V Encontro Anual da ANDHEP - Direitos Humanos, Democracia e Diversidade
GT 3 - Acesso à Justiça e Direitos Humanos
Estudo do Caso “José Pereira” na Comissão Interamericana de Direitos Humanos
Raoní Beltrão do Vale
UFPA- BELÉM - PARÁ
17 à 19 de setembro de 2009
Introdução
O caso "José Pereira" na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), do
Sistema Interamericano de Promoção e Proteção dos Direitos Humanos (doravante Sistema
Interamericano) da Organização dos Estados Americanos (OEA), iniciou em fevereiro de
1994 e foi concluído em outubro de 20031, sendo a primeira experiência brasileira de um
acordo de solução amistosa no âmbito do Sistema Interamericano.
Trata-se de um caso emblemático de desrespeito aos direitos humanos, no qual o
menor José Pereira foi vítima do crime de redução à condição análoga à de escravo e de
tentativa de homicídio, em 1989, no "Castanhal Espírito Santo". Não houve resolução no
Judiciário brasileiro até a presente data, sendo que seus responsáveis até hoje permanecem
impunes.2
Longe de ser um caso isolado, em 2003, ano da conclusão do caso na esfera
internacional, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), órgão da Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB) estimou que 25 mil pessoas no Brasil são submetidas a condições
análogas à escravidão, por ano, (Sakamoto, 2007)3 sendo que até agosto de 2008, 31.726
pessoas foram libertadas, desde 1995 (Sakamoto, 2008.).4 Fora outras 13.214 pessoas
(aproximadamente) envolvidas em situações semelhantes, denunciadas pela CPT no
mesmo período, jamais fiscalizadas.
Essa realidade encontra respaldo e condescendência em parte da sociedade, sendo
que isso se expressa na impunidade que resulta dos processos apreciados pelo Poder
Judiciário, dos privilégios advindos de mandatos executivos e legislativos obtidos pelos
acusados, além dos casos em que não há sequer abertura de processo judicial.
A ocorrência de tais violações normalmente se dá em latifúndios privados ou públicos
(grilados ou concedidos à exploração de terceiros). A reforma agrária no Brasil ainda é um
projeto a ser implementado, pois grande parte das terras concentram-se nas mãos de
grupos de grandes proprietários de terra. Tratam-se de áreas de exploração da pecuária,
cultivo de soja, de algodão, fabricação de carvão vegetal, entre outras, especialmente as
que se encontram em localidades remotas, como as regiões de fronteira agrícola na
Amazônia.
Ainda ocorre o monitoramento das recomendações nos Relatórios Anuais da CIDH.
Impunes permanecem: o proprietário da concessão de exploração da área, o gerente do
empreendimento e os pistoleiros.
3
Os números se referem somente aos crimes em zonas rurais. Conferir Sakamoto (coord.). Trabalho
escravo no Brasil no século XXI. Brasília: Organização Internacional do Trabalho, 2007. Disponível
em <http://www.reporterbrasil.com.br/documentos/relatorio_oit1.pdf> e <http://www.reporterbrasil.com
.br/documentos/relatorio_oit2.pdf>. Acessados em 28 de novembro de 2008.
4
Cf. Sakamoto, Leonardo. Gado e cana exploram mais trabalho escravo no Brasil. Blog do
Sakamoto, em 9 de setembro de 2008. Disponível em <http://colunistas.ig.com.br/sakamoto/2008/09/
09/gado-e-cana-exploram-mais-trabalho-escravo-no-brasil/>. Acessado em 28 de novembro de 2008.
1
2
2
A possibilidade de acesso ao Sistema Interamericano é uma das ferramentas que
permitem apelar contra a impunidade relativa às violações de direitos humanos que a justiça
brasileira muitas vezes ignora.
Breve histórico do caso
José Pereira Ferreira nasceu em 1973, na cidade de São Miguel do Araguaia no
estado de Goiás. Aos 8 anos de idade veio ao estado do Pará, acompanhando o pai que
também era trabalhador rural. Em 1989, Pereira, então com 17 anos de idade, foi aliciado
por um "gato",5 chamado somente por Francisco de Assis Alencar, conhecido como "Chico
Cambota", para trabalhar na área do "Castanhal Espírito Santo", explorado pela
Agropecuária Santa Bárbara, em Xinguara, sul do estado do Pará e, à época, propriedade
de Benedito Mutran Filho (Sakamoto, 2004).6
A Agropecuária Santa Bárbara empregava 1.600 trabalhadores diretamente e 10.000
indiretamente, segundo seu ex-proprietário (Oliveira, 2008).7 A empresa explorava por
aforamento do Governo do Estado do Pará duas áreas, a "Castanhal Carajás" e a
"Castanhal Espírito Santo", que totalizam uma área de 23,5 mil hectares, e, em 2005, e, sem
consulta ao poder público, foi vendida ao Grupo Opportunity de Daniel Dantas por R$ 53,7
milhões (Magalhães, 2008).8 Ação que hoje é objeto de contestação judicial pelo Ministério
Público do Estado do Pará (MPE).
Benedito Mutran Filho, segundo informações do sítio eletrônico de uma de suas
empresas:
“... começou a trabalhar com o pai, no comércio da castanha-do-pará, em 1963. Três anos
depois, pai e filho fundaram a Benedito Mutran & Cia. Ltda. Em 1999, diversificou suas
atividades no Comércio Exterior, passando a exportar também a pimenta-do-reino.
Paralelamente a essas atividades, (..) ganhou inúmeros prêmios e títulos nacionais, sendo os
mais importantes o de Pecuarista do Ano (1999), Líder Empresarial Setorial do Fórum de
Líderes, da Gazeta Mercantil (2002) e, duas vezes, o de Melhor Criador de Nelore no Brasil,
concedido pela Associação dos Criadores de Nelore do Brasil/ACNB. Foi o Empresário do
Ano 2001, honraria máxima do empresariado paraense outorgada pela Associação Comercial
do Pará; em 2000, recebeu o título de Honra ao Mérito da Assembléia Legislativa do Estado
do Pará; e, em 2004, a Medalha de Ouro da ABCZ /Associação Brasileira dos Criadores de
Zebu e o título de Cidadão Uberabense, da Câmara Municipal de Uberaba, Estado de Minas
Gerais.”9
Contratadores de empreitada que aliciam trabalhadores e servem de fachada para que os
proprietários não sejam responsabilizados pelo crime.
6
Cf. Sakamoto. Nova Libertação em fazenda dos Mutran. Repórter Brasil, 02 de junho de 2004.
Disponível em <http://www.reporterbrasil.com.br/exibe.php?id=36>. Acessado em 31 de outubro de
2008.
7
Cf. Oliveira, Mariana. Compra de terras por grupo de Dantas no Pará é irregular, diz Procuradoria.
Agência de notícias G1, 25 de setembro de 2008. Disponível em <http://g1.globo.com/Noticias/Econo
mia_Negocios/0,,MUL699921-9356,00.html>. Acessado em 22 de novembro de 2008.
8
Cf. Magalhães, João Carlos. Terra de grupo de Dantas é investigada no PA. Folha de São Paulo, 24
de julho de 2008. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2407200805.htm>.
Acessado em 22 de novembro de 2008.
5
3
Enquanto proprietário da Fazenda Espírito Santo, Benedito Mutran Filho foi
identificado explorando trabalho escravo em 1986, 1987, 1989 e 1990 (Figueira, 2004).10
Sobre a família Mutran, diz Sakamoto (2004):
“[d]e acordo com ativistas de direitos humanos que atuavam na época, eles [família Mutran]
foram responsáveis por massacres de posseiros e desaparecimento de trabalhadores.
Segundo dados da CPT em Marabá, quase metade dos registros de conflito de terra na
região entre 1976 e 1984 envolvem a família.”
Em setembro de 1989, Pereira se encontrava em cativeiro vigiados por cerca de 10
capangas armados, junto com aproximadamente outras 30 vítimas. Segundo Pereira, os
trabalhadores eram vigiados, sob a mira de espingardas calibre 20, dormiam trancados em
um barracão coberto por uma lona preta e cercado de palha. Comiam arroz e feijão e só
tinham carne quando algum boi era atropelado. Trabalhavam todos os dias da semana
fazendo o roço de juquira11 e arroz de pasto, ambas as tarefas sem o fornecimento de
equipamentos de segurança. O menor e as demais vítimas não recebiam remuneração por
seu trabalho e eram explorados pelo sistema de "barracão"12, em uma forma de escravidão
por dívida (Sakamoto, 2004).
Pereira e outra vítima, conhecida somente pelo apelido de "Paraná", intentaram fuga
numa madrugada, caminhando mais de 5 horas, margeando pelo mato a única estrada da
área que conheciam. Quando saíram de dentro da vegetação foram surpreendidos por uma
emboscada, comandada pelo gato e pistoleiro "Chico Cambota", sendo que "Paraná" foi
alvejado e morto. Pereira, rendido, foi ordenado a andar em direção contrária aos pistoleiros
e foi alvejado pelas costas, na cabeça, tendo o projétil atingido um de seus glóbulos
oculares. Nesse momento a vítima caiu e fingiu-se de morta. O bando forrou a carroceria de
uma camionete com lona e depositou o corpo de "Paraná" e o menor foi arrastado e
colocado junto ao corpo do colega, tendo sido levados a frente da fazenda "Brasil Verde",
onde foram jogados à beira da estrada (Sakamoto, 2004).
Após a fuga dos assassinos, Pereira procurou socorro na fazenda "Brasil Verde" de
onde lhe levaram de carro até o Hospital Santa Luzia, onde foi internado. Posteriormente, o
menor foi a Belém receber tratamento no olho ferido, mas infelizmente perdeu a visão do
órgão. Em Belém, denunciou à Superintendência do Departamento de Polícia Federal (DPF)
no Pará os crimes no "Castanhal Espírito Santo". "Chico Cambota" e os demais
Disponível em <http://www.bmutran.com.br/port/aempresa.html>. Acessado em 22 de novembro de
2008.
10
Cf. Figueira, Ricardo Rezende. Pisando fora da própria sombra: a escravidão por dívida no Brasil
contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
11
Consiste na retirada de arbustos, ervas daninhas e demais plantas indesejáveis, por meio de poda
manual e da aplicação de veneno.
12
Onde o trabalhador é obrigado a arcar com os custos do seu transporte, ferramentas de trabalho,
alojamento improvisado e alimentação precária, comprados junto ao próprio empregador que pratica
preços muito acima do mercado, perpetuando uma dívida ilegal que serve como argumento para a
retenção das vítimas com uso da força.
9
4
componentes da quadrilha souberam que ele havia sobrevivido e fugiram. Quando a Polícia
Federal (PF) do Pará chegou ao local havia cerca de 60 pessoas reduzidas a condições
análogas à escravidão. Segundo Pereira, a PF pagou somente a passagem de volta para as
vítimas, deixando-as à beira da estrada (Sakamoto, 2004).
No âmbito brasileiro, o processo, ainda, está em aberto, tramitando na Comarca de
Xinguara, estado do Pará, sob nº. 2002.2.000060-4. Os réus são: Artur Benedito Cortes
Machado; Augusto Pereira Alves (conhecido como Cutia); Carlos de tal (conhecido por
Carlão); Francisco de Assis Alencar (conhecido como Chico Cambota ou Chico Perninha); e
José Gomes Melo. As investigações do caso iniciaram, ainda, em 1989, mas a denúncia só
ocorreu em 1994 e, as alegações finais, só foram apresentadas em 1997.
Em 7 de outubro de 1998 o Ministério Público denunciou os cinco réus por crime de
tentativa de homicídio e redução à condição análoga à de escravo. O processo foi dividido
em dois, sendo que Artur Benedito Cortes Machado, gerente da fazenda, foi condenado a 2
anos de prisão com prestação de serviços comunitários por 2 anos, o que não ocorreu
devido à prescrição do crime em 6 de outubro de 1998 com a extinção da punibilidade
retroativa. Os outros quatro réus têm sua prisão preventiva decretada, mas não executada,
pois estão foragidos. É importante frisar que o processo foi instruído de forma esdrúxula,
com claro intuito de provocar eventuais nulidades quando do seu julgamento. Essa
estratégia é comumente utilizada nos casos de violações de direitos humanos nas comarcas
da região, nas quais o Poder Judiciário sofre forte influência dos latifundiários.
O proprietário da fazenda e beneficiário direto dos atos ilícitos jamais foi investigado.
Benedito Mutran Filho foi arrolado como a primeira testemunha da acusação, tendo dito em
depoimento que raramente visitava a área e que havia demitido os envolvidos assim que
soube do ocorrido.
Trâmite na Comissão Interamericana13
Em 22 de fevereiro de 1994 a CIDH recebeu demanda das organizações nãogovernamentais (ONGs) Human Rights Watch e Center for Justice and International Law
(CEJIL) que apresentaram petição contra a República Federativa do Brasil. Entre os fatos
alegados estavam situações de redução de pessoas a condições análogas à escravidão,
ataques ao direito à vida e direito à justiça no sul do estado do Pará.
Baseado nas alegações, os peticionários apontaram que o Estado brasileiro violou os
artigos I (direito à vida, à liberdade, à segurança pessoal e integridade da pessoa), XIV
(direito ao trabalho e uma justa retribuição), XXV (direito à proteção contra prisão arbitrária)
da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (doravande Declaração
Baseado no Relatório nº. 95/03. Conferir Organización de los Estados Americanos. Informes
Anuales de la Comisión Interamericana de Derechos Humanos. Disponível em <http://www.cidh.org/a
nual.esp.htm>. Acessado em 22 de novembro de 2008.
13
5
Americana) e, também, os artigos 6 (proibição da escravidão e da servidão), 8 (direito a
garantias judiciais), 25 (direito à proteção judicial) em conjunto com o artigo 1, inciso 1
(obrigação de respeitar os direitos) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos
(CADH).
Os peticionários narraram os fatos e indicaram que se tratava de um exemplo de
falta de proteção e de garantias de direitos por parte do Estado brasileiro, tendo esse
falhado em responder adequadamente ao combate dessas práticas, que seriam comuns na
região. As investigações, processo e julgamento do caso teriam se mostrado ineficientes.
O Governo brasileiro recebeu a transmissão da informação em 24 de março de 1994
e respondeu somente em 6 de dezembro do mesmo ano, alegando que não havia sido
esgotado todos os recursos internos. As partes ainda prestaram diversas outras informações
adicionais.
Em 1995, a CIDH realizou uma visita in loco ao Brasil, passando por vários estados,
inclusive o Pará, onde esteve na zona rural de Xinguara e em Belém, oportunidade em que
recebeu testemunhos de advogados, defensores de direitos humanos, trabalhadores rurais,
promotores de justiça, juízes locais, desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado do
Pará e representantes do Ministério Público Federal (MPF) sobre o tema da redução de
trabalhadores a condições análogas à escravidão em geral e no caso "José Pereira".
Tendo convocado várias reuniões de trabalho sobre o presente caso, em 24 de
fevereiro de 1999, a CIDH aprovou o informe de admissibilidade e de mérito do caso.
Concluiu que o Estado brasileiro era responsável pelas violações da Declaração Americana,
bem como da CADH, efetuando recomendações pertinentes ao Estado.
O supracitado informe foi enviado ao Estado brasileiro em 24 de março de 1999 com
um prazo de dois meses para o cumprimento das recomendações formuladas. Com impulso
da CIDH, iniciou-se um processo de solução amistosa com as partes proporcionando
informes adicionais, celebrando reuniões de trabalho e audiências perante a CIDH, sendo a
última durante o 117º período de sessões ordinárias, em 27 de fevereiro de 2003, já sob o
governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva, representado pela Secretaria Especial de
Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH).
Em 18 de setembro de 2003, durante o lançamento da Comissão Nacional de
Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE), o Governo Federal reconheceu
publicamente a responsabilidade no caso, assumindo o compromisso de dar continuidade
aos esforços de cumprimento dos mandados judiciais, celebrando entre as partes o acordo
de solução amistosa.
Em 14 de outubro de 2003 ocorreu nova reunião de trabalho durante o 118º período
de sessões ordinárias da CIDH, onde as partes apresentaram formalmente o acordo.. Em 24
6
de outubro de 2003 a CIDH publicou o relatório nº. 95/03, incluído no Relatório Anual de
2003, aprovando o acordo de solução amistosa do caso "José Pereira", nº. 11.289. Estava
consolidado o primeiro acordo de solução amistosa de um caso brasileiro no Sistema
Interamericano.
O acordo de solução amistosa
Conforme o relatório nº. 95/03 da CIDH14, foram estabelecidos no acordo os
seguintes pontos.
I. Como reconhecimento de responsabilidade:
• O Estado brasileiro reconhece a sua responsabilidade internacional em relação ao caso
11.289.
• O reconhecimento público da responsabilidade do Estado brasileiro em relação às
violações, realizado em 18 de setembro de 2003.
• Compromisso das partes em manter sigilo sobre a identidade da vítima durante o
reconhecimento público de responsabilidade e declarações públicas sobre o caso.
II. A respeito do julgamento e punição dos responsáveis individuais:
• Julgamento e punição dos responsáveis individuais, dando prosseguimento aos esforços
de cumprimento dos mandados de prisão contra os acusados dos crimes cometidos
contra José Pereira, remetendo o presente acordo ao Diretor Geral do DPF.
III. Como medidas de reparação pecuniária:
• A indenização por danos morais e materiais a José Pereira, através do projeto de lei ao
Congresso Nacional, (Brasil, 2003)15 aprovado em caráter de urgência, que determinou o
pagamento de R$ 52 mil à vítima, quantia executada mediante a ordem bancária nº.
30B000027, em 25 de agosto de 2003.
• O pagamento da indenização supracitada exime o Estado de pagar qualquer outro tipo de
ressarcimento à José Pereira.
IV. Sobre as medidas de prevenção o Estado se comprometeu conforme os pontos
seguintes.
IV.1. Como modificações legislativas:
Cf. Organización de los Estados Americanos. Informes Anuales de la Comisión Interamericana de
Derechos Humanos. Disponível em <http://www.cidh.org/anual.esp.htm>. Acessado em 22 de
novembro de 2008.
15
Cf. Brasil. Lei nº. 10.706, de 30 de julho de 2003. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_
03/LEIS/2003/L10.706.htm>. Acessado em 31 de outubro de 2008.
14
7
• Implementar ações e propostas de mudança contidas no Plano Nacional para a
Erradicação do Trabalho Escravo16, iniciado pelo Governo brasileiro em 11 de março de
2003.
• Efetuar todos os esforços para a aprovação legislativa do Projeto de Lei nº. 2130-A de
199617 e o substitutivo, Projeto de Lei nº. 5.693 de 2001.18
• Defender o estabelecimento de competência federal para o julgamento de crimes de
redução à condição análoga à de escravo, com objetivo de combater a impunidade.
IV.2. Como medidas de fiscalização e repressão ao trabalho escravo:
• O Estado brasileiro comprometeu-se a fortalecer o Ministério Público do Trabalho (MPT),
velar pelo cumprimento da legislação em vigor por meio de cobranças de multas
administrativas e judiciais, velar pela investigação e apresentação de denúncias contra os
autores de trabalho escravo, fortalecer o Grupo Móvel de Combate ao Trabalho Escravo
no Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), realizar esforços junto ao Poder Judiciário e
suas entidades representativas no sentido de garantir a punição dos autores de crimes de
trabalho escravo.
• O Governo comprometeu-se em revogar, até o final do ano de 2003, por meio dos atos
administrativos correspondentes o Termo de Compromisso firmado entre os proprietários
de fazendas, o MTE e o MPF, de fevereiro de 2001, denunciado no caso.
• Fortalecer gradualmente a Divisão de Repressão ao Trabalho Escravo e de Segurança
de Dignitários (DTESD), criada no âmbito do DPF, através da Portaria do Ministério da
Justiça (MJ) nº. 1.016, de 4 de setembro de 2002, dotando a DTESD com fundos e
recursos humanos adequados.
• Realizar esforços junto ao Ministério Público Federal (MPF) ressaltando a importância
dos Procuradores Federais priorizarem a participação e acompanhamento das ações de
fiscalização de trabalho escravo.
IV.3. Como medidas de sensibilização contra o trabalho escravo, o Estado se
compromete em:
16
Cf. Comissão Especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana da Secretaria
Especial de Direitos Humanos e Organização Internacional do Trabalho, 2003. Plano Nacional para a
erradicação do trabalho escravo. Brasília: Organização Internacional do Trabalho, 2003. Disponível
em <http://www.mte.gov.br/trab_escravo/7337.pdf>. Acessado em 20 de dezembro de 2008.
17
Cf. Comissão de Constituição e Justiça e de Redação. Projeto de Lei nº. 2.130 de 1996. Disponível
em <http://www.camara.gov.br/sileg/MostrarIntegra.asp?CodTeor=209681>. Acessado em 22 de
novembro de 2008.
18
Cf. Comissão de Constituição e Justiça e de Redação. Projeto de Lei nº. 5.693 de 2001, na forma
do substitutivo da relatoria. Disponível em <http://www.camara.gov.br/sileg/MostrarIntegra.asp?CodTe
or=37958>. Acessado em 22 de novembro de 2008.
8
• Realizar uma campanha nacional de sensibilização contra a prática de trabalho escravo,
com enfoque especial no estado do Para, ocasião em que mediante a presença dos
peticionários se dará publicidade aos termos deste acordo.
• Avaliar a possibilidade de realização de seminários sobre a erradicação do trabalho
escravo até o primeiro semestre de 2004, convidando os peticionários.
V. Como mecanismos de acompanhamento, para a monitoração do cumprimento
efetivo de todas as cláusulas do referido acordo:
• As partes enviarão informes anuais sobre os avanços alcançados e o Estado viabilizará a
realização de visitas in situ, caso necessário.
Monitoramento das recomendações19
O Estado brasileiro jamais cumpriu a parte do disposto no ponto V, em relação aos
informes anuais, uma vez que até o presente momento não enviou nenhum à CIDH.
Os pontos I e III, respectivamente, o reconhecimento de responsabilidade e a
reparação pecuniária foram cumpridos. O ponto II, julgamento e punição dos responsáveis
não foram cumpridos, pois não há confirmação de que o Estado brasileiro tenha remetido o
acordo ao Diretor Geral do DPF, tão pouco há indícios de que se tenham empreendido
buscas aos acusados foragidos e o único acusado de paradeiro conhecido havia se
beneficiado da extinção da punibilidade retroativa com a prescrição do crime. É importante
frisar também que o proprietário da fazenda à época jamais foi sequer investigado.
Ao que concerne o ponto IV.1, as propostas de alterações legislativas contidas no
Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, temos: 20
• Alteração da Lei nº. 5.889, de 8 de junho de 1973, o projeto de Lei 1.985/2003, do
Deputado Eduardo Valverde (PT/RO) já foi arquivado e desarquivado, sendo que até a
presente data encontra-se na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ)
da Câmara dos Deputados.
• A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº. 438 de 2001, de autoria do ex-Senador
Ademir Andrade (PSB/PA) (com as emendas, contempla o Projeto de Lei nº. 2.667/03),
foi aprovada no Senado em 2003 e ficou parada na CCJ até 2004, com a comoção
popular em decorrência do assassinato de quatro servidores do MTE que fiscalizavam
fazendas no noroeste do estado de Minas Gerais foi aprovada em primeiro turno na casa,
porém a bancada ruralista conseguiu adicionar mudanças no texto da lei para retardar
sua transformação em lei, o que implica que após a aprovação em segundo turno a PEC
Baseado nos Relatórios Anuais da CIDH de 2002 a 2007. Conferir Organización de los Estados
Americanos. Informes Anuales de la Comisión Interamericana de Derechos Humanos. Disponível em
<http://www.cidh.org/anual.esp.htm>. Acessado em 22 de novembro de 2008.
20
Conforme informações disponíveis em <http://www.camara.gov.br/>. Acessado em 23 de novembro
de 2008.
19
9
terá de voltar ao Senado para mais dois turnos de votação, apesar da campanha
contínua dos movimentos sociais pela sua aprovação, ainda espera ser incluída na pauta
de votação da Câmara dos Deputados (Sakamoto, 2007).
• O Projeto de Lei nº. 2.022/96 do ex-Deputado Federal Eduardo Jorge (PT/SP), junto a
inúmeras outras emendas aglutinadas, foi anexado ao Projeto de Lei 1.292/95 do
Senador Lauro Campos (PT/DF), que, por sua vez, foi apensado ao Projeto de Lei nº.
1.810/07 do ex-Deputado Federal Miro Teixeira (PDT/RJ) e encontra-se parado na CCJ
desde setembro de 2007.
• O Projeto de lei Nº 207/2006 da Comissão de Direitos Humanos e Legislação
Participativa do Senado foi contemplado pela Portaria nº.540 de 2004.
O Projeto de Lei nº. 5.693 de 2001 não foi aprovado.21
Em 16 de novembro de 2006, por 8 votos a favor e 3 contra, o STF decidiu a favor da
interpretação de que a competência para julgar o crime de redução do ser humano à
condição análoga à de escravo é da Justiça Federal, com base na Constituição da
República Federativa do Brasil (CF/88), artigo 109, inciso VI (Brasil, 2006).22
O ponto IV.2, medidas de fiscalização e repressão ao trabalho escravo, quanto ao
fortalecimento do MPT, em 28 de abril de 2006 iniciou o processo de contratação de 200
auditores fiscais do trabalho, foram promulgadas leis de carreiras nos serviços públicos
federais e se contratou mais de uma centena de novos procuradores, porém o Congresso
Nacional tem rejeitado sistematicamente a aprovação de emendas orçamentárias para o
combate ao trabalho escravo (Sakamoto, 2007). Os peticionários reconheceram o empenho
do Grupo Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que intensificou as suas ações
de fiscalização. Porém a meta de se atingir 12 grupos de fiscalização (desdobráveis em 24)
ainda não foi alcançada. No Plano Plurianual 2004/2007 foram destinados mais de R$11
milhões ao programa de erradicação do trabalho escravo, além da inclusão de trabalhadores
resgatados em planos de reforma agrária.
Foram implantados novos juizados federais e do trabalho em Redenção no Pará,
Altamira e Castanhal, todavia não há previsão nesse sentido para os municípios de São
Félix do Xingu, Xinguara e Conceição do Araguaia.
O Termo de Compromisso firmado entre os proprietários de fazendas, o MTE e o
MPF, de fevereiro de 2001, não foi revogado, facilitando a impunidade dos proprietários que
exploram trabalho escravo em suas fazendas.
Conforme informações disponíveis em <http://www.camara.gov.br/>. Acessado em 23 de novembro
de 2008.
22
Cf. Brasil. Superior Tribunal de Justiça. RE/398041. Diário de Justiça da União. Nº 237. Brasília, 30
de novembro de 2006. Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/pesquisarDiarioJusti
ca.asp>. Acessado em 23 de novembro de 2008.
21
10
Quanto ao fortalecimento gradual da Divisão de Repressão ao Trabalho Escravo e
de Segurança de Dignitários (DTESD), os peticionários não tiveram acesso a mais dados,
mas de qualquer forma não foi destinado dotação orçamentária a contento nos planos
governamentais.
Não há registros de participações do MPF nas operações do Grupo Móvel, o que
constitui uma grande desarticulação entre os poderes públicos, numa perda incalculável em
ações que são de extrema importância. Somente o MPT acompanha tais ações.
No que se refere ao ponto IV.3, as medidas de sensibilização contra o trabalho
escravo foram cumpridas, em 2003 ainda, foi lançada a campanha "Trabalho Escravo.
Vamos abolir de vez essa vergonha", além da realização de seminários no estado do Pará,
como parte da Campanha Nacional de Sensibilização Contra a Prática de Trabalho Escravo,
foram realizadas, também, medidas relativas ao plano de combate ao trabalho escravo do
Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), como projetos de alfabetização rural,
conscientização e planos estaduais de erradicação do trabalho escravo em vários estados.
Dessa maneira, a CIDH conclui que houve cumprimento parcial das ações dispostas
pelo acordo de solução amistosa do caso "José Pereira" e que o órgão seguirá
acompanhando a implementação do acordo e supervisionando os pontos acordados entre
as partes se comprometeram. Cabendo ressaltar que, em 2007, nenhuma das partes
respondeu aos informes anuais no prazo fixado pela CIDH.
Casos contra o Estado brasileiro
Conforme demonstra Flávia Piovesan, os casos submetidos à CIDH contra o Estado
brasileiro podem ser divididos em 8 categorias: detenção arbitrária, tortura e assassinato
cometidos durante o regime autoritário militar; violação dos direitos dos povos indígenas;
violência rural; violência policial; violação dos direitos de crianças e adolescentes; violência
contra a mulher; discriminação racial; e violência contra defensores de direitos humanos,
sendo que cerca de metade dos casos referem-se à violência da polícia militar. Os casos
restantes tratam de violência a grupos socialmente vulneráveis, e em 9 de cada 10 casos as
vítimas são pessoas socialmente pobres (Piovesan, 2007).
As poucas petições brasileiras, aceitas como caso, que tiveram solução na CIDH
resultaram em relevantes alterações legislativas e adoção de políticas públicas. Dessas,
Piovesan (2007: p. 121-122) pontua algumas:
“... [1] os casos de violência policial, especialmente denunciando a impunidade de
crimes praticados por policiais militares, foram fundamentais para a adoção da Lei
9.299/96, que determinou a transferência da Justiça Militar para Justiça Comum do
julgamento de crimes dolosos contra a vida cometidos por policiais militares; [2]
casos envolvendo tortura e desaparecimento forçado encorajaram a adoção da Lei
9.140/95, que estabeleceu indenização aos familiares de mortos e desaparecidos
11
políticos; [3] caso relativo a assassinato de uma jovem estudante por deputado
estadual foi essencial pra a adoção da Emenda Constitucional n. 35/01, que restringe
o alcance da imunidade parlamentar no Brasil; [4] caso envolvendo denúncia de
discriminação contra mães adotivas e seus respectivos filhos – em face de decisão
definitiva proferida pelo Supremo Tribunal Federal que negou direito à licença
gestante à mãe adotiva – foi também fundamental para a aprovação da Lei
10.421/02, que estendeu o direito à licença maternidade às mães de filhos adotivos;
[5] o caso que resultou na condenação do Brasil por violência doméstica sofrida pela
vítima (caso Maria da Penha Maia Fernandes) culminou na adoção da Lei
11.340/2006 ('Lei Maria da Penha'), que cria mecanismos para coibir a violência
doméstica e familiar contra a mulher; [6] os casos envolvendo violências contra
defensores de direitos humanos contribuíram para a adoção do Programa Nacional
de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos; [7] os casos envolvendo violência
rural e trabalho escravo contribuíram para a adoção do Programa Nacional de
Combate ao Trabalho Escravo; e [8] casos envolvendo direitos dos povos indígenas
foram essenciais para a demarcação e homologação de suas terras.”
Dessa maneira, avaliamos que acionar o Sistema Interamericano possui grandes
potencialidades de resolução de situações de violação dos direitos humanos, porém o
sistema padece do seu próprio sucesso. Com o aumento de número de casos apresentados
e o não acompanhamento orçamentário para tal demanda acaba por dificultar a eficiência do
mesmo. Faz-se necessário investir na modernização e aparelhamento do Sistema
Interamericano como um todo, para lograr-se êxito, principalmente, na sua dimensão
judicial.
Análise Crítica
A função primordial da CIDH é de receber denúncias individuais de violações de
Direitos Humanos cometidas por Estados-membros, partes ou não à CADH. Essa função
está sendo exercida de forma mais costumeira à medida em que o continente transitou de
regimes autoritários para democracias, o que também fez o número de casos pendentes
caracterizar-se como um obstáculo ao seu desempenho (Rodríguez-Pinzón, 2004: p. 184).
Nesse ponto reside o principal problema do Sistema Interamericano em nossa opinião e de
muitas organizações de promoção e defesa dos direitos humanos habituadas a acioná-lo.
Dos inúmeros casos apresentados, pouquíssimos são admitidos, não obstante preencherem
os requisitos formais para tal, o que gera descrédito no mecanismo enquanto agente
eficiente de execução de suas funções, e acaba por igualá-lo aos próprios Estados
denunciados com base na demora injustificada ou no não julgamento. Se não vejamos as
estatísticas da CIDH de 1997 a 2007 em gráfico 1 comparativo.23
Baseado nos dados disponíveis no Informe Anual de da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos 2007. (Organización de los Estados Americanos)
23
12
Denúncias recebidas e casos encaminhados
Após uma análise da proporção entre denúncias recebidas e decisões da CIDH,
vemos que os valores absolutos só são comparáveis em escala logarítmica, devido à
disparidade de denúncias recebidas e casos encaminhados. Tais fatos, apresentados pela
própria CIDH, revelam que a mesma está longe de cumprir a contento sua função, ao
menos na dimensão judicial, e também não supre as expectativas da maioria daqueles que
a acionam. Suas funções judiciais e políticas estão intrinsecamente ligadas, por vezes, um
dos principais motivos para a demora da emissão do relatório de mérito ocorre devido a
tentativas dos órgãos de interferir politicamente nas questões domésticas com o intuito de
solucionar a questão.
A situação de exploração do trabalho escravo, a nosso ver, tem como base, mais do
que somente a violação da liberdade, a violação da dignidade da pessoa humana. Nesse
sentido José Gomes Canotilho (1993: p. 363) coloca que:
“[q]uanto à dignidade da pessoa humana, a literatura mais recente procura evitar um
conceito 'fixista', filosoficamente sobrecarregado (dignidade humana em sentido
'cristão e/ou cristológico', em sentido 'humanista-iluminista', em sentido "marxista",
em sentido 'sistémico', em sentido 'behaviorista')."24
Para compreendermos melhor o princípio, Canotilho dispõe da teoria de cinco
componentes.
“Nesta perspectiva, tem-se sugerido uma 'integração pragmática', susceptível de ser
condensada da seguinte forma: (1) Afirmação da integridade física e espiritual do
homem como dimensão irrenunciável da sua individualidade autonomamente
responsável (....) (2) Garantia da identidade e integridade da pessoa através do livre
desenvolvimento da personalidade (....) (3) Libertação da 'angústia da existência' da
pessoa mediante mecanismos de socialidade, dentre os quais se incluem a
possibilidade de trabalho e a garantia de condições existenciais mínimas (....) (4)
Cf. Canotilho, José Joaquim Gomes. Direitos Constitucional. 6 ed. Coimbra: Livraria Almedina,
1993.
24
13
Garantia e defesa da autonomia individual através da vinculação dos poderes
públicos a conteúdos, formas e procedimentos do Estado de direito.” (5) Igualdade
dos cidadãos, expressa na mesma dignidade social e na igualdade de tratamento
normativo, (...) isto é, igualdade perante a lei.” (Podlech apud Canotilho, 1993: p.
363).
A principal característica do trabalho escravo é a disposição de seres humanos como
objetos de propriedade, dispondo da sua força de trabalho independente da sua vontade. A
questão da liberdade frente à falta de alternativas, igualmente priva a pessoa da escolha.
Assim, a exploração degradante dos trabalhadores, independentemente de pactuação,
submete-os à condição outra, não apropriada à vida humana, uma vez ausente o direito à
dignidade da pessoa humana entre outros princípios fundamentais. Vejamos, conforme os
preceitos enunciados acima, como o trabalho escravo contemporâneo negligencia um a um
os componentes condensados no princípio da dignidade da pessoa humana: (1)
submetendo a pessoa a maus-tratos, sob a responsabilidade e arbítrio de outrem e
comprometendo sua integridade física; (2) na medida em que se extrai do trabalhador seus
documentos e lhe substituem a personalidade enquanto ser humano simbolicamente pela de
objeto que pode ser disposto ao bel-prazer do seu algoz; (3) afastando o ser humano do
convívio social saudável e necessário para o seu pleno desenvolvimento e desprovendo-lhe
de condições mínimas de vida; (4) cerceando sua autonomia individual separando-o do
estado de direito; (5) diferenciando-o dos cidadãos ao suprimir seus direitos e, por
conseqüência, negando-lhe dignidade social.
Levando-se em conta as duas espécies do gênero penal da redução do homem à
condição análoga à de escravo, o trabalho forçado e o trabalho em condições degradantes
(Brito Filho, 2004,) temos que a principal característica, por englobar todos os aspectos, é a
redução da dignidade humana do trabalhador, pois isso se identifica facilmente nas duas
espécies.
Portanto, entendemos que haja mudança na compreensão do trabalho escravo,
inclusive precavendo a argumentação de que a garantia da liberdade por si só não permite
que esse seja caracterizado, uma vez que a principal questão levantada é o princípio da
dignidade da pessoa humana, mais amplo, contemplando todas as formas contemporâneas
de escravidão.
O principal fator causal do trabalho escravo é a concentração de renda e riquezas.
Na Amazônia brasileira, o fato se faz presente via latifúndios.
O latifúndio, por sua vez, decorre de privilégios históricos auto-concedidos pelas
elites que estão no poder. Se não vejamos, no caso analisado, ocorrido em terras públicas,
concedidas pelo estado do Pará à família de notória influência político-econômica na região,
os Mutran. Essa concessão, a particulares, do nosso ponto de vista, descaracteriza a função
14
social da propriedade, conforme estipula o inciso XXIII do artigo 5º da Constituição Federal,
pois diversas vezes ocorreram situações de violência contra trabalhadores na área, que,
mesmo, não sendo os “agraciados” com as terras, são os reais responsáveis pelo manejo
do potencial produtivo da propriedade, entretanto secularmente são alijados da geração de
riqueza advinda do processo. E, no mesmo sentido, considerou o judiciário brasileiro em
decisão histórica de desapropriação, fundada no princípio da função social, evoluindo do
preceito ordinário de produtividade, por constatação de existência de trabalho escravo
(Sakamoto, 2007).
Apesar da constatação de tantas atrocidades praticadas em nome do enriquecimento
ilícito, a sociedade como um todo (inclusive Jurídica), continua por condescender com tais
práticas, com a impunidade. Esse é o nó que o acesso aos mecanismos internacionais de
direitos humanos, a nosso ver, tem o papel importante de desaforar o litígio de onde não se
pode avançar. A despeito de todos os requisitos formais, necessários para a viabilidade
política das esferas internacionais de litígio, só a possibilidade de se poder recorrer a
estruturas menos viciadas, não passíveis tão facilmente do constrangimento do poder local
é, por si só, uma esperança de exercer justiça. Após estudos gerais de casos de violência
no campo paraense, fica clara a impossibilidade de imputação penal aos violadores de
direitos humanos. A título de ilustração, temos o fato de que o primeiro mandante de
assassinato de trabalhadores rurais no Pará só foi condenado em 2006, após 21 anos de
morosidade processual exacerbada, mesmo assim permanece em liberdade.25
No aspecto da responsabilização dos Estados nos casos do Sistema Interamericano,
a CIDH, quando admite a análise, atua de maneira exemplar. Porém, é necessário dizer que
ante suas possibilidades, no aspecto da prevenção, deixa um pouco a desejar. O Sistema
Interamericano pode efetuar recomendações tão amplas quanto as possibilidades do
Estado, assim, não poucas vezes houve atuação no sentido de modificar a legislação em
seu caráter estrutural, por exemplo a atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos
(Corte IDH) no caso "Vargas Areco Vs. Paraguai", em que entre outras medidas foi decidido
que: “es pertinente ordenar al Estado que modifique su legislación interna en materia de
reclutamiento de menores de 18 años en las Fuerzas Armadas del Paraguay, de
conformidad con los estándares internacionales en la materia.” (Corte Interamericana de
Derechos Humanos, 2007: Casos conteciosos).26
Caso "Chacina da Fazenda Ubá", de 1985, cujo julgamento só ocorreu em 2006, condenando a
José Vergolino, proprietário, à época, do Castanhal Ubá. Caso 12.277 da CIDH.
26
O caso tratava do assassinato de uma criança por parte do Exército paraguaio. Devido a uma lei
que estabelecia o serviço militar obrigatório aos homens maiores de 14 anos. Conferir Corte
Interamericana de Derechos Humanos. Jurisprudencia Actualizada. [CD-ROM]. San José: OEA, 2007.
(Doravante denominada Corte Interamericana).
25
15
Como se vê, existe a possibilidade de alterar a legislação interna dos Estadosmembros que se submetem à jurisdição da Corte IDH. Assim, se analisarmos que os crimes
de trabalho escravo na Amazônia estão baseados na falta de condições dos trabalhadores
no campo, seria pertinente modificar os parâmetros de concessão de terras públicas e
colocar em pauta a reforma agrária. Vejamos o disposto no documento da OIT sobre a
ocorrência de trabalho escravo:
“[a]s ações fiscais demonstram que quem escraviza no Brasil não são proprietários
desinformados, escondidos em fazendas atrasadas e arcaicas. Pelo contrário, são
latifundiários, muitos produzindo com alta tecnologia para o mercado consumidor
interno ou para o mercado internacional. Não raro nas fazendas são identificados
campos de pouso de aviões. O gado recebe tratamento de primeira, enquanto os
trabalhadores vivem em condições piores do que as dos animais.” (Sakamoto, 2007:
p. 24).
Assim, medidas que combatessem a origem do problema seriam eficazes. Uma vez
sanada a principal carência dos trabalhadores, o acesso à terra para dela retirar o sustento,
estaria esvaída uma condição central para o aliciamento dos mesmos.
Outra questão a ser analisada seria a exigência de responsabilização dos
mandantes. O acordo de solução amistosa aponta o julgamento e condenação dos culpados
de forma geral, mas não enfatiza que o dono da concessão de exploração da área não foi
sequer investigado. O desrespeito constitucional pela falta de cumprimento da função social
não foi sequer explorado.
Ademais, a reparação individual estipulada em R$ 52 mil não condiz, a nosso ver,
com as violações sofridas pela vítima. Independente dos parâmetros estabelecidos por
outros casos no Sistema Interamericano, consideramos que a quantia não está a altura dos
danos materiais causados pelo seqüestro, privação de liberdade, maus-tratos, coação física
e moral, trabalho degradante, redução à condição análoga à de escravo, tentativa de
assassinato, perda da visão de um olho, falta de acesso à justiça, quatorze anos para a
reparação, agravados, ainda, pelo fato de que a vítima era menor quando ocorreram as
violações. Dadas as condições precárias dos serviços de saúde do Estado na região, com a
quantia que foi paga, a vítima (tanto tempo depois) não conseguiria arcar sequer com o
tratamento médico-psicológico, conseqüência direta das violações. No mínimo, o valor
deveria ter sido corrigido pelas perdas acumuladas de quase uma década e meia de
desamparo social.
Como bem coloca o Juiz da Corte Interamericana Sergio García Ramírez, sobre
acordos de soluções amistosas: “[e]n fin, no se trata de arribar a cualquier solución
amistosa, sino a una solución justa, como es propio de un verdadero sistema de protección
16
de derechos, al que repugna cubrir arreglos injustos con el prestigio de la justicia.” (Corte
Interamericana, 2003: Tomo I, p. 134).27
Nesse sentido, acreditamos que os motivos que levaram os peticionários a
concordarem com o acordo de solução amistosa seja a morosidade do Sistema
Interamericano que, mesmo gerando um acordo, demorou nove anos para concluir o caso.
Esse prazo, considerando-se que foi abreviado, quando comparado à perspectiva de
demora na hipótese de ter sido remetido à Corte, não é nem um pouco razoável. Diríamos
que até chega a superar a morosidade dos judiciários nacionais em alguns aspectos. Logo,
na falta de opções de amparo à vítima, os peticionários se vêem numa situação
extremamente delicada na qual são obrigados a abrir mão de uma punição exemplar do
Estado por um acordo que possibilite a abreviação da reparação à vítima. Assim, temos que
o Sistema Interamericano, nesse caso, não proporcionou a justiça que pretende enquanto
mecanismo internacional de proteção aos direitos humanos. Principalmente se levarmos em
conta que o critério de admissibilidade preponderante para o caso em questão, ironicamente
foi a exceção ao não esgotamento dos recursos internos por demora injustificada, portanto
demorar o dobro da "demora injustificada" do Estado é que é injustificável. Ressalte-se que
houve até uma visita in loco (1995) que, entre outros, também se debruçou no caso, apenas
um ano depois do acionamento da CIDH (1994), e, mesmo assim, o caso só foi admitido
quatro anos depois disso (1999).
A morosidade observada no caso "José Pereira" não é exceção no Sistema
Interamericano, porém, tão pouco deve ser tomada como falta de interesse por parte dos
operadores do sistema. É necessário esclarecer que, como muitos organismos
internacionais, o nosso sistema regional de proteção também carece de recursos, tanto que
busca fontes outras de financiamento que não só os Estados-membros. A falta de agilidade
na resolução dos casos é um dos temas que mais aflige seus membros. Vejamos a relatoria
do Presidente da Corte Interamericana, o brasileiro José Augusto Cançado Trindade, sobre
o Seminário O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos no Limiar do
Século XX, realizado em 1999.
"Entre las principales conclusiones extraídas de las discusiones llevadas a cabo
durante la realización del Seminario, se pueden señalar las siguientes: a) la
necesidad de optimizar los recursos económicos y de contar con recursos
adicionales; b) la agilización de los procedimientos sin perjuicio de la seguridad
jurídica, evitando los retardos y duplicaciones en el actual mecanismo de protección
de nuestro sistema de protección;" (Corte Interamericana, 2003: Tomo II, p. 9).
27
Cf. Corte Interamericana de Derechos Humanos. Memoria del Seminario “El sistema
interamericano de protección de los derechos humanos en el umbral del siglo XXI”. 2 ed. San José:
Corte Interamericana de Derechos Humanos, 2003. Disponível em <http://www.corteidh.or.cr/docs/
libros/Semin1.pdf> e <http://www.corteidh.or.cr/docs/libros/Semin2.pdf>. Acessado em 27 de
novembro de 2008.
17
Portanto, vemos que é consenso entre os operadores do Sistema Interamericano,
tanto juízes, corpo técnico, quanto ONGs, advogados e pesquisadores que os dois
principais problemas são o financiamento do órgão e, também, em conseqüência disso, a
morosidade da tramitação dos casos.
Entre as perspectivas de reforma do Sistema Interamericano está a possibilidade de
instalação permanente da CIDH e da Corte Interamericana, não havendo somente as
sessões ordinárias espaçadas durante o ano, além da remuneração dos juízes e,
obviamente, a dotação orçamentária para o bom cumprimento de sua missão.
Essa luta, a nosso ver, não deve ser travada somente no âmbito do próprio Sistema
Interamericano, nem no da OEA, uma vez que os representantes diplomáticos dos Estadosmembros são subordinados, naturalmente, a governos nacionais. Portanto, cabe à
sociedade civil pressionar, de forma articulada, os governos da região comprometendo-os
em plataformas eleitorais ou de governo que considerem a luta pela proteção dos direitos
humanos na esfera internacional como central para o desenvolvimento social e equânime
dos povos americanos.
De nada adiantaria poucos países posicionarem-se no sentido de fortalecer o
Sistema Interamericano, caso essa postura não fosse adotada pelos demais Estadosmembros. Nas relações internacionais se deve buscar pontos de convergência em uma
atuação continuada e articulada, para além das reuniões de delegações diplomáticas e seus
intervalos de negociações, uma integração regional do movimento em defesa dos direitos
humanos para garantir o acesso e a efetividade a mais esse mecanismo de proteção.
Quanto às medidas de combate ao trabalho escravo pontuadas no acordo de
solução amistosa do caso "José Pereira", é importante frisar que as mesmas já estavam
previstas como ações do Governo Federal, na gestão do Presidente Luís Inácio Lula da
Silva e que os Planos Nacionais de Direitos Humanos dos governos anteriores sequer
mencionavam o trabalho escravo em seu conteúdo.
Vejamos uma declaração do Ministro da SEDH, à época da solução do caso em
questão, Nilmário Miranda, em entrevista à Revista Eletrônica "Americas Forum" da OEA.
"A OEA já ajuda muito, primeiro porque o simples fato de pedir as medidas
cautelares obriga aos estados brasileiros e ao governo federal a discutir o assunto;
segundo porque quando saem as decisões sobre casos – e já houve 14 decisões –
isso nos leva a buscar a reparação. Nós fizemos a primeira solução amistosa em um
caso de trabalho escravo no Brasil. O caso José Pereira, um rapaz, adolescente,
com 17 anos que ficou cego de um olho por causa de um tiro quando fugia de uma
fazenda a onde trabalhava como escravo. O caso foi arquivado no Brasil e a
OEA/CIDH então sancionou o país. Nós fizemos um projeto de lei indenizando a
vítima e lançamos um plano nacional pela erradicação do trabalho escravo – a causa
primeira da violação."28
Disponível em <http://www.oas.org/ezine/ezine22/MirandaDereitosHumanos.htm>. Acessado em 28
de novembro de 2008.
28
18
Infelizmente, essa importância não fez com que o Estado brasileiro se dignasse ao
menos a informar a CIDH sobre a implementação das recomendações do acordo, o que
também levanta a questão do porquê da mesma não sancionar o país de alguma forma
devido ao descumprimento dessa questão tão simples.
O Sistema Interamericano, quando há abertura por parte dos governos nacionais,
consegue exercer um papel importante na promoção dos direitos humanos, influenciando
politicamente os Estados. Assim, concluímos que mesmo com seus problemas, o Sistema
Interamericano constitui peça fundamental de promoção dos direitos humanos, cabendo aos
militantes de direitos humanos nas mais distintas áreas procurar fortalecê-lo, pressionando
de volta os governos nacionais, como esperam que o próprio Sistema Interamericano o faça.
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Raoní Beltrão do Vale