-lo. Nessa situação,
o fundo do direito não prescreve. Só as prestações
devidas atingidas pela prescrição. No caso em análise, inexiste direito objetivamente reconhecido. Em
conseqüência, se a parte interessada deixou escoar
o prazo qüinqüenal para propor a ação objetivando
o reconhecimento do seu direito, não resta opção ao
Poder Judiciário senão decretar extinto o processo,
em face de efeito prescricional, sem julgamento de
mérito.
Como visto, de uma simples leitura dos trechos transcritos dos votos dos ministros se constata que a matéria
suscita dificuldades e produz conseqüências importantes
para as partes.
Na primeira instância, o juízo singular pôs fim ao processo por entender que estava configurada a chamada prescrição
do “fundo de direito”. Em termos práticos, para a esposa do
preso que foi assassinado na prisão, tal decisão importou em
permanecer sem qualquer reparação por parte do Estado, em
poder de quem se encontrava o marido da autora da ação.
Na segunda instância, o tribunal local, vendo a causa sob
outra perspectiva, reformou a sentença por acreditar que se
tratava de prescrição que recaia apenas sobre as prestações
compreendidas a partir do último qüinqüênio anterior à propositura da ação indenizatória, de modo que, assim, condenou
o Estado a pagar a pensão perseguida pela viúva – salvo,
naturalmente, as prestações alcançadas pela prescrição.
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Sérgio Paulo Ribeiro da Silva
Chegando a causa ao Tribunal Superior de Uniformização do Direito Infraconstitucional, a matéria voltou a
ser objeto de desencontro de percepções, pois o Ministro
Falcão, relator do especial, ao votar, considerou, a exemplo
do tribunal a quo, que a prescrição consumada dizia respeito
tão-somente às prestações vencidas e não ao chamado “fundo
de direito”, razão porque se posicionou pela manutenção da
condenação do Estado a realizar o pensionamento.
Enquanto, isso, o Ministro Delgado, acertadamente,
entendeu que a prescrição atingiu a pretensão do próprio
direito ao pensionamento e, por conseguinte, das parcelas
dele advenientes. Como seu voto prevaleceu, a decisão da
Turma (acórdão) foi no sentido de reconhecer a prescrição
e afastar a condenação imposta ao Estado. Com isso, nada
mudou na vida concreta da viúva do preso assassinado: o
dano permaneceu sem qualquer reparação pelo Estado.
CONCLUSÕES
Não há como desprezar o fato de que o tempo afeta o
exercício dos direitos subjetivos, cicatrizando lesões ocorridas
no contexto das relações (jurídicas) econômico-sociais.
Refletir sobre o conteúdo do termo prescrição pressupõe
refletir, também, sobre o termo pretensão, que diz respeito ao
poder ou ao direito de exigir, do devedor em mora, o adimplemento da obrigação. Supõe, portanto, o inadimplemento
de uma obrigação. Prescrição é, essencialmente, sanção
devido à inércia do titular diante da violação do seu direito.
Porém, sob outra perspectiva, prescrição se presta também
como instrumento de garantia da pacificação social.
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Da prescrição do “fundo de direito”
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Relativamente à prescrição em favor da Fazenda Pública
supõe que aquele que tinha direito à prestação incumprida,
o particular, tenha deixado – pouco importa a razão, se por
mero descaso ou por opção – de exigir o cumprimento da
respectiva obrigação no prazo fixado em lei e poderá extinguir tanto a pretensão relativa a um direito subjetivo em
si, que o sujeito julga ser titular (“fundo de direito”), como
única e exclusivamente às prestações que decorrem de um
direito já reconhecido.
Também é digno de registro que a chamada prescrição
do “fundo de direito” decorre de expresso pronunciamento
da Administração Pública denegando o pleito do interessado
ou da simples vigência das denominadas “leis de efeitos
concretos”, ou seja, a lesão não advém de ato administrativo,
mas com a vigência da lei.
Por fim, a percepção inadequada da distinção entre a
prescrição do “fundo de direito” e a prescrição de meras prestações pode conduzir uma das partes a prejuízo patrimonial.
Tanto pode obrigar a Fazenda Pública a realizar pagamento
de prestações decorrentes de direito, cuja pretensão já se
encontra prescrita, ou ainda, privar o particular de um direito
quando apenas as prestações dele decorrentes se encontravam
alcançadas pela prescrição.
REFERÊNCIAS
BRASL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial
n° 534.671-CE. Relator: Ministro Francisco Falcão. 1ª Turma.
Decisão por maioria, vencido o relator. Diário da Justiça,
Brasília, 27 abr. 2004. Diário [da] Justiça, Brasília, p. 194,
Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
Recife – ano 3 – n. 3 – p. 355-375 – 2008
374
Sérgio Paulo Ribeiro da Silva
31 maio 2004. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/
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