A IMAGINAÇÃO GROTESCA NA PROSA DE FIALHO DE ALMEIDA: UMA “DIABÓLICA ÓPTICA DEFORMANTE” Lilian Cristina da Silva Vieira Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa). Orientadora: Professora Doutora Luci Ruas Pereira. Rio de Janeiro agosto 2008 1 A imaginação grotesca na prosa Fialho de Almeida: uma “diabólica óptica deformante” Lilian Cristina da Silva Vieira. Orientadora: Professora Doutora Luci Ruas Pereira. Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa). Examinada por: ____________________________________________________________ Professora Doutora Luci Ruas Pereira (UFRJ) ____________________________________________________________ Professora Doutora Regina Silva Michelli (UERJ, UNISUAM). ____________________________________________________________ Professora Doutora Mônica do Nascimento Figueiredo (UFRJ) ____________________________________________________________ Professor Doutor Jorge Valentim (UFSCar), Suplente ____________________________________________________________ Professor Doutor Jorge Fernandes da Silveira (UFRJ), Suplente Rio de Janeiro agosto 2008 2 OFEREÇO E DEDICO A Edmundo Ferreira Maia, Maria Virgínia Conceição da Silva e Joaquim Laureano da Silva (em memória), meus queridos avós, lembrados com saudade, e a Almezinda Mendes Maia, avó sempre presente em minha vida, e da mesma forma querida. Aos meus pais, Onofre Laureano da Silva e Cecília das Graças da Silva, pelo carinho, dedicação, compreensão, acolhimento e, principalmente, pela amizade. Ao meu irmão, Cristiano da Silva, pelos desafios propostos, carinho e amor. A Luiz Fernando Lima Vieira, esposo dedicado, amigo e companheiro, cuja presença foi fundamental em meus muitos momentos de angústia perante uma página em branco – muito obrigada. A todos os meus amigos queridos, em especial Ana Carla, Aline, Michele, Larissa e Thaís, por compartilharmos juntos os muitos momentos de aflição, pelo empréstimo de material e ajuda com a língua estrangeira. 3 AGRADEÇO A Deus, pela vida com saúde, oportunidade de passar por essa experiência acadêmica, aprendizagem e chance de conhecer pessoas maravilhosas das quais jamais esquecerei. À minha orientadora Luci Ruas Pereira, pela paciência, dedicação, carinho e por me entusiasmar em muitos momentos de cansaço, sempre acreditando em minha dedicação aos estudos. À Regina Michelle, eterna mestra, amiga dedicada, a quem devo meu amor pela Literatura Portuguesa, por ela apresentada, todo o meu carinho e admiração. À Mônica do Nascimento Figueiredo, professora querida e entusiasmada, pelas aulas maravilhosas, críticas precisas e sempre pertinentes. À Angela Beatriz de Carvalho Faria, pela disponibilidade e acessibilidade, pelo carinho, atenção e pela leitura atenta e entusiasmada de meus escritos. Aos professores, Clécio Quesado, Teresa Cristina Cerdeira e André Bueno, todo o meu carinho e admiração. 4 “Fialho (...) transformou tudo, engrandeceu tudo, riu-se de tudo. As descrições perderam a proporção, as figuras a realidade, transformadas em figuras de dor ou de grotesco; a própria cidade ressurgiu a uma tinta lívida de antemanhã, com a casaria a escorrer vício e aspectos tétricos”. (Raul Brandão, Memórias, vol I). “Já que não podemos extrair beleza da vida, busquemos ao menos extrair beleza de não poder extrair beleza da vida”. (Fernando Pessoa/ Bernardo Soares, Livro do Desassossego). "Devo à paisagem as poucas alegrias que tive no mundo - os homens só me deram tristezas. Ou eu nunca os entendi, ou eles nunca me entenderam". (Miguel Torga, Diário II). 5 RESUMO VIEIRA, Lilian Cristina da Silva. A imaginação grotesca na prosa de Fialho de Almeida: uma “diabólica óptica deformante”. UFRJ, Faculdade de Letras, 2008. 118 fls. Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa. Nesta dissertação de Mestrado estuda-se a manifestação do grotesco na prosa de Fialho de Almeida, escritor português do final do século XIX e da primeira década do século XX. Primeiramente, observamos as particularidades de sua escrita como, por exemplo, o estilo e os assuntos que ganharam destaque em sua narrativa; observamos também o estatuto socialmente marginal da escrita e do autor, a sua vinculação/assimilação ao status de “vagabundo boêmio”, bem como a proximidade do conceito de dândi, para caracterizar o perfil do autor. A partir dessa observação, coloca-se em pauta o enquadramento do autor em algumas correntes literárias presentes nesse final de século, desvinculando-o da corrente literária Naturalista, com que tantas vezes foi identificado, mesmo impropriamente, uma vez que se distancia da razão, patente quando ressalta o universo imaginativo do grotesco; aproximamos o autor da corrente literária Decadentista, devido à crença no artificial, à consciência da degenerescência humana (psíquica), ao niilismo, entre outros fatores, estreitamento que se faz também no tocante ao universo grotesco, devido à expressão fantasmagórica e à apresentação de personagens decadentes e bizarros. Por fim, mostramos os elementos do grotesco na prosa fialhiana, revelamos as de-formações, as anormalidades e as distorções da imaginação “diabólica” desse escritor. 6 ABSTRACT VIEIRA, Lilian Cristina da Silva. A imaginação grotesca na prosa de Fialho de Almeida: uma “diabólica óptica deformante”. UFRJ, Faculdade de Letras, 2008. 118 fls. Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa. In this Master thesis it is studies the grotesque’s manifestation in the prose of Fialho de Almeida, a portuguese writer of the final XIXth century and the 1st decade of the XXth century. First of all, we can observe the details in his writing such as the style and the subjects emphasized in his narrative; also the author’s bad socially statute and his handwriting, his assimilation as “vagabundo boêmio”, as well as the near dandi’s concept to distinguish the author’s profile. From this observation, we can see the author’s fitting in some literaries chains present in the final of these century, disconnecting him of the Naturalist literary chain, for so many times he was identified, even inappropriate, because the distance of the reason, it is evident when appears the imaginative universe of the grotesque; approaching the author of the Decadentista literary chain to the artificial belief, to the degenerate human conscience (psychic), to the nihilism, among other factors, also narrowing the touching grotesque universe, due to the spooky expression and the extravagant and decadent characters presentation. At last, we could show the grotesque elements in Fialhiana’s prose, revealed the deformations, the anamalous and the distorts of the author’s diabolic imagination. 7 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO.................................................................................................9 2. FIALHO: UM ESCRITOR MARGINAL...........................................................19 2.1 - A originalidade do estilo fialhiano..............................................................21 2.2 - Vagabundagens soturnas.........................................................................41 3. O PORTUGAL FIALHIANO, POR ENTRE RUÍNAS.....................................53 3.1 - Estilos fialhinos..........................................................................................56 3.2 - Esteticismo e Decadentismo.....................................................................65 4. O OLHAR DIFERENTE DO GROTESCO....................................................75 4.1 - Um bestiário de alucinações doidas e disformes......................................77 4.2 - Mundos feitos nas incertezas de fundos movediços e perspectivas falsas................................................................................................................92 CONCLUSÃO..................................................................................................105 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................114 8 1. INTRODUÇÃO Fialho via os pormenores através de uma lente, e deturpava tudo, deformava tudo, dando génio à própria obscenidade. (Raul Brandão. Memórias. Vol. I). O autor de Húmus, admirador da obra de Fialho de Almeida, ao qual dedica boa parte de sua atenção no retrato-testemunho intitulado Memórias, evidencia, através das palavras acima citadas, a perspectiva “deformante” da prosa fialhiana. Se, deste modo, Raul Brandão procura afirmar a “destorcida” visão de Fialho, poderíamos afirmar que esse processo criativo vem nos apresentar um mundo novo e até mesmo absurdo. Fialho de Almeida, escritor da segunda metade do século XIX e da primeira década do século XX, munido de uma espécie de “tinta delirante”, que deturpa e deforma o real, transporta para uma página em branco um contexto de figuras macabras, em ambientes sinistros e assustadores. Desvelando-nos uma espécie de universo outro, misterioso e insondável, tomado de imagens de morte, larvas e sombras, que caracteriza tão bem o universo grotesco, é capaz de provocar no leitor o estranhamento, uma vez que ele se encontra distanciado da “normalidade”. Tudo está lá: o “feio”, a “aberração”, o “deformado” e o “marginal”. Assim, a “diabólica óptica deformante”, como afirma Fialho a respeito do processo de escrita do amigo Guerra Junqueiro (FD, p.53-63), 1 configura-se neste trabalho como metáfora do seu próprio processo de escrita, uma escrita que ultrapassa o limite do senso-comum e, progressivamente, vai cedendo 1 As citações ao texto literário de Figuras de destaque serão feitas através da abreviatura FD, seguida da numeração da página em arábicos. 9 lugar à alucinação e à loucura, envolto em uma espécie de vertigem que deturpa tudo, transforma tudo, e dissolve as fronteiras entre o real e o imaginário, dando lugar à incursão do grotesco, justamente “o que-não-deviaexistir”, uma vez que “perceber e revelar tal simultaneidade incompatível tem algo diabólico, pois destrói as ordenações e abre um abismo lá onde julgávamos caminhar com segurança” (KAYSER, 2003, p.61). De fato, Fialho persegue constantemente o novo, seja no conteúdo, seja na forma. Uma eterna busca pela originalidade, pelo inédito, por uma estética da expressão, que o fez muitas vezes farpear os escritores portugueses que enchiam suas páginas de estrangeirismos ou que, para ele, retratavam meramente a realidade, como simples imitação. Nem mesmo os jovens pintores escapavam de sua “língua afiada”, sobretudo aqueles que saíam de seu país para estudar no exterior e voltavam sem nada a acrescentar à pintura presente. Como notou Lucília Verdelho da Costa: “Fialho pede aos artistas: mais imaginação, mais talento, mais alma” (COSTA, 2004, p.136), o que certamente não faltou a sua própria obra. Mais do que desejar que sua obra avantajasse às outras obras em voga e sobressaísse depois como moda, Fialho procura mostrar a sua originalidade, mostrar ao público uma obra que possuísse a sua marca, a sua assinatura. Para cumprir tal projeto, traz para a prosa o grotesco e o marginal dentro de um mundo em que são socialmente periféricos ou, até mesmo, não existem, tornando-os simbolicamente centrais. Com efeito, Fialho busca a valorização da palavra, o fascínio do oculto, a desrealização do real que tem por objetivo transcender, através da arte, uma realidade considerada por ele como desumana. 10 O termo grotesco, segundo Mikhail Bakhtin em A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais (estudo de 1970) apareceu em fins do século XV quando escavações feitas em Roma trouxeram à luz um tipo de pintura ornamental até então desconhecida, que foi posteriormente chamada de grottesca, “derivado do substantivo italiano grotta (gruta)”. Essa descoberta surpreendeu os contemporâneos pela apresentação do “jogo insólito, fantástico e livre das formas vegetais, animais e humanas que se confundiam e transformavam entre si. Não se distinguiam as fronteiras claras e inertes que dividem esses ‘reinos naturais’ no quadro habitual do mundo: no grotesco, essas fronteiras são audaciosamente superadas”. Nesse jogo ornamental, sente-se uma liberdade e uma leveza na fantasia artística, que, aliás, é concebida como uma “alegre ousadia, quase risonha”. Na verdade, essa descoberta, que se apresentou como um fenômeno novo, posteriormente se mostrou apenas como um fragmento do imenso universo da imagem grotesca que, de acordo com Bakhtin, existiu em todas as etapas da Antigüidade e que continuou existindo na Idade Média e no Renascimento. Contudo, a aplicação do vocabulário realizou-se lentamente. A primeira tentativa de descrição e apreciação do grotesco foi a de Vasari, de quem esse fenômeno recebeu uma opinião desfavorável, tendo sido condenado a partir de posições clássicas, pois, baseando-se no julgamento de um arquiteto que estudou a arte da época de Augusto, chamado Vitrúvio, Vasari “condenava a nova moda ‘bárbara’ que consistia em ‘borrar’ as paredes com monstros em vez de pintar imagens claras do mundo dos objetos” (BAKHTIN, 1993, p.28-29). 11 Essa foi uma opinião que predominou por muito tempo; somente na segunda metade do século XVIII o grotesco mereceu uma análise e uma compreensão ampla e profunda. Ainda segundo Bakhtin, nos séculos XVII e XVIII, enquanto reinava o cânone clássico nos domínios da arte, o grotesco, “ligado à cultura cômica popular”, reduzia-se ao nível do cômico de baixa qualidade. Ainda na segunda metade do século XVII assiste-se a um processo de redução, falsificação e empobrecimento progressivos das formas dos ritos e espetáculos carnavalescos populares. (...) Ao perder seus laços vivos com a cultura popular da praça pública, ao tornar-se uma mera tradição literária, o grotesco degenera (Idem, p.30). De acordo com o autor russo, o grotesco sofreu várias mudanças de acordo com o passar do tempo. Na sua origem, o grotesco relaciona-se com os festejos, que têm indiscutivelmente uma relação com o tempo: “as festividades, em todas as suas fases históricas, ligaram-se a períodos de crise, de transtorno, na vida da natureza, da sociedade e do homem. A morte e a ressurreição, a alternância e a renovação constituíram sempre os aspectos marcantes da festa”, principalmente no que se refere às festas carnavalescas, em que se acentua uma espécie de liberação temporária das normas, das relações hierárquicas, tabus, regras e privilégios, já que no carnaval “o indivíduo parecia dotado de uma segunda vida que lhe permitia estabelecer relações novas, verdadeiramente humanas” (Idem, p.8; 9). O grotesco de Bakhtin refere-se às imagens ligadas ao baixo material e corporal, profundamente positiva, herança da cultura cômica popular, em que se observa um tipo peculiar de imagens. Tem por traço marcante o rebaixamento, que consiste em “aproximar da terra, entrar em comunhão com a terra concebida como um princípio de absorção e, ao mesmo tempo, de 12 nascimento: quando se degrada, amortalha e semeia-se simultaneamente, mata-se e dá-se a vida em seguida” (Idem, p.19). Exemplos de degradação são, por exemplo, os atos sexuais, a concepção, a gravidez, o parto, as necessidades naturais e outros que opõem às imagens clássicas do corpo humano perfeito, um corpo que não tem lugar dentro da “estética do belo”. Em alguns contos de Fialho pretendemos abordar traços do grotesco bakhtiniano, principalmente no que se refere ao rebaixamento do corpo. No conto “Os pobres”, da coletânea O país das uvas, procuramos verificar se o protagonista pode inserir-se no aspecto grotesco da disformidade. Em “A Ruiva”, do volume intitulado Contos, observaremos se algumas passagens do conto podem ser vistas como exemplo de representação de um fenômeno em estado de transformação, começo e fim, morte e nascimento (no quarto capítulo deste trabalho, pretendemos nos deter nessa questão). Ainda segundo Bakhtin, na época pré-romântica e nos princípios do Romantismo, assiste-se a uma ressurreição do grotesco, dotado então de um novo sentido: ”ele serve agora para expressar uma visão subjetiva e individual, muito distante da visão popular e carnalavesca dos séculos precedentes (embora conserve alguns de seus elementos)”. O grotesco foi um acontecimento notável na literatura mundial: Representou, em certo sentido, uma reação contra os cânones da época clássica e do século XVIII, responsáveis por tendências de uma seriedade unilateral e limitada: racionalismo sentencioso e estreito, autoritarismo do Estado e da lógica formal, aspiração ao perfeito, completo e unívoco, didatismo e utilitarismo dos filósofos iluministas, otimismo ingênuo e banal (Idem, p.33). Ao contrário do “grotesco realista”, relacionado com a cultura popular e caráter universal e público, o “grotesco romântico” é uma espécie de “carnaval 13 que o indivíduo representa na solidão, com a consciência aguda do seu isolamento” (Idem). Na prosa fialhiana também procuraremos observar essa nova acepção do grotesco. Na coletânea de artigos intitulada Os Gatos, bem como nas crônicas de Vida Irônica, 2 pretendemos mostrar como ocorrem representações desse tipo de grotesco, pois Fialho cria um universo em que “tudo o que é costumeiro, banal, habitual, reconhecido por todos, torna-se subitamente insensato, duvidoso, estranho e hostil ao homem”. Nesses textos buscaremos observar como se dá a incidência de um universo envolto em imagens noturnas que gera medo, mantendo-se em correspondência com o “grotesco romântico”, pois, como orienta Bakhtin, “as imagens (...) são geralmente a expressão do temor que inspira o mundo e procuram comunicar esse temor aos leitores (aterrorizá-los)” (Idem, p.34). O autor russo ainda observa o renascimento do grotesco no século XX: O grotesco, “que retoma as tradições do grotesco romântico e que atualmente se desenvolve sob a influência das diversas correntes existencialistas”; e o “grotesco realista”, “que retoma as tradições do realismo grotesco e da cultura popular, e às vezes também a influência direta das formas carnavalescas” (Idem, p.40). Quanto a essas duas acepções modernas do grotesco não pretendemos seguir nenhuma na observação do grotesco na obra fialhiana. Ao lado da proposta bakhtiniana, que, sem dúvida, fundamenta leituras que levamos a termo neste trabalho, as idéias do teórico germânico Wolfgang 2 O corpus dessa dissertação compõe-se de contos, artigos e crônicas. Na obra de Fialho os artigos, por exemplo, não são meramente jornalísticos, devido à sua linguagem e, também, ao modo como os temas se desenvolvem, aproximando-se do literário. Por isso, o autor, historicamente consagrado, aproxima-se tanto dos seus narradores. 14 Kayser, que se dedica com mais afinco ao grotesco moderno, sustentarão as propostas aqui apresentadas. A obra de Kayser O grotesco: configuração na pintura e na literatura 3, considerado o primeiro estudo consagrado à teoria do grotesco (BAKHTIN, 1993, p.40), oferece-nos uma definição do grotesco e sugere, conforme as manifestações ao longo do tempo, um fio condutor, um caminho para a compreensão, da história do termo, considerado por ele mesmo frouxo, porque, para cumprir tal percurso, seria necessário conhecer o grotesco em todos os campos da arte, desde o seu surgimento, que data do fim do século XV, até a época atual. Para Kayser, os elementos essenciais do grotesco são “a mescla do heterogêneo, a confusão, o fantástico e é possível achar nelas até mesmo algo como o estranhamento do mundo [além do] caráter insondável, abismal, o interveniente horror em face das ordens em fragmentação”. Além disso, o essencial do grotesco é “a desorientação, a sensação de abismo, diante de um mundo tornado absurdo, fantasticamente estranhado” (Idem, p.56; 75). Através desse prisma, pretendemos observar alguns contos de Fialho, em especial, o conto “O anão”, inserido em O país das uvas, cujo mundo onírico, absurdo para o leitor, aparece como verdadeira realidade. A princípio, o estranhamento ou o absurdo desse mundo fica patente somente na percepção do leitor, pois as noções que dominam nossa realidade estão anuladas nesse conto. Além disso, nos volumes da coletânea de artigos intitulada Os Gatos, pretendemos observar como, por vezes, o mundo do narrador de repente torna-se alheio à sua própria concepção de realidade. De acordo com o escritor germânico, o grotesco também “é o mundo alheado (tornado estranho)”. Este 3 Esse estudo é de 1957 e foi reeditado postumamente em 1960-1961. 15 conceito torna-se mais claro quando Kayser o compara ao mundo dos contos de fadas, pois se o mundo dos contos maravilhosos “quando visto de fora, poderia ser caracterizado como estranho e exótico” esta idéia não se sustenta, pois este “não é um mundo alheado”. Para pertencer ao mundo alheado “é preciso que aquilo que nos era conhecido e familiar se revele, de repente, estranho e sinistro”. Uma vez que é o nosso mundo que se transforma. “O repentino e a surpresa são partes essenciais do grotesco” (Idem, p.159). À medida que analisarmos a prosa fialhiana, a partir de um olhar sobre o universo grotesco, pretendemos nos deter também no estudo de Victor Hugo, Do grotesco e do sublime. Na verdade, trata-se de um prefácio que Victor Hugo redigiu para o Cromwell, em 1827. Nesse estudo o escritor francês observa que o grotesco, ainda que timidamente, na Antigüidade pré-clássica, a partir de personagens como tritões, harpias e sereias. Em seguida, o escritor atribui um sentido ainda mais amplo ao tipo de imagens grotescas, ao classificá-las como pertencentes a toda a literatura pós-antiga, a partir da Idade Média. Já “no pensamento dos Modernos, ao contrário, o grotesco tem um amplo papel, pois está em toda parte; de um lado cria o disforme e o horrível; do outro, o cômico e o bufo” (HUGO, 2004, p.30,31), ressaltando sua ligação com a comédia. Ao mesmo tempo em que acentua o papel essencial da deformidade no grotesco, observa-lhe a importância para a elevação do belo: O sublime sobre o sublime dificilmente produz um contraste, e tem-se necessidade de descansar de tudo, até do belo. Parece, ao contrário, que o grotesco é um tempo de parada, um termo de comparação, um ponto de partida, de onde nos elevamos para o belo com uma percepção mais fresca e mais excitada (Idem, p.33). 16 Para Victor Hugo, o grotesco surge em oposição ao “belo”, intencionalmente para ressaltá-lo. A escrita de Fialho, marcada pelo grotesco, parece querer dizer ao mundo que o seu tempo não é o da beleza ou do sublime, por mais que o desejasse. Em Fialho, não há a intenção de ressaltar o belo, aliás é bem o contrário, o que se vê é a ratificação de ausência do belo. E mesmo quando algum elemento do belo se apresenta, ele se degenera em imagens grotescas. Assim sendo, o escritor francês faz uma série de observações sobre o universo grotesco, a que pretendemos recorrer constantemente. Devemos destacar que para lograrmos êxito na interpretação do grotesco na prosa de Falho, não é possível descartar a necessidade de seguir um caminho que nos leve o estudo do que provoca a escrita do autor, pois pensar o grotesco no tempo de Fialho implica também a consideração do contexto histórico, artístico, político e social, mesmo porque, ao que parece, o universo do grotesco que se observará na obra fialhiana parece ter um objetivo a mais que o puramente artístico. Portanto, antes de entrarmos no objetivo essencial de nosso estudo, que é observar as ocorrências do universo grotesco e a importância que este assume na prosa fialhiana, pretendemos demorar-nos em alguns aspectos de biografia e de obra de Fialho, da sociedade de seu tempo, dos rótulos com que os críticos tentaram enclausurá-lo nas escolas literárias, entre outros fatores, a fim de possibilitar ao leitor o estudo da obra de um autor pouco conhecido do nosso público, mesmo de alguns que militam na literatura portuguesa, já que obra fialhiana é pouco divulgada. Em seqüência, pretendemos observar que a apresentação de imagens do fascinante universo 17 grotesco poderia opor-se à visão positivista da razão, do progresso e da ciência. Para cumprir tal objetivo partimos do estudo de Álvaro J. da Costa Pimpão, Fialho – introdução ao estudo da sua estética, que, para além da excelente apresentação da vida e obra de Fialho, é ainda responsável por alguns dos prefácios que apresentam a obra do autor de A cidade do vício. Não falta a este trabalho o estudo de Jacinto do Prado Coelho, “Fialho e as correntes do seu tempo”. António Cândido Franco, O Essencial sobre Fialho de Almeida, e Óscar Lopes, Entre Fialho e Nemésio, nos oferecem a oportunidade de estudar as correntes literárias a que o autor de “A Ruiva” foi associado, além do estudo sobre alguns contos fialhianos. Lucília Verdelho da Costa, com o estudo Fialho d’Almeida: um decadente em revolta, nos fornecerá bases para verificar como a escrita fialhiana aponta para certos traços do Decadentismo. Por fim, mas não menos importante, soma-se a esses estudos o de Raul Brandão, amigo de Fialho, em Memórias I. Assim pretendemos seguir o caminho nebuloso, desviante e assustador do universo grotesco na prosa fialhiana. Este será um percurso que destacará a anormalidade, o comprazimento pelo mórbido, as imagens de degradação do corpo, os espaços aterrorizantes, ao mesmo tempo em que servirá para denunciar questões do controverso posicionamento do escritor em relação ao pensamento racional. 18 2- FIALHO: UM ESCRITOR MARGINAL Sou um egoísta cruel, mergulhado, não como Hamlet da Dinamarca na sua eterna dúvida, mas no meu frio e amargo egoísmo e numa desilusão sinistra de tudo e de todos. (Fialho de Almeida. Páginas de miséria – Confissões). Amado por uns e odiado por outros, José Valentim Fialho de Almeida sempre conquistou a atenção das pessoas. Fosse por sua obra, fosse por sua personalidade singular, o fato é que, após sua presença, algo permanecia por comentar, ainda que nem sempre o comentário fosse favorável à postura do escritor. A julgar pelos relatos de contemporâneos, a critica que Fialho provocou justifica-se perfeitamente. Conforme relata Câmara Reis, um dos seus contemporâneos, o autor de Os Gatos se apresentava nas reuniões vestido de “cinta vermelha, chapéu desabado e de jaleca e calça verde-gaio” (BARRADAS, 1917, p.69), o que, de fato, justifica certos comentários a seu respeito, devido ao modo estranho e espalhafatoso de trajar. Contudo, o que se falava parece justificar-se não na indumentária, mas no polêmico temperamento, uma vez que discutia e revoltava-se contra as vigentes formas de poder, investindo contra todos aqueles que divergiam de seus pontos de vista. Todavia, todos os comentários parecem não abalar Fialho; muito ao contrário. Ele pretendeu ser reconhecido como um escritor marginal e passar à posteridade como um escritor maldito (COSTA, 2004, p.5), condenado ao anonimato e “proibido do sucesso pelo mau sestro de não poder ser lido por 19 senhoras” (AE, p.14) 4. O próprio Fialho revela, aos trinta e cinco anos, em sua autobiografia intitulada “Eu” (publicada no número 60 da Revista Ilustrada, em 1892, e posteriormente incluída em À Esquina) que os contemporâneos lhe garantiram a reputação de “desequilibrado indolente”, de “galicista” e de “colérico” (AE, p.14). Ao que parece, essa radical negatividade com que os contemporâneos o criticam é expressão de uma atitude pouco social por ele mesmo assumida e reconhecida, fruto de “uma desilusão sinistra de tudo e de todos” e dos germes da misantropia: “a orgulhosa misantropia do cavador d’aldeia que [nele] há” (VI, p.320) 5. De fato, Fialho sempre foi considerado um escritor “temperamental”, revoltado contra o poder político vigente, contra as formas de instituição, inclusive as formas literárias/artísticas em voga. Particularmente consciente das tensões estéticas, que, pela profissão jornalística, ocuparam as páginas de sua crítica, mesmo porque eram pertinentes e necessárias (os artigos de crítica mordaz, encontrados nos seis volumes de Os Gatos, e as inúmeras contribuições nos jornais da época nos dão provas cabais da consciência social, política e econômica que Fialho possuía do país, bem como das questões artísticas em voga), o escritor recusa qualquer academismo em prol da tentativa de construção de uma obra original, que ratifique a identidade de jornalista e escritor. Como bem diz Jacinto do Prado Coelho, “no caso de Fialho, (...) creio que um simples confronto da sua obra com a dos grandes e pequenos escritores da mesma época e as idéias literárias então vigentes bastará para demonstrar quanto era diferente e rebelde a pressões de escola o 4 As citações ao texto literário de À Esquina serão feitas através da abreviatura AE, seguida da numeração da página em arábicos. 5 As citações ao texto literário de Vida irônica serão feitas através da abreviatura VI, seguida da numeração da página em arábicos. 20 autor d’O país das uvas” (COELHO, 1996, p.187), ainda que sofresse influência do fértil meio literário a que teve acesso e com o qual conviveu em Portugal – afinal Fialho era um homem do seu tempo. Fialho vai atacar particularmente os medíocres jornalistas que se vendem por interesse ao gosto da moda ou de acordo com as exigências do mercado, fato que, na opinião do escritor, acaba “desviando a consciência pública de todas as idéias justas” (P, p.211-220) 6. O escritor terá uma postura contrária a esses jornalistas, pois, escrevendo em terreno minado pelas conseqüências provocadas pelo Ultimatum inglês de 1890, passa a assinar seus artigos com pseudônimo de Valentim Demônio ou de Irkan, o lhe servirá de máscara para descarregar sua língua feroz contra a situação política de Portugal, atacando (ou arranhando, como é instintivo do “gato bravo”, que considera a si próprio) principalmente a realeza. 2.1-A originalidade do estilo fialhiano O fim do século XIX, em Portugal, apresentava-se historicamente conturbado, principalmente se observado a partir da crise resultante de um longo processo de ruína histórica, agravada pelo sentimento nostálgico de perda da grandeza nacional que o episódio do Ultimato inglês de 1890 tinha provocado. De fato, desde o alerta contido n’Os Lusíadas, Portugal vivia em um estado de decadência histórica. Camões já observara que sua pátria estava imersa numa “apagada e vil tristeza”. E, até final do século XIX, as coisas não 6 As citações ao texto literário de Pasquinadas serão feitas através da abreviatura P, seguida da numeração da página em arábicos. 21 tinham mudado muito. Segundo António Machado Pires, “a Civilização ibérica atingiu o auge no século XVI, mas deu o que tinha a dar, vindo a morrer aos poucos, em conseqüência da grandeza do próprio esforço despendido – após o fim do século XVI só se encontram (...) tentativas de ‘galvanização de um organismo morto’” (PIRES, 1992, p.21). Conforme acentua Antero de Quental, em 1871, na conferência sobre as “Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos”, as causas dessa decadência podem ser justificadas por três fatores: um moral, um político e outro econômico. Àquela altura as causas já haviam cessado, mas, segundo o autor, seus efeitos ainda persistiam. A primeira causa deveu-se à transformação do Catolicismo pelo Concílio de Trento, o que, segundo Antero, transformou, pela opressão, o sentimento cristão, livre e independente, condenando a Razão humana, propagando a idolatria e sujeitando os governos ao poder do papa. A segunda causa deveu-se ao estabelecimento do Absolutismo, que gerou a ruína das liberdades locais, pois “obliterou o sentimento instintivo da liberdade, quebrou a energia das vontades, adormeceu a iniciativa” (SERRÃO, 1982, p.285). A terceira foi o desenvolvimento das Conquistas longínquas, uma vez que, interessados nas conquistas ultramarinas, esqueceram a terra e perdeu-se a agricultura; esqueceram a ciência e perdeu-se a chance de acompanhar o progresso dos países europeus. Assim, segundo Antero de Quental, é a essas causas que se deve atribuir o estado de incerteza, o desânimo e o mal-estar que se observaram no Portugal do final do século XIX. Causas de que o povo português, que se encontrava adormecido, devia ter conhecimento para que pudesse acordar desse estado de adormecimento em que se encontrava. 22 De acordo com o ponto de vista de Fialho, a sociedade desse período tem uma feição de decadência porque: A luta pela vida, a degenerescência das raças pelos excessos do trabalho e abusos de prazer, a excessiva cultura mental levando o homem à negação de todas as fés e à consciência da inutilidade de todos os esforços para atingir a perfeição absoluta, criaram (...) sociedades inquietantes, formalistas por cálculo, desabusadas por vício, desejosas de tudo e incapazes de coisa alguma, cujos antros têm por missão social encher as prisões e os hospitais de loucos, impulsionar as greves (...). Estas sociedades, ou antes esta sociedade, tem pronunciadamente uma feição de decadência (OG V, p.289)7 Esse processo de deterioração que Fialho observa no seio da sociedade portuguesa, vem ressaltar, dentre outros fatores, a importância da fé ante uma sociedade descrente. O autor de Os Gatos antecipa-se, sem o saber, aos preceitos de Freud em O mal-estar na civilização, quando observa, em junho de 1982, que uma sociedade necessita da fé para se manter disciplinada e próspera: “A excessiva cultura mental tirando-nos a fé, aboliu o respeito” (Idem, p.291) 8. Freud observa nesse estudo publicado em 1929 que o preceito “Amarás a teu próximo como a ti mesmo” é anterior à existência do cristianismo e que essa máxima do amor universal impõe deveres aos indivíduos que compõem a sociedade (FREUD, 1997, p.64). Por mais que exista uma série de objeções ao cumprimento desse mandamento, o fato é que cumpri-lo (o que para Freud é impossível devido à natureza humana eminentemente agressiva e exploradora) conduziria ao bem-estar para a sociedade e para os indivíduos que nela habitam. Fialho, que escrevera muitas críticas contra a instituição religiosa – no primeiro volume de Os Gatos, Fialho revela que almeja para os portugueses uma “igreja onde a religião de seus pais lhe custe apenas a fé”, pois, de acordo com o ponto de vista do escritor, o que se observa em Portugal 7 As citações ao texto literário de Os Gatos V serão feitas através da abreviatura OG V, seguida da numeração da página em arábicos. 8 Entenda-se que, guardando as devidas e necessárias proporções, Fialho foi intuitivo e antecipou alguns conceitos de Freud, no entanto, não afirmamos que ele “antecipe” a psicanálise. 23 é um povo explorado pelos padres (OG I, p.145) 9 –, observa a importância da fé para a contenção das massas e para a consolação dos homens, pois “sobreviver-se era o ideal antigo, de quando os homens ainda tinham fé. Agora cada qual de nós levanta os braços, desesperado, a suplicar que alguém o livre de si mesmo” (VI, p.106). Não há como negar que o século XIX define-se, entre outros aspectos, pela atitude cientificista, o que acarreta grande avanço e desenvolvimento. Contudo, uma sociedade que progride, a princípio, deveria conduzir os indivíduos ao bem-estar, já que o termo progresso implica “caminhar para a frente, criar novas condições, melhorar” (PIRES, 1992, p.18). Entretanto, no retrato trágico que Fialho faz dos indivíduos, o desenvolvimento, minado pelo egoísmo, é a causa de um iminente retrocesso, pois em Portugal “quanto mais a civilização avança, mais a individualidade se desenvolve, e este desenvolvimento pode tornar-se em causa de decadência” (OG V, p.290). A saída para esse declínio apresentado parece ser o que Leandro Konder acentua: que a humanidade deveria possuir – o “bom senso”, pois que o mesmo “abre caminho para o uso transformador dos conhecimentos; para o questionamento das condições existentes (...)”, proporcionando aos homens a possibilidade de se “debruçar autocriticamente sobre suas próprias convicções, refletindo sobre elas” (KONDER, s.d.). Ao seguir o livro de Guyau, L’art au point de vue sociologique, Fialho também aponta um caminho para a sociedade portuguesa: o equilíbrio e a conciliação da individualidade com a solidariedade: 9 As citações ao texto literário de Os Gatos I serão feitas através da abreviatura OG I, seguida da numeração da página em arábicos. 24 Uma sociedade, sendo um organismo dotado de vontade e consciência coletiva (...), só pode subsistir pela solidariedade e consenso dos indivíduos que são os seus órgãos elementares. Esta solidariedade exprime-se pelo espírito público, isto é, por uma subordinação das consciências particulares à vontade geral; sendo esta subordinação o que constitui a moralidade cívica (OG V, p.290). O que Fialho observa entre os seus contemporâneos é a procura egoísta do bem estar pessoal, o desprezo pelos interesses sociais, a indisciplina e uma literatura de cunho decadente, considerada pelo escritor como “uma literatura meio incompreensível, desconexa, arqui-furiosa, todos os fermentos de revolução capazes de destruir o que está sem maiormente curarem do que há de ser “(Idem, p.289). É exatamente esta a intenção da literatura Decadentista, não se ocupar com um equilíbrio pacificante, pois o que se quer é mostrar as “chagas” e não dar a “cura” . Essa literatura de fim de século intitulada Decadentista, de acordo com José Carlos Seabra Pereira, é caracterizada por um estado de sensibilidade em simultâneo com o homem desgostado de si, devido à consciência de que, entre avanços de toda a ordem, o homem não melhorou, e de uma civilização em crise (PEREIRA, 1975, p.22-23). (conforme veremos com mais profundidade no próximo capítulo). O Portugal deste período é, de fato, um país instável politicamente e atrasado tecnologicamente, cultural e socialmente, como bem diz Eduardo Lourenço: Portugal “era lanterna vermelha das nações civilizadas” (LOURENÇO, 1991, p.90). Essa decadência pode verificar-se, na literatura, nas considerações de Almeida Garrett em Viagens na minha terra, em que antevê o país às vésperas do apagamento lento em que se lançava no século por vir, já que, de acordo com o ponto de vista do romancista, Portugal se encontrava sem alma, agonizando, tomado pela hipocrisia e pela ignorância: “Uma nação grande ainda poderá ir vivendo e esperar por melhor tempo, 25 apesar desta paralisia que lhe pasma a vida da alma (...). Mas uma nação pequena, é impossível; há de morrer” (GARRETT, 1992, p.188). Foi envolto neste clima histórico que Fialho se formou como escritor. E não podia, evidentemente, furtar-se a tal atmosfera, principalmente pela profissão de panfletário flagelador que exerce10. Conforme afirma Costa Pimpão, Fialho usaria largamente a sua pena, ora com deleite, ora com certo cinismo, para espezinhar a vida pública (e até mesmo privada de alguns de sua desavença) do povo português e das instituições. Já a crítica o acusara de ser um dândi na aparência e de apresentar traços de psicopatia 11. Para Charles Baudelaire, o dandismo é uma instituição “vaga tão estranha quanto ao próprio duelo; muito antiga, já que César, Catilina e Alcibíades nos deram alguns modelos brilhantes”. O seguidor dessa espécie de “religião” é chamado de dândi e caracteriza-se como: [um] homem rico, ocioso e que, mesmo entediado de tudo, não tem outra preocupação senão correr ao encalço da felicidade; o homem criado no luxo e acostumado a ser obedecido desde a juventude; aquele, enfim, cuja única profissão é a elegância sempre exibirá, em todos os tempos, uma fisionomia distinta, completamente à parte (BAUDELAIRE, 1995, p.870). Pertencente a aristocracia, “(...) o dândi não aspira ao dinheiro como a uma coisa essencial; um crédito ilimitado poderia lhe bastar: ele deixaria essa grosseira paixão aos vulgares mortais”. Além disso, distingue-se pelo luxo, pela riqueza, pela tentativa de originalidade. Na verdade, o dândi almeja a distinção: O dandismo não é sequer, como parecem acreditar muitas pessoas pouco sensatas, um amor desmesurado pela indumentária e pela elegância física. Para o perfeito dândi essas coisas são apenas um símbolo da superioridade aristocrática do seu espírito. Por isso, a seus olhos ávidos antes de tudo por 10 Embora Fialho afirme-se um panfletário (como aquele que critica a sociedade por meio de panfletos), a momentos em que a panfletagem confronta uma certa fuga para o discurso literário. 11 O que só pode ser levantado como mera hipótese, já que não se tem um quadro clínico que possa comprovar tal diagnóstico (PIMPÃO, 1945, p.95). 26 distinção, a perfeição da indumentária consiste na simplicidade absoluta, o que é, efetivamente, a melhor maneira de se distinguir (Idem). A ociosidade e individualidade também fazem parte do universo do dândi, são “uma espécie de culto de si mesmo, que pode sobreviver à busca da felicidade a ser encontrada em outrem, na mulher, por exemplo, que pode sobreviver, inclusive, a tudo a que chamemos ilusões”. O dândi é um represente do orgulho humano, da necessidade de combater e destruir a trivialidade, o que resulta uma atitude provocante em sua frieza. Pelo que foi exposto, Fialho encontra-se bastante próximo do conceito de dândi desenvolvido por Baudelaire 12, distanciando-se dele no que se refere ao dinheiro, à aristocracia de berço, pois nascido de uma família pobre, do interior do Alentejo, o autor de “A Ruiva” teve de trabalhar muito para garantir o seu sustento e ainda ajudar a família, que tinha dentre seus membros um irmão inválido. Contudo, possui uma espécie de “aristocracia interior” dos que não possuem dinheiro, mas são “ricos em força interior” (BAUDELAIRE, 1995, p.872). Óscar Lopes ainda observa que em uma série de artigos chamada Cartas fidalgas, Fialho “se dá uns ares de bon vivant entendido e dândi” (LOPES, 1987, p.175). Seus escritos nos jornais e os muitos artigos inseridos nos seis volumes de Os Gatos são suficientes para demonstrar sua intensa atividade crítica, em que se observa uma resistência mordaz a tudo, desde o trivial, como desfile de crianças, ao assunto mais importante para a sociedade naquele momento. Exemplo disso é o artigo “A espoliação portuguesa n’África (panfleto aos fracos)”, inserido no terceiro volume de Os Gatos, em que o escritor ressalta 12 Fialho somente apresenta traços de dandismo, ele não é, aqui, observado como um dândi por completo. 27 toda sua força de combate contra a usurpação das terras portuguesas pela Inglaterra (conforme observaremos no próximo capítulo). Fialho é, de fato, um rebelde bem apresentado, de humor oscilante e, até mesmo, excêntrico, para o que, de fato, a aparência contava muito, tal como o dândi, cuja indumentária demonstra “a necessidade ardente de alcançar uma originalidade dentro dos limites exteriores das conveniências” (BAUDELAIRE, 1995, p.871). Talvez porque sempre lhe apetecera a vida larga, oposta ao que foi toda a sua existência, já que nunca se habituou às desvantagens de ter nascido pobre; talvez por isso ele apresente tantos traços de oposição e de rebeldia. E as andanças ou passeios imaginários por suas terras nos dão conta dessa preocupação no trajar, manifestada pelo narrador (e, por extensão, pelo autor) no seu “Jantar no Moinho” (publicado n’O século em 1881 e posteriormente incluído em A cidade do vício): Com o meu chapéu derrubado e as minhas botas de couro cru, sólidas e altas, cinta preta e jaleca de peles, à hora em que os senhores estão digerindo ainda molhos do Silva e carinhos d’Itaira, vou eu a pé, fumando o meu cachimbo ou pensando nos meus alqueves, pelas veredas que passam nas folhas de semeaduras, ou como fulvas serpentes galgam as espinhas dorsais das cordilheiras (AC, p. 315-316) 13. Como se pode observar, ressalta-se “o prazer de provocar admiração” até mesmo num simples passeio no interior do Alentejo. Contudo, de modo algum, Fialho deixou que a aparência sobressaísse àquilo que considerava como essencial. E o estudo sobre a descrição do Chalet Sassetti, inserido em Os Gatos II, nos dá conta disso. Nesse artigo, o escritor vai visitar um chalet em Cintra anunciado para leilão com todos os pertences e mobílias de uma 13 As citações ao texto literário de A cidade do vício serão feitas através da abreviatura AC, seguida da numeração da página em arábicos. 28 “casa de luxo” e condena a preocupação com os bibelots, a vida de aparência, o supérfluo luxo, em oposição às “coisas nobremente sugestivas e belas, de cujo convívio brota essa obra d’inteligência e de graça que se chama o homem do mundo, e de que a Europa oferece ainda alguns modelos”. Aqui, o Fialho panfletário reclama “a coibição severa do luxo” advindo de “uma ilusão de grandezas e [de] uma aristocracia fingida de porte, que é o mais grotesco característico dos costumes contemporâneos” (OG II, p.284-285; 289) 14 . No entanto, o que pode parecer oposição é, na verdade, mais um traço do dandismo, “combater e destruir a trivialidade” (BAUDELAIRE, 1995, p.872), que encontra correlação na vida e obra de Fialho. Dentre outros traços semelhantes ao modelo de dandismo, observa-se a frieza nas afirmações de sua prosa (de que adiante daremos alguns exemplos), o desejo incessante de que seus escritos revelem originalidade, a força de suas oposições, que ressumam das palavras empregadas no texto, fatores que encontram correlação com o modelo do dândi, descrito por Baudelaire. Ainda nesse artigo (sobre a descrição do Chalet Sassetti), Fialho repudia o excesso porque “o decadismo na arte da casa, a armadilha ao gozo da pupila, por via do exquis de contrabando, (...) tira ao espírito a possibilidade do interesse pela obra d’arte sã, e pela obra prima absoluta”, transformando a casa, concebida pela sociedade do século XIX, como um lugar de refúgio, de sossego, enfim o abrigo merecido do homem depois de horas de trabalho, em um “sitio suspeito, tendente ao cuté da comborça, e, ao beatismo fruste da capela jesuítica. Impossível ter idéias lúcidas, raciocínios serenos, funções másculas, e tendências honestas!” (Idem, p.290-291). Reflexo da situação 14 As citações ao texto literário de Os Gatos II serão feitas através da abreviatura OG II, seguida da numeração da página em arábicos. 29 vivida pela família, a casa desse fim de século é vista pelo autor como um lugar de desabrigo, de insegurança, pois que a família apresenta-se instável e depressiva, uma vez que a energia física se pagou na depressão do meio, na falta de exercícios salubres, de higiene e de cultura moral, e cujo sistema nervoso se foi exasperando até aos clownismos da nevrose, e invertendo a polarização dos atos vitais, desde as funções das víceras até às funções do caráter, desde as sensações até aos sentimentos, desde os atos da inteligência até aos atos da vontade (P, p.168). Na concepção de Fialho, o lar fixo é um “santuário de tradições domésticas, centro d’interesses vindouros ou hereditários, museu sugestivo e local de grandes datas, igreja e altar de todos os divinos sacrifícios da existência humana”, de cuja posse o homem deva ter orgulho, pois a casa carrega a sua biografia, a sua personalidade. A casa, para Fialho, é “fortaleza e ninho, reino e reinado”, tem alma e tem memória é o reflexo do dono, como observa em Pasquinadas: “tal a habitação, tal a família” (Idem 226; 230; 355). Assim, o projeto crítico de Fialho, incidindo sobre vários aspectos da vida privada, como a casa e a família, e da vida pública, configura-se como uma fria análise social, política econômica e, até mesmo, cultural, uma vez que recrimina a ausência de bons museus em Portugal, com intuito de reformador 15 e crítico de arte. Em Os Gatos I, Fialho além de criticar o modo como a arte é ensinada no seu tempo, planeja a fundação de um museu, com a finalidade de conduzir à “reconstituição da história portuguesa, e ao estudo da arte civil e 15 Por mais que Fialho apresente em seus textos argumentos condizentes com a imagem de um reformador, ele não acredita em progresso, mudanças ou regenerações (até porque, como todos os homens do seu tempo, Fialho via o progresso com medo); possui uma visão altamente pessimista sobre tudo; daí que não se possa afirmar que seja um autêntico reformador. Contudo, Fialho apresenta um desejo imenso de que sua voz seja ouvida (“se a minha voz fosse escutada” (OG II, p.145) e de que suas sugestões sejam seguidas. Na verdade, sua postura é semelhante à de um informador: “Por Deus, façam justiça às intenções d’um pobre informador!” (Idem, p.193), o que se deve, de fato, a sua profissão de jornalista. 30 religiosa dos nossos grandes séculos – senão também à reorganização do ensino artístico e industrial” (OG I, p.41), e organiza todos os passos para a obtenção de recursos para as obras. Nesse sentido, Fialho foi capaz de criticar o ensino e as instituições portuguesas, porque recebeu uma cultura profícua, que, de fato, o distinguiu. De acordo com Costa Pimpão, Fialho almeja a condição de burguês, mantendo sobre os outros burgueses a distinção de cultura (PIMPÃO, 1945, p.75). Com efeito, Fialho leu muito e falou de quase tudo, o que, talvez, o tenha impedido de escrever um romance. Em seu espólio, há esboços de romances que tantas vezes ameaçou escrever e desistiu no meio do caminho 16 . Mas, de acordo com o próprio Fialho, o fato de não ter escrito um romance deve-se a problemas econômicos, pois quem “tem de ganhar o seu pão dia por dia, [e, por isso] não pode senão produzir minusculárias literárias, obrinhas de fácil curso, pagas aos quinze tostões, Deus sabe quando, e escritas sabe Deus em que disposições de cabeça e de barriga!” (AE, p.18) tem pouco tempo para dedicar ao romance. Sabia que construir tal projeto não era simples assim como os outros o pediam: “mas porque não escreve você um livro inteiro? um grande romance, um grande quadro crítico?...”. Um romance demanda tempo, estudo, concentração e recurso, e nada disso Fialho possuía no momento, já que recebia menos que um carpinteiro ou um pedreiro. Também acreditava que não existisse em Portugal público leitor para tal projeto, pois “não é por delícia d’arte, nem por sugestões d’estética e de gosto, que em Portugal se lê um romance (...) mas por mero passatempo, interesse d’efabulação, suspeita 16 De acordo com Costa Pimpão, o folhetim Ellen Washington, foi sua primeira tentativa de romance (PIMPÃO, 1945, p.173). Depois, tentou escrever uma trilogia, no gênero das sagas sociais zolaicas ou balzaquianas, intitulada Os Decadentes, segundo António Cândido Franco (FRANCO, 2002, p.79). 31 d’escândalo, ou por banal afrodisia, simplesmente” (P, p.315) porque, de acordo com a observação de Fialho, “em Portugal ninguém lê, e raros são os lúcidos” (OG I, p.171) 17. Há que se falar que, considerando os dados fornecidos pelo escritor, o contingente de habitantes em Portugal (a “grossa massa do país”) no final do século XIX era de cinco milhões, dentre os quais quatro milhões não eram alfabetizados; ou seja, oitenta e três por cento eram os analfabetos portugueses, o que, na visão de Fialho, era “a garantia mais sólida do sistema” (Idem, p.176, 234). Cumprir tal projeto demandava um esforço que necessitava de retorno financeiro; sem público capaz de saborear o romance tão pedido pelos amigos, como o escritor se manteria financeiramente? Por isso o romance sempre ficou a meio caminho. A vida nunca foi fácil para o autor de “Os pobres” 18 . A infância sofrida em Vila de Frades, assinalada pela pobreza, deixara uma marca indelével em sua alma, cujos sentimentos e aspirações podem ser vistos no folhetim escrito por Fialho a D. Elisa Curada, intitulado Páginas de miséria – confissões, em 1875, quando apenas tinha dezoito anos: E eu tenho as faculdades que vejo brilhar nos que me chamam amigo, que vejo desenvolvidas, colorizadas em mil dons, em mil pequenas cousas cheias de unção, de fé, de ardor, essas faculdades, pergunto a mim mesmo – e que sou afinal, o que penso, para onde caminho? Eles são felizes, alegres, vários na sua descuidosa mocidade, teem dezoito anos como eu e 17 As citações ao texto literário de “Barbear, pentear” (Jornal de um vagabundo) serão feitas através da abreviatura BP, seguida da numeração da página em arábicos. 18 Há um conto de Fialho intitulado “Os pobres”, inserido no volume de contos O País das Uvas datado de 1893. Contudo Os Pobres também é título de um dos romances de Raúl Brandão, datado de 1906. O autor de A Farsa conheceu Fialho pessoalmente, como consta em suas Memórias (BRANDÃO, 1919, p.63). Além disso, segundo Óscar Lopes, o autor de Os Gatos teve grande influência na literatura brandoniana. De acordo com o crítico, “não são poucos os tipos sofredores de uma galeria fialhesca precursora da de Raul Brandão: o velho rabequista mendicante, a fraca, exangue, sequinha pensionista do montepio, vagabundos e noctívagos de olhar delirante, a violeteira alquebrada, de filhos famintos, queimando resistências já vãs às propostas de um não menos considerável mostrengo masculino, o ardina petiz desfeiteado em plena balbúrdia de Carnaval, um crime por rivalidade entre dois proletários rurais vizinhos, com antecedentes e conseqüentes recortados sobre a trágica e inatingida solidariedade das suas mulheres e filhos pequenos, etc.” (LOPES, 1987, p.180-181) 32 uma família que os adora. Alcançam sempre o que desejam. O seu estômago nunca lhe[s] pediu pão que lho não dessem; a sua fantasia teve sempre as proporções abastadas, para vestir as imagens. Se desejou o deboche, teve-o. Se o idílio, mil lhe vieram. E eu, e eu... 19 Nessa época, Fialho já era um jovem folhetinista que tinha de sobreviver com muito pouco; um folhetinista para quem o meio foi hostil. Assim, o pouco dinheiro, a muita sensibilidade, os instintos de luxo, a curiosidade por tudo – desejar muito e poder pouco – lhe perturbaram o curso fácil da vida (OG II, p.58), como revela em desabafo ao amigo Raul Brandão: “_ O que eu sofri! o que eu sofri!...” (BRANDÃO, 1919, p.63). O tempo do colégio também não foi uma experiência fácil. Fialho estudara em um dos melhores colégios de Lisboa, posteriormente classificado pelo próprio Fialho como uma espécie de “necrópole”, “semi-matadouro” ou “pocilga insalubre” (OG II, p.144,151), em que “apodrec[eu] durante 6 anos”, tendo de cumprir rotinas severas 20 , sem ar livre e sofrendo por uma alimentação insuficiente, que parece ter lhe deixado seqüelas – a fraqueza física, por exemplo, – pelo resto da vida, como se queixa a Raul Brandão (BRANDÃO, 1919, p.63). Nesse tempo, o menino Fialho enxergava a vida com um olhar cansado, desinteressado e olhando “o belo espetáculo da vida através d’uma nostalgia divergente, alucinatória por vezes, dentro da qual turbilhonavam por vezes já bactérias de muitas futuras doenças incuráveis” 21 . Um percurso que caracteriza como “batalha” ou “martírio”, que o pai o obrigara a cumprir, em que se pode observar a rigidez das normas do colégio, pois os 19 Costa Pimpão transcreve alguns trechos desse folhetim, do qual extraímos este pequeno trecho. Ver Pimpão, 1945, p.64. 20 Fialho conta que acordava às cinco horas da manhã, fosse no verão ou no inverno, e estudava onze horas por dia, sem poder ser mexer (OG II, p.147-149). 21 O itálico é nosso. 33 livros enviados pelo pai como presente lhes são tirados à força das mãos 22. O colégio revela-se um ambiente tão intransigente, que só pode ser sentido pelos alunos como uma autêntica prisão, que marcará todos os outros dias da vida de Fialho, pois deste período o escritor levará a sua frágil saúde e sua eterna timidez que o fará entregar-se aos escritos. Essa “timidez invencível nunca o deixou falar em público apesar de, como ninguém, sentir a necessidade de aplauso” (BRANDÃO, 1919, p.76). Depois desse tempo de colégio, e durante as horas do dia, Fialho trabalhava como praticante numa farmácia por necessidade econômica. À noite devaneava pelas ruas de Lisboa, inserido em um mundo de sombras e mistérios, um ambiente propício para que o tímido Fialho pudesse pesquisar o inédito e o marginal, registrando nos excessos da linguagem emotiva as suas impressões de espectador. Lisboa, para Fialho, tinha um lado desconhecido, que pelas noites, pelas vielas dos becos escuros, ia sendo percorrido, não com o olhar deslumbrado em que “Uma profusão de percepções vem formar bruscamente uma impressão deslumbrante”, em que “(deslumbrar é, no limite, impedir de ver, de dizer)” (BARTHES, 2003, p.9), porque, uma vez que se está preso na teia da visão deslumbrante, conseqüentemente se perde a luz, ou seja, nega-se qualquer possibilidade de enxergar a realidade, tal como ela se apresenta. Fialho parece não correr este risco, nem com relação ao seu lugar de origem, o Alentejo, nem com relação a Lisboa. Ao contrário, o escritor mais do que vê; ele “repara”, “considera”, “analisa”, emite juízos de valor, parecendo seguir o conselho de que falaria o português José Saramago anos mais tarde em seu 22 Eram dois volumes: um de Garrett e outro de Herculano, classificados pelo regime da época como livros de leitura amena, que o pai lhe enviara depois Fialho queixar-se do “tédio mortal de que era vítima, durante as recreações, nas salas de estudo” (OG I, p.151). 34 romance Ensaio sobre a cegueira, a respeito da capacidade de reparar, enquanto os outros somente vêem: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara” 23 , visto que Fialho volta o seu olhar para penetrar mais fundo, observando verdades não narradas. É assim, querendo ver tudo, que o autor de Os Gatos apresenta aos leitores um Portugal visto “por dentro”, resultado da visão experimentada da realidade. Por vezes, o narrador de Os Gatos não só punha os fatos em evidência como pressentia o indesejado, como a morte de Manoel, quando o narrador em desabafo revela: “evidenciam-me a meus olhos, coisas que tocam na minha úlcera, e me fazem sofrer como um danado” (OG II, p.89). Inúmeras vezes o escritor viu muito além. No artigo “O violoncelista Sérgio n’um café da Mouraria”, inserido em Os Gatos I, por exemplo, o narrador (que tem sua voz “colada” à do autor) nos fala do “bestiário da alucinação doida e disforme” de que por momentos a imaginação é tomada; da alucinação visual; da “tinta delirante” com que via (e pintava) as coisas triviais e dramáticas que o circundavam; e ainda diz-se propenso “às meias-visões macabras da alta nevrose” (OG I, p.121-168). Também as visões de “O enterro de Rei D. Luiz” são feitas de febre e alucinações, o que o aproxima da arte decadentista (como veremos no próximo capítulo). Tudo quanto diz – ou escreve – está na ponta da língua – ou da pena –, num exuberante estilo que se afirma na linguagem “límpida, brutal e simples", fruto de sua “natureza rude e brutal” (VI, p.142) que, se não lhe rendeu um romance, permitiu-lhe criar muitos contos e artigos que nos deram um perfil bastante singular do Portugal do seu tempo. 23 Na verdade, esta passagem é a epígrafe do romance (José Saramago. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1994). 35 Ainda em sua “Autobiografia”, Fialho enuncia a sua linguagem plebéia e “suja”, fruto da ruptura com o sublime (“estilo nobre”) e da grandiloqüência discursiva, marcada no nível ficcional, pelo predomínio da imaginação grotesca 24 , a que contrapõe a visão naturalista por um modo de escrita marcado pela intenção de exprimir também o que não se vê. Opondo-se na escrita à predileção do público português pelo belo, com o aparecimento de imagens do fascinante universo grotesco, o autor de Contos vem apresentar ao leitor uma civilização cravada por abominações que rompem com o convencional da razão humana. Fialho visiona também a linguagem panfletária como a única capaz de “ferir fundo”: “aquela que esbofeteie a hipocrisia infame da sociedade egoísta que nos cerca” (AE, p.24), pois sabe que “a vida [é] uma pavorosa guerreia de raposas contra lobos, e grande risco corr[e] quem se emaranha (...) n’ela, despetrexado de manha ou dente agudo” (OG II, p.38). Assim Fialho, considerado por ele mesmo um autêntico plebeu, indiferente aos juízos da opinião pública, tem na linguagem panfletária e plebéia a desforra ou, metaforicamente, as garras de “gato bravo”, capaz de reagir ágil e nervosa contra agressores e adversários. Como adverte aos leitores, no prefácio de Os Gatos I: “Razão porque nos acharás aqui, leitor, miando pouco, arranhando sempre, e não temendo nunca” (OG I, p7). Donos de um estilo inconfundível, os escritos de Fialho ora apresentam estruturas semelhantes às da linguagem oral, ora apresentam um estilo rebuscado, que alguns críticos chamam de barroco (LOPES, 1987, p.193), talvez por assumir uma atitude anti-tradicionalista e anti-academista, ao 24 Na verdade, foi a doutora Isabel Cristina Mateus quem aborda, com mais profundidade, essa passagem da obra de Fialho em sua tese de doutoramento Kodakização e despolarização do real: para uma poética do grotesco na obra de Fialho de Almeida, a mesma foi devidamente orientada pelo Professor Doutor Vítor Manuel de Aguiar e Silva na Universidade de Coimbra. 36 confessar-se um “trabalhador reputado de não querer escrever português corretamente” (OG III, p.269) 25. Um “obscuro obreiro” da palavra, para quem o plausível é “que o dom d’escrever se acompanhe sempre d’esse’outro d’ouvir uma pequena voz interior que cita a frase. Fazer passar o acento d’essa voz, nas palavras, eis o que é ter estilo” (Idem, p.252) e cujos estilos variam. O próprio Fialho afirma orgulhosamente possuir vários estilos, pois, de acordo com que ele mesmo afirma e divulga: é o único escritor em que o “assunto é que dita o estilo” (AE, p.23). Desse modo, como a escolha do estilo está intrinsecamente ligada à do assunto e seus assuntos variam na tentativa de captar a melhor forma de expressão da vida contemporânea, o estilo, em conseqüência dos assuntos, afirma-se como múltiplo. Segundo Wolfgang Kayser, em seu estudo Análise e interpretação da obra literária, o estilo pode ser entendido como “um fenómemo das línguas nacionais”, “um fenómeno da personalidade artística” ou “um fenômeno da época”, dependendo da concepção do investigador do texto literário. Deste modo, todos os estudiosos (Kayser observa em seu texto que os estudiosos discordam uns dos outros em vários assuntos) são unânimes ao afirmar que “estilo, se trata de algo individual: aquilo que é peculiar de determinado homem, de determinada época”. Além disso, eles concordam que o estilo é expressão e deve ser encarado como uma unidade (KAYSER, 1985, p. 312). Segundo Fialho, seu estilo surge do rompimento com o “estilo nobre” (AE, p.23), recusando a condição de simples imitador da realidade, pela necessidade de dar forma ao “indizível”, de criar a partir de passeios noturnos e, sobretudo, pelo interesse de renovação (ou experimentação) da linguagem. 25 As citações ao texto literário de Os Gatos III serão feitas através da abreviatura OG III, seguida da numeração da página em arábicos. 37 Além disso, os neologismos e as metáforas engenhosas e brilhantes, contidas em sua prosa, formam, certamente, um traço nítido do estilo do autor. Segundo Jacinto do Prado Coelho O estilo [de Fialho] é exuberante, de tintas carregadas e fortemente contrastantes, túrgido, fremente, irregular, excessivo: aglomera termos vigorosos, estrídulos, adjectivos como “brutal”, “colossal”, “frenético” (...). Traduz a turbulência interior e o barroquismo do gosto. É o estilo adequado à pintura febril dos instintos, dos impulsos bárbaros, das grandes forças desencadeadoras ou em formidável conflito (COELHO, 1996, p.192). Contudo, não se sabe precisar até que ponto sua escrita tenha sofrido influência, pois, conforme já dissemos, Fialho é um homem do seu tempo. O escritor pode ter tido sua escrita influenciada pelos preceitos de estilos dominantes na época, influência esta que Fialho recusa, mas a que, conforme veremos no próximo capítulo, não pode furtar-se; pelo gosto do público, a que o escritor também afirma não se sujeitar, vindo acusar particularmente aqueles que cedem ao gosto da moda ou do público; por modelos representativos de escritores, conforme ele mesmo afirma, associa sua linguagem ao sonho, ao delírio das imagens e à febre alucinatória que admira em Goya e Edgar Allan Poe. De modo recorrente, o escritor identificará seu processo de escrita às “visões hamléticas” ou às “deformidades de visão” de Goya e de Poe (OG II, p.64-67). De fato, essas forças sobre-pessoais influem sobre o escritor e comprometem uma certa segurança de um estilo pessoal. Contudo, pode-se afirmar que Fialho tenha um conceito de estilo apropriado para cada assunto, capaz de vincular sua expressão e atitude. Segundo Jacinto do Prado Coelho, “Fialho pretendia orgulhosamente possuir um estilo para cada assunto; e não vamos negar-lhe o dom de variar a expressão, que percorre uma extensa 38 gama, do frívolo ao patético” (COELHO, 1996, p.192). Na verdade, o que interessa a Fialho é dar a sua obra um caráter de individualidade, o que se pode observar em seu aconselhamento aos artistas: “deve o artista, não só sentir, como exprimir d’uma maneira sua e original. É o que se chama estilo, que é a expressão literária do caráter, e só têm os artistas unos que sociologicamente ao mesmo tempo sejam tipos definidos” (OG I, p.252). Pelo visto, a tentativa de originalidade do estilo de Fialho elabora-se, segundo as suas afirmações, sem um programa estético prévio, na recusa de todas as escolas ou correntes literárias, em sintonia apenas com o entusiasmo advindo da primeira impressão, na expansão do temperamento emotivo que Fialho salienta ser “a base da estética, devendo ser sincera não tanto no ponto em que ela alvorota o coração do artista (...), mas n’aquele outro, primaz, em que transforme a obra n’um produto sensibilizado contra que vem chapar-se a polarização sentimental do espectador ou do leitor” (BP II, p.251). Conforme disse Barthes, em sua Aula inaugural, a linguagem, e consequentemente a língua, são objetos a serviço do poder: “Assim que ela é proferida, mesmo que na intimidade mais profunda do sujeito, a língua entra a serviço de um poder. Nela, infalivelmente, duas rubricas se delineiam: a autoridade da asserção e o gregarismo da repetição” (BARTHES, 1997, p. 14). Assim, se a linguagem está sob um poder que a determina, há que se construir uma nova linguagem para novas vontades, para aqueles que anseiam por uma nova maneira de enxergar a realidade. Lançando palavras como “explosões”, “vibrações”, “a palavra vibrante pela audácia” (VI, P.218) e sabores, através de um estilo eminentemente emotivo, Fialho parece esquivar-se ao perigo do “gregarismo da repetição” de 39 que fala Barthes. Sabe que em uma sociedade cada vez mais artificial, “amig[a] das coisas fáceis e ligeiras” (BP, p.251), as palavras gastam-se pela repetição, e que, se pretendia passar à posteridade como um escritor original, cuja obra transparecesse luz e movimento da vida, além de que representasse a sua individualidade, seria preciso recuperar a intensidade perdida. Esta intenção de dar vida à palavra, conservando o sabor, através do estilo, Fialho deixa clara quando diz que “as palavras copiam-se, passam-se, como moedas falsas correndo as bolsas sem paternidade investigada, mas não se pasticha a flama espírita que n’uma obra delas coisa viva” (Idem p.249). Talvez esse lado emotivo da sua escrita, juntamente com sua misantropia, expliquem o fato de Fialho, profissionalmente ligado à imprensa, não se envolver em nenhum dos muitos projetos literários que mobilizavam os outros escritores. Seu projeto parece ser uma aventura individual, um percurso marginal, tendente às “visões” das coisas, à deformação subjetiva; é produto do seu temperamento, muitas vezes conseguido em transe, numa espécie de embriaguez (COELHO, 1996, p.189). O próprio Fialho salienta a importância da embriaguez para a arte em Barbear, pentear: A embriaguez (...) acompanha todos os grandes desejos e emoções, atos de bravura, luta, vitória, festa – todos os movimentos externos da crueza e destruição – (...) o da vontade acumulada e dilatada, tudo isto determina, por um sentimento vertiginal de força e plenitude, o quer que seja d’um exaspero cerebral extra-lúcido, d’uma embriaguez que tem em si potência de arte. “Sob o império d’ela, o artista abandona às coisas que o rodeiam, força-as a quererem d’ele, violenta-as, transforma-as, até que elas lhe reflitam a força, e sejam o breviário da sua perfeição” (BPI, p.249-250). Esse percurso marginal da escrita fialhiana realiza-se principalmente à noite, momento em que o homem pode ser ele mesmo, sem máscaras, e o grotesco escorre em abundância. 40 2.2 - Vagabundagens soturnas Na prosa fialhiana observa-se, de fato, uma evidente predileção pela noite, que condiz com a predileção da maioria dos escritores do “grotesco romântico” (BAKHTIN, 1993, p.36). A obscuridade aguça a atividade criadora do escritor, a sua “diabólica óptica deformante” que tudo transforma/deforma com imagens de sombras, de espectros, visões deformadas ou realidades confusas, ou como diz Fialho, a noite com seu mistério turbante, suas vozes erráticas, suas moles de linhas imprecisas, suas lagoas de tinta sulfurosa, suas tragédias de nervos e de estrelas, seus sabbats aberrantes d’idéias e deboches, é a grande caverna da alquimia poética onde os Faustos escarvam, sob o satanismo do gênio, os fantasmáticos poemas de mors-amor! (FD, p.53). Esse lado noturno condiz perfeitamente com a imagem de vagabundo que Fialho tanto apregoa de si mesmo. Conforme ele mesmo afirma aos 33 anos: Como sou misantropo, e só trabalho na rua, – tanto mais facilmente, quanto mais acelerada a marcha em que me estafo – a vagabundagem está indicada entre os meus processos de formilhação intelectiva, e o meu alheamento à vida exterior, nessas ocasiões, é tão completo, que podem passar por mim desordens e ribombos; eu não nos ouço, eu não nos sinto, e para além das muralhas do meu crânio, o mundo cessa 26. Essa “vagabundagem” vai além de uma simples imagem de vagabundo, amplamente difundida nos muitos subtítulos de seus livros, como – Jornal de um vagabundo –, para ganhar status de expressão de vida, representação de 26 Extraímos este pequeno trecho escrito por Fialho em 1892, para o número 59 da Revista Ilustrada, que Costa Pimpão utiliza no prefácio que fez à Vida Irônica (p.9). 41 uma escrita em tempos de crise, ou melhor, de um estado de espírito marcado pela tensão, que encontra sua correlação na poesia de Charles Baudelaire, Meu coração a nu: “Enaltecer a vagabundagem e aquilo que se pode designar por uma concepção boêmia da vida – um culto da sensação multiplicada e expressa pela música” (BAUDELAIRE, 1995, p.545). O status de “vagabundo” fortifica o estatuto declarado de boêmio, que Fialho também associa a si próprio, explicando que boêmios “são (...) filósofos negadores, de vistas antagônicas, d’esse ângulo de refração que lhes perturbe a visão de conjunto do mundo, [de onde] provém, via de regra, o ostracismo a que quase todos os boêmios são votados”. Vagabundo e boêmio, assim Fialho se reconhecia e anunciava/enunciava em suas passeadas noturnas. São passeios em que “a noite realiza e dá corpo a todas as formas de exagero, e todas as impulsividades da luxúria, a todas as estranhezas fantásticas da ilusão; ela que calcula, ela que pensa, ela que desdobra a personalidade para além dos limites do real humano” (FD, p.62; p.54). Pelo visto, nesses momentos de escuridão é que o escritor se dará conta do universo grotesco. No texto “Fantasmagorias da noite”, inserido em Vida Irônica, Fialho apresenta uma Lisboa noturna, rica de inéditos e “à mercê de sonhos trágicos”, em que revela aspectos ampliados de uma realidade conhecida, pois, nas andanças pelos bairros cobertos pela negridão, a cidade perde a proporção e a visão que proporciona é a de que “as ruas são maiores, as casas mais lúgubres, as árvores colossais de desespero, e os próprios sinos se esquecem de dar horas, uma angústia mortal baba das coisas, há rondas de loucura nas tremulinas do gás” (VI, p.4). Não é mais a Lisboa amplamente conhecida por todos, e sim “uma Lisboa diferente [que] irrompe em sobressaltos, dos abismos 42 das ruas, dos lagos de sombra das praças, e das crateras extintas dos outeiros” (Idem, p.3), uma cidade desigual, uma Lisboa “propícia à germinação sugestional da fantasia” (FD, p.54), que alimenta a imaginação dos artistas. Fialho não gosta da vida diurna em Lisboa, certamente porque durante as horas do dia, “a pupila, dominada pelo concreto, impossibilita o devaneio” (Pimpão, 1945, p.161). Mas à noite, a “vida dos foyers e dos cafés reconciliavao com a grande cidade” (Idem, p.158). Sua predileção pela noite se deve, principalmente, ao fato de a noite ser sedutora, pela possibilidade de perscrutar os mistérios da sombra, cujas impressões são mais intensas e, especialmente, porque se pode contemplar indiscretamente a vida alheia, sem ser visto. Sob o céu fúnebre, as barreiras sociais, opostas à liberdade do homem, podem ser derrubadas. É quando anoitece e já ninguém o observa que o indivíduo pode ser ele mesmo, sem máscaras, sem convenções sociais, podendo assim exceder os limites sociais que acorrentam a vontade humana. No conto “A Ruiva” (incorporado à revista portuense de Joaquim de Araújo, Museu Ilustrado, em 1878, e depois incluído no volume intitulado Contos, em 1881), por exemplo, quando as trevas tomam a cidade dos cadáveres, o personagem Carolina pode ser “a rainha do cemitério”, devaneando por entre caixões, por entre corpos mortos, a fim de escapar à visão de todos e realizar seu desejo mórbido: Nas horas de calor, de Verão, quando sob os ciprestes, os empregados do cemitério dormiam, ia devagarinho, sem ser pressentida, à casa dos depósitos, escolhia os cadáveres dos moços, dos belos, se os havia, e como um pequeno vampiro sequioso entreabria as mortalhas, despregando com uma navalhinha as camisas; metia a mão devagarinho pelo peito, metia, escorregando-a ao longo das carnes, beliscando-as levemente, com prazer; o olhar dilatava-se-lhe, havia na sua face uma mancha de excitação, mordia os lábios, exaltada; e, palpando, estudando, compreendendo e adivinhando, 43 ficava absorta, um pouco curvada sobre os corpos, o hálito ardente, uma palpitação larga e cheia de ímpeto (AR, p.13) 27. Já no conto “Os pobres”, o mendigo ou o monstro, caracterizado no texto como um “casmurro humilde de quem mangam sem piedade estranhos e vizinhos, crivando-o de sem-razões qual mais sardônica, sobre a miséria das roupas, os rasgões da camisa, e a sordidez de ganhar sem despender” ou visto como “um animal bravio das selvas” (OPV, p.71-74) 28 , tem um encontro puramente sexual e misterioso no caos da treva. Tomado por “uma fadiga secular” em “noite hostil” em que “deus foi-se embora”, o pobre caminha “cego das trevas, tacteando aos dois lados”, até que distingue, “no labirinto da noite”, um casebre abandonado. A “sombra confidente” impede a visão da realidade; no entanto, uma mulher, tão miserável quanto ele, abriga-se no mesmo lugar. Não se olham, não se vêem, mas “nas trevas procuram-se” e “assim entrebucham a noite numa orgia espasmódica, luxúria e danação, que faz das suas núpcias, bacanais. Até que saciados, antes que a manhã dealbe o céu lutuoso, cada qual deixa o casebre por sua porta”. Não se olharam, não trocaram palavras enquanto estiveram próximos, serão eternamente estranhos um ao outro, “não tendo (...) mesmo [como] fixar-se na escuridão profunda, o vulto incerto”. Ao final do relato “come-os a treva, nunca mais se encontram, nem ao dia seguinte teriam já meios de reconhecer-se”. De fato, tanto o personagem Carolina como os personagens conhecidos como os pobres são exemplos de encontros estranhos gerados na penumbra da noite. Devidamente planejados ou frutos do acaso, esses encontros vêm 27 As citações ao texto literário de “A Ruiva” serão feitas através da abreviatura AR, seguida da numeração da página em arábicos. 28 As citações ao texto literário de o país das uvas serão feitas através da abreviatura OPV, seguida da numeração da página em arábicos. 44 acentuar a libertação das forças instintivas que o homem libera nos devaneios da noite, acentuando a animalidade e a transgressão da moral 29 , que, particularmente, no caso do personagem Carolina, é capaz de gerar nojo no leitor perante o deleite experimentado pelo personagem de manifesta distorção da sexualidade. Assim, as aventuras noturnas vêm exacerbar a liberdade, o desejo, a anormalidade, a perturbação da alma, a perversão e conseqüentemente o aparecimento do grotesco, tudo o que certamente a luz do dia lhes impediria, e que são temas constantes da literatura Decadentista. No artigo “Lisboa monumental”, inserido em “Barbear, pentear”, por exemplo, observa-se que, durante as horas do dia, os lisboetas vão ao Terreiro do Paço a fim de “cervejar e sorvetar”; contudo, é ao anoitecer “que vagabundagens por ali, nas noites quentes, perorando no ar pulcro, sobre a madorna bronca do burgo, [ensejam] as velhas questões que fazem chispar [um] olhito rugoso” (BP, p.103). Na opinião do escritor, que possuía uma evidente predileção pelos ambientes luxuosos e movimentados, são as noites de verão que vêm tirar Lisboa “da pacatez provincial em que os estrangeiros ano após ano vem topá-la”. Todavia, ainda falta, na opinião do escritor, “encher o paraíso de fogos claros nas noites estreladas, de músicas e ruídos festivos, inaugurara n’esse castelo a era da vida alegre” (Idem, p.104; 106). Rica de inédito e de expressividade, assim é que Lisboa, vista por Fialho como a “grande cidade”, se apresenta à noite. Já no artigo de Vida irônica observa-se que o que irrompe na magia da noite causa uma impressão inusitada da cidade, cujas formas obscuras e o exótico ganham corpo com imagens fantásticas. O escritor cria uma Lisboa 29 Jacinto do Prado Coelho acentua que o conto “Os pobres” tem de ser visto como amoral e não imoral (COELHO, 1996, p.192). 45 repulsante e de tal forma estranha que causa calafrio no leitor: “uma Lisboa outra e toda ela latente de tragédias, convulsa apesar da paresia exterior que a cadaveriza, aflita, mau grado a impassível mordaça de pavor que lhe estrangula os haustos, e casa vez mais inquietante, cada vez mais espectral” (VI, p.3). Descreve-se então uma cidade-cadáver, trágica, paralisada, aflita e inquietante, tão ao gosto da literatura Decadentista, em que carroças, “lúgubres como sarcófagos”, adentram a cidade em direção ao mercado, que é descrito como “sinistro, todo de ferro, acachapado e com torrelas nos ângulos, zimboriadas de negro, onde um ou outro laivo de metal chameja cruamente”. Uma civilização noturna, a liquidar de abominações, revela o disforme, pois algumas pessoas chegam “espendurando carne de boi, sangrenta, em nacos musculosos, [que] parecem evocar, naquela noturna sombra, lendas de patíbulo”, à frente se vê “uma espécie de gnomo (...) [que] agita os braços, cinge de golpes a mula, entre jatos de praga e expectorações de raiva biliosa”. Por cima, o “céu fúnebre (...) restringe a elevação do olhar para as alturas, abafa os prédios sob fuligens trágicas” e “um cheiro de hortaliça esmagada estesia a narina” (Idem, p.4-6). Essa cidade cadaverizada que se apresenta à noite, vista pelas lentes fantasiosas de Fialho, harmoniza-se com a óptica do universo grotesco, pois traz à tona o disforme, o horror, o inédito, todo o universo que se afasta do convencional da razão humana, com o aparecimento de formas deliqüescentes que se “desfaze[m] na (...) noite hiperbólica, incognoscível, onde as coisas têm formas de balada – ora voltando com fermentações de larvas, n’uma fúria de viver febricitante” (OG I, p.105-106). Mesmo à luz do dia é descrita a 46 deterioração dos corpos noturnos, pois “é quando entra do prostíbulo e da batota a gente que apodrece, e quando sai para a labuta a gente que trabalha”. Em certas horas noturnas, o escritor dá-se ao prazer de percorrer, e descrever, a vida, fascinado pela fórmula do pintar o que não se vê (OG V, p.235), revelando “esse ruge-ruge de vida invisível, que é, à noite, a respiração dos sítios habitados” (OG I, p.168-169). As visões que se apresentam despertam no solitário vagabundo imagens deformantes, dão-lhe aspirações para seus escritos, enchem e de tal maneira perturbam a realidade, que lhe vem, à frente, um mundo indeciso em que não se sabe se o fato realmente ocorreu ou não. Isto talvez ocorra porque a noite liberta a fantasia, e permite aos artistas deambulantes tecer em volta dos seres e dos objetos sugeridos, caprichosos rendilhados, frágeis teias de hipóteses, idílios e dramas, sem que a luz crua venha opor ao devaneio um desmentido formal. Uma simples palavra, ouvida a um grupo com o qual se cruza em travessa sóbria, pode ser ponto de partida de uma obsessão (PIMPÃO, 1945, p.160). Ao favorecer as diluições de formas, a ambigüidade, a noite favorece, igualmente, o aparecimento do universo grotesco, já que a “diluição das coisas nas trevas favorece a transposição do real no irreal” (Idem) e as observações do narrador adquirem qualquer coisa de estranhamente irreal. Essa é a capacidade especial que a literatura tem – provocar uma objetividade sui generis, – em que, segundo Wolfgang Kayser, “os factos (...) adquirem qualquer coisa de estranhamente irreal, pelo menos uma existência peculiar, absolutamente diversa da realidade. Os factos ou (...) a objectualidade (...) existem somente como realidade evocada” (KAYSER, 1985, p.6), uma vez que, a noite, em que as sombras dão a percepção imprecisa das formas, gera o medo, advindo da entrada num ambiente desconhecido, e que “desamarra os 47 submarinos do cérebro, os hypogrifos da normalidade epoleptoide (ou simplesmente poética, ou viciosamente impulsiva, ou degeneradamente criminal), a anormalidade diabólica, espiral, criadora de larvas e visões” (FD, p.54) é que sugere o aparecimento do mundo grotesco. Em meio à escuridão, o escritor vai dando forma ao exagero, às estranhezas fantásticas da ilusão, desdobrando personalidades além do limite da razão, gerando um mundo oculto e só seu, trazendo à tona imagens do inconsciente, ultrapassando mundos e “abrindo sobre os infinitos da vida essa grande porta de batistério tremendo onde todas as religiões escreveram para o homem ler – não passarás!” (Idem). Em “O violinista Sérgio n’um café da Mouraria”, por exemplo, o delírio alucinatório de que o narrador é tomado vem não somente do fato de tornar estranho o que antes era considerado normal; também vem apresentar um mundo outro, acessível somente em momentos de loucura, sonho ou febre. O narrador vai à noite ao café, encontra a música certa capaz de despertar o seu lado emotivo e deixar manifestar-se a “alucinação visual”. Lá surpreende um casal que acaba “remexendo na (...) razão as fundalhas de loucura pensante”; como já não sabe se narrou o que viu, tenta explicar-se: Explico o fenômeno por uma aberração sinérgica dos eixos oculares, resultante da fadiga dos globos irritados pelo calor do café, pelo reverbério das luzes, pela intoxicação talvez do fumo do tabaco, e mais remotamente, ainda pelo dinamismo anormal em que a música me posera o cérebro, hereditariamente propenso já de si, às meias-visões macabras de alta nevrose” (OG I, p.121). Neste sentido, de acordo Isabel Cristina Mateus, em quase todos os momentos em que o escritor é tomado pela alucinação visual, ela se manifesta como um “fenômeno ótico-psíquico”, resultante da desfocagem ou 48 desrealização do real, fundamental para a emergência do grotesco (MATEUS, 2007, p.240), que só é possível de ser realizada à noite, porque, como afirma o narrador, “os carnavais se sublinham apenas na noite, em tons d’azul e fósforo, muito vagos, e o diabo passa, de pescoço estendido, as asas lassas, de cócaras quase, aos pulos sobre a roca, como um grifo caduco à procura d’almas que escorchar” (OG I, p.105). Seres incorpóreos e “inusitados na oficina de Deus”, como “gnomos, leves como luzernas”, tomam a noite alucinada do escritor, “corr[em] o mundo” a “impulsionar os crimes e as doenças”, numa “dança infectante” da “noite hiperbórea” (Idem). Diante de tal representação do universo grotesco, esfacelase qualquer possibilidade de razão e resta ao leitor a percepção de um mundo que conspira pela ovação do horrível, um mundo fascinante pela riqueza das imagens inéditas e surpreendentes que o escritor é capaz de nos proporcionar. Já no texto “A tragédia d’um homem de gênio obscuro”, publicado em 1890, Fialho apresenta-nos a tragédia de Manuel, aí descrito como um artista marginal e boêmio que fora possuído por uma força obscura, tomando-se uma pessoa desequilibrada e, em alguns momentos, até mesmo inconveniente. De acordo com o quadro clínico apresentado pelos médicos, no texto, Manuel é “um dipsomaníaco, com compulsões homicidas, hereditário, incurável, a caminhar para o término com uma rapidez vertiginosa e delirante” (OG II, p.82), pois esse alucinado, tomado por uma “singular agitação”, faz com que Fialho (através do narrador) tenha de segui-lo, fornecendo-lhe uma experiência singular da noite lisboeta: “fui-me atrás dele, mais por defendê-lo d’alguma agressão inopinada, de que por averiguar de perto os seus desregramentos”. A noite agora é capaz de gerar medo e angústia no escritor, pois “a treva comia a 49 cidade, n’um silêncio de maxilas desdentadas, onde as perspectivas ruíam, sepulcrais (...). À proporção que a hora ia, as ruas tinham na fuligem nocturna, calafrios de vida criminal” , enquanto apareciam indivíduos noctâmbulos de aspectos decadentes: “tipos sórdidos (...) caras inquietas, máscaras de bronzos frustes, com barbas nas orelhas, beiços raxados, estrabismos demoníacos; e todas esses anatomias raquíticas de seres falhos”. Diante desses seres estranhos, a noite já não pode ser vista positivamente, como momento de magia e inspiração, pois, à proporção que seguia o alucinado Manuel, era tomado pelo pavor, como afirma: “enchiam a minha alma de medo, debruçando-a, semi-louca, sobre um mundo d’infâmia inigualável” (Idem, p.7779). Também na penumbra Fialho ia conhecendo e transpondo para as suas páginas de ficção o mundo dos anormais, dos infelizes, que, ocultos nas sombras, revelam a perspectiva de uma visão inédita e marginal. Raul Brandão observa que Fialho envolve-se em “uma luta de noites e noites de que sai amarfanhado – com páginas soberbas” (BRANDÃO, 1919, p.66). De fato, a noite é a “centelha” que lhe proporciona o recanto inédito da vida, que lhe legou as muitas páginas ficcionais da visão grotesca. Deste modo, Fialho soube ultrapassar o limite do senso-comum e até do que é “Belo”, para mostrar ambiente e personagens grotescos (“feios” e anormais). De acordo com Wolfgang Kayser, um dos principais teóricos do universo grotesco, É somente na qualidade de pólo oposto do sublime que o grotesco desvela toda sua profundidade. Pois, assim como o sublime – à diferença do belo – dirige o nosso olhar para um mundo mais elevado, sobre-humano, do mesmo modo abre-se no ridículo-disforme e no monstruoso-horrível do grotesco um mundo desumano do noturno e abismal (KAYSER, 2003, p.61). 50 No conto “A Ruiva”, por exemplo, o cemitério dos Prazeres, que se abre estranhamente “como a goela dum plesiossauro”, apresenta um ambiente grotesco capaz de gerar estranheza e nojo no leitor, pois Em anoitecendo, tudo aquilo era de uma contemplação lúgubre e misteriosa, em que se adivinhava o trabalho de milhões de larvas; o ladrar dos cães tinha um eco desolado, que tornava depois mais sinistro o silêncio; a porta fechava-se sem rumor, girando em gonzos discretos, e uma luz esmaecia na treva, no fundo dos ciprestes e dos túmulos, diante de um santuário deserto, onde o Cristo, do alto, olhava vagamente o guarda-vento (AR, p.3-4). A taberna, localizada em frente a este cemitério, vem apresentar personagens tipicamente grotescos. O tio Farrusca, o “coveiro e o mais asqueroso”, é um deles, um personagem solitário, tão estranhamente sinistro em sua aparência e conduta. Apresenta aspecto repelente, perfil áspero e cortante, descarnadas as faces, as mãos aduncas e gastas, cheias de terra e de cabelos (...) tentava caminhar; a sua sombra oscilava, amplificada na parede, como a dum antediluviano fenomenal, e quase se não compreendia bem como aquela cousa era um homem (Idem, p.6). Observa-se aí, pela ótica do narrador, a construção de um ser excêntrico, de aparência bizarra, cuja sombra revela uma mistura de homem e animal que, de acordo com Kayser, é passível de ser enquadrado em uma segundo tipo de grotesco: os que “apresentam aparência bizarra, jogo facial exótico e selvagem, e movimentos excêntricos” (KAYSER, 2003, p.95). Assim, vagabundagem, “óptica deformante” e noite surgem identificadas ao processo de escrita fialhiana. Essas estranhas visões que sobressaem à noite fazem parte da “cidade do vício” que Fialho “pinta” com traços do marginal, cujos personagens se apresentam crivados de dores, angústias e marcados pela morte. 51 3- O PORTUGAL FIALHIANO, POR ENTRE RUÍNAS O fim do século é também, me parece, um fim de encanto. (Fialho de Almeida. Vida irônica). 52 Os anos finais do século oitocentos português apresentava-se, como já salientamos, em estado de decadência política, social e econômica, principalmente, histórica, agravada com a partilha obrigatória das terras africanas, segundo determinou o Ultimatum. Fialho de Almeida, contemporâneo ao fato histórico e consciente das tensões em que vivia o país, vai largamente observar esta momento de crise da nação portuguesa no artigo “A espoliação portuguesa n’África (panfleto aos fracos)”, inserido no terceiro volume de Os Gatos. Nesse texto, Fialho critica a usurpação das terras portuguesas de além mar pela “infamíssima aliada” Inglaterra, assim considerada pelo escritor, ressaltando que “de longa data os corsários [ingleses] seguiram a rota dos nossos galeões [portugueses], à caça de terras que nós descobrimos, e que por mal guarnecidas, eles muitas vezes assaltavam (...) o seu papel consistiu quase exclusivamente em espiar-nos os passos, e em se apropriar da casa feita” (OG III, p.65, 67). São terras de grande valor, já que, segundo Fialho, foi onde pelejaram os heróis portugueses nos séculos XVI e XVII, e a “amiga” Inglaterra planejara “derramar comércio, fundar cidades, e fazer homens ativos”. Mas Fialho vai, sobretudo, observar a inércia, o adormecimento e a falta de coragem do povo português em relação à questão africana: De feito, a nossa expulsão d’África (...), poderia já não digo evitar-se, mas ser recuada até um prazo ilimitado, podendo ser que os tramites da luta empregada para fugir à morte, chamasse sobre nós o apoio das nações neoromânticas, como a França (...). Mas é que essa expulsão se está dando com todas as agravantes de desprezível inércia, de covardia provada, d’incapacidade autentica, e de sardônica pulhice, de que nenhuma chancelaria da Europa tomará conta, sem achar o castigo inda inferior às nossas culpas (Idem, p.90- 91). Fialho pede ao povo mais iniciativa, mais engajamento: “Oponhamo-noslhe pois com todas as forças. A fórmula de protesto está criada: abaixo o 53 tratado, suceda o que suceder!” (Idem, p.94). Se os portugueses se mantivessem nessa inércia, nessa inconsciência, “este país, [que] além de pobre e [o] será por muito tempo ainda, se a depressão do regime político não cessa[r], [será] um país quase por completo embrutecido” (BP, p.271). Falta algo ou alguém “capaz d’agitar n’este fantasma de povo a consciência dormida” (Idem, p.273). Contudo, o desfecho é trágico para a nação portuguesa; suas terras de além-mar passam às ávidas mãos inglesas e Portugal acaba por se render. O autor de Os Gatos faz um retrato pessimista de Portugal, e aponta como resultado desta decadência o lento agonizar da monarquia, a que atribui responsabilidades pelo estado de coisas então vigentes: “250 anos quantas decadências, quantas vergonhas!”. Acusa particularmente o rei D.Luiz, cujo reinado, de acordo com a opinião do escritor, “adeandou mais que nenhum (...) a ruína do país” (OG I, p.155), ruína esta que se agravou pelas circunstâncias históricas que envolveram o Ultimatum: Uma a uma, sob o regime deprimente de tais reis, vemos Portugal entregar as terras d’além mar por ele descobertas ou tomadas, perder a iniciativa do comercio e navegação d’Ásia e da América, desvincular a forte e cavalheirosa nacionalidade dos séculos anteriores, e receber da Inglaterra, em vergonhosíssimos tratados de comércio e diplomacias de chantages, humilhações só comparáveis às que as nações vitoriosas costumam exigir, pela força da guerra, das nações humilhadas e vencidas (Idem, p.240). Portugal, visto pelas lentes de Fialho, é um país atrasado industrialmente, crivado de dívidas, escarnecido pelos seus aliados... em ruínas, portanto. Há que se pontuar que, entre avanços de toda ordem, o século XIX define-se pela atitude cientificista, uma vez que estavam no auge as descobertas científicas e o aperfeiçoamento material, que, teoricamente, 54 trariam a felicidade ao homem. Contudo, observa-se, na fria visão que Fialho tem do Portugal seu contemporâneo, um progresso inútil, uma sociedade injusta e decadente, em que se acentua um evidente declínio: As dificuldades da vida, o sedentarismo anêmico (...) transformaram, em quatro séculos de decadência histórica, os portugueses indômitos d’outr’ora, n’uns moluscos tímidos e doces, n’uns seres de contemplação e reflexão, n’uns homens que perderam a sombra, e que a procuram, olhando constantemente para traz (OG III, p.228) Ao que parece, “n’este final de século que a sensação transviou até às fermentações macabras da nevrose” (P, p.148), o grotesco é a forma de expressão. Note-se que, como ressaltou Wolfgang Kayser, o grotesco floresceu no século XVI, manifestando-se ainda no período compreendido entre o Sturm und Drang e o Romantismo, e desde o século XX aos nossos dias. Precisamente nos períodos históricos dominados pela contestação, em oposição constante às imagens racionalistas do mundo, à “validez dos conceitos antropológicos e [à] competência dos conceitos das ciências naturais com os quais o século XIX procurara elaborar as suas sínteses” Segundo o crítico, o grotesco ganhou mais intensidade e freqüência justamente nos períodos em que a crença na razão ou no progresso foi posta em causa: “as plasmações do grotesco constituem a contradição mais ruidosa e evidente a todo racionalismo e a qualquer sistemática do pensar” (KAYSER, 2003, p.161,162). Pelo visto, o grotesco serve a Fialho para caracterizar esses tempos de crise, de decadência, e sua utilização contrapõe-se à confiança positivista na razão, na ciência e no progresso, base do projeto naturalista, movimento a que Fialho foi tantas vezes associado pela crítica que tenta lhe impor um rótulo: o 55 de membro dessa escola, enquanto, na verdade, dela se afasta ao acentuar os traços que caracterizam um universo que aposta na fuga da realidade. 3.1-Estilos fialhianos Em contraponto à decadência apresentada, o cenário literário português apresentava-se dos mais fecundos. Como afirma Jacinto do Prado Coelho, Eça abrira a fase realista do romance, publicando em 1876 O crime do padre Amaro (na versão chamada “definitiva”) e, dois anos depois, O primo Basílio. Vinham a lume o Eusébio Macário, em 1879, e Corja, em 1880, romances de Camilo, a que se soma A brasileira de Prazins, de 1882, provas de que a atitude objetiva e o estilo impressionista se haviam integrado, até certo ponto, na arte camiliana. Já no campo do jornalismo de crítica e reportagem, Ramalho farpeava o governo e as instituições, entre outras “farpas”, imbuído de uma missão social realista, nas Farpas. Por outro lado, “o baudelairianismo, com os temas acres da cidade e da volúpia sensual, o travo satânico, a pintura dos grotescos dolorosos, imprimia feição à poesia portuguesa” (COELHO, 1996, p.188). Fialho, evidentemente, não pode furtar-se a tal atmosfera; de fato, ele saboreou de tudo. Em sua prosa podem ver-se manifestos traços realistas, naturalistas e decadentistas. Os próprios críticos não são unânimes ao enquadrá-lo em uma corrente literária: de acordo com António Cândido Franco, Fialho “é entre nós o mais limpo e talentoso representante do naturalismo literário” (FRANCO, 2002, p.13); Óscar Lopes diz que o autor de Os Gatos é 56 conhecido como “a personalidade mais saliente do nosso naturalismo”, para depois observar que Fialho vai escrever contos de estética decadente (LOPES, 1987, p.173-177); Já Jacinto do Prado Coelho, observa a narrativa fialhiana como realista, romântica, definindo-o como “romântico materialista, sensorial”, acentuando que em algumas sensações se concentra o chamado “romantismo realista”, incluindo o matiz decadente, e, até mesmo, atitudes “anti-realistas” (COELHO, 1996, p.189-191); e António Machado Pires prefere não enquadrálo em correntes literárias e sim observá-lo como “um representante da geração de fim de século” (PIRES, 1992, p.113). Pelo visto, Fialho não pode ser rotulado em uma só corrente literária ou mesmo em qualquer corrente. Segundo Fernando Matos Oliveira, “a construção deste Fialho inominável devese também ao ecletismo da obra e à contradição que atravessou os juízos estéticos do autor” (http://www.ciberkiosk.pt/ensaios/foliveira.htlm). Assim, Fialho pode ser visto como múltiplo, homem de vários estilos, cada um combinando com uma corrente literária, “pescando” um pouco de cada uma de acordo com sua flutuação humoral, como convém ao esteta da palavra que é. Pelo visto, como não poderia deixar de ser, na arte, o escritor português Fialho de Almeida vai criar o(s) seu(s) estilo(s) literário(s). Às vezes um mesmo conto pode apresentar duas correntes literárias opostas, como, por exemplo, o conto “A Ruiva” – considerado por muitos críticos como o mais naturalista dos contos. Esse conto apresenta verdadeiramente traços dessa corrente literária. A princípio, o texto parece ilustrar uma literatura somente Naturalista, cujo destino dos personagens está restritamente atribuído às influências do meio social em que vivem e à hereditariedade, pois nada do que eles façam parece poder retirá-los deste 57 círculo de mortes e misérias. Assim, logo no princípio do conto, o legistanarrador está investigando o corpo do personagem protagonista em sua mesa de trabalho. Aparentemente, pretende construir e comprovar uma tese cientificista, mas, na verdade, o texto também revela traços decadentistas, por se preocupar com a degenerescência do homem, com as coisas obscuras, enfim, com o discurso do mórbido. Tudo isso em um ambiente dominado pela nevropatia e envolto numa instabilidade psíquica, em que se observa o mundo encharcado de imagens bizarras, grotescas e horripilantes, contendo um evidente sentimento de melancolia, infelicidade, pessimismo, desencanto, em que também se observa um texto encharcado de paisagens de decadência, da dor dos humildes esmagados socialmente, sem que haja um equilíbrio pacificante ao final da leitura, até porque não tem essa pretensão reconfortante. Esse conto contém o que Fialho acredita que deveria sobressair em uma literatura daquele final de século: o pessimismo, eroto-místico, inconfidente, epileptisado da dor de viver, com desejos de morte e terrores da sepultura, vaidoso e pusitanime, pregando o amor sem posse e violentando ao mesmo tempo a natureza, niilista e egoísta, impulsiva, escorrendo luz e escorrendo pederastia (OG VI, p.68) 30. Contudo, de acordo com o ponto de vista do escritor, somente se encontra em Portugal “imitação dos defeitos grosseiros do decadismo”. Pelo que foi exposto, torna-se difícil qualquer apreensão segura que defina esse conto e o próprio autor em uma só corrente literária. Segundo Óscar Lopes, Fialho fora atraído ao Naturalismo desde a época em que escrevera “A Ruiva”. Na “Sinfonia de abertura”, texto inserido em A Cidade do vício, pode-se observar sua fidelidade ao realismo militante: 30 As citações ao texto literário de Os Gatos VI serão feitas através da abreviatura OG VI, seguida da numeração da página em arábicos. 58 “Deixando de consagrar-se exclusivamente aos regalos do mundo, nobres, opulentos e reis, para descer à generalidade das massas e baixas classes, a obra de arte tem, para ser útil, de ser sincera” (AC, p.15). Contudo, parece mudar sua percepção teórica a partir da década de 1891, pois em Os Gatos IV, ao falar da obra e personalidade de Columbano Bordalo Pinheiro (LOPES, 1987, p.177), de quem Fialho admira o trabalho pelo que ele confere de inédito à obra de arte portuguesa 31 , já se pode observar uma mudança ao dissipar a objetividade característica da obra naturalista: O que é um artista? Um homem que viu uma certa vida, experimentou emoções, e no-las conta, transfiltrando-nos o calafrio com que as sentiu. A obra d’arte é portanto uma porção de sensibilidade visionada, e interpretá-la é historiar a existência interior de quem na subscreve (OG IV, p.48) 32. Já no seguinte volume de Os Gatos observa-se claramente a sua oposição à literatura Naturalista, por ele considerada como representação fotográfica do real empírico, uma literatura que para a maior parte dos seus seguidores é observada como o colaborador assalariado da filosofia científica, tudo nela deve convergir à missão d’um grande arquivista que ao microscópio analisa as sensações e os sentimentos, disseca os homens, para os colecionar depois regularmente em grandes álbuns. N’esta faina obsedante, toda a espécie d’imaginação é proibida por contraria ao espírito d’análise que lhe preside, e assim arte reduzse a uma cópia servil da natureza, sem comentários, tendo por ideal a fotografia colorida (OG V, p.234). De acordo com a orientação de António Machado Pires, estamos perante uma literatura Naturalista, “quando os processos [de observação dos 31 Observa-se uma evidente correspondência entre Columbano e Fialho, devido ao modo como ambos interpretam a arte – “buscador d’inéditos” – e particulares semelhanças no que se refere à personalidade de ambos: o horror ao convencional, o desdenho pela arte mercantilista, a misantropia, a capacidade de causar irritações alheias, etc.). 32 As citações ao texto literário de Os Gatos IV serão feitas através da abreviatura OG IV, seguida da numeração da página em arábicos. 59 fatos] se deixam de todo contaminar pelo rigor do método de observação das ciências naturais e se faz da obra literária ilustração de teses científicas” (PIRES, 1992, p.92). Essa corrente sofreu influências de várias teorias científicas, particularmente do positivismo de Comte, do evolucionismo de Darwin e das teses sobre a hereditariedade de Prosper Lucas e Jules Dèjerine. Segundo Isabel Cristina Mateus, “o Naturalismo é, acima de tudo, uma questão de método ou de fórmula cientifica e não de retórica ou de forma (...), insistindo, assim, no caráter impessoal do método ou de fórmula”. No entanto, a estudiosa revela ao longo de seu trabalho que “o Naturalismo parece definirse, antes, como um momento de precário equilíbrio entre o desejo de transparência e a transfiguração da realidade pela escrita (...). Se o romancista nem sempre conseguiu ocultar-se, a sua presença certamente tentou passar por discreta” (MATEUS, (s.d.), p.68, 79, 80). Note-se que o extremo pessimismo que Fialho deixa evidente em suas páginas, contrapõe-se a essa confiança positivista na razão, na ciência e no progresso, base do projeto naturalista. Se, em algum momento, sua escrita deixa transparecer alguma influência dessa escola, essa influência é incessantemente negada. Na crônica “Camilo”, incluída em Pasquinadas, Fialho ressalta a modernidade dos romances do amigo (a quem o escritor admira e a quem dedica o seu volume intitulado Contos): “Em todos esses livros, o poeta dá o braço ao analista: e a análise, posto que incisiva, não viviseca os tipos até aos seus últimos promenores de histologia, nem decompõe o trabalho d’uma cabeça, como faz Zola” (P, p.34-35), condenando a arte naturalista pelo que nela há de excesso de método científico, abdicação à originalidade e cerceamento do poder inventivo do artista: 60 N’este luxo de ciência, que é um dos mais hábeis artifícios do romance moderno, muita vez o sábio prejudica as qualidades inventivas do artista, reduzindo a obra d’arte a uma monografia seca, a uma espécie de história clínica, em que o rigor do detalhe expulsa o sonho, substitui à arte a medicina, abdica da fantasia em favor da fórmula, e dispensa a criação do talento individual, para produzir romances como quem cozinha pastéis, segundo uma receita dosada, monótona, e sempre a mesma (Idem, p.35). A revolta de Fialho vai incidir particularmente sobre uma literatura a que chama “gá-gá”, que só existe por haver uma “multidão gá-gá de que ela seja a expressão vital e social” (BP, p.211). Revela-se um desejo de sinceridade que se traduz como reação contra a banalização da literatura, que exerce grande influência sobre certas camadas de leitores, que, dados ao desejo de “personalização falsa”, “põem-se a macaquear tipos de livros”. Fialho procurará opor a sinceridade de sua literatura ao convencional dessa “literatura perversa” (Idem, p.217, 224), às falsas emoções e a uma estética da imitação. Sua postura crítica parece ser semelhante à daqueles que considera os “possessos de talento”, pessoas a quem não importam a escola, as regras de estilo dominante, os conselhos dos mestres e a inclinação do público, a que o escritor se refere de modo pouco elegante, ao dizer que a atitude desses “possessos” afeta a “pudicícia alvorotada das madamas” (AE, 25). E vai adiante. “Se não há caminho rasgam-no”; se a censura pede prudência, derruba[m]-[n]a; se o público o desdenha, “passem-lhe por cima, com a insolência do gênio, para irem pedir justiça às gerações” (OG V, p. 236). O esteticismo que a práxis literária fialhiana cultiva é indissociável da imaginação, da tentativa de originalidade e da criação. Por isso Fialho vem repudiar a arte Naturalista, considerando-a como aquela que é capaz de atrofiar a alma e a imaginação dos artistas, produzindo “mais artífices que artistas, mais repetidores que criadores (...) de não tirarem do “assunto” senão 61 a cópia morta” (Idem, p.327). Falta à arte portuguesa novidade, criação; os artistas “imita[m] em vez de ter o sestro criador” (BP, p.233). Essa visão faz com que Fialho chegue à amarga conclusão de que “o português, como o macaco, sempre que admirou, macaqueou” (VE, p.74) 33. Assim, o autor de Os Gatos vem opor uma estética da imitação, racional, a uma visão emotiva, expressiva e extraordinária do mundo. Contrapondo a visão exterior, centrada na “mera cópia”, à visão interior, cujas “modalidades complexas dum espírito, têm a sua gestação na própria alma” (VE, p.74), talvez porque Fialho quisesse contrapor sua arte ao que vê, pois estava decididamente desgostoso de seu tempo, conforme afirma em Pasquinadas: “É um diabo de tempo, o nosso tempo! Tudo artifícios, ilusões, exterioridades” (P, p.40). Já no artigo ”Exposição de trabalhos dos alunos de Belas-Artes” Fialho revela a importância da expressão no campo da criação artística moderna: Para a arte o curioso é fixar na matéria imprevisível, não a silhueta morta dos corpos, mas a expressão torturada, inconfundível, roaz do pensamento. Artistas que limitam as suas pesquisas a uma animalidade meramente plástica, que pecúlio darão eles à psicologia poética e passional do nosso tempo, e que interesse pode essa obra ter na conquista da vida contemporânea? (VE, p.133, 134). Seja devido à decadência social do país, seja pela dependência dos modelos estrangeiros ou nacionais, uma vez que os alunos não apostam na criação (têm sua imagem tão semelhante à do professor, que correm grande risco de se transformarem em pastiche, pois tão sem personalidade se encontram) ou pela influência do Naturalismo francês, o fato é que a criação artística dos portugueses, segundo Fialho, se encontra decididamente infértil: 33 As citações ao texto literário de Vida errante serão feitas através da abreviatura VE, seguida da numeração da página em arábicos. 62 O que mais choca em toda (...) a arte portuguesa em geral, mesmo nos que se cuidam mestres, é a ausência de pensamento, a expressão anedótica e pueril que toda tem. Nenhuma obra portuguesa é sintética e intensa, exprimindo estados de espírito ou idéias corais bulam com a alma-mater do País. (...) Estátuas, quadros, romances, são tudo inexpressivas cópias de modelo, invenções dissolventes de alguma afectividade banal em tintas neutras, arrasoadas, histórias, lengalengas, sem que a ligá-las passe um fio de síntese, alguma simbologia vasta sob alguma atraente forma pitoresca (VE, p.128,129). Para Fialho, falta a alguns artistas portugueses talento, gênio, faculdade criadora; falta “essa iluminação interior que é a parte conceptiva, criadora, imortal do cérebro humano; esse dom de tirar água da rocha informe, de ressuscitar com vida d’espírito a matéria amorfa e analgésica, de criar formas, fantasmagorias, sonhos que agitem mundos” (BP, p.271). Falta a esses artistas essa fantasia espontânea, original, que Fialho traz para a sua prosa com a expressão grotesca. Contudo, Fialho também insurgir-se-á contra o decadentismo, embora Óscar Lopes afirme que o escritor chegou a considerar-se um membro desta escola (LOPES, 1987, p.169) e António Machado Pires afirme que Fialho é um “decadente”, um “degenerescente” (PIRES, 1992, p.114). O que se vê na crônica “Os amadores de Música”, em Pasquinadas, é que o autor de Os Gatos se apresenta como melômano, ao confessar que: (...) é singular o efeito que a música em mim produz (...) A emoção que eu refiro d’ordinário, simultaneamente ao meu coração e ao meu cérebro, n’um começo de síncope que me esfalece e deslumbra, despolariza-se e alastra-se-me em crises de delícia, por toda a rede dos nervos convulsionados (P, p.63-64). O termo melomania significa o apego excessivo à música que, segundo António Pires, “era considerado sintoma de decadência”, bastante observado na poesia que se identificava com a música (PIRES, 1992, p.114). Conforme se observa nos escritos de Fialho, a melomania, sintoma dos tempos de 63 degeneração, está intrinsecamente envolvida no âmago de seu processo de escrita, especialmente nos momentos de despolarização. Fialho vai louvar, sobretudo, o “S.Pedro dessa igreja decadista” – o poeta francês Baudelaire – ao qual aponta a poesia pulsante, mística e estranha, capaz de causar calafrio no leitor, juntamente à loucura, aos apetites e paixões egoístas, à volúpia em que ”mergulha até à deliqüescência da energia, n’ela ceva[ndo] a sua dolorosa cólera de gozar, sem que d’esses prazeres lhe derive apaziguamento interior, senão refile o exaspero dos sentidos, seu remorso e motivo de viver” (OG V, p.285-286), mas também vai considerar a literatura Decadentista, “uma literatura meio incompreensível, desconexa, arqui-furiosa, todos os fermentos de revolução capazes de destruir o que está sem maiormente curarem do que há de ser“ (Idem, p.289). De acordo com José Carlos Seabra Pereira, o movimento literário chamado Decadentismo não deve ser confundido com o sentimento de decadência, já que este é atemporal. Camões no século XVI, por exemplo, se revela um decadente em Os Lusíadas com seu “desconcerto do mundo”. Assim, para além desse sentimento pessimista, deve haver algo a mais que determine essa atmosfera decadentista própria do homem finissecular consciente do estado de declínio da sociedade da qual faz parte – o que difere é uma acentuada onda de revolta –, pois o “pensamento sente-se aprisionado no beco-sem-saída de um imanentismo absurdo. Surge, a revolta contra as causas sistemáticas” (PEREIRA, 1975, p.23). De fato, conforme observamos anteriormente, o desejo de originalidade do estilo fialhiano elabora-se sem um programa estético prévio, na recusa de todas as correntes literárias e da realidade exterior, em sintonia particularmente 64 com o entusiasmo advindo da primeira impressão, na expansão do temperamento emotivo. Contudo, por mais que o escritor afirme e recuse os padrões, as correntes estéticas, ele acaba sendo por elas influenciado, vindo a utilizar o que tanto desdiz, pois nota-se em seus escritos uma evidente aproximação das correntes estéticas que se manifestam no fim de século português, principalmente a corrente literária Decadentista, acentuando-se particularmente quando apresenta a expressão grotesca em sua prosa. Segundo Lucília Verdelho da Costa, “é certo que Fialho não pode escapar à sua época e o sonho interior que quer ver na arte se aproxima mais das correntes decadentistas” (COSTA, 2004, p.132). 3.2 - Esteticismo e Decadentismo Em uma crônica publicada em 1892, “A decadência do riso”, Eça de Queiróis opõe o tempo do mestre Rabelais à sua contemporaneidade, com intuito claro de mostrar ao leitor a melancolia que tomava a Europa do fim do século XIX. O mundo rabelaisiano é caracterizado pela alegria, devidamente marcada por um sorriso “largo e puro”, “fino e vivo”, que o autor de Gargantua celebra com a frase que deriva da observação de seu tempo: “Ride! Ride! porque o riso é próprio do homem!” (QUEIRÓIS, 1997, p.1186). Todavia, se Rabelais “ressurgisse” nos tempos finais do século oitocentos, ao observar o que restou do sorriso de seu tempo veria, segundo Eça de Queiróis, “apenas um desfranzir lento e regelado de lábios, que pelo esforço com que se desfranzem, parecem mortos ou de ferro” e diria que “chorar é próprio do 65 homem”. A justificativa fornecida pelo autor para tal perda da alegria de viver é a de que “a humanidade entristeceu, e entristeceu – por causa de sua imensa civilização”. Assim, o homem da nova civilização encontra-se voltado para os benefícios da técnica e, ao mesmo tempo em que adere à modernidade, queda-se nesse estado de tristeza. Para o autor, o homem finissecular “está implacavelmente votado à melancolia” (Idem, p.1188, 189). Se a observação de Eça se refere ao caso europeu, de modo geral, o ponto de vista de Fialho vai ser mais especifico, centrado no caso português e no marginal. A abordagem que autor de Os Gatos fará não é divergente do relato do grande escritor; contudo, seu olhar não se detém no cerne da melancolia, devidamente marcada na crônica pela perda do riso, e sim na observação de um profundo desencanto ocasionado pelos avanços da técnica, dentre eles, uma evidente ampliação às exigências do progresso e o rompimento dos laços familiares. Fialho observa que o povo português, principalmente os menos abastados, que evidentemente não tiveram acesso às benesses do progresso, tiveram sua vida agravada com essa pretensão de prosperidade, uma vez que tudo se tornou ainda mais complicado que anteriormente: “A vida complicou-se d’exigências, sem grandemente alargar os prazeres que lhe deviam de ser correlativos” (OG I, p.144). Antecipava-se, sem o saber e mais uma vez, ao que a psicanálise freudiana descobriria anos mais tarde em O mal-estar na civilização, ao afirmar que o progresso civilizatório não fez mudar a vida para melhor, não conduziu a uma maior felicidade: Durante as últimas gerações, a humanidade efetuou um progresso extraordinário nas ciências naturais e em sua aplicação técnica, 66 estabelecendo seu controle sobre a natureza de uma maneira jamais imaginada. (...) Os homens se orgulham de suas realizações e têm todo direito de se orgulharem. Contudo, parecem ter observado que o poder recentemente adquirido sobre o espaço e o tempo, a subjugação das forças da natureza, consecução de um anseio que remonta a milhares de anos, não aumentou a quantidade de satisfação prazerosa que poderiam esperar da vida e não os tornou mais felizes (FREUD, 1997, p. 39). Tamanha era (e tornou-se mais grave) a disputa e ambição, que Fialho observa, com olhar pessimista, que “o homem não é mais irmão do homem, é seu concorrente, é seu rival” (OG I, p.182), acrescentando, como a concluir de modo pessimista, que Portugal “escorre uma agonia de fin de la fin, uma enregelada miséria de país charogne, de país gasto, de país morto, de país podre!” (Idem, p.246). Segundo Isabel Cristina Mateus, a angústia perante esse fim iminente é quase um leit-motiv na escrita de Fialho e, é claramente indissociável do conceito de progresso que o escritor concebe como uma ilusão (MATEUS, (s.d.), p.265), o que deixa evidente na crítica que faz no artigo “Religião e Toilette”, inserido em Pasquinadas: O século anterior (...) não conheceu como nós este estado d’esfacelo que se chama o escárneo, e que é uma perturbação física coletiva das gerações atuais, nascida da convicção de que todo o esforço é inútil, e de que tudo à roda de nós estaciona, como nas primeiras idades do mundo, – pior do que n’elas – porque estaciona, dando-nos a ilusão de caminhar (P, p.135, 136). Essa descrença com relação ao progresso também se observa, por exemplo, no conto “O filho”, inserido em O país das uvas, onde o progresso, observado na imagem do trem de passageiros, afasta mãe e filho devido ao encurtamento de tempo e espaço que a modernidade proporciona. Esse conto narra a história de uma “pobre velha” que esperava na estação ferroviária o comboio de Lisboa que traria o filho, até então ausente, em viagem ao Brasil, para ver se conseguira melhores condições de vida, “com a esperança (...) no 67 dia em que o rapaz, tornado do Brasil, lhe fizesse passar sem fome os derradeiros poentes da velhice”. Contudo, a notícia que lhe chega é a de que “– O seu José, tia Rosa, o seu José... morreu na viagem” (OPU, p.100-109). Agora não há o filho, nem as melhorias que o dinheiro possibilitaria. A decadência que o autor de O país das uvas observa na sociedade portuguesa, devido até mesmo ao enfraquecimento das relações humanas, é definida como “o enfraquecimento ou a perversão vital do conjunto de forças que resistem à morte” (OG V, p.19). Essa decadência observada pelo escritor vem contrapor-se à idéia de progresso defendida no século XIX, já que o termo progresso implica “caminhar para frente, criar novas condições, melhorar” e decadência significa “retrogredir, deteriorar” (PIRES, 1992, p.18,19). Todavia, contrastando com todos os avanços que, inegavelmente, as conquistas científicas trouxeram e que resultaram em melhoria da condição humana, o homem viu que a técnica não o satisfez, suas questões interiores não foram esclarecidas, seus mistérios e suas dúvidas não foram respondidos. De acordo com António Machado Pires, o homem almeja uma civilização perfeita, controlada, completamente estável, negando a natureza da qual inegavelmente faz parte e pretendendo condicionar os homens a tarefas específicas, ocasionando um esvaziamento do conteúdo humano e a amarga conclusão de que “o homem já não é feliz onde e quando já não é homem. A civilização é um artifício” (PIRES, 1992, p.120). Da pretensão de que o artificial é superior ao natural, porque “o Homem faz melhor que a Natureza” (Idem), Fialho nos dá um exemplo no artigo “Rosas”, incluído em Pasquinadas, ao afirmar que o floricultor é uma artista que “leva a corrigir na flor, a obra da natureza, aristocratizando o produto, e 68 completando nos seus detalhes, a obra-prima, onde o escopo de Deus havia lançado simplesmente as grandes linhas” (P, p.188). De acordo com o ponto de vista pessimista de Fialho, a natureza não passa de um rascunho; somente a arte pode atingir “a perfeição impecável” (Idem). Nota-se nessa metáfora do floricultor o desejo pelo artificial, tão próximo à arte decadentista. Essa crença no artificial, em que o homem é capaz de vencer a natureza, gerou o desencanto na sociedade “que se traduziu na reacção idealista do fim do século, no anti-positivismo, na convicção de que afinal os artifícios desumanizam o Homem e o tornam infeliz” (PIRES, 1992, p.121). Pelo visto, se a pretensão da ciência era superar todos os males da vida, com sua promessa de modernidade e prosperidade, a promissão de felicidade não se cumpriu e o homem, de fato, não melhorou. Segundo Eduardo Lourenço, pensador da cultura portuguesa, permeia a sociedade portuguesa uma extraordinária onda de pessimismo, de desistência, de frustração, chamada fin de siècle, sentimentos que contrastam com “a crença universal do século, o seu grande mito popular concretizado pela confiança nos poderes da Ciência e nos seus efeitos para a melhoria material e moral da Humanidade” (LOURENÇO, 1992, p.32-35). Com efeito, a obra de Fialho se faz envolta nesse sentimento de decadência que invade a Europa e, por extensão, Portugal no final do século XIX. Nela observa-se a consciência da iniludível ambigüidade entre decadência social, política e econômica, e uma arte que se insurgirá contra esse estado, seja no campo da crítica, com a feitura de artigos de cunho moral em que se agudiza a consciência da vida materializada, artificial, o sentimento pessimista, o desencanto/desistência perante uma sociedade injusta, entre outros; seja no 69 campo da arte, com textos que resvalam sentimentos de melancolia, rebeldia, pessimismo, nevropatia e a irrealidade do sonho, em um mundo sem equilíbrio pacificante, conformando-se na desistência. Para Fialho, a arte deve ser capaz de comportar a “tormentosa existência contemporânea, [em que] tudo envelhece precocemente, a alma e a laringe, a fisionomia e a inspiração” (VI, p.14), o escritor defende que ela seja não apenas original, individual, criativa, mas também expressão “da alma apodrecida em dissoluções todas modernas” (Idem, p.48). Sob este ponto de vista, Isabel Cristina Mateus observa que “a valorização do estilo, a substituição do natural pelo artificial, o fascínio do oculto (...), a desrealização ou despolarização do real (...) têm a sua matriz neste desejo de transcensão através da arte de uma realidade circundante considerada como abjeta” (MATEUS, (s.d.), p.270) que encontra correlação na arte decadentista. Em “O violinista Sérgio n’um café da Mouraria”, o narrador observa o perfil de doente, de decadente e de artista, que define o personagem Sérgio, “primeiro violoncelo de S. Carlos (...). Tipo do povo, alto, seco, avermelhado d’álcool, e com uma pequena cabeça de sargento velho d’ópera cômica” (OG I, p.97). Era um marginal, boêmio, “d’esses decilitreiros que monologam de noite pelas ruas, às esquinas ladeirentas, às portas das escadas”, preferindo o café da Mouraria aos lustres de São Carlos, porque, tendo convivido muitos anos com pessoas da alta sociedade devido ao seu posicionamento na orquestra, prefere a gente subalterna, pois é “onde os seus arrazoados impressionam, os seus ditos têm eco, e o seu divino instrumento todas as noites o salva, pela virtuosidade magnífica do estro, do grotesco naufrágio de uma camoeca apanhada com grogs oferecidos” (Idem, p.97, 99). Lucília Verdelho da Costa 70 observa que “Fialho parece defender uma teoria da arte como algo de incompatível, ou de marginal, à sociedade. É possível que, ao falar de Sérgio, se caricature a si próprio e à marginalidade literária do homem de letras como uma manifestação da nevrose, “doença” mais profunda” (COSTA, 2004, p.283). É com a música que Sérgio opera a transformação, numa espécie de estado nevrótico que beira à loucura: E a mão de Sérgio, trêmula de grogs, dando saltos macabros, com as pontas dos dedos choreicos, sobre as cordas, subido fixa-se, lança uma arcada profunda, decisiva, nítida e de mestre, uma d’estas arcadas frissonantes, onde vão quarenta anos de música e d’ouvido, d’aspirações, de sonhos, de trabalhos, e que pela expressão patética deixaram de ser vibrações de cordas sobre cordas, senão vozes partidas do coração da angústia humana, Deus o sabe! para a nevoa dos problemas eternos e insondáveis (Idem, p.101-102). A música também ocasiona um estado de devaneio no próprio narrador, que, completamente dominado pela instabilidade psico-sensível, já não consegue “isolar-[se] de [si] próprio, amordaçar as animalidades d[e seu] ser”, e caracteriza esse estado como “extraordinário fenômeno, não só da correspondência, mas da substituição inconsciente, em dadas crises físicas, d’um sentido por outro, sem ruptura do estado fisiológico!” (Idem, p.104). Alguns contos fialhianos apresentam esse desequilíbrio; outros se fixam na nevrose e na perversidade. Como orienta José Carlos Seabra Pereira, o decadentista procura “a identificação com o espetáculo do horripilante e do repugnante da putrefacção e da doença, ou enfim (...) a contemplação da imagem vária da morte” (PEREIRA, 1975, p.33-34). No “Conto do Natal”, inserido em O país das uvas, observa-se uma paródia do Natal cristão e um patente exemplo da crueldade a que pode chegar o ser humano. Esse conto narra a história de uma velha que perambulava pelas ruas em plena noite de 71 Natal e assiste às dores do parto de uma mulher que, comparada à Virgem, não tem nem, ao menos, o calor do “hálito da vaca e da jumenta, e as solicitudes ideais do carpinteiro” (OPU, p.181). No mesmo momento em que as igrejas realizam a tradicional Missa do Galo, a velha assiste ao nascimento e imediato assassinato da criança pelas mãos do próprio pai: Ele [o pai] tinha nas mãos o pequeno ensangüentado, que vagia de frio, conjugando os beicinhos numa sucção d’instinto. (...) lançou a vista ao derredor, numa suspeita atroz de o estarem vendo, e ergueu o braço, com o pequeno seguro pelos pés, como um coelho... Porém a luz do luar incomodava-o. (...) veio-lhe de repente uma veneta, e bruscamente, com um resfolegar de bezerro, escavacou o pequeno contra a rocha. A pancada dera na pedra um som de melancia podre, esborrachada, em surdina, baça e turgente. Foi um momento, aquilo, e todas as coisas voltaram ao êxtase hibernal de instantes antes. (Idem, p.132-133). Como sugere Lucília Verdelho da Costa, “Fialho serve-se da vertente estética para pôr em cena a crueldade. É este verdadeiramente o tema central da narração [de alguns contos], sob uma roupagem que ilude, pelo seu esteticismo inusitado, quanto ao conteúdo da revolta e do pessimismo” (COSTA, 2004, p.290). São freqüentes as alusões de Fialho aos acessos de violência, aos estados de loucura e ao desvario. Em o “Conto do Almocreve e do Diabo”, também inserido em O país das uvas, observam-se mentiras, traições e vícios em um ambiente que se define fora dos limites da razão humana. O personagem principal, o Almocreve, por exemplo, pede ajuda ao Diabo para que vigie, enquanto viaja, a sua adúltera esposa, que, depois de muitos anos de casada, desejava ter um filho e encontrava-se às escondidas com um frade. Os diálogos entre Deus e Satanás, revelam uma relação bem próxima entre ambos, que jogam damas todas as noites, e mostram como é tênue a camada que separa os vícios e virtudes, pois, conforme explica o personagem do Diabo, “os vícios não se distinguem muito das virtudes. Por 72 exemplo, no amor, onde acaba a virtude, e onde começa o vício?” (OPV, p.235). Assim, esse conto se mostra para além de qualquer apreensão racional da realidade, em que se destacam relações falsas e traições em um mundo que parece não ter como ser sublime. Já em os “Três cadáveres” observa-se um exemplo de amor tipicamente decadentista, um amor completamente impossível de ser realizado uma vez que a amada se encontra em estado cadavérico. O personagem João da Graça, que se apaixonara quando Marta ainda estava enferma, revela seu sonho romântico diante do corpo da amada que estava sendo enterrado: “Nunca como nessa hora, João da Graça compreendeu melhor, no seu fundo de sonho romântico, ingênuo que era, a necessidade d’acreditar que a podridão não fosse um términus, tanto esse desfecho da vida lhe pareceu injusto e inexplicável” (OPV, p.285). Uma vibração mórbida que também pode ser observada no conto “A Ruiva”, no momento em que Carolina se compraz com a manipulação dos mortos na casa de observação do cemitério. Na composição do universo grotesco, observam-se traços que coincidem com a estética decadentista. Fialho em seus escritos fala das alucinações, dos delírios e das febres de que o narrador é tomado momentaneamente, diz-se propenso “às meias-visões macabras da alta nevrose” (OG I, p.121-168), que se realizam principalmente à noite, uma vez que “a noite realiza e dá corpo a todas as formas de exagero, e todas as impulsividades da luxúria, a todas as estranhezas fantásticas da ilusão” (FD, p.54), e a fantasmagoria ganha expressão, juntamente com a apresentação de tipos decadentes e bizarros. Como por exemplo, a cidade-cadáver de Vida 73 Irônica, quando ressalta sua forma trágica, paralisada, aflita e inquietante, que parece conspirar pela ovação do horrível 34. Como se pode ver, a estética de Fialho comunga, até certo ponto, com as premissas do Decadentismo, devido à crença no artificial, à consciência da degenerescência humana (psíquica) e social, à anormalidade, à constante apresentação da doença (sobretudo marcada nos contos “A Ruiva” e “Três Cadáveres”), ao anti-naturalismo, à influência da música e à redenção pela arte (observado com o caso do personagem Sérgio), e parece querer ir mais além do até então conhecido, num intenso desejo de busca da novidade, mesmo sabendo que vive numa sociedade em que os laços humanos se encontram desgastados e o progresso resulta ilusório e inútil. Diante de tudo o que foi exposto, resta dizer que sua forma de olhar deriva do pessimismo, da rebeldia e da loucura. Lucília Verdelho da Costa ressalta que “é pela arte (pela Literatura) que a sociedade deve aspirar a transformar-se – as crônicas e os contos de Fialho são eco dessa literatura nova –, mas é também em nome da arte que o escritor se revolta, negando o mundo em que vive e recriando um outro, fantástico” (COSTA, 2004, p.285) ou, como diríamos, grotesco. 4- O OLHAR DIFERENTE DO GROTESCO Fialho tem de tudo na alma: a casa de hóspedes, a existência reles de estudante, a pobreza, as mil saburras, os pequenos nadas que gastam, desgastam, e transformam, e uma alma vibrátil, um feixe de nervos ligado a uma enchente de sonho e a um orgulho doentio, como os que sentem dentro de si, e o suportam, um mundo desconhecido e nunca dantes navegado. (Raul Brandão, Memórias, Vol.I). 34 Conforme se observa na página 45. 74 A origem do termo grotesco, como já foi visto, remonta aos fins do século XV, quando escavações feitas em Roma trazem à luz um certo tipo de pintura ornamental até então desconhecida. Essa nova moda fora considerada surpreendente, tendo em vista os padrões estéticos da época, devido ao jogo incomum de formas vegetais, animais e humanas que se confundiam e transformavam-se entre si, chegando, até mesmo, a serem consideradas “bárbaras” para alguns, pois sua arte consistia em “borrar as paredes com monstros em vez de pintar imagens claras do mundo dos objetos” (BAKHTIN, 1993, p.29). Vista, sobretudo, como “estranha”, essa pintura ornamental fora posteriormente chamada de grottesca, “derivado do substantivo italiano grotta (gruta)” (Idem, p.28), muito utilizada por Rafael e seus discípulos quando pintaram as galerias do Vaticano. Contudo, algumas figuras encontradas em cavernas do período Paleolítico revelam que a existência do grotesco é bem anterior a essa descoberta feita em Roma; na verdade, esse fora apenas um fragmento de uma imensa variedade de manifestações artísticas chamadas grotescas que existiam desde a Antiguidade. Segundo Bakhtin, o método de construção das imagens grotescas deriva de uma época muito antiga: “encontramo-lo na mitologia e na arte arcaica de todos os povos, inclusive na arte pré-clássica dos gregos e romanos” (BAKHTIN, 1993, p.27). Continuamente excluído da arte oficial, o grotesco desenvolveu-se nos domínios marginais da arte. Além disso, sempre teve uma relação direta com o tempo histórico. Bakhtin revela que o grotesco, na sua origem, relaciona-se com as festas populares, e “as festividades, em todas as suas fases históricas, ligaram-se a períodos de crise, de transtorno, na vida da 75 natureza, da sociedade e do homem.” (BAKHTIN, 1993, p.8). Já o “grotesco romântico” foi um acontecimento notável na literatura mundial (conforme se pode observar na introdução deste trabalho). Assim, em todos os tempos e lugares, o grotesco sempre serviu para alguém expressar uma visão subjetiva e individual, muito distante da estética do “belo”. Desde o seu surgimento, assinala-se uma ousadia de invenção, um gesto criativo que se aventura a libertar as amarras das convenções e da banalidade, uma vez que permite olhar, reparar, enxergar, o universo de uma outra maneira, desvelando uma visão/versão totalmente nova de um mundo diverso. Seja ressaltando imagens que opõem às imagens clássicas do corpo humano perfeito e revela um corpo que não tem lugar dentro do “belo”; seja com o motivo da loucura, delírio ou febre; o fato é que o grotesco abarca a tudo que permite observar o mundo com um olhar diferente. Desse modo, a novidade que reside no universo grotesco é a anulação das ordens do mundo, uma mistura de elementos que gera a confusão, o “desequilíbrio”, diante de um mundo em que se esfacelou qualquer ordem, qualquer segurança, ocasionando um evidente assombro, abismo e, até mesmo, horror naquele que lê. Na prosa fialhiana, esse modo de “olhar diferente”, criativo, emocionado e surpreendente, como temos vindo a demonstrar, vem se contrapor às imagens coerentes do mundo, até porque o irracional rompe de modo definitivo o equilíbrio que o projeto Naturalista pretendia observar em seus textos. Em nome de uma apresentação individual e original do universo, Fialho emprega o grotesco para denunciar “a contradição mais ruidosa e evidente a todo racionalismo e a qualquer sistemática do pensar” (KAYSER, 2003, p.162). 76 Assim sendo, esse modo de desrealização que se observa na prosa fialhiana, com a utilização do grotesco, constitui-se como crítica e superação de uma estética considerada por ele mesmo como representação fotográfica do real empírico, “cópia servil da natureza” ou “fotografia colorida” (OG V, p.234). 4.1-Um bestiário de alucinações doidas e disformes Em crônica incluída em Vida irônica, Fialho descreve, a partir de sua própria experiência, um processo de despolarização do real. De acordo com a súmula feita por Óscar Lopes, "Fialho (...) entrara nos Jerónimos em dia de procissão e extasiara-se com a despolarização ou desrealização operada sobre a expressão fisionómica e corpórea dos crentes pelos raios solares que os vitrais coavam a cores diversas" (LOPES, 1987, p.177). Com efeito, é particularmente interessante a desrealização observada por Fialho, em que é possível, a partir de uma “alucinação cromática” (estado propício à emergência da visão grotesca), dar conta de uma outra versão da realidade, completamente alheia às ordens da natureza humana. Na verdade, não se trata de um outro mundo de ordens diferentes, como, por exemplo, o universo dos contos de fadas, uma vez que é o nosso mundo e não o é, isto é, é o nosso mundo que de repente se torna estranho com o aparecimento de um outro olhar, completamente distante das normas do “belo” e do sublime. Assim, a deslocação de perspectiva, operada por uma lente que, como já observamos, deturpa, destorce e transforma o real, vem dar forma ao invisível, interpretar 77 estados de impressão e dar relevo expressivo ao, até então, inédito, como a mudança de perspectiva operada a partir do vitral do Jerônimos: Há duas semanas saía dos Jerônimos uma procissão do Senhor dos Passos, e como eu passava, não sei se de propósito, entrei na igreja, a ajoelhar junto a uma das pilastras do coro. Da rosácea em vitral, aberta ao alto, como o sol já se ia obliquando para o ocaso, descia em plena penumbra do templo uma pirâmide cônica d’arco-íris, vaga, em poeiras de luz, que, apanhando as caras dos fiéis lhes dava assim uma expressão factícia e torturada, alguma coisa da alucinação cromática que devia ter tido a pupila de Quincey e d’Edgar Poe, já nos seus últimos e irremediáveis períodos d’alcoolismo. Evidente que sob aquela luz fantasiosa, as figuras ainda conservavam vida e movimento. Somente a minúcia e a fáscias não pareciam já corresponder às emoções que elas haviam sido chamadas a traduzir cá fora, ao ar, em pleno sol. E havia risos que o feixe azul tornava em carantonhas; cabeças em oração a que o feixe amarelo prestava um ar de caçoada, curiosidades alvares que pareciam êxtases, e caras de sopeiras, lívidas como se estivessem danadas de pecado... Um simples vitral me despolarizara a existência da multidão que enchia a igreja, do seu foco de realidade objetiva, atirando-ma para esses mundos do trágico e do grotesco, que parecem feitos de vapores de delírio, e lembram um pandemônio humano esfacelado por paixões e inércias mais fortes que as naturais. A cabeça dum homem de letras é mais ou menos como aquela rosácea dos Jerônimos. Ela despolariza a vida da sua noção de realidade, faz-lhe perder a coerência, e desorienta-lhe a fisionomia própria e individual té tê-la tornado numa sarabanda de caricaturas, ou numa avenida de estátuas, que raras vezes conservam a menor reminiscência do modelo que pretendiam fotografar. (VI, p. 139-140). Como se lê, o vitral da igreja surge como índice de mudança capaz de estabelecer uma divisão: inicialmente, o espaço exterior é devidamente marcado pelo termo: “cá fora, ao ar, em pleno sol”, no entanto, quando o autor é tomado por uma espécie de “luz fantasiosa” que rompe as fronteiras do real, a realidade modifica-se pelo poder do imaginário, e passa a ganhar expressão na penumbra (“plena penumbra do templo”) que, como vimos demonstrando, favorece a diluição de formas, a ambigüidade, e conseqüentemente, o aparecimento do universo grotesco. Observa-se que uma mudança de aspecto, provocada pela rosácea, quando o autor se refere aos fiéis na igreja, torna diversa a realidade, pois 78 agora os fiéis recebem “uma expressão factícia e torturada”, diferente do real, pois “raras vezes conservam a menor reminiscência do modelo que pretendiam fotografar”. Despolarizados “do seu foco de realidade objetiva”, os fiéis são observados como meras figuras, cujas “cabeças em oração a que o feixe amarelo prestava um ar de caçoada, curiosidades alvares que pareciam êxtases, e caras de sopeiras, lívidas como se estivessem danadas de pecado...”, transformados em “sarabanda de caricaturas” que somente servem ao autor para extasiar a sua alucinação e instaurar uma anormalidade. Na verdade, aqui, as imagens grotescas ainda conservam o seu conteúdo original, e somente a partir dessa base confere-se uma expressão diferente, incidência que toma uma proporção diversa em outros textos, conforme veremos adiante. Desse modo, os fiéis da igreja transformam-se em caricaturas, pois os risos perdem suas proporções e transformam-se em carantonhas, denegrindo-se ou destoando a realidade, que até pode ser visto como uma sátira, pois segundo Bakhtin “a natureza da sátira grotesca consiste em exagerar alguma coisa de negativo que não deveria ser” (BAKHTIN, 1993, p.268). Contudo, é interessante notar que esses risos emitidos de dentro da igreja, por si só, já destoam o racional ou a rigidez de que se espera de alguém dentro de um templo religioso, talvez o riso apresente-se aqui como uma espécie de “válvula de escape” que permite aos fiéis escapar ocasionalmente da coerção do pensamente racional. Talvez a sátira obtida pelo autor venha minar o prestígio da ordem religiosa com o aparecimento de imagens grotescas que opõem às imagens clássicas do corpo humano perfeito, com pretensão de ridicularizar o poder da igreja (instituição que Fialho tantas vezes criticou, conforme temos demonstrado), que já se mostra bastante oscilante. 79 Com efeito, devido à alucinação do escritor, que é característica de qualquer universo grotesco, uma vez que permite olhar o mundo com um olhar diferente, cria-se uma atmosfera outra, de bases fincadas no nosso mundo, mas que foge à realidade ao ressaltar uma atmosfera particularmente interna, de mundos subjetivos, que aparece como verdadeira realidade, materializada. Conforme afirma Fialho “esses [são] mundos do trágico e do grotesco”, que encontram correlação com o “pandemônio” e o “humano esfacelado”, desvendando-se “paixões e inércias mais fortes que as naturais”. Constitui-se assim, uma “óptica divergente” devido à configuração de um mundo que salta dos eixos humanos, totalmente alheados, ao substituir a visão banal da realidade, para narrar uma vida interna, baseando-se na fórmula do pintar o que não se vê (OG V, p.235). Seja evocando imagens que ressaltam uma instabilidade de sentido e revelam uma visão subjetiva; seja distorcendo e dando forma a uma outra realidade, a irrupção do inconsciente caracteriza essa capacidade de subverter o real, interpretando estados visuais completamente dispersos dos contornos familiares, tornando-se “estranhos” à razão humana. Kayser observa que o grotesco deve ser visto assim, como “absurdo”, uma vez que “nele se aniquilam as ordenações que regem o nosso universo” (KAYSER, 2003, p.30). De fato, a despolarização do real constitui uma evidente rejeição à “fotografia do real” que, de acordo com o ponto de vista de Fialho, deve caracterizar o processo de escrita do escritor, pois, conforme ele mesmo afirma, a mentalidade de um escritor deve ser como a rosácea dos Jerônimos, pois “despolariza a vida da sua noção de realidade, faz-lhe perder a coerência, e desorienta-lhe a fisionomia própria e individual (...) que raras vezes 80 conservam a menor reminiscência do modelo que pretendiam fotografar”. Em Os Gatos, Fialho também nos emite uma opinião a cerca dos artistas: O que é um artista? Um homem que viu uma certa vida, experimentou emoções, e no-las conta, transfiltrando-nos o calafrio com que as sentiu. A obra d’arte é portanto uma porção de sensibilidade visionada, e interpretá-la é historiar a existência interior de quem na subscreve (OG IV, p.48). Para Fialho, o artista deve ser capaz de transpor para sua obra a emoção, fruto da interioridade ou subjetividade. Conforme Isabel Cristina Mateus salienta, essa crônica de Fialho sobre sua entrada nos Jerônimos apresenta-se como “uma autêntica epifania da arte (...), “a visão pictural” do próprio processo de escrita” (MATEUS, (s.d.), p.280). Porque nessa crônica o autor nos relata como deve pensar um escritor, mostrando que o “que realmente importava na arte era o ímpeto, surto irreprimível das forças íntimas” (COELHO, 1996, p.190), caracterizando seu processo de escrita, incluindo como etapa fundamental a despolarização do real, que ajuda a libertar o ponto de vista racional do mundo e permite olhar o universo com novos olhos. Por isso, desde então o grotesco pode ser observado em seus textos. Quando se penetra nos domínios do grotesco esfacela-se qualquer relação firme com a realidade, pois a audácia das criações é fruto de uma imaginação fértil. Na verdade, o universo do grotesco possibilita uma outra forma de olhar o mundo para além dos limites da razão; ele pode exagerar ou aumentar a realidade a partir de bases reais, como pode também modificá-la totalmente, uma vez que o grotesco “franqueia os limites da unidade, da indiscutibilidade, da imobilidade fictícias (enganosas) do mundo existente” (BAKHTIN, 1993, p.42). Ao artista, é essencial uma interioridade mais rica, 81 capaz de construir uma desorientação diante de um mundo tornado absurdo, fantasticamente estranhado, que deixa o leitor com uma sensação de abismo, devido à apresentação de jogos macabros com figuras de cera e seres endemoninhados. Essa “confusão da fantasia” no grotesco é, para aquele que escreve, um mergulho além das fronteiras da razão, que o torna capaz de representar o sinistro estranhamento do mundo, em total simetria com a subjetividade. À semelhança do que encontramos nos Jerônimos, a despolarização do real observada no artigo “O violoncelista Sérgio n’um café da Mouraria”, observado anteriormente, surge propiciando imagens absurdas. No entanto, a força elementar, o elemento desencadeador, já não é o vitral de uma igreja, e sim a música, a que Fialho admite ter um apego excessivo: Oh! mas outra música há de que o ouvido é mero receptáculo instantâneo, transmissor mudo: outra música que a imaginação visual plasticisa rápido, em imagens, quase que ia a dizer dotadas d’existência, imagens que se vêem, se palpam, se enlaçam, sofrem e esmorecem, como essas aparições translúcidas que os médiuns teósofos desagregam de si, e deixam no ar, pairando, em linhas fosforescentes, feitas d’um fluido astral, e reproduzindo aos olhos d’um círculo de crentes, a fisionomia ou a figura da criatura ausente ou morta, que evocamos (OG I, p.104). A substituição “inconsciente” do sentido auditivo pelo visual surge quando o narrador é tomado por “crises físicas”, tal como ele define, “os motivos irritantes, vindos das luzes, das cores, da permuta das idéias e da intensidade rubra dos desejos, (...) entram em nós como agentes corrosivos da sutílima trama mental sob que poderia dar-se a transposição sensatória”, ocasionando uma alteração de enfoque, o tal “extraordinário fenômeno” que deforma os sentidos acarretando em “música visual, plasticisante” e “imagem como poder supremo d’expressão”. Neste caso, as imagens que surgem não 82 são deformadas e sim completamente imaginárias, subjetivas, sem qualquer base de realidade. Assim, associadas à valsa dos silfos, surge na mente imaginária do narrador uma paisagem lunar que viu desenrolar-se-lhe deante, à margem d’uma ribeira trágica e parada, onde os canaviais se sublinham apenas na noite, em tons d’azul e fósforo, muito vagos, e o diabo passa, de pescoço estendido, as asas lassas, de cócoras quase, aos pulos sobre a roca, como um grifo caduco à procura d’almas que escorchar. E sem rumor, d’entorno aos troncos, geleiras, penedias, começam a passar de vapor rondas de gnomos, leves como luzernas, embriões de seres inutilizados na oficina de Deus, fugidos do barril dos restos de criação, correndo o mundo, incorpóreos e maus, a impulsionar os crimes e as doenças... e a cadeia d’esses pequenos monstros expirala, n’uma dança infectante, ora quebrando a bicha das suas formas deliqüescentes (...), ora voltando com fermentações de larvas, n’uma fúria de viver febricitante, e apenas ritmada pelo ting-ling das gotas caídas da folhagem. Bem depressa, à medida que o lento se começa a caracterizar nos violinos, o nosso ouvido pára, toda a espécie de som parece que morreu, mas os sentidos fundem-se-nos n’um único, a visão, e ei-la seguindo no ar o turbilhão diáfano d’espectros, que ela invocou, por cambiantes, com uma sensação de relevo quase física, e uma magia d’assombro extraordinária! (Idem, p.105). Neste sentido, a visão alucinada do sujeito dissolve as ordenações do real exterior com o surgimento de figuras estranhas como os gnomos e o diabo, tornando estranho e assustador o universo comum do café, ao instaurar-se a anormalidade. O personagem do diabo, em especial, sempre foi vista pela humanidade como o avesso da santidade. Na verdade, ele é a caracterização do sujo, do erro, que aqui ganha “asas lassas” e “pescoço estendido” na captura de “almas que escorchar”. Já a figura do gnomo, observada por Victor Hugo como um ser pequeno e de aspecto disforme, “espírito da terra e das montanhas, guardião de tesouros subterrâneos” (HUGO, 2004, p.32), aqui apresenta, além do aspecto grotesco que lhe é característico, devido à deformidade física, o caráter demoníaco, pois são apresentados como “seres inutilizados na oficina 83 de Deus” que “fugidos do barril dos restos de criação, corre[m] o mundo, incorpóreos e maus, a impulsionar os crimes e as doenças”. Na verdade, esses seres que carregam consigo o elemento do “diabólico” ou do “demoníaco”, estão associados a um estado de estranheza, pois são manifestações imaginárias de caráter grotesco que geram estranheza no leitor. Desse modo, o que parece pleno de sentido, como o relato pessoal de uma simples noite em um café, torna-se destituído de sentido quando a perspectiva grotesca vem à tona. O que antes era familiar, agora torna-se estranho. De acordo com Kayser, no universo grotesco “trata-se de arrancar o leitor da segurança de sua cosmovisão e da salvaguarda no seio da tradição e da comunidade humana” (KAYSER, 2003, p.62). Assim, esse “bestiário da alucinação doida e disforme” de que é tomado por momentos pela imaginação, torna o narrador propenso “às meias-visões macabras da alta nevrose” (OG I, p.121-168), geradora de um mundo novo e peculiar, que deixa o leitor perplexo, “como se a terra nos fugisse debaixo dos pés (...) em face do estranhamento do mundo” (KAYSER, 2003, p.51). O grotesco é justamente “o que-não-devia-existir”, uma vez que “perceber e revelar tal simultaneidade incompatível tem algo diabólico, pois destrói as ordenações e abre um abismo lá onde julgávamos caminhar com segurança. (...) O grotesco destrói fundamentalmente as ordenações e tira o chão de sob os pés” (Idem, p.61). Por isso a imaginação grotesca observada na escrita de Fialho pode ser vista como uma “diabólica óptica deformante”, pois destrói qualquer ordem, qualquer valor instituído, derruba barreiras e institui a anormalidade, fruto quase sempre do ambiente noturno. 84 Em outro momento, ainda no mesmo artigo, o narrador é tomado por outras alucinações: (...) houve um momento em que eu vi positivamente em pé, por trás da rapariga, o tentador terrível alongar as unhas, como de quem fosse desencravar-lhe do seio as radículas últimas do remorso; e forçoso me foi chamar alguém, tanto a alucinação visual entrara em mim! (OG I, p.121). É interessante a semelhança com a cena goethiana que Fialho descreve em Os Gatos: O bandolim do diabo desviando Gretchen da prece, a rua esconsa, de cidade medieva, (...), cheia de silêncio e casas de granito, nichos fumosos, lampiões na agonia... e o tentador concitando a donzela a vir escutar a serenata, tendo Fausto na sombra, e sobre o gorro as duas penas de fogo a esgrimirem no ar, como floretes (Idem, p.115-116). Fialho parece ter buscado inspiração nessa cena para compor o seu texto. Contudo, o autor de Os Gatos prevê esta alucinação, tentando colocarnos no solo firme da realidade: Hoje tranqüilo, posso analisar sem parti-pris a extraordinária perturbação mental d’esse minuto. Procederia ela da tinta delirante sob que eu vejo, de há uns tempo para cá, todas as coisas dramáticas ou triviais que me circundam? (...) é certo que eu não fantasio (...) explico o fenômeno por uma aberração sinérgica dos eixos oculares (...) e, mais remotamente, ainda pelo dinamismo anormal em que a música me posera o cérebro (Idem, p.121). Mas não convence o leitor, ao afirmar-se “hereditariamente propenso já de si, às meias-visões macabras da alta nevrose”. Na verdade, o que irrompe na vida cotidiana permanece inconcebível, uma vez que seus mundos são feitos de “incertezas de fundos movediços, e perspectivas falsas”, seus personagens são meros títeres, “ou a percepção real do grupo amoroso [lhe] serviu apenas para evocar imagens cerebrais, que se objetivaram, dando nascida à imaginação alucinatória do diabo, igualmente avermelhada, pelo 85 clarão da lanterna do prostíbulo” (Idem, p.122). Esta visão que nasce de bases reais, invade o real e junto a ele se apresenta, não como um mundo paralelo, mas como uma apresentação momentânea, pois, conforme ressalta o narrador, “esta visão porém fora instantânea, e rápido o frio da noite restituíra ao meu ser pensante a integridade”. É o mundo real que ganha contornos disformes, provocando um extremo estranhamento, que Fialho já havia visualizado nas pinturas de Goya, pintor que o autor tantas vezes cita em seus textos, sendo declaradamente uma de suas fontes, visto que o escritor identifica seu processo de escrita às “deformidades de visão” que caracterizam a arte do pintor espanhol, associando sua linguagem ao sonho, ao delírio das imagens e à febre alucinatória que admira no pintor, apreciando inclusive o “mergulhos na mais profunda chacina de tortura, e deformidades de visão onde se via latejar, monstruoso, o feto do assombro, arrancado por furiosas mãos, às entradas menstruais do inarrável” (OG II, p.64-67). Em muitos momentos, os textos de Fialho parecem seguir a galeria de Goya. Em Vida Irônica, por exemplo, Fialho narra uma “cavalgada grotesca”: um “fantástico cortejo, (...) arrancado às águas-fortes de Goya!” (VI, p.288-289). Na verdade, trata-se de um cortejo grotesco formado por “velhas nos seus jumentinhos podres” que iam às romarias alentejanas, uma espécie de festa da “conflagração de coisas sacras e profanas”, ou seja, onde convergiam quem pretendia vender porcos e quem necessitava pagar promessas (Idem, p.288). De fato, as visões do artigo “O enterro de Rei D. Luiz” também são feitas de febre e alucinações. Nele, encontra-se uma apresentação do universo grotesco que condiz com o surgimento do grotesco, ainda em pinturas. 86 O narrador segue o cortejo que leva o corpo rei D.Luiz, de Cascais até aos Jerônimos. Focaliza, em especial, a rainha D.Maria Pia, cujas lágrimas que lhe escorrem abundantemente do rosto ressaltam a dor, não pela falta do marido, mas por sua própria existência, pela dor de ser mulher, de ter de governar um reino, pelo destino injusto. Somente o narrador revela sua verdadeira face. Os que seguem o cortejo vêem apenas a máscara, a máscara da rainha que tem que representar o papel da mulher dilacerada pela morte do marido devido à convenção social. Na verdade, quanto a esse ela sente uma frieza de estátua: (...) homens d’escuro virem ao chão, reverenciando a mulher que saiu do landeau, e que parece enorme e esfíngica, n’aquela postura imóvel, entre brumas de véu, como uma alegoria de dor e expiação. Já prestes, grandes alas se abriram para deixá-la passar, direito à igreja. Porém ela voltou-se, alguma coisa lhe falta, abaixa a vista; e a camareira compreende… É a cauda, que convém primeiro despegar nas lájeas, em pregas majestáticas, uma a uma, não vá ela estragar a sua grande entrada de atriz na cenografia gótica da igreja (OG I, p.171-172). Prisioneira da sua máscara e descrita pelo narrador como uma “atriz” ou a “alegoria de dor e expiação”, somente ele desvela a máscara que a rainha carrega colada ao rosto, aos que a vêem, a máscara e a face não se separam. Já o cortejo fúnebre é, na verdade, um cortejo grotesco. Apresenta-se uma alteração no modo de olhar, pressuposto da visão grotesca, em que se revela uma “atônita de mistura de grotesco e de trágico” (Idem, p.159). Uma espécie de cortejo carnavalesco feito de “máscaras e bobos”, “macacos com fardas e de mulheres com farrapos”, “figuras de cera”, “pequenos monstros de olhar estrábico, ou vago”, “caras balofas, olheirentas, dessimétricas (...) mistura de porco e cão de fila, de malandro e de títere” que “quando a máscara lhes tomba, e por detrás do cortesão surge o carnívoro, tigre ou hiena”. 87 O tema da máscara é particularmente interessante no universo grotesco, talvez pela problemática do ser e da aparência, pois “na máscara se revela com clareza a essência profunda do grotesco” (BAKTHTIN, 1993, p.35). De acordo com Bakhtin, A máscara traduz a alegria das alternâncias e das reencarnações, a alegre relatividade, a alegre negação da identidade e do sentido único, a negação da coincidência estúpida consigo mesmo; a máscara é a expressão da coincidência estúpida consigo mesmo; a máscara é a expressão das transferências, das metamorfoses, das violações das fronteiras naturais, da ridicularização, dos apelidos (Idem, p.35). No desfile do cortejo fúnebre a máscara parece ainda conservar ou lembrar traços de natureza popular e carnavalesca, talvez pela apresentação da figura do bobo, que no tempo da monarquia (atual ao texto) fazia parte da comitiva real, assim como vários anões, pessoas deformadas e felinos selvagens. Normalmente, o bobo era alguém feio ou deformado, que por si só já é caracteristicamente grotesco, pois se opõem aos corpos perfeitos e dotados de movimentos impecáveis da estética do “belo”. No desfile, ao retirar a máscara (real ou simbólica) do rosto do personagem do cortesão, por exemplo, desvendam-se figuras animalescas como, por exemplo, o “carnívoro, tigre ou hiena”, revelando a sua verdadeira essência, ridicularizando-os ao mostrar a realidade que a máscara oculta. Na verdade, a máscara pode ser vista como um disfarce ou um modo de olhar para a verdadeira natureza do homem. No entanto, é estranho notar que, ao retirar a máscara, revele-se o eu “verdadeiro” do personagem, que nesse caso é uma aparição surpreendente de figuras animalescas, lembrando-nos o que afirma o narrador: “A passagem dos grotescos é uma ovação macabra e ininterrupta” (OG I, p.186). Essa relação do animalesco na criatura humana 88 aumenta o efeito do estranhamento e, com ele, o seu caráter sinistro; além disso, desvela alegorias cujo conteúdo significativo é a ridicularização. Em um dado momento, a procissão segue, e na mente do narrador surge uma “conspiração de belo-horrível”, criada segundo uma visão noturna: hei-de rir amanhã d’estas visões, cujo fundo d’assombro não existia talvez senão na febre gestadora do meu cérebro: entanto é extraordinária a epilepsia com que a imaginação começa a esfuriar-se em certas horas, e larga, das cavernas do medo, o bestiário da alucinação doida e disforme! (OG I, p.168). Nasce um mundo próprio e noturno, que foge a qualquer interpretação racional, já que nosso mundo perdeu as proporções reais. Apresentam-se seres que emergem do abismo: “de nuvens lôbregas, d’animais-demônios, de seres talhados na turgência de deformidade, larvas e esfinges, morcegos e panteras, misturando espécies incoerentes, as viscosas às córneas”. Além disso, Kayser observa o caráter sinistro e estranho do morcego, considerandoo o animal grotesco puro, pois sugere a mistura antinatural dos domínios que se concretizou neste ente sinistro. E, ao lado dessa cultura estranhadora, há um modo estranho de vida: um animal crepuscular, de vôo silencioso, com inquietante agudeza perspectiva e de segurança infalível nos rápidos movimentos (...). É estranho, até no estado de repouso, quando permanece envolto nas asas como num manto, dependurado de uma trave com a cabeça para baixo, mais parecido num pedaço de matéria morta do que a um ser vivo (KAYSER, 2003, p.158). Os animais noturnos e rastejantes, “que vivem de ordens diferentes” (Idem, p.157), são os preferidos pelo grotesco. Para Fialho, o morcego é o pássaro da morte “que entoa nos lugares fúnebres a ladainha do espanto” (OPV, p.290). Assim, desse acúmulo turbulento de seres estranhos gera-se uma profusão de seres que beira ao exagero, e indica-se a combinação de seres heterogêneos que encontram correlação com uma concepção bem 89 antiga a respeito do grotesco, já que, ainda nas escavações descobertas em Roma, as descrições das pinturas revelam o rompimento das fronteiras que dividem os “reinos naturais” no quadro habitual do mundo, dando curso à livre fantasia (BAKHTIN, 1993, p.28). Construídas da mistura entre os domínios, o desordenada mistura de “espécies incoerentes”, “viscosas às córneas” e “porco e cão de fila” (apresentado no cortejo) surge como monstruosa, criada em bases unicamente imaginárias, com intenção de participação em um mundo diferente. Essas são características do grotesco que surgem num documento antigo da língua francesa, pois essa mistura do animalesco ao monstruoso é uma das características fundamentais do grotesco, que “já transparece no primeiro documento em língua alemã” (KAYSER, 2003, p.24). Portanto, essas “animalidades quiméricas que a imaginação ergue das trevas” (OG I, p.161), revelam uma “indecisa abundância de negrumes, sem silhouette, imbricados uns nos outros como ardósias, e obliquando-se, em sinuosas linhas, te à água” (Idem, p.168) que confunde os domínios da natureza. Ao transportar essa imensa diversidade de seres como, por exemplo, “animais-demônios”, “larvas e esfinges, morcegos e panteras”, apagam-se as fronteiras da realidade porque se destruíram as perspectivas habituais do mundo em todos os seus detalhes. Revelam que as imagens grotescas estão disseminadas por toda parte do texto e mostram um corpo disforme que não tem mais nenhuma relação com a estética do belo. Victor Hugo observa no prefácio que redigiu para o Cromwell a importância e combinação do sublime e do grotesco, ressaltando uma inerente ligação e afirmando que “tudo na criação não é humanamente belo, que o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do grandioso, o grotesco no reverso do 90 sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz” (HUGO, 2004, p.26). Todavia, o que tem visto na obra de Fialho contrapõe a visão do crítico, pois nesses textos não se observa o grotesco frente à unicidade do belo, como uma espécie de pólo oposto ao sublime, e sim como figura individual, vista isoladamente ou como ratificação de ausência do belo. O próprio Fialho comenta esse prefácio em Os Gatos e diz: “o prefácio do Cromwell de Victor Hugo, jungindo o grotesco ao trágico, [supõe] que uma tal aliança bastaria para assemelhar a arte à vida”. Para o autor, é preciso mais, faz-se necessário “fazer o claro-escuro dos personagens, forrá-los dos vícios e dos ridículos com que a história os explica e faz humanos” (OG III, p.242). Os escritos do autor de “A Ruiva”, observados até o instante, não fazem referência ao belo, ao grandioso, ao sublime, nem ao bem; somente se observa o feio, o repugnante, o deformado, o transformado, e no momento em que o belo pode ser visto, ele imediatamente é deteriorado, como se pode observar no conto “A Ruiva”, no momento em que o narrador faz referência ao seio jovem e atraente do personagem: “O seio era branco, assim descoberto, estreito e apetitoso como uma miniatura, mas incapaz de amamentar um filho” (AR, p.28). O seio até pode ser belo, no entanto o narrador o mostra a incapacidade de cumprir uma das etapas mais importante da mulher-mãe, a amamentação. Talvez Fialho apresente essa predileção pelo grotesco porque a sua intenção tem bases fincadas na sociedade, almeja mostrar as falhas, conforme veremos adiante. 4.2 - Mundos feitos nas incertezas de fundos movediços e perspectivas falsas 91 A propriedade característica do cânone literário clássico apresenta-nos um corpo humano em total integridade, conforme observa Bakhtin: “corpo perfeitamente pronto, acabado, rigorosamente delimitado, fechado, mostrado do exterior, sem mistura, individual e expressivo” (BAKHTIN, 1993, p.279). Tudo o que salta do corpo, isto é, tudo o que excede os seus limites, não toma parte do relato, porque o que se pretende destacar é um corpo perfeito, sem falhas, sem defeitos, talhado na justa medida da sua perfeição. Essa superfície fechada, acabada, que não se funde com o outro, ganha destaque nesse tipo de narrativa; por isso não se faz menção à fecundação, ao parto, à gravidez, isto é, “tudo que trata do inacabamento, do despreparo do corpo e da sua vida propriamente íntima” (Idem, p.280), porque não é de “bomtom”. Se mencionadas certas partes do corpo como, por exemplo, os órgãos genitais, o ventre, o nariz ou a boca; essa menção tem um caráter exclusivamente expressivo ou privado, pois só são mencionados no plano prático e restrito, na vida corrente privada. Para esse cânone, o corpo é único, individual, não conserva marca de dualidades e não pode ser misturado, nem transformado. Bakhtin observa que todos os acontecimentos que afetam esse corpo têm uma única direção: “a morte não é mais do que a morte, ela não coincide jamais com o nascimento; a velhice é destacada da adolescência” (Idem, p.281), pois o que marca o fim não pode reunir-se ao começo. Já a concepção do corpo grotesco apresenta-se-nos totalmente diferente. Ele extrapola seus limites, como observamos, por exemplo, na crônica dos Jerónimos, onde os fiéis da igreja transformam-se em caricaturas, 92 pois perdem suas proporções e transformam-se em carantonhas, o que se observou também na transformação/deformação do cortejo fúnebre que acompanha a rainha no artigo “O enterro de Rei D. Luiz”. Enfim, o corpo grotesco não é visto como completo, acabado ou único. Aliás, é bem o contrário, é um corpo com defeitos e falhas, como se pode observar, por exemplo, no personagem do conto “Os pobres”, descrito pelo narrador como um “pobre diabo”, “monstro”, “bicho”, “gorila”, “feio” e “corcovado” (OPV, p.6873), mesmo porque “o grotesco ignora a superfície sem falha que fecha e limita o corpo” (BAKHTIN, 1993, p.278). Certamente, porque é um corpo que não tem limites fixos, a ele podem juntar-se outros elementos, até mesmo de natureza animal; ele pode crescer ou diminuir ao ponto de sumir, pode apresentar seu despedaçamento e suas aberturas: “é o corpo fecundante-fecundado, parindoparido, devorado-devorador, bebendo, excretando, doente, moribundo” (Idem). Com efeito, a morte do corpo grotesco não põe fim a nada de essencial, porque não se tem fronteiras. O conto “A Ruiva”, por exemplo, é um texto que se constrói a partir da morte em vida. Na verdade, vida e morte coexistem o tempo todo no conto; no entanto, nem sempre a vida é só um começo e a morte um fim. Essas fronteiras se dissipam a ponto de a morte impregnar toda a vida. “A Ruiva” é uma narrativa escrita em analepse, que se constrói da partir a morte da protagonista, a Carolina. É diante de seu cadáver “cortado em postas” (AR, p.3) que o legista-narrador vai revelar a história daquela que antes de morta tinha um nome próprio, Carolina, e que, ao falecer, passa a ser reconhecida como a “Ruiva”. De fato, essa imagem grotesca do corpo despedaçado ressalta-lhe a desagregação, a não-integridade, o marcadamente 93 disforme que se constitui como “elemento fundamental do sistema de imagens grotescas” (BAKHTIN, 1993, p.22). Em outro momento da narrativa, esse mesmo corpo é visto “espedaçado pelo (...) escalpelo” e como uma “caveira fria, limpa de películas e cartilagens, branca e escarninha, cujas maxilas escancaram” (AR, p.96). Nesse momento, permite-se observar o caráter macabro, sinistro e alheado do grotesco. Na verdade, o cadáver que o legista-narrador – que muitos críticos assemelham ao próprio Fialho porque se formou em medicina, mas somente exerceu a profissão por dois anos, segundo dados emitidos pelo próprio autor (foi no “concelho rural do Alentejo, onde eu cliniquei por espaço de dois anos” (VI, p.211) –, disseca é o de uma sociedade morta de valores, hipócrita, minada pelo vício e que condena seus filhos à prostituição: “a prostituição desenhava-se-lhe como a solução natural no problema da vida de uma rapariga pobre” (AR, p.30). A Carolina é apenas um pretexto para abordar as questões que atingem essa sociedade. Já o conto “Três cadáveres” apresenta a imagem grotesca da decomposição cadavérica. O personagem Marta, internada em um hospital “infecto” e “pululante de larvas” (OPV, p.250) por se encontrar tísica, ocupa a cama 27, “local de biografia sinistra e mortuária”, acaba enamorando o jovem estudante de medicina João da Graça. Contudo, a jovem vem a falecer, e seu aspecto é de uma ossada nodosa e cheia de vergões por sobre a flacidez da pele que a revestia, às equimoses roxas pelo dorso, murcha, torcida, e bem afastada já da gracilidade airosa d’outro tempo. O ventre, metido para dentro, começava a encher-se de listrões de verde glauco, em que as varejeiras picavam de raspão; o seios murchos, enrugados, vazios, descarnavam um colo cheio de máculas de cáusticos (Idem, p. 270). 94 João faz de tudo para enterrar o corpo de Marta dignamente, mas como não tem como cobrir as despesas de um enterro, seu corpo é conduzido à sepultura num caixão de aluguel, que é preciso retirar antes do enterro, entregando-o à terra sem qualquer proteção: “o horror de lançar à terra aquela mimosa estátua d’infortúnio, sem outro invólucro mais rijo que a mortalha, que redimi-la pudesse aos primeiros das larvas carniceiras”. O cemitério apresentase como uma “penumbra fétida e hiperbólica”, uma espécie de “Gomorra submersa”, cujas fervilhações misteriosas, vislumbres d’almas, agitavam aquelas carcaças deitadas para ali, a apodrecer... vida sem cérebro, regida (...) por uma espécie de sensibilidade espinhal inerente ainda à matéria animalizada _ como se a natureza, essa cozinheira de restos, tentasse criar com aqueles destroços outra humanidade, acéfala, gestadora de monstros (Idem, p.290). No enterro, João auxilia o coveiro e subitamente a terra “esbarrond[a] por debaixo dos pés do estudante, fazendo-o largar a morta que caiu desamparada no charco”, cobrindo o corpo da defunta de “crostas repelentes”. O corpo enlameado, a cabeça cheia de “piolhos brancos, furiosos”, a “palidez exangue” de “sangue deletério”, que um “excesso de mortificação fazia horror”, conformam a visão grotesca. Essa imagem grotesca do corpo descarnado, em decomposição e ainda humilhado, revela a estranheza do corpo ao perder a vida. Kayser observa que é um motivo duradouro do grotesco o corpo coagulado em larvas (KAYSER, 2003, p.158). No grotesco, a morte pode relacionar-se ao nascimento, apresenta-se indissoluvelmente a ele imbricada, pois “a imagem grotesca caracteriza um fenômeno em estado de transição, de metamorfose ainda incompleta, no 95 estágio da morte e do nascimento, do crescimento e da evolução” (BAKHTIN, 1993, p.21). É uma espécie de atitude de permanente evolução que gera uma ambivalência: “os dois pólos da mudança – o antigo e o novo, o que morre e o que nasce, o princípio e o fim da metamorfose – são expressos (ou esboçados) em uma ou outra forma” (Idem, p.22). Assim, no conto “A Ruiva”, o narrador revela que a Carolina nascera da morte da mãe. O corpo que deu a vida desaparece, e outro vem ao mundo, ressaltando, assim, a proximidade entre berço e túmulo: “saímos do ventre materno para um berço e na hora da morte vamos para um caixão, ambos feitos de tábuas” (OLIVEIRA, 1998, p. 7). O corpo novo ganha destaque na narrativa, mas o antigo ainda faz falta, pois era a mãe de Ruiva quem vendia as hortaliças viçosas plantadas pelo marido, o coveiro, no cemitério, e que dizia serem de Odivelas. Os fregueses, enganados, consumiam com bom gosto as verduras nutridas pelo húmus humano: “hortaliças que com o tempo e o belo tempero da terra adquiriam grande desenvolvimento” (AR, p.9). Revela-se que os cadáveres não são dispensados; eles ainda são úteis, uma vez que servem de húmus para as hortaliças que crescem viçosas e vão alimentar outras pessoas. Esse é o reconhecimento de que a vida surge da morte e de que nada é inútil para a natureza. Essa imagem introduz-nos mais uma vez na lógica grotesca, pois a fertilidade da terra, enriquecida pelo húmus humano, faz aparecer algo novo, como as hortaliças. É o que Bakhtin chama de aspecto cósmico da fertilidade da terra: “A morte, o cadáver, o sangue, grão enterrado no solo, faz aparecer a vida nova: trata-se aqui de um dos motivos mais antigos e mais difundidos [do grotesco]. Conhecemos uma outra variação dele: a morte semeia a terra 96 produtora e fá-la parir” (BAKHTIN, 1993, p.286). Assim, essa morte-renovação de aspecto grotesco iminente parece ressaltar que a morte, observada nesse conto, transpassa o sentido banal da realidade e cruza-se o tempo todo com a vida, até mesmo nas menores coisas. Terreno minado por elementos soturnos e abismais, de caráter sinistro e angustiante, o ambiente desse conto é, na verdade, um “trampolim” para o aparecimento do grotesco. O personagem principal, descrita pelo narrador como uma “perdida criatura”, opera um momento de total desrealização da realidade, ocorrida repentinamente e capaz de dar forma ao anormal de caráter grotesco, capaz até mesmo de suscitar vertigem no próprio personagem e nojo no leitor. Assim ocorrre a Carolina, que, em noite de solidão, mais uma noite sem a presença do pai que dorme pelas covas sepulcrais do cemitério, repentinamente experimenta algo até então inédito: (...) de súbito, alguma cousa a arremessava à lembrança condenada dos homens adormecidos na casa das observações, e via-os surgir das suas mortalhas alinhavadas, sorrindo, com vida; estendiam os braços a procurá-la; roídos de vermes, muitos vinham, como na dança do Roberto, roçar-lhe pelos quadris os membros esquálidos e podres. E estonteada, fitando no vácuo aquela visão candente, miserável nos seus quinze anos, sentava-se, extenuada e languescida, à sombra dos ciprestes anosos e dos túmulos soberbos, com a cabeça aos baques, revolta a alma por criminosas comoções (AR, p.14). Os mortos que Carolina tantas vezes acariciou, pelas escondidas na casa de observações, ganham vida, e do mesmo modo se misturam ao mundo humano, buscando retribuir-lhe os afagos e desfilando sorrisos sórdidos. A vivência desse alheamento se introduz justamente no momento em que o elemento espectral é manifestado. A visão que se tem é a de um corpo monstruoso e disforme, de “membros esquálidos e podres”, portador de algo 97 estranho e desumano, de aspecto grotesco que, de repente, se manifesta diante de Carolina. Kayser ressalta que “o repentino e a surpresa são partes essenciais do grotesco” (KAYSER, 2003, p.159). Talvez por isso o horror a assalte com tanta força fazendo-a sentar-se, pois os mortos são parte integrante de seu mundo. Mas essa aparição retira toda a segurança que o personagem pode demonstrar frente a um mundo racional, desorientando-a. A deslocação da realidade, devido à manifestação de uma forma sobrenatural, utilizada para a produção do grotesco, vem dar conta do desconhecido e provocar o processo de estranhamento ante o repugnante. Em crônica inserida em “Barbear, pentear”, Fialho parece apreciar a continuidade do ser, quando diz que se deve “dar aos mortos uma ação de presença sobre os vivos, misturando à beleza augusta do sonho que a obra d’arte, genuína, sintetiza...” (BP, p.141). Assim, no conto, o ser corroído pela deformação ganha vida e atormenta, vem mexendo-se ao encontro de Carolina. Esse motivo contém por si só um conteúdo macabro, que, de acordo com Kayser, entra na estrutura do grotesco (KAYSER, 2003, p.159). Já no conto “O Anão”, inicialmente publicado com o título “Lenda do Carrasquinho” no jornal O Ocidente, em 1884, e inserido em O país das uvas, apresenta um mundo tão particular, de meios estruturais tão próprios, que se pensa que não chegará a qualquer espécie de “estranhamento”. A princípio, o universo do conto é visto como um mundo totalmente diferente de nossa realidade, como se tratasse de uma nova ordem mundial distinta ou um mundo especial que teria definições próprias, que nos faz perder um pouco a capacidade de estranheza. 98 O personagem Carrasquinho, conhecido também como anão ou grão de milho, é um homem de vinte e cinco anos que com o passar do tempo e cada dia diminui mais. É de estatura tão baixa que estando ao sol, num olho de couve, veio uma vaca e meteu-os a ambos no bicho. Primeiro que o tirassem da vaca, um trabalho medonho, e todas as raparigas da aldeia tinham vindo oferecer-se para o lavar dos enxovalhos da viagem (OPV, p.153). A imagem do impossível beira o exagero; a figura do anão, freqüente no universo do grotesco pela disformidade física, é vista de maneira acentuada, pois ele diminui com o passar dos dias, incorrendo em exagero. Kayser observa que “o exagero, (...) o excesso são, (...) os sinais característicos mais marcantes do estilo grotesco” (BAKHTIN, 1993, p.265), um recurso extremamente utilizado nesse conto. Além disso, a inesperada viagem de Carrasquinho ao interior da vaca e sua difícil volta ao mundo, apresenta um caráter ainda mais grotesco e bizarro, que tende a destruir a perspectiva racional do nosso mundo em todos os detalhes. Devido à diminuta estatura, algumas de suas ações revelam uma dimensão satírica, pois é impossível não perceber que o grotesco se apresenta aqui com tintas de humor: a primeira é sua viagem ao interior da vaca; a segunda é que, estando o patrão recebendo magnatas em casa, Carrasquinho aproxima-se do chapéu de pêlo de um dos convidados, curiosamente vai observar o interior do chapéu e lá acaba caindo, sem conseguir sair. Depois, Carrasquinho necessitava de uma capa para casar-se; não tendo saída, vai ao casamento com a capa de uma boneca; por fim, sua esposa confunde-o com o filho, distraída leva-o ao colo à igreja e ainda lhe troca as fraldas. Para o leitor, a insanidade rege o conto como principio de ordem, até que um dos personagens introduz o estranhamento: “– Já se viu noutra terra 99 homem daquele tamanho?”. Contudo, o fato só é suscitado quando a população compara a figura estranha do anão com uma aparição misteriosa, associada à figura de um diabo, uma vez que uma figura de aspecto estranho atormenta à noite a população, que acredita ver nela semelhanças com Carrasquinho: “– Vocês repararam como ele se parece tanto com um bode? Os olhos, o focinho, a voz balada e profunda, e aquele ar de maganice nos solavancos da cabeça?...”. A figura disforme do anão, de acentuada feiúra, ainda apresenta uma sinistra semelhança com um animal – o bode, encarnação do diabo: “os maiorais de Gamenha tinham-no visto em forma de bode, com pés de gente, a barba açafroada, dançando à volta duma cruz partida na encruzilhada da Vargem” (Idem, 160; 162), a quem atribuem todas as desgraças, humilhando-o socialmente ao compará-lo à figura demoníaca de conduta e aspecto grotescos. Na verdade, Carrasquinho havia sumido porque sua esposa, Rosa – que também apresenta aspecto grotesco, pois era “uma cavalão da mais desmedida estatura” que “a mãe trouxera (...) vinte e sete meses no ventre, e tinha (...) parido durante seis dias” – o expulsou de casa. Não tendo onde viver, “ia por esses campos, batendo os queixos de frio, à procura de valhacouto onde esperasse a madrugada. Buscava então os rebanhos, entrava cuidadosamente nas arribadas das granjas, nas ramadas das ovelhas, os cães eram amigos dele – e ali passava a noite, aquentado na lã das reses”. Todavia, poderes demoníacos são atribuídos a Carrasquinho, que não consegue fugir ao julgamento da população: Já os olhos se acendiam de faúlhas sinistras, e os gritos de – mata! mata! – entravam a circular. 100 – É o diabo! declaravam todos. Nós o vimos, fora de horas, este mesmo, aos pulos por esses rivais! – Então damos cabo dele (Idem, p.166). O padre até tenta acalmar os ânimos da população, mas um homem que se encontrava bêbado, conhecido como Palhaço, sobe à torre da igreja e atira Carrasquinho que “ve[m] amachucar-se em baixo, cavamente, nas velhas lajes sepulcrais do adro”, o que provoca o final trágico do conto. Assim, no conto “O Anão” apresenta-se uma figura cara ao universo grotesco, o anão, que pelo corpo físico se mostra diferente, destoante perante outros homens, pois sua disformidade física diferencia-se claramente das imagens clássicas, preestabelecidas e perfeitas. Nesse caso, ele ainda apresenta a feiúra e a semelhança a um animal, o bode, outro recurso bastante utilizado no grotesco. Além disso, o conto parece ter seu mundo próprio, de estrutura diversa, que não causa estranheza às demais personagens, até mesmo quando é ressaltado o seu tamanho diminuto que mais diminuto se torna com o passar do tempo. Contudo, o estranhamento vem à tona quando um dos personagens acentua a sua unicidade, que gera estranheza. Revela-se que esse não é um universo além da nossa ordem, e sim que apresenta seres e aspectos estranhos à nossa realidade. Assim pode ser visto o universo grotesco na prosa de Fialho, como a apresentação de uma nova forma de olhar. O grotesco, como vimos demonstrando, é fruto de uma visão emotiva, expressiva e extraordinária do mundo, que vem contrapor a visão exterior à interior, ressaltando mundos subjetivos, cujas “modalidades complexas dum espírito, têm a sua gestação na própria alma” (VE, p.74). Recusando a condição de simples imitador da realidade, pela necessidade de dar forma ao “indizível” e de criar a partir de 101 passeios noturnos, Fialho revela em sua obra, e a partir do grotesco, a força criadora e libertadora da imaginação. Foi assim, “pinta[ndo] uma coisa fora do modelo visto” (OG IV, p.51), talvez porque misantropo e retirado, não [sentisse] a vida senão por fragmentos, e tudo aperceb[esse] por uma só máscara, a lívida, ei-lo envolvendo o fundo dos quadros em brumas cor de cinza, não acabando nunca, pela necessidade de só pintar (...) – tipos incompletos, almas em pedaços (Idem) que Fialho revelou esse “grito” da alma, esse “tic” do cérebro, conforme ressalta em “Barbear, pentear”: (...) esse grito, esse tic, essa iluminação interior que criadora, imortal do cérebro humano; esse dom de informe, de ressuscitar com vida d’espírito a analgésica, de criar formas, fantasmagorias, sonhos (BP, p.271). é a parte concetiva, tirar água da rocha matéria amorfa e que agitem mundos Fialho reconhece que seu cérebro não consegue ficar imune ao “poder amplificador dos grotescos” (OG II, p.51); sabe-se propenso “às meias-visões macabras da alta nevrose” ( OG I, p.121-168), que se realizam principalmente à noite, como é condizente com sua imagem de “vagabundo boêmio” que tanto aprecia. Além disso, encena a atmosfera grotesca porque lhe é intrínseca: ”A minha natureza não compreende infelizmente os Hermann, senão castrados. Ela gosta de sentir no idílio a carne latejante, a paysaneria rude e brutal; jamais figurinhas de Kate Greenaway, brancas e bonitas” (VI, p.142), pois sabe que, diferentemente de alguns artistas portugueses, não tem as “asas cortadas” nem os “vôos muito curtos” (OG V, p.237), se mostra em sua obra tantas disformidades e alucinações, que muitas vezes beira ao exagero, foi porque quis mostrar que a arte portuguesa precisava de mais sonho, mais imaginação. Estava cansado da literatura contemporânea, pois desabafa que 102 n’este luxo de ciência, que é um dos mais hábeis artifícios do romance moderno, muita vez o sábio prejudica as qualidades inventivas do artista, reduzindo a obra d’arte a uma monografia seca, a uma espécie de história clínica, em que o rigor do detalhe expulsa o sonho, substitui à arte a medicina (P, p.35). Para Fialho, a arte deve ser capaz de comportar a “tormentosa existência contemporânea, [em que] tudo envelhece precocemente, a alma e a laringe, a fisionomia e a inspiração” (VI, p.14). O escritor defende que ela seja não apenas original, individual, criativa, mas também expressão “da alma apodrecida em dissoluções todas modernas” (Idem, p.48). Se o grotesco nasceu e ganhou freqüência nos períodos históricos marcados pela contestação e oposição às imagens racionalistas do mundo, conforme nos ensinou Wolfgang Kayser, a sua utilização na obra de Fialho não se apresenta diferente. Pois o grotesco serve a Fialho para caracterizar esses tempos de crise, de decadência, e sua utilização contrapõe-se à confiança positivista na razão, na ciência e no progresso, base do projeto naturalista, movimento a que Fialho foi tantas vezes associado pela crítica. Assim, o predomínio da imaginação grotesca, fruto do rompimento com o sublime (“estilo nobre”) e da grandiloqüência discursiva (AE, p.23), contrapõe a visão naturalista a um modo de escrita marcado pela intenção de transcender a realidade. Assim é que recusa a condição de simples imitador da realidade, pela necessidade de dar forma ao “indizível”, de criar a partir de passeios noturnos e, sobretudo, pelo interesse de renovação (ou experimentação) da linguagem, opondo-se claramente com sua arte à predileção do público português pelo belo, aí ausente, a que opõe essas imagens grotescas, modo irônico de contestar e resistir ao apelo das formas cientificizadas do Naturalismo corrente. 103 O autor de Os Gatos cria esse universo diverso, bem distante da deplorável condição portuguesa de que Fialho se dizia cansaço: “É um diabo de tempo, o nosso tempo! Tudo artifícios, ilusões, exterioridades” (P, p.40). Em sua obra o grotesco pode ser visto como um desejo intenso de transcender através da arte uma realidade considerada desumana e também uma forma de rebeldia, ao negar o mundo real e recriar um outro. Se “n’este final de século que a sensação transviou até às fermentações macabras da nevrose” (P, p.148), o grotesco pode sim ser a forma rebelde de expressão. CONCLUSÃO Sigo o curso dos meus sonhos, fazendo das imagens degraus para outras imagens; desdobrando, como um leque, as metáforas casuais em grandes quadros de visão interna. (Fernando Pessoa/ Bernardo Soares. Livro do Desassossego). Ao final desta dissertação, as palavras do semi-heterônimo de Pessoa, Bernardo Soares, parecem evocar o processo de escrita de Fialho. Um modo de escrita calcado na emoção, no transbordamento da visão interior, em compasso com um desejo intenso de originalidade. Dono de um polêmico temperamento, Fialho sempre desejou ser reconhecido como um escritor marginal, revoltando-se contra o poder político vigente, contra as formas de instituição, inclusive as formas literárias/artísticas 104 em voga e investindo, inclusive, contra todos aqueles que divergiam de seus pontos de vista. Considerado por alguns críticos como um escritor temperamental, de humor oscilante, o autor de Os Gatos recusou qualquer academismo em prol da construção de uma obra original, que possuísse a sua marca, a sua assinatura. Considerado por si mesmo como panfletário flagelador, Fialho critica as instituições de uma forma geral, dedicando maior atenção ao jornalismo, até mesmo pela profissão que exerceu, condenando os jornalistas que se vendem ao gosto da moda e do público. Para cumprir tal objetivo utiliza-se da “máscara”, ou seja, assina os artigos com pseudônimo de Valentim Demônio ou de Irkan, pois escrevera em terreno minado pelas conseqüências provocadas pelo Ultimatum inglês de 1890. Já o desejo do luxo e a excêntrica indumentária com que os colegas relatam que ele se portava nas reuniões, gerara uma série de comentários. O autor de “A Ruiva” chegou a ser considerado um dândi pela critica. Ao observarmos o modelo de dândi construído por Charles Baudelaire, pode-se ressaltar que Filho apresenta realmente alguns traços desse dândi, distanciando-se, porém, no que se refere à aristocracia de berço, pois Fialho nasceu de uma família pobre, embora demonstrasse uma espécie de “aristocracia interior” dos que são “ricos em força interior” (BAUDELAIRE, 1995, p.872). Tal como o dândi, a aparência contava muito para Fialho, e o distinguia entre os demais. Era, de fato, um rebelde bem apresentado, e, até mesmo, excêntrico, que se opunha ao excesso tal como o dândi no combate a trivialidade, pregando a originalidade. 105 Criticando tanto a vida pública como a privada dos portugueses, incluindo desde as formas de ensino a desfile de criancinhas, Fialho pôde falar de quase tudo, porque possuía uma cultura profícua. Esse foi um dos fatores que o impediram de conter-se em um romance. Também confessa em “Autobiografia” que um romance demanda tempo e dinheiro, duas coisas que não possuía no momento; além disso, não acreditava que existisse em Portugal público leitor para tal projeto. Talvez por isso limitou-se a escrever muitos contos e artigos que, pelo que vimos, nos deram um perfil bastante singular do Portugal do seu tempo. Pesquisando o inédito e o marginal, inserido em um mundo de sombras e mistérios, Fialho ia registrando nos excessos da linguagem emotiva as suas impressões de espectador. Lisboa, para Fialho, tinha um lado desconhecido, que ia sendo percorrido, não com um olhar deslumbrado, como aponta Barthes, de que é tomado diante de Paris, quando se acentua a “cegueira” que esse “deslumbramento” provoca. Dissemos que Fialho parece não correr este risco; ao contrário, o escritor mais do que vê, ele “repara”, “considera”, “analisa”, parecendo seguir o conselho de que falaria o português José Saramago anos mais tarde em seu romance Ensaio sobre a cegueira, a respeito da capacidade de reparar, enquanto os outros somente vêem. Fialho volta o seu olhar para penetrar mais fundo, observando verdades não narradas. Ainda em “Autobiografia”, Fialho revela a sua linguagem plebéia e “suja”, fruto da ruptura com o sublime pelo predomínio da imaginação grotesca, opondo-se na escrita à predileção do público português pelo “belo”, com o aparecimento de imagens desse fascinante universo. Confessando-se um “trabalhador reputado de não querer escrever português corretamente” (OG III, 106 p.269) ou um “obscuro obreiro” da palavra, para quem o presumível é “que o dom d’escrever se acompanhe sempre d’esse outro d’ouvir uma pequena voz interior que cita a frase” e “Fazer passar o acento d’essa voz, nas palavras”, que, para ele, é que significa “o que é ter estilo” (Idem, p.252), o escritor afirma orgulhosamente possuir vários estilos. De acordo com que ele mesmo afirma e divulga, é o único escritor em que o “assunto é que dita o estilo” (AE, p.23). Como a escolha do estilo está intrinsecamente ligada à do assunto e como seus assuntos variam na tentativa de captar a melhor forma de expressão da vida contemporânea, o estilo, em conseqüência dos assuntos, afirma-se como múltiplo e original, recusando influências ou programa estético prévio, na recusa de todas as escolas ou correntes literárias. Todavia, como se pôde observar, Fialho foi um homem do seu tempo e não pôde passar imune às influências do fértil meio literário que Portugal possuía no momento. Os outros escritores, o gosto do público, entre outras forças sobre-pessoais influem sobre o escritor e comprometem a certa segurança de um estilo pessoal. Contudo, pode-se afirmar que Fialho tinha um conceito de estilo apropriado para cada assunto, capaz de vincular sua expressão e atitude. Na verdade, a obra de Fialho pode ser vista como múltipla, de vários estilos, cada um combinando com uma corrente literária, “pescando” um pouco de cada corrente de acordo com sua flutuação humoral, como convém ao esteta da palavra que foi. O projeto de Fialho, como também se pôde ver, parece ter seguido um percurso marginal, uma aventura individual, que se realizou principalmente nos ambientes noturnos. De fato, a noite foi o lugar, na prosa fialhiana, de uma evidente predileção, pois a atividade criadora do escritor, a sua “diabólica 107 óptica deformante” que tudo transformou/deformou com imagens de sombras, de espectros, visões deformadas ou realidades confusas condiz perfeitamente com a imagem de “vagabundo boêmio” que Fialho fez de si mesmo. Em suas passeadas noturnas, o escritor nos deu conta, em sua obra, do universo grotesco, ao apresentar uma Lisboa noturna, rica de inéditos, “propícia à germinação sugestional da fantasia” (FD, p.54), que alimenta a imaginação dos artistas. É sob o céu fúnebre, que as barreiras sociais, opostas à liberdade do homem, podem ser derrubadas. É quando anoitece e já ninguém o observa que o indivíduo pode ser ele mesmo, sem máscaras, sem convenções sociais, e exceder os limites sociais que acorrenta a vontade humana. Assim, em certas horas noturnas, o escritor dá-se ao prazer de percorrer, e descrever, a vida, fascinado pela fórmula do pintar o que não se vê (OG V, p.235) – afirmamos mais de uma vez com as palavras do próprio escritor -, revelando “esse ruge-ruge de vida invisível, que é à noite, a respiração dos sítios habitados” (OG I, p.168-169). Em meio à escuridão, o escritor deu forma ao exagero, às estranhezas fantásticas da ilusão, despolarizando o real e gerando um mundo oculto; trazendo à tona o lógico e o inconsciente, ultrapassando mundos e transpondo para as suas páginas de ficção o mundo dos anormais, dos infelizes, que, ocultos nas sombras, revelam a perspectiva de uma visão inédita e marginal. De fato, a noite foi a “centelha” que lhe proporcionou encontrar o recanto inédito da vida, que lhe legou as muitas páginas ficcionais da visão grotesca. Na verdade, a imaginação grotesca foi, na obra de Fialho, um modo de negar e recusar olhar a realidade portuguesa, uma vez que estava decididamente desgostoso do seu tempo, utilizando-se do grotesco para criar 108 um universo outro, visto ao avesso da nossa realidade. Com isso, contrapondose à confiança positivista na razão, na ciência e no progresso, base do projeto naturalista, movimento a que Fialho foi tantas vezes associado pela crítica, dele se afasta ao acentuar os traços que caracterizam um universo que aposta na fuga da realidade. De fato, Fialho fora atraído ao Naturalismo na época em que escrevera “A Ruiva”, mas, logo depois, no quinto volume de Os Gatos, pudemos observar a sua oposição à literatura Naturalista, por ele considerada como representação fotográfica do real empírico. Contudo, Fialho também se revoltara contra o Decadentismo, embora, como também foi visto, Óscar Lopes afirme que o escritor chegou a considerar-se um membro desta escola (LOPES, 1987, p.169). Na verdade, a originalidade do estilo fialhiano elaborou-se sem um programa estético prévio, na recusa de todas as correntes literárias e da realidade exterior, em sintonia particularmente com o entusiasmo advindo da primeira impressão. Contudo, por mais que o escritor afirmasse e recusasse as correntes estéticas, é fato que ele foi por elas atingido, vindo a utilizar o que tanto desdisse, pois evidenciou-se em seus escritos uma evidente aproximação a corrente literária Decadentista quando em sua prosa se apresenta a expressão grotesca. Traços como o extremo pessimismo, a angústia perante um fim iminente, a concepção de progresso ilusório, a superação do artificial ao natural, revelam como a obra fialhiana se fez envolta nesse sentimento de decadência que invade a Europa e, por extensão, Portugal no final do século XIX, e como ela se aproximou da arte decadentista, acentuando-se quando ao 109 observar o desencanto/desistência perante o país, os sentimentos de melancolia, rebeldia, pessimismo, nevropatia e a irrealidade do sonho, em um mundo sem equilíbrio pacificante, conformando-se na desistência. Na composição do universo grotesco, observaram-se ainda outros traços que coincidem com a estética decadentista, devido ao aparecimento constante de alucinações, delírios e febres, e também a fantasmagoria e a apresentação de tipos decadentes e bizarros. O grotesco, desde o seu surgimento, assinalou uma ousadia de invenção, um gesto criativo que se aventura a libertar as amarras das convenções e da banalidade, uma vez que permite olhar, reparar e enxergar o universo de uma outra maneira, desvelando uma versão totalmente nova. Na prosa fialhiana, esse modo de “olhar diferente”, contrapõe-se às imagens coerentes do mundo, até porque o irracional rompe de modo definitivo qualquer pretensão racional. A desrealização observada por Fialho ou por seus narradores em seus textos, surgiu tanto de uma “alucinação cromática”, como por outra força elementar, que pode ser até mesmo a música. O fato é que se operou nele uma “óptica divergente”, capaz de proporcionar uma outra versão da realidade, completamente alheia às ordens da natureza humana. O vitral de uma igreja, como vimos, transformou os risos dos fiéis em carontonhas, e o cortejo fúnebre de um rei, de repente, passou a ser visto como um cortejo grotesco e carnavalesco, em que ainda sobressaíram figuras estranhas como gnomos e o diabo. Enfim, é um mundo que salta dos eixos humanos, totalmente alheados, substituto da visão banal da realidade, para narrar uma vida interna, subjetiva. 110 Também o grotesco na prosa fialhiana vai dar conta do corpo grotesco, ao se observar um corpo que extrapola os seus limites, apresentando-se com defeitos e falhas, até porque “o grotesco ignora a superfície sem falha que fecha e limita o corpo” (BAKHTIN, 1993, p.278), como já foi visto no corpo “cortado em postas” da Ruiva, “espedaçado pelo (...) escalpelo” e como uma “caveira fria, limpa de películas e cartilagens, branca e escarninha, cujas maxilas escancaram” (AR, p.3, 96). O conto “Três cadáveres” apresenta a imagem grotesca da decomposição cadavérica. Para mais, “A Ruiva” ainda apresenta um outro tipo de grotesco, o da morte-renovação, pois a própria protagonista nascera no momento da morte da mãe, além da referência à população que consome as hortaliças viçosas plantadas no cemitério. A desrealização da realidade, provocada repentinamente, também é capaz de dar forma ao anormal de caráter grotesco. É quando os mortos que Carolina tantas vezes acariciou às escondidas na casa de observações, ganham vida e se misturam ao mundo humano, buscando retribuir-lhe os afagos e desfilando sorrisos sórdidos. Já no conto “O Anão”, apresenta-se uma figura cara ao universo grotesco; o anão, que pelo corpo físico se mostra diferente, destoante perante outros homens, mostra sua disformidade física, que o faz claramente diferente das imagens clássicas, preestabelecidas e perfeitas. Nesse caso, ele ainda apresenta a feiúra, a semelhança a um animal, outro recurso bastante utilizado no grotesco, e uma pequenez inverossímil. Assim, Fialho deu forma e fisionomia a tudo, de seres incorpóreos a animais demônios. Tudo na sua obra é visível e palpável. Seus narradores e personagens não se furtam a uma nova forma de olhar; germina-lhes alguma 111 faculdade inesperada que os leva a ver as coisas sob um aspecto novo. Vimos, por exemplo, corpos em estado de putrefação, ao redor dos quais as moscas zumbem, ou vimos cadáveres fragmentados. Não se confundem, porém, em sua obra, a sombra e a luz, pois é na penumbra que o narrador persiste, perscrutando corpos marginais, à procura do inaudito. A imaginação grotesca na prosa fialhiana deu forma ao ridículo, a todas as enfermidades e feiúras. Emoldurou infernos e distribuiu máscaras. Desenrolou seus demônios e monstros, sem lançar uma aliança com o “belo”, talvez porque Fialho quis deformar a realidade e o grotesco foi decididamente “o que-não-devia-existir” , mas existiu, fazendo-nos ver o que se vê com estranheza. Perceber e revelar tal universo revela algo de diabólico, pois destrói as ordenações e abre um abismo lá onde o leitor julgava caminhar com segurança. O grotesco destrói as ordenações e nos tira o chão de sob os pés. Por isso a imaginação grotesca observada na escrita de Fialho pode ser vista como uma “diabólica óptica deformante”, pois destrói qualquer ordem, qualquer valor instituído, derruba barreiras, institui a anormalidade, numa época que o melhor era olhar ou criar outro mundo. 112 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Fialho de. Pasquinadas (Jornal de um vagabundo). Porto: Livraria Chardron, 1904. _____. “Barbear, pentear” (Jornal d’um vagabundo). Lisboa: Livraria Clássica, 1910. _____. Os Gatos. Publicação Mensal, D’Inquérito à Vida Portuguesa. Lisboa: Livraria Clássica, 1911a. Vol. I. _____. Os Gatos. Publicação Mensal, D’Inquérito à Vida Portuguesa. Lisboa: Livraria Clássica, 1911b. Vol. II. _____. Os Gatos. Publicação Mensal, D’Inquérito à Vida Portuguesa. 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