AS MEMÓRIAS PESSOAIS E A CONSTRUÇÃO DO SIGNIFICADO DOS TEXTOS Vângila Moura da Silva Graduanda em Pedagogia – UFRN Num primeiro contato com um texto, quando não o conhecemos, utilizamos um procedimento que os especialistas chamam de foco do significado que são as estratégias de acercamento do texto em que o leitor interpreta o texto levando em consideração a sua experiência de vida, valores e memórias. Ao utilizar esses procedimentos os sujeitos revelam um vasto uso da sua teoria de mundo. O conceito teoria de mundo segundo “Smith” é: “O que possuímos em nossas cabeças é uma teoria sobre como é o mundo, uma teoria que é a base de todas as nossas percepções e compreensão do mundo, a raiz de todo aprendizado, a fonte de esperanças e medos... se podemos extrair sentido do mundo, isto ocorre devido à interpretação de nossas interações com o mundo, a luz de nossa teoria” (Smith, 1991,p.23). Além da teoria de mundo, outro fator importante na compreensão do texto é o processo de identificação, que se dá através da coicidência de fatos, sentimentos, emoções com nossas vivências, dando-se também pela oposição aos valores e expectativas do leitor. Quando se cruzam alguns aspectos contidos no texto com o do sujeito que o está lendo (pois nem todo texto contém algo que nos proporcione uma relação com a nossa vida ou com algo que nos tenha acontecido) fica muito mais fácil penetrar e se deslocar no texto. Diante do que foi apresentado, nos perguntamos: as memórias contribuem para a leitura dos professores? E como essas memórias auxiliam na construção do significado do texto? Tentaremos responder a essas questões no decorrer deste texto. Na pesquisa: “O ensino de literatura e a dinâmica da formação do leitor em professores da rede pública do Rio Grande do Norte” ocorreram vários aspectos interessantes e conclusivos, porém o que me chamou mais atenção foram as leituras de mundo que cada sujeito do experimento trazia consigo, ajudando em suas leituras. A experiência de vida, o contexto que cada sujeito vivia, influenciava bastante nas leituras do texto. Para ilustrar esse argumento, apóio-me na sessão da turma “A” em que foi lido o texto “O dedo” de Lygia Fagundes Teles, texto de gênero estranho – conto que narra episódio de caráter inusitado, incomum porém que tem explicação lógica, narrado em primeira pessoa, que trata de um achado inusitado: um dedo numa praia deserta . A partir desse fato a narradora desenvolve algumas teorias para explicar a origem de tal dedo criando assim um tom de suspense policialesco e, ao mesmo tempo, de um discreto humor. A narradora expõe seu conflito psicológico entre agir pela razão ou agir pela emoção, sobre o que fazer com o dedo. Para compreender os processos de memória desencadeados pelos sujeitos a partir do texto, utilizarei alguns conceitos de Freud, o “EU” é composto por dois elementos: energias e neurônios. A “energia” circula tendendo para a descarga e os “neurônios” veiculam essas energias. Os neurônios se subdividem em três grupos sendo o primeiro, o neurônio da percepção exterior, se localiza na periferia do EU e tem por função perceber as estimulações do mundo exterior; o segundo é o neurônio da lembrança, e o terceiro é o neurônio da percepção interior, que tem uma percepção dirigida para o mundo interior captando assim as flutuações da energia interna vamos nos deter um pouco mais no neurônio da lembrança. Os neurônios da lembrança contêm os vestígios dos acontecimentos marcantes que ocorreram no passado, repercutindo assim em nossas relações com futuros acontecimentos ou textos que venham a ativar essas lembranças, fazendo com que busquemos em nossa mente subsídio para entendermos ou relacionarmos com o que está sendo proposto no texto ou na situação atual/presente. Foi a partir de suas lembranças que alguns sujeitos entraram no texto e desenvolveram essa relação de familiaridade e cumplicidade com o narrado, veremos isso de uma forma mais clara a seguir com dois exemplo de um mesmo sujeito: EXEMPLO 1: “É. Eu viajo muito pru’ma casa no interior, e de manhã (6:00h) a gente ia lá pra praia, ficar lá vendo o sol, vendo os pescadores puxar a rede, e a gente fica ali observando e eu fiquei imaginando, meu Deus, já pensou se puxo a rede e vem um dedo? Dava um choque e saia correndo de medo...não é nem barata e de medo mesmo...até porque lá onde a gente vai, tem sempre muitas mortes, as vezes as pessoas morrem no mar, então a gente sempre tem aquele temor” EXEMPLO 2: “...tem até um episódio. Certa vez, nós fomos ao farol e adiante morreu um pescador. O barco dele voltou só. E ficou aquele mistério, onde o corpo do homem ia aparecer.. Por ali normalmente quando morre alguém afogado o corpo vem. É uma coisa bastante estranha. E outro dia eu e meu irmão, pela beira da praia, e ele gosta muito dessas coisas, e eu falei: se a gente encontrar o corpo o que a gente faz? A gente arrasta? ... e a gente foi até o farol. E quando nós voltamos realmente o corpo tava lá. Já estava em estado de putrefação, tava horrível. E quando falou no dedo aqui eu lembrei do corpo daquele homem.” (grifos meus) Percebemos que o sujeito que relatou este acontecimento fez logo uma ponte entre o texto e o seu mundo, que estava contido em sua memória, reforçando nesse momento o que FREUD afirmou: que os mecanismos da lembrança, relaciona o que está em nossa memória com o que está sendo apresentado no momento da leitura do texto. Um fato que lhe tinha sido marcante e que tinha ficado em sua memória (lembrança) veio a tona e se projetou no texto que estava sendo lido, pois os dois acontecimentos, do imaginado e do vivido apresentavam características semelhantes a alguns pontos da narrativa. E isso fez com que ocorresse uma interação imediata entre leitor e texto. No primeiro fragmento o sujeito serviu-se da memória do imaginado (que é um devaneio, uma fantasia). Mostra as projeções que esse sujeito costumava fazer quando se encontrava numa praia que sempre freqüentava, projeções que se estruturam mentalmente na hora da leitura, o cenário do lugar imaginado que era bastante semelhante ao do texto que estava sendo trabalhado (como o sol, pescadores, redes de pesca) concorrendo para reforçar o processo de identificação. Isso é confirmado quando ele fala: “...e a gente ficava ali observando, e eu fiquei imaginando..” Amarilha afirma que “No ato de ler, o indivíduo projeta sobre o texto o seu conhecimento de mundo e sua capacidade de recombiná-lo, mental e imaginativamente” (Amarilha, 1996,p.15), é essa recombinação que fará com que o leitor atue para dar sentido ao texto – construindo sua própria compreenção. No segundo fragmento, o sujeito parte da memória do acontecido - ou seja - lembranças. Destacamos que ao relatar essas lembranças o sujeito mostrava através de suas atitudes, gestos e olhar o quanto o texto lhe permitia viajar temporariamente no tempo do imaginado. Nesse sentido o ato de ler também transforma o comportamento do sujeito que passa a fazer ligações e identificações com o texto o que lhe permite “experimentar” a leitura de literatura como real, nesse sentido pode-se observar o que Rosenblatt afirma: “que ao ler literatura o leitor traz sua experiência para o texto, sendo essa experiência bem mais importante do que ser capaz de identificar e recordar o conteúdo real do texto, lemos mais pela experiência gerada pela leitura, pelo próprio prazer do ato, do que pela informação específica que a leitura proporciona”. (Rosenblatt apud Smith, 1991, p.81) Memória e imaginação estão sempre interligadas, podendo ajudar ou dificultar na entrada ao mundo do texto. Um exemplo negativo de como essa memória (do imaginado ou acontecido) pode concorrer para uma experiência mal sucedida com o texto é o caso relatado no artigo “ALICE QUE NÃO FOI AO PAÍS DAS MARAVILHAS ”(AMARILHA,1996), em que uma menina, que foi chamada de Alice, através de suas memórias do acontecido, do real se recusa a penetrar no texto, no jogo da ficcão, ela nega-se a ler histórias com personagens ricas, com medo de sofrer, pois a sua realidade é outra bem diferente e ela não consegue separar o real do ficcional. As memórias desagradáveis que ela têm as impedem de aceitar e interagir com o narrado. Nesse processo de autodefesa Alice não exercita o papel de leitora e não constrói uma outra história, ou seja, na sua própria leitura de ficção, mas fica presa ao seu passado. Processo contrário ocorreu com o famoso contista dinamarquês, Hans Christian Andersen, (1805-1875), as memórias dele quando criança (apesar de sua infância estar permeada de fatos tristes como a miséria, a loucura e a feiura) foram bastante importantes para a elaboração da sua obra, muito dos seus contos vieram de situações ou vivências que ele passou. Nesse caso, a veracidade transformou-se em ficção. Acontecimentos que ele guardou em sua memória como: os festejos do carnaval, os desfiles militares, as representações teatrais, as conversas com o pai (que lhe contava histórias), as dificuldades com a mãe, que era alcoólatra, tudo isso influenciou na construção de seus contos. Depois de superada essa fase de sofrimento, ele passa a conviver entre as pessoas influentes da sociedade dinamarquesa e se tornará escritor famoso. Um exemplo de como a vida real de Andersen influenciou na criação dos seus contos é o do “Patinho feio”, em que ele falava da sua infância infeliz. Nele, o patinho que era grande e feio, vivia exposto a maldade de seus cogêneres, até que se descobre um cisne. Essa relação de Andersen com as suas lembranças do tempo de infância estão relacionadas à memória do acontecido. Percebemos através do que foi apresentado as distinções de comportamento entre Alice e Andersen com relação ao uso de suas memórias. As memórias passadas de Alice a impediram de progredir como leitora, ela não conseguiu fazer a separação entre a sua realidade com o mundo da fantasia enquanto que Andersen enfrentando semelhantes dificuldades que Alice em sua infância, soube tirar proveito das suas memórias passadas, sendo suas lembranças produtivas pois, forneceram material para exercer sua criatividade, assemelhando-se a Helena (base do nosso estudo) que através de suas lembranças passadas avançou na construção do sentido do texto, sendo também produtivas as suas memórias, já Alice tem lembranças improdutivas que não permitem se quer que ela desempenhe seu papel de leitora. Observando o comportamento dos sujeitos nas sessões em pauta, outro aspecto que chama atenção é o uso da digressão. Digressões, são as fugas do texto, e os professores acreditam, via de regra, que sejam prejudiciais ao aluno, porém digressão segundo KOCH, “são os segmentos não relacionados topicamente com os materiais precedentes ou subsequentes, que estão, estes sim, relacionados entre si; isto é, na digressão o tópico em curso é provisoriamente abandonado e um novo tópico é introduzido, sendo, a seguir, por sua vez abandonado e substituído novamente pelo tópico anterior” (KOCH, p.111), os professores devem perceber que essa retirada do texto pelo aluno é provisória, para que nesse “passeio” ele encontre subsídios que favorecem na interpretação do texto, mas que eles devem sempre retornar ao texto para que a digressão se transforme realmente em algo proveitoso e não um empecilho para a interpretação do texto. Foi o que ocorreu nos dois exemplos citados no início do trabalho, o sujeito digrediu, viajou fora do texto, encontrou semelhanças em seus fragmentos de memórias passadas e retornou ao texto, que ficou bem mais fácil e claro de ser compreendido. Constatamos que essas estratégias proporcionam ao leitor uma satisfação pela compreensão do que está sendo lido e o incentivo a ser um leitor mais eficiente e responsivo. O mundo que está contido na memória influencia nas suas leituras e entendimento do texto, o que implica dizer que a ausência dessa relação memória e texto pode também significar dificuldade de leitura. Por outro lado, tem memória quem tem muita vivência, daí a importância de se propiciar variedade de leituras e experiências ao leitor. Os professores devem perceber que essas estratégias de acercamento do texto, precisam ser conhecidas por eles para que os mesmos a utilizem na construção de sentido dos texto e auxiliem os seus alunos na percepção e no uso dessas estratégias. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMARILHA, Marly. Estão mortas as fadas? Literatura infantil e prática pedagógica. Petrópolis, RJ. Ed. Vozes,1997. _______. Alice que não foi ao país das maravilhas. In: Anais do 1º Seminário Educação e Leitura. 1996. CRUZ, Lucila Quinderé Bezerra da. No reduto da memória. In: Anais do 1º Seminário de Educação e Leitura. 1996. KOCH, Ingedore Villaça. O texto e a construção do sentido. São Paulo: Contexto. 3ª Ed. 2000. LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo MANNONI, Maud. Hans Christian Andersen: uma infância, uma vida. In: Amor, ódio, separação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1997. MARTINS, Maria Helena. O que é leitura. São Paulo. Ed. Brasiliense, 1965. NACIO, Juan-David. A memória inconsciente da dor. In: O livro da dor e do amor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997. SMITH, Frank. Compreendendo a leitura. Porto Alegre. Ed. Artes Médicas, 1989 TELES, Lygia Fagundes. O dedo. In: Filhos Pródigos. São Paulo. Ed. Cultura, 1978. ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção a história da literatura. São Paulo. Ed. Ática, 1989.