www.observatoriodacritica.com.br Entrevista de Luiz Costa Lima Jornal O Globo, sábado, 11 de abril de 2009 Caderno Prosa & Verso Disponível em: http://publique.rdc.pucrio.br/clipping/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=20301&sid=2 4. Acesso em: 1 outubro 2010. As brechas do imaginário Rachel Bertol Em novo livro, o crítico Luiz Costa Lima analisa os mecanismos de controle exercidos sobre a ficção na era moderna Luiz Costa obra-prima libertário mecanismos Lima: o romance moderno, gênero inaugurado pela “Dom Quixote ”, do espanhol Miguel Cervantes, nasceu e, ao longo dos séculos, expôs ou internalizou do poder. O crítico Luiz Costa Lima lança na próxima quarta-feira, no Rio, “O controle do imaginário & a afirmação do romance ” (Companhia das Letras). Em longa entrevista concedida em seu apartamento na última segundafeira, Costa Lima, professor do Instituto de Letras da Uerj e do departamento de história da PUC-Rio, conta que buscou, na obra, teorizar ideias que vem desenvolvendo nas últimas décadas, e que marcaram os estudos literários no Brasil. Basicamente, procurou dar marcos teóricos ao que chama de “controle do imaginário”, tema da Trilogia do controle ” (Topbooks, 2007), em que reúne (reeditados) três livros influentes dos anos 80, nos quais indicava a incidência do fenômeno. Na primeira parte do novo livro, ele se dedica a isso. Costa Lima concentra sua análise no surgimento do romance — busca desvendar e explicar o fenômeno através do gênero que nasceu com a era mderna. A ficção foi e continua a ser desvalorizada Essa primeira parte, fundamentada em Aristóteles, extensa que a segunda, na qual se volta para a é mais leitura específica de quatro romances: “Dom Quixote”, do espanhol Miguel de Cervantes; “As relações perigosas”, do francês Pierre Choderlos de Laclos; “Moll Flanders”, do inglês Daniel Defoe; e “Tristram Shandy”, de outro inglês, o mestre Laurence Sterne. São leituras universais, que não se intimidam de nascer num país dito periférico no pensamento, como o Brasil. E não passam do século XVIII. — Por que não vão além do XVIII? Por uma razão simples: ir além de Sterne, entrar no século XIX, deixaria o livro com tamanho tal que ninguém iria querer editá-lo. É ou não um controle? Sim, é controle da produção — ironiza Costa Lima, ao comentar como hoje pode se dar o controle do imaginário. Acredita que a ficção, atualmente, é tão desvalorizada quanto foi no passado, mas, em vez de controle, cita outra característica, “a neutralização do ficcional”. O controle — que, em sua análise se refere a jogos de poder dos grupos dominantes ao longo da História — dá lugar também à lógica de mercado. Esta põe em segundo plano o que não é lucrativo. Além disso, as tecnologias, que podem proporcionar a sensação de contato mais intenso com a realidade — através do tempo real, por exemplo — estariam, de certa forma, também contribuindo para essa neutralização. A noite de autógrafos será na Livraria da Travessa de Ipanema (Visconde de Pirajá 572), dia 15, às 19h. A seguir, trechos da entrevista. 'Controle não é o mesmo que censura' Crítico lembra que culto da realidade nacional é apenas uma das matrizes reguladoras e empobrecedoras da ficção. O GLOBO: O senhor escreveu que este deve ser seu último livro com uma grande pesquisa. Sente que concluiu uma trajetória? LUIZ COSTA LIMA: Não que tenha concluído, mas na feitura deste novo livro percebi que deveria pedir ao dono do tempo um prazo de vida maior para fazer tudo o que gostaria. Quando comecei a escrevê-lo, minha ideia era que a primeira parte, a mais longa, fosse a mais curta, para depois tratar melhor da questão do romance (tema da segunda parte). O GLOBO: A primeira parte se refere ao controle do imaginário. Concluiu, pois, o que tinha a dizer a respeito? COSTA LIMA: Sim. A ideia do controle me veio à cabeça na década de 1980. O primeiro livro do que seria depois a “Trilogia do controle” (Topbooks) é de 1984. Quando o escrevi não tinha a mínima noção da proporção que assumiria. O livro saiu quando eu já me encontrava nos EUA, onde fiquei dois anos. Lá, eu dispunha de uma biblioteca decente, à qual me dediquei integralmente. Pude então preparar dois volumes de acréscimo, como pesquisa empírica. Quando os três livros foram reeditados como trilogia, em 2007, por sugestão do editor da Topbooks, José Mario Pereira, fui reler página por página e tirei capítulos inteiros. Luiz Costa Lima: “Dizer que o romance acabou acho que é pretensão. Pode-se dizer que está em processo de metamorfose, de mudança” O GLOBO: “A crítica e o controle ”, último capítulo de “O fingidor e o censor”, que encerra a trilogia, foi retirado, embora fosse visto como fecho do trabalho. Voltou agora ou temos outro fecho? COSTA LIMA: Até agora não. O que eu sentia quando terminava a revisão da “Trilogia” é que nela havia uma análise empírica, não teórica. A ideia de controle do imaginário é nova. Meu trabalho era verificar o máximo de áreas culturais em que ocorresse. E embora o conceito ultrapasse a literatura, é nela que se dá a incidência da análise. Mas em nenhum instante essa indagação empírica dava lugar à pergunta: afinal de contas, o que é controle do imaginário, por que existe com incidência tão ampla? Faltava na “Trilogia” uma tentativa de caracterização teórica do fenômeno observado. O GLOBO: Por que a análise do controle através do romance? COSTA LIMA: O período em que analisei o controle é o início dos tempos modernos, dos seculos XV e XVI para cá. E o romance, nesse período, é o gênero por excelência sobre o qual se exerce o controle do imaginário. O gênero por excelência do Renascimento era a épica, que tem como protagonista um herói nacional, com dimensão política e aristocrática. Já o romance supõe situações cotidianas, a vida diária, e isso não interessa aos valores renascentistas, que são aristocráticos, realizados em obras que têm como público as pequenas cortes. O romance, ao contrário, vai ser o primeiro gênero literário a contar com a imprensa tipográfica, e não tem um público previamente assinalado. Qual é o público de um livro impresso? É anônimo. O GLOBO: “Dom Quixote”, analisado no livro, é exemplar, não? COSTA LIMA: Sim, é ótimo para mostrar como o romance ali se inicia. Cervantes escreve na Contrarreforma, ultracontroladora, com valores cristãos e aristocráticos fortes, em oposição à sociedade nascente, de valores burgueses. Não se pode duvidar que “Quixote ” não é épica. Para começar, o grande protagonista é doido, e um doido específico, em relação ao romance de cavalaria. Ao lado dele tem o Sancho com aquela linguagem desbragada, louca, nada nobre, cheia de ditos populares. O que me interessa é chamar a atenção para o contexto histórico em que aparece o “Quixote”, antifavorável ao romance, na sede mesmo da Contrarreforma, que é a Espanha. Cena de “Dom Quixote ”: livro aparece em época desfavorável ao romance O GLOBO: Por isso, “Quixote ” é exceção, e o romance só se afirma mais tarde... COSTA LIMA: Sim, o romance vai se propagar via França e sobretudo Inglaterra. Nunca na Espanha. Neste ponto, entra um detalhe muito sutil. Cervantes utiliza a mesma tática de Ariosto no Renascimento. E Cervantes reconhece a excelência de “Orlando Furioso”, de Ariosto: é um dos poucos livros salvos da fogueira onde queimam os livros de Dom Quixote, quando o cura e o barbeiro localizam nos romances de cavalaria a loucura dele e decidem destruí-los. Ariosto consegue driblar o controle, a ponto de ser reconhecido um século depois por Cervantes. Apresenta seu poema como burlesco, uma brincadeira. Por conta dessa desqualificação, a circulação é facilitada. E a função da ideia de burla é bem aprendida por Cervantes. De um lado, o romance era malvisto, porque representava valores de uma sociedade a surgir, e por outro vai ser o gênero por excelência dos tempos modernos. A melhor imagem para ilustrar a ideia de controle é a espada de Dâmocles: uma espada que ronda sobre nossas cabeças, não deixando muito espaço para a gente se mexer, porque pode nos decepar a qualquer instante. O GLOBO: O interessante imaginação? é encontrar na obra o limite da COSTA LIMA: Sim, e isso você não acha de forma abstrata ou especulativamente. Há de descobrir pela análise das normas sociais e do exercício dessas normas nas práticas sociais. O GLOBO: Pensando no Brasil, onde a nossa literatura seria o galho menor de uma grande tradição, podemos dizer que a sociedade é extremamente controladora e não propicia a criação literária, e a criação em geral? COSTA LIMA: Sim. Quando comecei a pensar a questão do controle era em relação à literatura brasileira. À medida que fui pesquisando, verifiquei que o problema não era do Brasil. Vinha da Europa. Entre nós, o controle se exerceu no século XIX de maneira bem flagrante através do culto da natureza. A pergunta que se fazia no século XIX era: como um autor mostra singularidade em relação à tradição literária? Resposta: para que o autor seja aceito e reconhecido como brasileiro é necessário que explore as propriedades da natureza tropical, sua riqueza e fausto. O culto da natureza. O GLOBO: José de Alencar... COSTA LIMA: Alencar é tipicamente isso. À medida que o seculo XIX avança, esse culto da natureza vai se prolongar e se estender em outra coisa, no culto da chamada realidade. A literatura há de ser realista, ou seja, explorar os tipos encontrados no interior dessa sociedade etc. Essa exploração realista apresentaria um retrato do país. Você é escritora brasileira na medida em que apresenta a realidade do seu país. Com isso, a gente verifica, por contraste, a grandeza de Machado de Assis, que vive nesse meio ultramesquinho e estreito e escreve, muito jovem ainda, o ensaio “Instinto de nacionalidade ”. Em metade do artigo, muito esperto, Machado parece elogiar essas práticas todas e já no fim diz o que pensa: que um escritor vai se mostrar nacional não pelas cenas que descreve, mas pelo seu sentimento íntimo. Você é brasileiro por um sentimento intimo, não por dizer, “ah, tem favela, ah, tem ladrão na rua”. O GLOBO: Não é a ficção externa, expressão que usa no livro. COSTA LIMA: Sim, não é a ficção controlada. Há toda uma tradição controladora entre nós que faz com que o produto ficcional seja extremamente rarefeito, extremamente pobre. São matrizes controladoras: primeiro o culto da natureza, depois o culto da nacionalidade, da realidade nacional, toda essa frescura. O GLOBO: Hoje é culto da periferia. COSTA LIMA: Pois é, o que dá na mesma, só muda o nome. O padrão é o mesmo, o culto do externo. Além disso, há outro fator intrínseco que é a estreiteza do público leitor. E isso vai nos remeter à escravidão. Por conta dela, fundamentalmente, o público leitor brasileiro do seculo XIX é o das sinhazinhas — os homens têm coisas sérias a fazer, como política e empréstimos para suas fazendas. E o que leem as sinhazinhas? Coisas bem fáceis, que batam no coração, sensíveis. Portanto, de um lado, em cima, temos as normas controladoras importadas da Europa. E, na base, esse público estreito. A margem de manobra do escritor é muito pequena. Outra vez, verificamos por que Machado vai ter como grande mestre o inglês Sterne, autor de “Tristram Shandy”, que analiso no livro. Enquanto a tradição romanesca se firma através da internalização dos mecanismos de controle, Sterne mostra todo esse aprisionamento da ficção. E Sterne é discípulo de Cervantes, que já é discípulo de Ariosto. É muito curioso verificar toda uma estrada estreita, como se bordejando um precipício, pela qual essa grande literatura se constitui contra todos esses empecilhos. Quer dizer, na Europa o público não é empecilho, só aqui e na América Hispânica. Agora, para entender o controle do imaginário, não se trata de perguntar o que é a imaginação como faculdade, em que esta se distingue da percepção. Isso é interessante, mas não resolve nosso problema. O nosso é como essas categorias do imaginário são passíveis de circular e, para que circulem, é necessário um trânsito com os valores dos grupos no poder. O GLOBO: Como assim, categorias do imaginário? COSTA LIMA: Faço uma distinção do imaginário como faculdade, e o imaginário como prática concreta. Cada um de nós, quando temos nossas fantasias, ou as escrevemos, fazemos isso a partir de uma faculdade que é humana, a imaginação. Ela se manifesta a partir de condições concretas. O imaginário é essa disposição concreta da faculdade da imaginação. Ao fazer uso dessa faculdade você emprega categorias diferentes, de modo lírico, burlesco, trágico, segundo diferentes categorias. Meu interesse não é ver o controle da sociedade como um todo, mas como se dá na obra do imaginário. A expressão não existe na crítica europeia, ou americana. Só chegam perto do problema. E é importante a gente observar que controle não é o mesmo que censura, esta é mais simples. O GLOBO: Hoje a sociedade seria a tal ponto coercitiva que não são necessários órgãos censores? COSTA LIMA: Exato, porque esse controle se dá de maneira disseminada. As instituições oficializadas são meio de controle. A universidade, por exemplo: de um lado, reitera determinados produtos como legítimos e de outro é controladora, quando rejeita, não dá importância etc. O GLOBO: Quando a ficção expõe o mecanismo de poder deixa de ser mímesis para ser criação? COSTA LIMA: No sentido tradicional, sim, mas tudo o que desenvolvi desde os anos 80 dá lugar a um triângulo, com, em cada ponta, a ideia de mímesis, controle e ficção. A ideia que a gente tem de mímesis é isso, um espelho da realidade. Mas, partindo da acepção grega em Aristóteles, a mímesis seria uma criação ficcional pela qual se verifica a relação entre o real externo e o texto. Seria o que mede, o medidor; e a ficção é a forma de discurso com o qual a mímesis se realiza e o controle se exerce. Quero escrever um livro que vai especificar esse triângulo. O GLOBO: Acredita que há uma desvalorização da ficção, em favor dos relatos não ficcionais? COSTA LIMA: Antes havia mecanismos mais explícitos de controle da ficção. Mas, sobretudo a partir da TV, há uma evidência de como esses campos do ficcional e do não ficcional se superpõem e se combinam. Por isso a impressão de que não se valoriza a ficção. Não valoriza, como antes não valorizava. A valorização é sempre de uma coisa que nunca se define: a dita realidade. O GLOBO: Como detectar, hoje, os mecanismos de controle da ficção? COSTA LIMA: Hoje há uma espécie de neutralização do ficcional pela suposição de que o avanço tecnológico nos permite ter acesso ao real muito mais intenso do que antes. A cabecinha humana continua a mesma, lá ela negava e, para negar eficazmente, controlava. Hoje ela controla através da neutralização do ficcional. Como? Supondo que você tem acesso técnico que lhe permite ver o que está acontecendo na Lua ou no vizinho. Se você está vendo essas coisas, para que a ficção? Há uma neutralização do ficcional. O GLOBO: Acredita no propalado “fim do romance”? COSTA LIMA: O romance como gênero fino, refinado, acabou. O romance que se pretende realista, reportagem do fato sucedido, que conta o que se passa no Dona Marta, é simplesmente o romance best-seller, jornalístico, comercial, sem legitimidade interna. Mas dizer que o romance acabou, acho que é pretensão. Pode-se dizer que está em processo de metamorfose, de mudança. Se o romance clássico, do século XVIII acabou, por outro lado temos “Ulisses” ou “Finnegans Wake”, de Joyce. São obras que exigem um público refinado. Não me atreveria a dizer que nada acabou. O GLOBO: A criação está em crise? COSTA LIMA: Sim, pois você tem uma sociedade em que o conjunto de valores se reduz cada vez mais ao valor econômico. Agora, é verdade também que esse valor econômico hoje entrou em crise. O GLOBO: Mas as pessoas não têm mais tempo para o livro... COSTA LIMA: Isso é extremamente grave nos países chamados periféricos. Os valores que não dizem respeito à função econômica e lucrativa tendem a ser postos para escanteio. E somos muito mais expostos a essa situação, porque não temos tradição de criar resistência, como há entre intelectuais da Europa ou dos EUA. O GLOBO: Um mecanismo de controle... COSTA LIMA: É também a neutralização do ficcional. Não é necessário haver controle, pois o mercado se encarrega. Agora, o campo da ficção é muito mais amplo que o da ficção literária. Dou um exemplo simples, que não tem a ver com arte. Há ficções que não são percebidas pela sociedade como ficções, sem que por isso deixem de ser indispensáveis para a ideia de liberdade. Se você beber dois copos de cerveja e for pega no bafômetro, sofrerá uma punição. Para que isso ocorra, parte-se do suposto que você tomou cerveja porque quis, pois tinha a liberdade de não fazer isso. E isso também é uma ficção. O GLOBO: Como situa sua obra, entre o teórico e o empírico? COSTA LIMA: Eu me vejo como teórico da literatura, mas com o mínimo de bom senso para saber que a teoria não vem antes da prática. Trata-se de verificar, ler, ler e ler, levantar objeção à sua própria interpretação, ver se aquilo comprova isso. É claro que todos esses recursos não são suficientes para ter certeza de que você não está se enganando. Mas procuro nunca fazer com que a teoria seja algo que se imponha a priori. Teorizar a priori pode dar em besteira.