A polêmica na narrativa histórica nas obras de Augusto de Lima
Júnior1
Camila Kézia R. Ferreira2
Resumo: Este artigo utilizará a análise do conteúdo para
compreender o discurso polêmico nas obras de Augusto de Lima
Júnior (1889-1970), enfatizando o livro “História e Lendas”, de
1935. Ressaltaremos a inserção do autor em um contexto de
intelectuais mineiros e a peculiaridade deste grupo na escrita
histórica. Notamos que a observação de Lima Júnior sobre o
passado direcionou suas perspectivas para o âmbito político,
religioso e cultural do seu tempo.
Palavras-Chave: História de Minas Gerais, Historiografia e
Augusto de Lima Júnior.
Introdução
O objetivo deste artigo é compreender o contexto intelectual de Augusto de
Lima Júnior e o conteúdo3 de sua obra “História e Lendas”, de 1935. Primeiramente,
tentaremos, de forma sucinta, apresentar esse intelectual pouco conhecido no meio
acadêmico4. Filho primogênito de Antônio Augusto de Lima, Presidente do Estado de
Minas Gerais em 1891, e Vera Monteiro de Barros Suckow, nasceu em Leopoldina no
dia 13 de abril de 1889, e ainda criança foi morar em Ouro Preto, capital da província.
Matriculou-se na Faculdade de Direito de Minas Gerais, onde se diplomou como
bacharel em Direito, aos vinte anos. Em 1910, no Rio de Janeiro, Lima Júnior inicia a
sua carreira na justiça militar. Foi auditor do exército e, em 1935, transfere-se para a
Marinha como procurador do seu tribunal, aposentando-se em 1944 na mesma função.
1
O presente artigo insere-se na pesquisa, ainda em andamento, intitulada: “Historiografia de Minas
Gerais - Augusto de Lima Júnior: História como discurso polêmico”, orientada pelo professor Dr.
Francisco Eduardo de Andrade/UFOP.
2
Graduanda do curso de História no Instituto de Ciências Humanas e Sociais- ICHS, da Universidade
Federal de Ouro Preto- UFOP.
3
“ ‘A análise de conteúdo é utilizada como um instrumento de diagnóstico, de modo a que se possam
levar a cabo inferências específicas ou interpretações causais sobre um dado aspecto da orientação
comportamental do locutor’ ”. Ver BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Editora 70.
4
Para os dados bibliográficos indicamos a leitura do texto de Luís Augusto de Lima, Augusto de Lima
Júnior e sua coleção de gravuras de Nossa Senhora presente em LIMA JÚNIOR, Augusto de. História de
Nossa Senhora em Minas Gerais: origens das principais invocações. –Belo Horizonte: Autêntica
Editora: Editora PUC Minas, 2008 - (coleção historiográfica de Minas Gerais. Série Alfarrábios,1) e
INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE MINAS GERAIS [IHGMG]. Biografia de Antônio
Augusto de Lima Júnior, Belo Horizonte, 31 de julho de 2004.
Durante o governo de Getúlio Vargas, o autor foi indicado para averiguar o paradeiro e
garantir a transferência dos restos mortais dos inconfidentes de 1789.
Augusto de Lima Júnior escrevia para artigos de jornais, sendo colaborador de
diversos periódicos cariocas (como A Gazeta de Notícias, A Noite, Jornal do Brasil,
Jornal do Comércio, Correio da Manhã). Ele também manteve presença ativa na
imprensa do seu estado, fundando o jornal o Diário da Manhã (1927), que, nas mãos de
outros proprietários, tornou-se o Estado de Minas. Ademais, Lima Júnior escreveu
artigos para alguns jornais portugueses5.
Historiador de ofício e não de formação, pode ser considerado um polígrafo, ou
seja, um homem de várias letras, em que sua escrita abarca diversos temas e estilos
literários. Segundo Sergio Miceli, em sua obra Intelectuais à brasileira, podemos
enquadrar Lima Júnior, principalmente na perspectiva de suas primeiras obras, como
um memorialista, pois
O grupo de memorialistas abrange, numa primeira leva, alguns
autores bissextos, não profissionais, cuja aura de escritores
‘malditos’
ou
‘difíceis’
lhes
garantem
uma
reputação
inatacável, de liquidez restrita ao próprio ambiente intelectual e
que se nutre dos juízos proferidos pelos seus pares, e mais uns
poucos polígrafos e políticos profissionais para os quais a
elaboração das memórias constitui o empreendimento máximo
em termos de carreira intelectual6
Portanto, a dupla face da trajetória do nosso autor, considerado historiador e
jornalista, é o que, a princípio, nos permitirá situar, e tentar compreender, a sua
narrativa historiográfica.
6
MICELI, Sergio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras,2001. p.84
Polêmica na escrita da História
Defendendo o estudo do passado com intuito de se abarcar a verdade histórica,
Augusto de lima Júnior, destaca-se, de modo geral, um ideário nacionalista republicano.
Tal verdade histórica transpassa por um caráter polêmico, que pode ser observado
constantemente em suas obras, levantando questões tradicionais, como por exemplo, a
existência do artista Aleijadinho7. Outro exemplo é contido na obra A Capitania das
Minas Gerais (Origens e Formação), em que Augusto de Lima Júnior nos chama a
atenção para um plágio ou uso sem referência de fonte, efetuado pelo musicólogo Kurt
Lange:
O eminente musicólogo Kurt Lange, teve as primeiras
informações sobre a existência de atividades musicais em
Minas, no século XVIII, lendo este o texto, na primeira edição
deste livro (Lisboa 1940)... Foi ainda neste livro, que ele extraiu
a informação sobre o número de padres em Vila Rica e Sabará.
Como tais informações não constam de nenhum outro autor de
História de Minas, não sei onde teria buscado a estatística, que
foi levantada por mim, em companhia do saudoso Monsenhor
João Castilho Barbosa. Não tenho merecido do eminente
musicólogo nenhuma referência, no resumo histórico que
prefaciou sua notável obra, toda ela haurida em ‘A Capitania
das Minas Gerais’, (Lisboa 1940) deixo aqui esta referência que
apenas implica no velho postulado do ‘o seu a seu dono’ 8
Observamos em seu discurso uma valorização das fontes na recuperação da
verdade histórica, criticando os demais autores que o fazem com descuido. Entretanto
percebemos uma dificuldade no próprio Lima Júnior em divulgá-las. Tal afirmação
pode ser exemplificada na obra História e Lendas, em que o intelectual almeja
demonstrar a utilização de fontes testamentárias, de cartas oficiais, relatos de viajantes e
cronistas locais para fundamentar seu argumento. Entretanto, não constatamos um
manejo criterioso dos documentos. Esse apontamento pode ser notado também em sua
7
LIMA JUNIOR, Augusto de. O Aleijadinho e a Arte Colonial, Rio de Janeiro 1942.
LIMA JUNIOR, Augusto de. A Capitania das Minas Gerais (Origens e Formação). 3º ed. Belo
Horizonte, MG: Edição do Instituto de História, Letras e Arte 1965. P. 157.
8
obra “Capitania das Minas Gerais (Origens e Formação)”, em que o autor não
especifica os documentos que fundamentam sua argumentação, apesar de ter a
preocupação de citá-los:
O Ouro saía da terra aos punhados, da areia dos
córregos, das barrancas, da raiz das árvores e das ervas, enfim,
era o espetáculo alucinante da fereza e da riqueza, da
esperança de fugir daquele inferno e da realidade trágica da
doença e do crime. Mas o ouro entorpecia o senso de análise e
o próprio instinto de conservação. O que se lê nos documentos
antigos fantásticos9
Esse fazer histórico remete-nos a uma inferência. Uma possível relação deste
autor com o historicismo que, segundo Martins
[...]
enfatiza
justamente
essa
possibilidade.
Explicar
racionalmente com base em fontes (cuja qualidade referencial é
criticamente controlada) é uma possibilidade efetiva, que não
necessita da especulação metafísica (mesmo se venha a servirse dela) nem se deixa aprisionar pela miopia da observação
trivial das aparências10
Tais palavras levantam-nos uma questão no entendimento do campo
historiográfico de Lima Júnior: essas “Leis Fatais” que precedem nossa evolução são
frutos da história ou de Deus?
9
LIMA JUNIOR, Augusto de. A Capitania das Minas Gerais (Origens e Formação). 3º ed. Belo
Horizonte, MG: Edição do Instituto de História, Letras e Arte 1965. p. 43
10
MARTINS, Estevão C. Rezende. Historicismo: o últil e o desagradável. In: LOPES DE ARAUJO
[et.al.] Org. A Dinâmica do Historicismo: revisitando a historiografia moderna. Argvmentvm, Belo
Horizonte, 2008. p. 21
A transcendência nas Minas
Pertencente a um grupo de intelectuais mineiros que se caracteriza, de certa
forma, por fatores tradicionais e conservadores, o autor de História e Lendas, tem sua fé
como preconceitos, na concepção de Gadamer11, para refletir sobre o passado histórico
de Minas Gerais.
A exemplo deste grupo intelectual tem-se também Oiliam José, que em sua obra
Historiografia Mineira, de 1959, aponta sua concepção “Teocrático-dualista”, similar a
de Santo Agostinho.
pois estamos cada vez mais certos de que Deus é onipotência e,
como tal, a Ele pertence o Governo Supremo do universo.
Admitimos mais ainda que o Criador respeita a liberdade
humana [...]12
E que
o meio histórico pode condicionar os fenômenos históricos, mas
não determiná-los. O homem e a Providência [divina] são
responsáveis pela História. Aquele, quando enriquecido pelo
destemor e predestinado por essa, muda o curso das
civilizações!13.
Tal teoria é elucidada diversas vezes nas obras de Augusto de Lima Júnior,
especialmente em Histórias e Lendas, em que os casos nas terras mineiras são sempre
impregnados por uma transcendência, relatando a presença ou ausência divina. Como
por exemplo, a aparição de Nossa Senhora da Piedade à menina muda:
Quando quis Nossa Senhora da Piedade receber o culto e
cumular de benefícios as rudes populações dos arraiais
11
Tal conceito pode ser entendido pelo acúmulo de experiências que promoverá uma pré-compreensão de
um processo histórico, pois “a partir da opinião prévia que lhe subjaz[...]assim a apropriação das próprias
opiniões previas e preconceitos [...] [cria-se] a possibilidade de confrontar [a realidade] com as próprias
opiniões prévias”. GADAMER, Hans-Georg. A historicidade da compreensão como princípio
hermenêutico. In: Verdade e Método. Petrópolis: Vozes. p.403 e 405.
12
Lima Junior, Augusto. “Historia e Lendas” Rio, 1935 p.24
13
Idem p.150.
mineiradores que cobriam em 1710 as cercanias da serra do
Sabarabuçú, designou, para aquinhoar com sua graça, uma
infeliz menina, muda de nascença, filha de uma família humilde
e virtuosa que habitavam um sitio ao pé da serra.14
Após tal experiência espiritual, a muda foi miraculosamente curada. Outra
história de caráter místico é a vida da Irmã Germana, que sofrera anos a fio os suplícios
da crucificação, “como expiadora para que com seus merecimentos fossem poupados á
terra mineira, muitos castigos.”15
Interessante notar que nos capítulos “Proeza do Diabo em Minas Gerais” e
“Assombramentos em Ouro Preto” a tessitura da escrita de Lima Junior é de teor
literário, em que os mitos são explicitados de maneira curiosa, visto que a credibilidade
delas transcorre apenas da crença do leitor, já que o autor se resguarda a julgar os fatos.
Não sei se meus leitores acreditam em assombração. Não
desejando ferir susceptibilidades, declaro não ter idéas
definitivas assentadas sobre a controvertida questão das almas
penadas[...].16
Desta forma, ele não deixa de dar crédito aos relatos orais de caráter místico que
povoam o imaginário17 das Minas desde os primórdios. O que se observa na passagem
sobre a origem e veracidade da habitação do Diabo em terras brasileiras:
Não afirmo com certeza não só pela ausencia de documentos
sobre isso, nos arquivos oficiais, como também em respeito á
opinião bastante enraizada de que o Sujo é autochtone em
14
idem .p.11.
Idem, p.22.
16
Idem,p.147
17
“Pois o imaginário é esse motor de ação do homem ao longo de sua existência, é esse agente de
atribuição de significados à realidade, é o elemento responsável pelas criações humanas, resultem elas
em obras exeqüíveis e concretas ou se atenham à esfera do pensamento ou às utopias que não
realizaram, mas que um dia foram concebidas”. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cidades visíveis, cidades
sensíveis, cidades imaginárias. Rev. Bras. Hist. vol.27 nº.53. São Paulo, Jan./June 2007. Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882007000100002&lng=en&nrm=iso
Acessado no dia 21 de março de 2009.
15
terras brasileiras, ha muitos séculos, pessoa da intimidade dos
Pajés de nossos índios.18
O mito, em História e Lendas, tem como função relatar “um acontecimento
ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do ‘princípio’19,. Por isso não há uma
preocupação em situar temporalmente as lendas que Lima Junior relata sobre a gênese
de determinado aspecto.
Abordagens raciais
O caráter tradicional desta elite intelectual20 que nos referimos, pode ser
compreendido também na posição historiográfica sobre o processo de mestiçagem
ocorrido em terras brasileiras, especialmente em Minas Gerais. Acreditavam que a raça
negra e a indígena eram verdadeiros obstáculos para o avanço do Brasil. Com o objetivo
de melhorar a imagem da nação, os intelectuais refletiram sobre estratégias que
“clareassem” a pátria e sua História. Como táticas estavam a imigração européia,
regulamentação de casamentos, e uma busca na história que legitimasse a superioridade
do branco.
No trecho abaixo extraído da obra A Capitania das Minas Gerais (Origens e
Formação), Augusto de Lima Júnior evidencia sua concepção sobre a predominância da
raça branca sobre a negra e a indígena.
Nenhum ou quase nenhum resquício de influência africana ou
indígena se manteve na linguagem, nos costumes ou nas lendas
mineiras, pelo menos na região clássica e característica da
civilização do século XVIII. O que do africano se tinha
incorporado aos costumes do Norte do Brasil, e que teria vindo
com a gente da Bahia e Pernambuco, diluiu-se com a massa de
brancos portugueses que penetrou em Minas sem interrupção
durante quase um século. O filho do europeu com africana
nascia um europeu na língua, nos costumes, na religião, na
18
Lima Junior, Augusto. “Historia e Lendas” Rio, 1935. p.135.
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Editora Perspectiva, São Paulo, 1972. p.11
20
MICELI, Sergio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras,2001
19
mentalidade, apagando-se na primeira geração os traços
intelectuais da raça de Cam, que só perdurava no tipo
antropológico de transição 21.
A naturalização do conceito de raça também presente nos pensamentos vigentes
desse mesmo grupo de intelectuais pode ser notada no capítulo “O escravo africano nas
minas de ouro”, em que nosso autor ressalta os valores intrínsecos aos negros, “que é,
de modo geral, inteligente, industrioso e dotado de uma afetividade acentuada [...]”22 e
que “além do mais, possuem um alto senso de honestidade.”23
Entretanto, não podemos desvalorizar a importância historiográfica de seus
estudos, cometendo críticas simplistas, visto que isso seria um pecado historiográfico, o
afamado anacronismo. E que tais interpretações foram fundamentais para as
perspectivas historiográficas posteriores.
Considerações finais
Diante do exposto podemos entender a face polêmica do historiador em que há
uma pretensa vontade de elevar e enaltecer as ‘valorosas’ terras mineiras. Autores
tradicionais como Latif24, irão comungar desta característica de exaltação às Minas
Gerais como ponto fundamental na construção da História do Brasil.
Concluímos que este caráter polêmico na obra “História e Lendas” caracterizase pela sua metodologia de construção da narrativa histórica, que por uma ótica atual, se
faz notar uma permeabilidade entre a “Ciência histórica” e o “Mito”. Inserindo-se
assim, em um peculiar grupo de intelectuais que buscavam uma identidade através dos
tempos imemoriais.
21
Lima Junior, Augusto de. A Capitania das Minas Gerais (Origens e Formação). 3º ed. Belo
Horizonte, MG: Edição do Instituto de História, Letras e Arte 1965. p. 123.
22
Lima Junior, Augusto de. “Historia e Lendas” Rio, 1935. p.161.
23
Idem, p.164.
24
LATIF, Miran de Barros. As Minas Gerais. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editôra, 3ª edição,1960
Bibliografia:
BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Editora 70.
LATIF, Miran de Barros. As Minas Gerais. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editôra, 3ª
edição,1960.
LIMA JUNIOR, Augusto de. A Capitania das Minas Gerais (Origens e Formação). 3º
ed. Belo Horizonte, MG: Edição do Instituto de História, Letras e Arte 1965.
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Editora Perspectiva, São Paulo, 1972. p.11
MICELI, Sergio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras,2001
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cidades visíveis, cidades sensíveis, cidades imaginárias.
Rev.
Bras.
Hist. vol.27 nº.53. São
Paulo, Jan./June 2007.
Disponível
em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010201882007000100002&lng=en&nrm=iso Acessado no dia 21 de março de 2009.
GADAMER,
Hans-Georg.
A
historicidade
da
compreensão
como
princípio
hermenêutico. In: Verdade e Método. Petrópolis: Vozes.
MARTINS, Estevão C. Rezende. Historicismo: o últil e o desagradável. In: LOPES DE
ARAUJO [et.al.] Org. A Dinâmica do Historicismo: revisitando a historiografia
moderna. Argvmentvm, Belo Horizonte, 2008.
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