Entre os dois, meu coração balança José Luiz Foureaux de Souza Júnior1 Resenha de: EIRAS, Pedro. Bach. Porto: Assírio e Alvim, 2014. 157 páginas. Ler um livro pode ser abandonar o interesse por pessoas comuns, pelo mundo comum, para voos mais amplos noutro mundo. A janela de uma casa, que se abre para uma rua, isola o leitor da realidade da rua à qual se abre. De certa forma, essa contradição faz com que a objetividade das coisas seja pulverizada pela leitura. No momento da leitura, o leitor fica suspenso no ponto ideal de outra dimensão, além do tempo e do espaço. Este intervalo abre espaço para dois elementos: o leitor e o texto. O livro é o bilhete da viagem. Este adquire vida própria, mas está nas mãos do autor, ainda que muito mais presente nas mãos do leitor. Se com o papel de que se constituem as páginas de um livro é assim, o mesmo se pode pensar nas mãos do condutor de uma orquestra. O maestro desempenha o mesmo papel. O leitor é coautor: dá sentido às palavras. O que um leitor lê é legítimo porque é ele que “faz” o livro, no processo de leitura. Com a audição musical se dá o mesmo, mutatis mutandis. Li sobre Bach numa mensagem de Gerson Luiz Roani que orientava a ler o livro ao som das peças musicais nele referidas nele. Li o livro mesmo sem a música. A impressão foi análoga.De fato, a “montagem” do livro obedece a ordem inesperada,o que faz da experiência de leitura desse “romance”, um exercício de inventividade e observação da acuidade e do cuidado com o detalhe. O que chamou minha atenção foi a observação: “As páginas 129-134 foram propositadamente deixadas em branco”. Fui lá e constatei o fato. Voltei ao início e comecei a ler. É risível a reduçãodo conceito de romance a uma de suas funções: contar uma história e delinear personagens ainda que num contexto ficcional transgressível.Penso que Bach pode ser tomado como exemplo desta transgressão.A narrativa de Pedro Eiras começa com uma carta que dá as coordenadas da narrativa. Num relato subjetivo que mistura lamento e solicitação, aparece uma série de comentários e argumentações. Os 1 Professor Associado IV, de Literatura Luso-Brasileira, na Universidade Federal de Outro Preto. Todas as Musas ISSN 2175 - 1277 Ano 07 Número 01 Jun - Dez 2015 demais relatos também guardam uma subjetividade associada ao nome que identifica cada capítulo. De tal modo que, ao chegar às páginas em branco, a impressão que se tem é a de que a “história” acabou. Bach tem catorze capítulos. O nome do músico resulta em 14: B é 2; A é 1; C é 3; H é 8. O compositor criou vários temas com 14 notas. Bach fez de seu nome uma “assinatura musical”: as letras de seu nome correspondem à identificação de notas musicais. Como se vê, este tipo de detalhe composicional faz parte de um mosaico de elementos que a maior parte dos leitores não capta. Esse desconhecimento não impede a fruição da obra de Pedro Eiras. Doze capítulos têm por título um nome. O décimo segundo é identificado por uma afirmativa em alemão – “Ichhabegenung” – e o último, um numeral indicativo de um ano. “Ichhabegenung” é o nome de uma das cantatas e Bach. Traduzindo livremente: “Eu tenho o suficiente”. Este é o título do capítulo com as páginas em branco. Quem temo suficiente? Suficiente para quê? De quê? O autorparece querer convencer seu leitor do seu interesse em escrever sobre música. Isso deve acontecer quando se lê as páginas de Bach ao som da música de Bach: a razão das páginas em branco pode ser falar dessa impossibilidade. O último capítulo do livro: “2012”. Não é o ano de nascimento do autor. Qual a significação deste ano? Não é o ano de lançamento do livro. O que terá acontecido em 2012?O capítulo tem míseras três páginas. Por que será?Neste capítulo repete-se, por quatro, vezes a expressão “Machedich, meinHerze, rein”. A tradução não é fácil: “Levantate bravamente, meu coração. Não tenho certeza de estar certo. Este é mais um dos inúmeros “detalhes” instigantes com que o livro de Pedro Eiras presenteia o seu leitor. Há, em Bach, Um jogo entre perspectivas narrativas que o autor do livro oferece ao leitor. Em cada capítulo, uma atividade humana parece ficar em destaque: Cinema, Música, Filosofia, Memória, História. Certa confusão se estabelece, o que só traz benefícios para a leitura, dado que explicita a acuidade narratológica do autor ao construir um relato multifacetado. Bach é um livro sobre Bach, escrito em catorze tentativas de aproximação à sua música. Uma carta de Anna Magdalena, uma cena de montagem de um filme, as conversas de técnicos de som em Nova Iorque, os pensamentos de Etty a caminho do campo de concentração, o silêncio. Intérpretes, biógrafos, romancistas, ouvintes, regra geral, são sujeitos que jamais se viram ou se encontraram, a não ser pela ficção de Pedro Eiras. À parte isso, percebe-se, indubitavelmente, a presença da música. Em séculos diferentes, ela aproxima aqueles que jamais ouviram falar uns dos outros. 184 Todas as Musas ISSN 2175 - 1277 Ano 07 Número 01 Jun - Dez 2015 A figura de Anna Magdalena se impõe. O autor afirma em entrevista que se viu obrigado a começar o romance por ela. Uma espécie de vaticínio que mostra o vazio da casa e a ameaça do esquecimento, da miséria: cenário de ruína. O leitor se pergunta o que é ruína. Da leitura, fica a percepção de outra dúvida: o que sobra quando tudo se esboroa? Pedro Eiras não é original. Ele reconhece que escreve apoiado numa rede de textos alheios. A sequência– Anna Magdalena, personagem de Meynell que escreveu um livro adaptado para o cinema pelo casal Straub, filme em que Bach foi interpretado por Gustav Leonhardt – é interrompida. O leitor se sente um tanto perdido.A linguagem flui de maneira suave como os sons da música de Bach. A figura do músico alemão impera tal como a figura masculina nas cantigas de amigo – pela ausência mais absoluta. Bach não é personagem de Bach. 185