Atualização terapêutica O objetivo desta seção é trazer ao leitor, de maneira crítica e prática, uma análise das opções terapêuticas disponíveis e dos mais recentes avanços terapêuticos em determinado campo. As atualizações serão elaboradas por especialistas nas diversas áreas da saúde que terão a oportunidade de compartilhar com o leitor sua experiência aliada às melhores evidências científicas. Marcia Regina Pinho Makdisse Editora da seção Pé diabético: tratamento ortopédico interativo Fábio Batista* * Doutor; Médico-assistente da Disciplina de Ortopedia e Traumatologia da Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, São Paulo (SP), Brasil. O pé diabético, principal causa de amputação do membro inferior (risco de 15 a 40 vezes maior), mais do que uma complicação do diabetes, deve ser considerado uma situação clínica bastante complexa, que pode acometer os pés e tornozelos de indivíduos portadores de diabetes mellitus. Pode reunir características clínicas variadas, tais como alterações da sensibilidade dos pés, presença de feridas complexas, deformidades, limitação da mobilidade articular, infecções e amputações, entre outras. A abordagem deve ser especializada e contemplar um modelo de atenção integral (educação, qualificação do risco, investigação adequada, tratamento apropriado das feridas, cirurgia especializada, aparelhamento correto e reabilitação global), objetivando a prevenção e a restauração funcional da extremidade(1). Dados epidemiológicos demonstram que o pé diabético é responsável pela principal causa de internação do portador de diabetes. A Organização Mundial de Saúde (OMS) reconhece que a saúde pública se depara com um sério problema em relação ao diabetes. A previsão para o ano de 2025 é de mais de 350 milhões de portadores da doença. Destes, pelo menos 25% terão algum tipo de comprometimento significativo nos pés. Atualmente, estima-se que ocorram, mundialmente, duas amputações por minuto à custa do pé diabético, sendo que 85% dessas são precedidas por úlceras(1-2). A tendência atual, em virtude da abordagem e resultados mais eficientes, vem apontando para a neces- sidade da inserção de todos os pacientes portadores de diabetes em centros integrados por multiprofissionais capacitados no manejo especializado do pé diabético. Estatisticamente, vale a pena ressaltar que 50% dos portadores de diabetes desconhecem que têm esse diagnóstico. Portanto, é de suma importância a busca desses pacientes, que desconhecem totalmente serem portadores da complicação, por meio de avaliação por profissionais especializados. Aqueles que já conhecem o diagnóstico devem ser categorizados em grupos de risco. Existem pacientes que apresentam um cenário podal de forma mais branda, no qual a sensibilidade ainda está intacta, o estado vascular está preservado e as deformidades não são tão intensas. Em contra partida, a identificação de cenários mais complexos, como um pé acometido por ausência total da sensibilidade, deformidades ósteo-articulares marcantes, antecedentes de úlceras ou amputação, artropatia de Charcot, ou mesmo o comprometimento circulatório periférico, levam o paciente a um pé de risco máximo, tendo a extremidade ameaçada caso não seja manejado de forma integral e adequada(3-4). Conceitos importantes: mal perfurante plantar Mal perfurante plantar é uma complicação podal caracterizada por uma úlcera profunda e crônica, gerada em decorrência da alteração da sensibilidade ou perda da sensibilidade protetora dos pés (neuropatia periférica) associada ao trauma repetitivo. Isso leva a uma ruptura dos tecidos moles e à formação de uma lesão característica que pode ou não ter comunicação com a cavidade ósteo-articular. O risco de desenvolvimento de úlcera no pé diabético em alguma época da vida é einstein: Educ Contin Saúde. 2009;7(2 Pt 2): 97-100 98 de 15%, e uma em cada cinco úlceras é resultado de falhas de atendimento. O manejo deve ser especializado, feito por uma equipe multidisciplinar treinada, com cirurgião de tornozelo e pé familiarizado com o contexto de prevenção e tratamento do pé diabético, endocrinologistas, nutricionistas, enfermeiras e educadores em diabetes que visem não apenas ao manejo do mal perfurante plantar, mas ao equilíbrio total das condições clínicas coadjuvantes encontradas no indivíduo portador de diabetes(2). Artropatia de Charcot A artropatia de Charcot é considerada uma complicação bastante grave no portador de diabetes. Os típicos pacientes portadores da artropatia de Charcot são indivíduos que se apresentam com diabetes de longa duração, sobrepeso, pés insensíveis, entre a quinta e a sétima décadas de vida e que, comumente, demonstram deformidades graves e tentativas desorganizadas de remodelação óssea, associadas ou não a úlceras ou infecções (risco elevado de ablação da extremidade). Segundo a nossa recomendação, que condiz com a recomendação de grandes centros mundiais especializados no tratamento do pé diabético, na eventual hipótese de artropatia de Charcot, o paciente deve ser encaminhado a um profissional especializado, sem demora, para que o tratamento efetivo seja instituído de forma integral e adequada(3,5). Tratamento Academicamente, os pés diabéticos são divididos em neuropáticos, angiopáticos e mistos predominantemente neuropáticos ou predominantemente angiopáticos. Os pés neuropáticos correspondem a 65 a 80% dos casos. Assim, a estratégia terapêutica ortopédica é apoiada em cinco grandes grupos conforme suas características clínicas sindrômicas: pé diabético com ferida, pé diabético sem ferida, pé de Charcot, pé diabético séptico e condições especiais (amputados parciais com deformidade de coto e úlcera, fraturas do pé e tornozelo de diabéticos, indivíduos em estágio final de doença renal, transplantados, extremidades angiopáticas não revascularizáveis e não passíveis de intervenção endovascular associadas a úlcera, deformidade e pobre qualidade funcional entre outras). Pé diabético com ferida: os cuidados locais, de forma bastante sucinta, requerem o manejo da lesão com o desbridamento dos tecidos desvitalizados, o tratamento avançado de meio úmido da ferida, por meio de soluções de cobertura (curativos primários) que interajam com a personalidade da ferida em cada momento de seu estágio evolutivo cicatricial (conceieinstein: Educ Contin Saúde. 2009;7(2 Pt 2): 97-100 to TIME: tipo de tecido, infecção/exsudato, umidade, e perilesão), instrumentos ortésicos que facilitem a descarga da lesão e que não permitam que o portador do mal perfurante plantar pise literalmente na ferida (gesso de contato total, órteses bivalvadas sob molde, sandálias de cicatrização) e, eventualmente, a cirurgia especializada reconstrutiva ou profilática que deve ser feita, com o intuito de proporcionar o fechamento de uma lesão complicada com infecção profunda, ou com o intuito de proporcionar que a lesão crônica, uma vez cicatrizada, não volte a ocorrer, melhorando substancialmente a biomecânica da marcha, a distribuição da pressão plantar e a qualidade de vida dos pacientes (Figura 1). Considerar biópsia óssea das lesões crônicas profundas e que não evoluem para a cicatrização, bem como biópsia das lesões de partes moles com apresentação clínica incomum e que também não evoluem para cicatrização, apesar do controle de todas as variáveis clínicas(2,4). Pé diabético sem ferida: esse cenário talvez concentre o maior número de equívocos identificados no manejo do pé diabético, já que inúmeras vezes nos deparamos com pés não funcionais sendo orientados a programas fisioterápicos ou ao uso de palmilhas e calçados ditos para diabéticos. O pé diabético sem ferida precisa ser minuciosamente investigado e avaliado, buscando-se correlacionar os achados clínicos típicos desse contexto a outras condições biomecânicas, sejam elas do aparelho locomotor apendicular ou axial, que possam influenciar nas alterações funcionais precursoras de novas lesões, no aumento do gasto energético e nos prejuízos com a qualidade da marcha. Assim, após a categorização apropriada do risco, para os pés sem ferida e funcionais, fica sugerido pelo médico assistente o uso de órteses e calçados apropriados, sendo que em alguns casos, há necessidade do aparelhamento individualizado e ajustado. Para os pés não funcionais, a cirurgia do pé, nas mãos de profissionais treinados para isso, passa a ser a opção conservadora e mais adequada, visando à restauração funcional, à diminuição da recorrência de lesões, à diminuição dos índices de amputação e à possibilidade do melhor aparelhamento ortésico possível (Figura 2)(1-2,4). Artropatia de Charcot: o tratamento deve ser individualizado e pode reunir técnicas conservadoras, seja por meio de ortetização apropriada, controle metabólico do diabetes, uso de neuro-imunomoduladores e bifosfonatos sistêmicos, ao manejo cirúrgico oportuno e especializado por meio de reconstrução ou realinhamento articular, utilizando-se placas e parafusos, hastes intramedulares ou fixadores externos. O período pós-operatório é bastante criterioso, frequentemente utilizando-se gesso de contato total e órteses tipo Clam Shell, e exige do paciente, dos familiares e do 99 Figura 2. Reconstrução cirúrgica em pé neuropático não funcional Figura 1. Tratamento cirúrgico em úlcera crônica complicada com osteomielite crônica em pé de Charcot cirurgião grande cumplicidade, disciplina e interatividade. O objetivo ao final do manejo é a obtenção de um pé plantígrado, estável, funcional, livre de lesões e que possa ser aparelhado, sob molde, de forma satisfatória(2,4-5). Pé diabético séptico: a infecção no pé diabético deve ser considerada uma situação de urgência ou mesmo de emergência. O manejo intra-hospitalar muitas vezes se faz necessário. O ponto crucial no tratamento deve ser o desbridamento cirúrgico agressivo de tecidos desvitalizados. A tomada de material profundo para cultivo, administração de antibioticoterapia de amplo espectro (empírico inicialmente e, posteriormente, ajustado à cultura e antibiograma), eventual técnica coadjuvante no processo de cicatrização (evidência clínica e científica comprovada para esse cenário) que acelere a formação do tecido de granulação, proporcionando, com mais rapidez, a cobertura de tecidos nobres sem que eles se desvitalizem, além de serem um bom suporte clínico, frequentemente complementam a ação terapêutica(2,6). Condições especiais: nesse contexto, várias combinações de procedimentos se fazem necessários. Desde o rebalanceamento miotendíneo de cotos de amputação parcial não fisiológicos e não anatômicos, passan- Figura 3. Tratamento cirúrgico minimamente invasivo em paciente de alto risco (diabético, transplantado, pés neuro-angiopáticos e tabagista) portador de lesão plantar pré-ulcerativa do antepé do por cirurgias percutâneas e minimamente invasivas para indivíduos considerados de alto risco (Figura 3), osteossíntese rígida e pós-operatório diferenciado nas fraturas do diabético, manejo orto-protésico repleto de detalhamento técnico-científico, sempre prescrito e monitorado pelo médico assistente e, eventualmente, em situações especiais, amputação primária dita fisiológica com coto anatômico-funcional, além da inserção do indivíduo em um programa de reabilitação global para o diabético(2,4). Considerações finais Um verdadeiro “Programa de prevenção e tratamento do pé diabético” não se restringe à troca de curativos, ao corte adequado das unhas e à sugestão do uso de calçados, tampouco é contemplado por opções terapêuticas isoladas e ditas milagrosas. einstein: Educ Contin Saúde. 2009;7(2 Pt 2): 97-100 100 Obrigatoriamente, deve ser um programa extremamente abrangente e complexo, e que envolva uma equipe efetivamente treinada, integrada e literalmente comprometida com a saúde e qualidade de vida do indivíduo e da sociedade. Referências 1. Batista F, Pinzur MS. Disease knowledge in patients attending a diabetic foot clinic. Foot & Ankle Int. 2005;26(1):38-41. einstein: Educ Contin Saúde. 2009;7(2 Pt 2): 97-100 2. Richardson EG. Pé Diabético. In: Crenshaw AH, Daugherty K, editors. Cirurgia ortopédica de Campbell. 10 ed. São Paulo: Manole; 2006. p. 4111-27. 3. Batista F. Pie de Charcot. In: Martinez-Jesus F, editor. Pie diabético: atención integral. 3 ed. Veracruz: McGraw-Hill; In press 2009. 4. Batista F, Magalhães AAC, Nery C, Monteiro AC, Kobata S. Cirurgia profilática no pé diabético. Tobillo y Pie. 2008;1(1):16-9. 5. Pinzur MS, Sostak J. Surgical stabilization of nonplantigrade Charcot arthropathy of the midfoot. Am J Orthop. 2007;36(7):361-5. 6. Boykin JV. Wound environment: future trends in clinical wound healing. Symposium on advanced wound care and medical research forum on wound repair. Main Conference Syllabus. 2006; C16.