Mesa temática: 91. Feminismos transnacionales, hermenéutica y políticas de identidad Título: As mulheres cacicas Guarani Mbyá e a participação feminina na luta pelo reconhecimento dos direitos territoriais indígenas. Autoría: Francine Pereira Rebelo Pertenencia institucional: Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC - Brasil Correo de contacto: [email protected] INTRODUÇÃO Este trabalho etnográfico tem como propósito refletir sobre as representações de gênero no que diz respeito à presença de mulheres cacicas nos espaços de discussão política dos Guarani Mbyá 2 do sul do Brasil, assim como as implicações desta participação feminina na luta pelo reconhecimento dos direitos territoriais indígenas. O objetivo da pesquisa é compreender as estratégias de resistência das lideranças femininas contra a implementação de um modelo de ocupação do território que não é compatível com as lógicas de uso comum da terra exercidas pelos indígenas da etnia Guarani Mbyá. Considerando a persistência da colonialidade, principalmente no que se refere aos modelos de desenvolvimento econômico nacional, alinhado as noções de progresso do capitalismo global, no qual o sofrimento das populações indígenas é visto como um sacrifício imprescindível à modernização. A partir da trajetória de duas mulheres cacicas, Eunice Antunes (Kerexu Yxapyry) e Arminda Ribeiro (Yry’i Mirim), das comunidades Itaty- Morro dos Cavalos e Jatay Ta – Conquista, nos municípios de Palhoça e Balneário Barra do Sul (estado de Santa Catarina - Brasil), respectivamente, procuro compreender as implicações políticas das lideranças femininas e das lutas pela defesa de suas comunidades. A partir de uma perspectiva étnica, de gênero e de classe, as lideranças indígenas questionam a dicotomia entre tradição e modernidade, refutando a noção de que apenas estes dois caminhos são possíveis, ou, como nos aponta Hérnandez Castillo (2011) “se pode permanecer mudando e mudar permanecendo”. Neste sentido, apresento as formas de reação das cacicas frente a um projeto colonial 1 2 Autorizo a publicação do presente trabalho em qualquer dos formatos definidos pelo Comité Académico. No Brasil, os povos Guarani somam cerca de 51 mil indivíduos (Dados do ISA- 2008 ). Esta população, segundo Schaden (1962), encontra-se dividida entre três subgrupos : Kaiowá, Nhandeva e Mbyá, cuja população, é de 7 mil indivíduos em território brasileiro. Os Guarani Mbyá ocupam também outros países como Argentina, Paraguai e Uruguai. Dados disponivel em: http://pib.socioambiental.org/pt/povo/guarani-mbya/1289 1 hegemônico e eurocêntrico que reprimem seus modos de significação como mulheres – marginalizadas e indígenas – ao mesmo tempo que busco mostrar como estas lideranças se apropriam de elementos coloniais e se instrumentalizam para luta em fortalecimento das práticas e territórios indígenas. METODOLOGIA Este trabalho faz parte da minha pesquisa de mestrado referente às lideranças indígenas Guarani Mbyá em Santa Catarina. Trata-se de uma pesquisa em andamento, portanto, muitas das reflexões aqui realizadas serão, posteriormente, aprofundadas e rediscutidas. Cabe neste artigo, levantar as questões que pareceram pertinentes até este momento do trabalho principalmente para o contexto geral de disputas de terras em Santa Catarina, assim como para atuação e desafios das mulheres indígenas frente a um cenário desfavorável. A pesquisa de campo junto às mulheres indígenas vem sendo realizado desde 2013, através de diferentes participações. Neste ano, participei de diversas cerimônias religiosas, eventos acadêmicos e manifestações realizadas na aldeia Itaty / Morro dos Cavalos, município de Palhoça, Santa Catarina, acompanhando a cacica da aldeia, Eunice Antunes. Ademais, durante 2014 permaneci por alguns períodos mais contínuos na aldeia. A outra cacica central nessa pesquisa é Arminda Ribeiro, liderança na aldeia Conquista (Jatay Ta), em Balneário Barra do Sul. Tive contato com Arminda Ribeiro em ocasião da participação em uma equipe de perícia de demarcação de terra nas Terras Indígenas (T.I) Piraí, Tarumã, Pindoty e Morro Alto, na região norte do litoral de Santa Catarina. A aldeia Conquista está inserida na T.I. Pindoty, juntamente com as aldeias de Pindoty, Yvapuru e Jabuticabeiras. A perícia teve dois trabalhos de campo, um realizado entre os dias 01 e 12 de dezembro de 2013 e o outro entre os dias 03 e 17 de fevereiro de 2014. Ademais, durante 2014 permaneci duas vezes por dez dias na aldeia, além de ter realizado visitas mensais. Segue abaixo um mapa oferecido por Brighenti (2012) que permite a visualização da aldeia Conquista e aldeia Morro dos Cavalos concentradas na região litorânea, assim como a disposição das demais aldeias, não apenas Guarani, mas também Xokleng e Kaingang, do estado de Santa Catarina. De acordo com Brighenti (2012), existem em Santa Catarina 25 Terras e 2 Reservas Indígenas ocupadas pelas etnias Guarani, Xokleng e Kaingang. A maior parte da ocupação é feita pelos Guarani, visto que estes ocupam 20 entre os 25 territórios catalogados. Em sua totalidade, as Terras Indígenas no estado representam 77.759 hectares. Proporcionalmente esses números condizem a menos de 1% do território de Santa Catarina, o que é agravado pelo fato de que atualmente, por falta de regularização e pela ocupação de particulares e do poder público, os indígenas não dispõem da posse de mais de 38.000 desses hectares. Ou seja, mais de 50% desse território não está efetivamente nas mãos dos indígenas (BRIGHENTI, 2012). O CONCEITO DE POPULAÇÕES TRADICIONAIS NO BRASIL E O USO COLETIVO DAS TERRAS O conceito de populações tradicionais é uma denominação recentemente utilizada para designar os grupos sociais que exercem “modos de uso comum da terra” 3 no Brasil, entre eles os povos indígenas. A partir de importantes autores como Paul Little, Wagner Almeida, entre outros, é possível compreender a complexidade deste conceito, assim como suas implicações, principalmente, no que concerne a relação desses grupos com o Estado- Nação brasileiro. Almeida (2008) ressalta a existência de uma vasta gama de figuras jurídicoformais que contemplam as noções de populações tradicionais e terras tradicionalmente ocupadas e que embora passíveis de classificação em uma categoria única, não admitem uma homogeneidade jurídica. Entre os contemplados pela categoria de “populações tradicionais” estão os quilombolas (com propriedade da terra), os indígenas (com posse permanente), as quebradeiras de côco- babaçu (com o uso comum temporário, porém repetido a cada safra), faxinal (com “uso coletivo”), além dos seringueiros, ribeirinhos, pescadores, castanheiros, ou em outros termos, sujeitos sociais com existência coletiva. Segundo Little (2002), “terra indígena” foi a categoria jurídica estabelecida pelo Estado brasileiro para lidar com os povos indígenas no interior do marco da tutela. Entre todos os povos considerados tradicionais, (ALMEIDA, 2006), os povos indígenas foram os primeiros a obter o reconhecimento de suas diferenças étnicas e territoriais. De acordo com Almeida (2004), apesar desses processos de rupturas e de conquistas que levaram alguns juristas a falar em um “Estado pluriétnico”, não é possível notar uma adoção de uma política étnica pelo Estado e nem de ações governamentais que permitam reconhecer os fatores que influenciam e possibilitam a construção de uma consciência étnica. Little afirma que a Constituinte Brasileira de 1987-1988 representou um marco importante também para a categoria de “populações tradicionais”. Aglutinando ONG’s e movimentos sociais , a Nova Constituição incorporou novos direitos e questões sociais e ambientais, desse modo, distintas modalidades territoriais, como as terras indígenas, foram fortalecidas ou formalizadas (LITTLE, 2002). Segundo Schettino (2003), em uma perspectiva conceitual, terra indígena é um conceito jurídico, referido a legislação vigente, prescrita pela Lei n.º 6001 de 1973, em seu art. 17, e a Constituição Federal de 1988, art. 231 e art 232. A União tem o domínio das Terras Indígenas e aos índios cabe o usufruto exclusivo e posse permanente das terras. Para a realização da demarcação dessas terras é necessário um processo administrativo de caráter declaratório, ou seja, o Estado faz o reconhecimento do território indígena e explicita seus limites , declarando o seu interior como de posse permanente indígena. 4 Esses dispositivos legais além de reconhecerem o direito dos povos indígenas no que diz respeito a suas terras tradicionais, necessárias a sua reprodução física e cultural, também declaram a nulidade de títulos dominiais que incidam sobre terras comprovadamente indígenas, desse modo, os proprietários que sejam considerados de boa-fé garantem o direito de serem indenizados (TENORIO E AMADO, 2011), enquanto os outros, considerados de má-fé não tem acesso as indenizações. A partir da década de 1980, mediante um processo de organização interna de suas sociedades, alianças regionais e nacionais, entre distintas sociedades indígenas e até presença no Congresso Nacional ocorreu um significativo fortalecimento dos povos indígenas 3 (LITTLE,2002) . Para o autor, essas mobilizações exerceram um papel fundamental no reconhecimento das populações indígenas e ampliação de seus direitos na Constituição de 1988. Desde então, os processos administrativos de identificação, delimitação, demarcação física, homologação e registro foram alvos de um investimento social que perdurou por toda a década de 1990 . Apesar do prazo de cinco anos para a demarcação de todas as terras indígenas não ter sido cumprido, foi nessa década que ocorreu o maior número de demarcações de terras indígenas (BARRETTO, 2013). Apesar da emergência da categoria de “populações tradicionais”, é notório que desde 1988 o conceito vem sofrendo transformações que tiveram como consequência a ampliação do seu significado. Quando apropriada pelos grupos que passaram a se auto definir como tradicionais, a categoria, segundo Almeida (2004) tornou-se um preceito jurídico marcante para a legitimação de territorialidades específicas e etnicamente construídas. Nesse contexto de expansão das fronteiras do conceito e seus subsequentes usos políticos e sociais, povos tradicionais passou a englobar um conjunto de grupos sociais que defendem seus respectivos territórios frente a usurpação por parte do Estado- Nação. Importante ressaltar que a despeito da incorporação da categoria pela legislação competente, os entraves políticos e os impasses burocrático-administrativos ainda não permitiram uma superação efetiva dos problemas que tivesse como resultado principal a resolução dos conflitos (ALMEIDA, 2008). É necessário destacar ainda que as disposições constitucionais referentes às categorias de “populações tradicionais” permanecem atuando juntamente com estruturas 3 Bruce (1995) faz uma reflexão importante no que diz respeito ao discurso politico indígena, assim como o processo de emergência dos índios, ao longo das últimas décadas, enquanto sujeitos de sua história e de sua imagem. 5 administrativas preexistentes e pouco eficientes (LEITE, 2008; WAGNER, 2008), não almejando uma reforma do Estado e relegando os processos de operacionalização a aparatos já existentes. Nesse sentido, os problemas de implementação das disposições constitucionais permanecem presentes e inoperantes mesmo que o país esteja respaldado por uma legislação competente. Fica claro então que as formas de uso comum da terra são articuladoras da noção de populações tradicionais, além disso, como afirma Almeida (2008) essa formas de uso da terra empregam uma lógica econômica específica diferente da lógica do capitalismo. Para o autor, “Ao contrário do que poderiam supor as análises deterministas verifica-se que há usos comuns da terra, que consistem em processos sociais resultantes de contradições do próprio desenvolvimento do capitalismo” (2008:146) OS DESAFIOS TERRITORIAIS EM SANTA CATARINA Como apresentado anteriormente a partir dos dados de Brighenti (2012), o contexto de distribuição e regulamentação de terras no estado de Santa Catarina mostrase desfavorável às populações indígenas, cada vez mais cercadas e prejudicadas por grandes empreendimentos. Darella e Ioris (2014), fazendo uma análise do contexto de terras de Santa Catarina, apontam três principais forças de atuação contrárias à regularização de terras indígenas e consequentemente as populações indígenas, são elas: uma imprensa fortemente opositora, a insistente requisição de ações judiciais visando anular os trabalhos já existentes e atrasando os processos de regularização e por fim, os diversos interesses econômicos envolvidos no processo. De acordo com Darella e Ioris (2014), junto à frente opositora de imprensa e de processos judiciais, encontra-se a frente econômica, sendo que: “Inicialmente, a mais evidente, são os interesses econômicos que atravessam os territórios indígenas, como os relacionados à duplicação de rodovias, construção de barragens, projetos de reflorestamento ou de carcinicultura, para citar os mais recorrentes. Esses programas e projetos econômicos que afetam as terras indígenas têm se constituído nas principais forças obstaculizando os processos de regularização das terras indígenas, cuja atuação revela diversas estratégias empregadas” (p.3). 6 Nas aldeias pesquisadas, essas três frentes de oposição podem ser facilmente reconhecidas, são inúmeras as matérias de jornal e televisão que acusam os índios de serem paraguaios, ou seja, de não pertencerem a referida na terra, além de sofrerem publicamente ameaças de fazendeiros da região. Muito recentemente, em dezembro de 2013, o deputado Reno Caramori (PP/SC) em entrevista concedida ao vivo no programa Bom Dia Santa Catarina, da RBS TV, atribuiu à FUNAI a culpa das mortes provocadas por acidentes na BR-101, no trecho do Morro dos Cavalos, já que segundo ele, esse órgão impede a construção de uma nova faixa. O deputado afirmou que os responsáveis da FUNAI deveriam "ir para o inferno vivos" e completou : “Meia dúzia de família de indígenas, de silvícolas, Qual é a contribuição dessa camada social para com a sociedade catarinense, do mundo?” Outra notícia publicada em novembro de 2012 pelo jornal Notícias do Dia, intitulada “Donos de terra de Araquari são alvo de desapropriação” mostra que grandes proprietários da região reclamam da demarcação de área indígena. De acordo com Claudino Garbin, proprietário entrevistado: “Por que não levam estes índios para a Amazônia? Em cem anos de registro destas terras nunca teve índio aqui. Esta é a nossa guerra. Estamos há 12 anos de briga entre proprietários e Funai. Aqui, nunca teve índio e não deixo entrar. Não são loucos de entrar”, avisa4 (grifos meus). Estimulada pela imprensa, a oposição entre índios e proprietários de terras ganham destaque. É notório que a imprensa brasileira, monopolizada em todos os estados por grandes proprietários, defende os interesses dos fazendeiros, ajudando a construir a imagem de indígenas improdutivos e que não contribuem com a sociedade nacional. Nesta mesma lógica capitalista e colonial, os grandes empreendimentos, como o caso da instalação de uma fábrica automotiva da BMW nas proximidades da aldeia da Conquista e a ampliação das estradas dentro da Terra Indígena do Morro dos Cavalos são vistos como beneficiadores da sociedade, enquanto os indígenas seriam um atraso a civilização, ao trabalho , ao progresso e a modernidade. Dussel (2005), na obra intitulada “Europa, modernidade e Eurocentrismo”, 4 Jornal Notícias do Dia. Donos de terra de Araquari são alvo de desapropriação Proprietários de grandes propriedades reclamam de demarcação de área indígena. Publicado em 24/11/12-12:17 por: Cláudio Costa. Disponível em http://www.ndonline.com.br/joinville/noticias/39132-donos-de-terrade-araquari-sao-alvo-de-desapropriacao.html. 7 afirma que a modernidade apresenta-se como uma “saída” da humanidade de um estado de imaturidade provinciana, não planetária. Através da elaboração de sete pontos principais, o autor caracteriza o “mito” da modernidade nos seguintes termos: 1. A civilização moderna autodescreve-se como mais desenvolvida e superior (o que significa sustentar inconscientemente uma posição eurocêntrica). 2. A superioridade obriga a desenvolver os mais primitivos, bárbaros, rudes, como exigência moral. 3. O caminho de tal processo educativo de desenvolvimento deve ser aquele seguido pela Europa (é, de fato, um desenvolvimento unilinear e à europeia o que determina, novamente de modo inconsciente, a “falácia desenvolvimentista”). 4. Como o bárbaro se opõe ao processo civilizador, a práxis moderna deve exercer em último caso a violência, se necessário for, para destruir os obstáculos dessa modernização (a guerra justa colonial). 5. Esta dominação produz vítimas (de muitas e variadas maneiras), violência que é interpretada como um ato inevitável, e com o sentido quase-ritual de sacrifício; o herói civilizador reveste a suas próprias vítimas da condição de serem holocaustos de um sacrifício salvador (o índio colonizado, o escravo africano, a mulher, a destruição ecológica, etcetera). 6. Para o moderno, o bárbaro tem uma “culpa” (por opor-se ao processo civilizador) que permite à “Modernidade” apresentarse não apenas como inocente mas como “emancipadora” dessa “culpa” de suas próprias vítimas. 7. Por último, e pelo caráter “civilizatório” da “Modernidade”, interpretam-se como inevitáveis os sofrimentos ou sacrifícios (os custos) da “modernização” dos outros povos “atrasados” (imaturos), das outras raças escravizáveis, do outro sexo por ser frágil, etcetera. (2005:30) Neste sentido, as demandas dos povos indígenas, direcionadas principalmente a questão das terras, do direito ao uso coletivo e ao exercício do modo ser Guarani Mbyá dentro dos seus territórios são desconsideradas e deslegitimadas não apenas por um possível prejuízo econômico, mas também por ser uma afronta à modernização, ao pensamento moderno e a dominação colonial. A inevitabilidade do sofrimento ou dos sacrifícios direcionada as populações indígenas, assim como o uso da violência, caso necessária, mostra-se como alternativa possível nos discursos dos fazendeiros, dos políticos interessados , da mídia e do Estado brasileiro. Os casos de violência, frequentemente narrados pelos Guarani, podem ser 8 estendidos aos processos de esbulho, ao cercamento das áreas indígenas, a poluição dos rios nas proximidades das aldeias, a oposição ao uso da terra a partir das práticas experienciadas pelos Guarani, a recorrência de queimadas intencionais as casas de reza (opy) , aos vizinhos que frequentemente deixam o gado solto, destruindo a plantação dos indígenas, entre tantos outros contados pelos indígenas. A ATUAÇÃO DAS CACICAS GUARANI MBYÁ FRENTE A LUTA PELA TERRA : DIALOGANDO COM A TEORIA PÓS- COLONIAL. No desafio de manter seus territórios e traçar estratégias que possibilitem a continuidade do modo de vida Guarani Mbyá, frente a este cenário de violência do Estado e da sociedade nacional, as duas cacicas Eunice e Arminda fazem emergir ainda outra categoria: gênero. Sacchi (2014), fazendo referência a Segato afirma que: Para Segato (2012, p.118-120), foi a colonial/modernidade que trouxe a perda do poder político das mulheres, pois os colonizadores negociaram com as estruturas masculinas que inventaram para obter aliados. Se a política atravessava os espaços (público e doméstico), agora existe o monopólio da política pelo espaço público, e a superinflação do papel dos homens de mediador com o mundo exterior. O contato com a sociedade não indígena implicou não somente na valorização do papel masculino de interlocução com o mundo de fora, como trouxe a desvalorização do espaço doméstico e do papel político das mulheres O processo colonial implica também em uma colonialidade de gênero, o que segundo María Lugones (2008) deve ser compreendido dentro de um contexto de interseccionalidade. Deste modo, a autora afirma que existe uma descrição de gênero que não é alvo de reflexão, sendo hiper-biologiazada e pressupondo o dimorfismo sexual, a heterossexualidade, a distribuição patriarcal de poder e outras pressuposições neste sentido. Para Lugones, é ao perceber o enlace indissolúvel entre gênero e raça que podemos realmente ver as mulheres de cor. Para autora, isto implica que o termo “mulher” em si, sem a especificação da fusão entre essas categorias, não tem sentido ou tem um sentido racista, visto que historicamente, na lógica das categorias, o termo mulher diz respeito às mulheres burguesas, brancas e heterossexuais. 9 Nessa perspectiva, apresento rapidamente, dada a brevidade do texto, o perfil das duas cacicas, buscando mostrar assim, quais as possibilidades de atuação dessas mulheres indígenas e as estratégias que utilizam na busca da garantia de suas terras e modos de vida. Eunice Antunes, cacica do Morro dos Cavalos, tem 34 anos e três filhos. É casada há dez anos. A cacica faz parte do curso da Licenciatura Intercultura Indígena do Sul da Mata Atlântica (UFSC). Eunice domina o português, não só na oralidade, mas também na escrita e pretende fazer pós-graduação. Acredita que foi escolhida pela comunidade como liderança visto as ações que realizou como professora e pelo sucesso na elaboração de projetos para captação de recursos para aldeia. Para Eunice, professores são automaticamente lideranças e por isso devem dar exemplo para o resto da comunidade. Recentemente, deixou seu cargo de professora para dedicar mais tempo ao exercício da liderança, de todo modo está sempre envolvida com as atividades da escola e com as reivindicações por melhorias na Educação, estando em Brasília recentemente por este motivo. Arminda Ribeiro, de acordo com sua documentação, tem 60 anos, tem dez filhos e foi casada duas vezes. O primeiro companheiro foi atropelado há 20 anos por um caminhão na BR 101 de Santa Catarina e Arminda não está mais com o segundo companheiro, sendo que cuida dos filhos apenas com a ajuda dos outros filhos mais velhos. Desde o primeiro contato que tive com Arminda, ela deixou claro a dificuldade em se expressar em português. Começou a aprender o idioma com mais de 30 anos e sabe apenas assinar o nome. Normalmente, quando participa de algum evento ou reunião, conta com a ajuda dos/as filhos/as para tradução. É importante ressaltar que existe entre as cacicas não apenas uma distância geracional, mas também uma diferença nos níveis de escolaridade. Essas diferentes trajetórias faz com que as estratégias de lutas utilizadas por elas também sejam distintas, apesar dos objetivos finais em comum, ou seja, a garantia dos direitos territoriais indígenas e a defesa do modo tradicional de vida Guarani. Ambas, em suas falas, mostram frequentemente uma preocupação com as terras Guarani, assim como com futuro do seu povo indígena. Dona Arminda, em uma de suas falas e traduzida por sua filha Regina, narrou que: “A mudança de agora e de antigamente não combina mais, porque pra viver que nem antigamente, para não perder 10 nossa cultura é difícil. Pensar no futuro, agora em diante, para os mais velhos, é muito dolorido. Pra não afundar, nós precisamos de um lugar bem sossegado, mato, onde tenha remédio, que a gente não tem mais remédio medicinais, né, perdemos tudo isso aí também. Aí, as crianças não vai saber mais o que é remédio, medicina. Nem eu mesmo não sei mais o que é remédio da medicina, agora eu tô fazendo curso sobre isso com djurua, era pra fazer curso com tchedjuarÿi, é isso que nós estamos perdendo, daí, para as pessoas mais velhas, isso dói muito. Daí pra viver, tem que ter a terra, daí essa é a preocupação dela da minha mãe (Dona Arminda), nisso que nós estamos perdendo, nós estamos morando perto da cidade, daí os homens já vai andando na cidade, tomando cachaça, daí já perde muito nisso. Porque tamo perto da cidade, senão não ia acontecer isso. Para Arminda Ribeiro, as lutas pelas terras hoje devem dar-se pelas leis do branco. A cacica acha importante saber falar português para garantir os direitos, porém , ao mesmo tempo, considera legítima sua liderança já que sabe “o que uma liderança deve fazer”. Deste modo, por mais que algumas pessoas da aldeia dominem mais a língua portuguesa do que ela, Arminda afirma que quando chega alguém de fora, essas pessoas não vão falar com elas, perguntar o que elas querem, sendo que a responsável por fazer isso é a própria cacica. Arminda atribui seu poder de liderança ao fato de ser a mulher mais velha do grupo, composto majoritariamente por seus filhos e netos. Foi ela quem fundou a aldeia, incomodada com a terra anterior em que se encontrava visto que lá a estrada passava muito perto, tinha muitos carros e era longe do local para conseguir material para realização de artesanato. Arminda, como mulher mais velha e avó (tchedjary) tem um papel fundamental de agregação da aldeia. Sendo que quando ela não está, segundo sua filha Regina, “não dá nem vontade de ir na casa de reza”. A cacica Arminda, quando questionada se a área que ocupa seria um verdadeiro tekohá - sendo este termo entendido como um lugar ou espaço geográfico que reúne as condições necessárias para realizar o sistema cultural Guarani que define seu modo de ser - afirma que “: É, porque agora já aumentou minha família, né,porque já tem bastante meu neto, minha neta, tá tudo meu neto, neta, também já tem família. Quando chega primeiro que nós tamo aqui daí nós pouquinho, né..a minha neta, netinho, tudo pequeninho, até o Carlos também tá pequeno, não tem família, agora já tem família, a família tá aumentando né, então.. 11 Neste sentido, a cacica Arminda, como mulher mais velha, se sente responsável não apenas por ensinar aos Guarani mais jovens como era antes, mas também por mostrar na prática a eles como eram as práticas Guarani antigamente, segundo ela, dando assim continuidade ao modo de ser indígena. A cacica Eunice, assim como Arminda Ribeiro, acredita na importância do papel dos mais velhos na transmissão dos conhecimentos Guarani. Para Eunice, a escola, instituição muito debatida pelos mais velhos, deve servir como forma de transmissão da cultura Guarani, fortalecendo os conhecimentos dos sábios Guarani e servindo para auxiliar a comunidade. Deste modo, Eunice é apoiadora das escolas indígenas e aposta na Educação diferenciada para os alunos/as como forma de articular no ambiente escolar os conhecimentos dos Guarani Mbyá. De acordo com a liderança: “A gente tem várias conquistas, a gente tem uma escola lá na nossa aldeia que aos poucos, desde os mais velhos até hoje, a gente vem tentando cada vez mais melhorar a parte da educação que é a parte principal né, pra qualquer cultura, qualquer comunidade. A gente pensa no futuro dos nossos filhos, dos nossos netos, e das gerações que virão e a gente sempre pensa o melhor e o melhor para nós é manter a nossa cultura, né, a nossa tradição, correr atrás daquilo que a gente perdeu, correr atrás daquilo que a gente deixou, né, sei lá por causa do que, talvez porque a gente não teve uma condição de trazer até agora , são vários fatores que levaram a gente a perder algumas coisas, mas assim, a gente não esquece, a gente tá sempre correndo atrás daquilo que é a essência que a gente fala, da educação e hoje, graças a Deus, a gente tem uma escola bem estruturada, assim, eu digo bem estruturada não da parte política, mesmo dos governantes, nem do Estado, mas bem estruturada assim no contexto indígena mesmo, que é um sonho que os mais velhos vem sonhando desde o inicio... Os mais velhos rejeitaram uma época as escolas nas aldeias porque a escola porque a escola tava tirando a criança do meio dos familiares, de dentro da casa de reza e trouxe para um lugar fechado, onde ali fazia uma lavagem cerebral na cabeça da criança né e ela acabava não tendo mais aquele tempo de receber a educação familiar que era como era passado antigamente e acabou deixando os rituais para não faltar aula. As cacicas utilizam a articulação que mantém com os grupos mais velhos como modo de fortalecer as demandas da luta pela terra, no caso da Dona Arminda, mostrando e relatando aos mais jovens como era a vida dos povos Guarani no período onde as terras não eram tão escassas e no caso da Eunice, fortalecendo os laços dos mais 12 jovens com as tradições Guarani de modo que os indígenas não precisem de interlocutores e falem por si mesmo. No que diz respeito aos espaços educacionais, Eunice afirma que: “Falar pros governantes, falar pros políticos que não é bem assim. Falar que o que eles tão falando dos indígenas a gente tá entendendo e pode dar uma resposta. Pra mim é isso a universidade”.(“Encontro com lideranças indígenas”, realizado na Universidade Federal de Santa Catarina - 2014) Nota-se que cacicas, levando em consideração os diálogos com a sociedade envolvente e se instrumentalizando com alguns importantes instrumentos coloniais, como a língua portuguesa e a escola questionam a dicotomia entre tradição e modernidade, refutando a noção de que apenas estes dois caminhos são possíveis, ou, como nos aponta Hérnandez (2004) “se puede permanecer cambiando y cambiar permaneciendo”. CONSIDERAÇÕES FINAIS Nota-se que Eunice Antunes e Arminda Ribeiro mostram-se preocupadas em relação ao futuro do povo indígena do qual são pertencentes, assim como estão atentas à necessidade de garantir a possibilidade de viverem de forma autônoma o sistema Guarani. Para tal, ambas utilizam estratégias diferenciadas , porém não excludentes . São poucas as ações das cacicas direcionadas exclusivamente às mulheres da aldeia, sendo como foco principal das conversas o bem-estar da comunidade em geral, relacionado principalmente à garantia pela terra e ao enfrentamento as frequentes tentativas de esbulho. Os processos referentes à terra mostra-se marcante , não apenas no que diz respeito ao âmbito legal, mas também no cotidiano das aldeias. A força com que aparecem os grandes empreendimentos, a ampla adesão da sociedade civil, com a promessa de criação de empregos e melhoria da economia da região como no caso das grandes empresas e de facilitação da circulação de mercadorias, no que diz respeito às estradas, faz com que os indígenas tenham que resistir em condições muito desiguais de poder econômico, midiático e de formação de opinião, sendo o sacrifício de suas terras e recursos completamente desconsiderados frente a lógica colonial. É notório também que embora os povos indígenas venham rapidamente 13 atualizando suas formas de relacionamento e estratégias para sobreviver como minorias, as instituições do Estado Nacional no Brasil pouco se atualizaram e não superaram o preconceito e etnocentrismo com que assumem as questões referentes a esses povos, (LADEIRA, 2008). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBERT, Bruce. (1995) O Ouro Canibal e a Queda do Céu: Uma crítica xamânica da economia política da natureza. Série Antropologia (Brasil ia/UnB) n⁰ 174. ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno. (2008) Terra de quilombo, terras indígenas, “babaçuais livre”, “castanhais do povo”, faxinais e fundos de pasto: terras tradicionalmente ocupadas. Alfredo Wagner Berno de Almeida. – 2.a ed, Manaus: pgsca–ufam. ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno . (2006) Terras de preto, terras de santo, terras de índio: uso comum conflito. 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