A IMAGINAÇÃO GROTESCA NA PROSA DE FIALHO DE ALMEIDA:
UMA “DIABÓLICA ÓPTICA DEFORMANTE”
Lilian Cristina da Silva Vieira
Dissertação de Mestrado submetida ao
Programa de Pós-Graduação em
Letras Vernáculas da Universidade
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
como parte dos requisitos necessários
para a obtenção do título de Mestre
em Letras Vernáculas (Literatura
Portuguesa).
Orientadora: Professora Doutora Luci
Ruas Pereira.
Rio de Janeiro
agosto 2008
1
A imaginação grotesca na prosa Fialho de Almeida:
uma “diabólica óptica deformante”
Lilian Cristina da Silva Vieira.
Orientadora: Professora Doutora Luci Ruas Pereira.
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como
parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras
Vernáculas (Literatura Portuguesa).
Examinada por:
____________________________________________________________
Professora Doutora Luci Ruas Pereira (UFRJ)
____________________________________________________________
Professora Doutora Regina Silva Michelli (UERJ, UNISUAM).
____________________________________________________________
Professora Doutora Mônica do Nascimento Figueiredo (UFRJ)
____________________________________________________________
Professor Doutor Jorge Valentim (UFSCar), Suplente
____________________________________________________________
Professor Doutor Jorge Fernandes da Silveira (UFRJ), Suplente
Rio de Janeiro
agosto 2008
2
OFEREÇO E DEDICO
A Edmundo Ferreira Maia, Maria Virgínia Conceição da
Silva e Joaquim Laureano da Silva (em memória), meus
queridos avós, lembrados com saudade, e a Almezinda
Mendes Maia, avó sempre presente em minha vida, e da
mesma forma querida.
Aos meus pais, Onofre Laureano da Silva e Cecília das
Graças da Silva,
pelo
carinho,
dedicação,
compreensão,
acolhimento e, principalmente, pela amizade.
Ao meu irmão, Cristiano da Silva,
pelos desafios propostos, carinho e amor.
A Luiz Fernando Lima Vieira,
esposo dedicado, amigo e companheiro, cuja
presença foi fundamental em meus muitos
momentos de angústia perante uma página em
branco – muito obrigada.
A todos os meus amigos queridos, em especial Ana Carla,
Aline, Michele, Larissa e Thaís,
por compartilharmos juntos os muitos momentos
de aflição, pelo empréstimo de material e ajuda
com a língua estrangeira.
3
AGRADEÇO
A Deus,
pela vida com saúde, oportunidade de passar
por essa experiência acadêmica, aprendizagem
e chance de conhecer pessoas maravilhosas
das quais jamais esquecerei.
À minha orientadora Luci Ruas Pereira,
pela paciência, dedicação, carinho e por me
entusiasmar em muitos momentos de cansaço,
sempre acreditando em minha dedicação aos
estudos.
À Regina Michelle,
eterna mestra, amiga dedicada, a quem devo
meu amor pela Literatura Portuguesa, por ela
apresentada, todo o meu carinho e admiração.
À Mônica do Nascimento Figueiredo,
professora querida e entusiasmada, pelas aulas
maravilhosas, críticas precisas e sempre
pertinentes.
À Angela Beatriz de Carvalho Faria,
pela disponibilidade e acessibilidade, pelo
carinho, atenção e pela leitura atenta e
entusiasmada de meus escritos.
Aos professores, Clécio Quesado, Teresa Cristina Cerdeira
e André Bueno,
todo o meu carinho e admiração.
4
“Fialho
(...)
transformou
tudo,
engrandeceu tudo, riu-se de tudo. As
descrições perderam a proporção, as
figuras a realidade, transformadas em
figuras de dor ou de grotesco; a própria
cidade ressurgiu a uma tinta lívida de
antemanhã, com a casaria a escorrer vício
e aspectos tétricos”.
(Raul Brandão, Memórias, vol I).
“Já que não podemos extrair beleza da
vida, busquemos ao menos extrair beleza
de não poder extrair beleza da vida”.
(Fernando Pessoa/ Bernardo Soares,
Livro do Desassossego).
"Devo à paisagem as poucas alegrias que
tive no mundo - os homens só me deram
tristezas. Ou eu nunca os entendi, ou eles
nunca me entenderam".
(Miguel Torga, Diário II).
5
RESUMO
VIEIRA, Lilian Cristina da Silva. A imaginação grotesca na prosa de Fialho de
Almeida: uma “diabólica óptica deformante”. UFRJ, Faculdade de Letras, 2008.
118 fls. Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa.
Nesta dissertação de Mestrado estuda-se a manifestação do grotesco na
prosa de Fialho de Almeida, escritor português do final do século XIX e da
primeira década do século XX. Primeiramente, observamos as particularidades
de sua escrita como, por exemplo, o estilo e os assuntos que ganharam
destaque em sua narrativa; observamos também o estatuto socialmente
marginal da escrita e do autor, a sua vinculação/assimilação ao status de
“vagabundo boêmio”, bem como a proximidade do conceito de dândi, para
caracterizar o perfil do autor. A partir dessa observação, coloca-se em pauta o
enquadramento do autor em algumas correntes literárias presentes nesse final
de século, desvinculando-o da corrente literária Naturalista, com que tantas
vezes foi identificado, mesmo impropriamente, uma vez que se distancia da
razão, patente quando ressalta o universo imaginativo do grotesco;
aproximamos o autor da corrente literária Decadentista, devido à crença no
artificial, à consciência da degenerescência humana (psíquica), ao niilismo,
entre outros fatores, estreitamento que se faz também no tocante ao universo
grotesco, devido à expressão fantasmagórica e à apresentação de
personagens decadentes e bizarros. Por fim, mostramos os elementos do
grotesco na prosa fialhiana, revelamos as de-formações, as anormalidades e
as distorções da imaginação “diabólica” desse escritor.
6
ABSTRACT
VIEIRA, Lilian Cristina da Silva. A imaginação grotesca na prosa de Fialho de
Almeida: uma “diabólica óptica deformante”. UFRJ, Faculdade de Letras, 2008.
118 fls. Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa.
In this Master thesis it is studies the grotesque’s manifestation in the prose of
Fialho de Almeida, a portuguese writer of the final XIXth century and the 1st
decade of the XXth century. First of all, we can observe the details in his writing
such as the style and the subjects emphasized in his narrative; also the author’s
bad socially statute and his handwriting, his assimilation as “vagabundo
boêmio”, as well as the near dandi’s concept to distinguish the author’s profile.
From this observation, we can see the author’s fitting in some literaries chains
present in the final of these century, disconnecting him of the Naturalist literary
chain, for so many times he was identified, even inappropriate, because the
distance of the reason, it is evident when appears the imaginative universe of
the grotesque; approaching the author of the Decadentista literary chain to the
artificial belief, to the degenerate human conscience (psychic), to the nihilism,
among other factors, also narrowing the touching grotesque universe, due to
the spooky expression and the extravagant and decadent characters
presentation. At last, we could show the grotesque elements in Fialhiana’s
prose, revealed the deformations, the anamalous and the distorts of the
author’s diabolic imagination.
7
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO.................................................................................................9
2. FIALHO: UM ESCRITOR MARGINAL...........................................................19
2.1 - A originalidade do estilo fialhiano..............................................................21
2.2 - Vagabundagens soturnas.........................................................................41
3. O PORTUGAL FIALHIANO, POR ENTRE RUÍNAS.....................................53
3.1 - Estilos fialhinos..........................................................................................56
3.2 - Esteticismo e Decadentismo.....................................................................65
4. O OLHAR DIFERENTE DO GROTESCO....................................................75
4.1 - Um bestiário de alucinações doidas e disformes......................................77
4.2 - Mundos feitos nas incertezas de fundos movediços e perspectivas
falsas................................................................................................................92
CONCLUSÃO..................................................................................................105
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................114
8
1. INTRODUÇÃO
Fialho via os pormenores através de
uma lente, e deturpava tudo, deformava
tudo,
dando
génio
à
própria
obscenidade.
(Raul Brandão. Memórias. Vol. I).
O autor de Húmus, admirador da obra de Fialho de Almeida, ao qual
dedica boa parte de sua atenção no retrato-testemunho intitulado Memórias,
evidencia, através das palavras acima citadas, a perspectiva “deformante” da
prosa fialhiana. Se, deste modo, Raul Brandão procura afirmar a “destorcida”
visão de Fialho, poderíamos afirmar que esse processo criativo vem nos
apresentar um mundo novo e até mesmo absurdo.
Fialho de Almeida, escritor da segunda metade do século XIX e da
primeira década do século XX, munido de uma espécie de “tinta delirante”, que
deturpa e deforma o real, transporta para uma página em branco um contexto
de figuras macabras, em ambientes sinistros e assustadores. Desvelando-nos
uma espécie de universo outro, misterioso e insondável, tomado de imagens de
morte, larvas e sombras, que caracteriza tão bem o universo grotesco, é capaz
de provocar no leitor o estranhamento, uma vez que ele se encontra
distanciado da “normalidade”. Tudo está lá: o “feio”, a “aberração”, o
“deformado” e o “marginal”.
Assim, a “diabólica óptica deformante”, como afirma Fialho a respeito do
processo de escrita do amigo Guerra Junqueiro (FD, p.53-63),
1
configura-se
neste trabalho como metáfora do seu próprio processo de escrita, uma escrita
que ultrapassa o limite do senso-comum e, progressivamente, vai cedendo
1
As citações ao texto literário de Figuras de destaque serão feitas através da abreviatura FD,
seguida da numeração da página em arábicos.
9
lugar à alucinação e à loucura, envolto em uma espécie de vertigem que
deturpa tudo, transforma tudo, e dissolve as fronteiras entre o real e o
imaginário, dando lugar à incursão do grotesco, justamente “o que-não-deviaexistir”, uma vez que “perceber e revelar tal simultaneidade incompatível tem
algo diabólico, pois destrói as ordenações e abre um abismo lá onde
julgávamos caminhar com segurança” (KAYSER, 2003, p.61).
De fato, Fialho persegue constantemente o novo, seja no conteúdo, seja
na forma. Uma eterna busca pela originalidade, pelo inédito, por uma estética
da expressão, que o fez muitas vezes farpear os escritores portugueses que
enchiam suas páginas de estrangeirismos ou que, para ele, retratavam
meramente a realidade, como simples imitação. Nem mesmo os jovens
pintores escapavam de sua “língua afiada”, sobretudo aqueles que saíam de
seu país para estudar no exterior e voltavam sem nada a acrescentar à pintura
presente. Como notou Lucília Verdelho da Costa: “Fialho pede aos artistas:
mais imaginação, mais talento, mais alma” (COSTA, 2004, p.136), o que
certamente não faltou a sua própria obra.
Mais do que desejar que sua obra avantajasse às outras obras em voga
e sobressaísse depois como moda, Fialho procura mostrar a sua originalidade,
mostrar ao público uma obra que possuísse a sua marca, a sua assinatura.
Para cumprir tal projeto, traz para a prosa o grotesco e o marginal dentro de um
mundo em que são socialmente periféricos ou, até mesmo, não existem,
tornando-os simbolicamente centrais. Com efeito, Fialho busca a valorização
da palavra, o fascínio do oculto, a desrealização do real que tem por objetivo
transcender, através da arte, uma realidade considerada por ele como
desumana.
10
O termo grotesco, segundo Mikhail Bakhtin em A cultura popular na
idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais (estudo de
1970) apareceu em fins do século XV quando escavações feitas em Roma
trouxeram à luz um tipo de pintura ornamental até então desconhecida, que foi
posteriormente chamada de grottesca, “derivado do substantivo italiano grotta
(gruta)”. Essa descoberta surpreendeu os contemporâneos pela apresentação
do “jogo insólito, fantástico e livre das formas vegetais, animais e humanas que
se confundiam e transformavam entre si. Não se distinguiam as fronteiras
claras e inertes que dividem esses ‘reinos naturais’ no quadro habitual do
mundo: no grotesco, essas fronteiras são audaciosamente superadas”. Nesse
jogo ornamental, sente-se uma liberdade e uma leveza na fantasia artística,
que, aliás, é concebida como uma “alegre ousadia, quase risonha”.
Na verdade, essa descoberta, que se apresentou como um fenômeno
novo, posteriormente se mostrou apenas como um fragmento do imenso
universo da imagem grotesca que, de acordo com Bakhtin, existiu em todas as
etapas da Antigüidade e que continuou existindo na Idade Média e no
Renascimento. Contudo, a aplicação do vocabulário realizou-se lentamente. A
primeira tentativa de descrição e apreciação do grotesco foi a de Vasari, de
quem esse fenômeno recebeu uma opinião desfavorável, tendo sido
condenado a partir de posições clássicas, pois, baseando-se no julgamento de
um arquiteto que estudou a arte da época de Augusto, chamado Vitrúvio,
Vasari “condenava a nova moda ‘bárbara’ que consistia em ‘borrar’ as paredes
com monstros em vez de pintar imagens claras do mundo dos objetos”
(BAKHTIN, 1993, p.28-29).
11
Essa foi uma opinião que predominou por muito tempo; somente na
segunda metade do século XVIII o grotesco mereceu uma análise e uma
compreensão ampla e profunda.
Ainda segundo Bakhtin, nos séculos XVII e XVIII, enquanto reinava o
cânone clássico nos domínios da arte, o grotesco, “ligado à cultura cômica
popular”, reduzia-se ao nível do cômico de baixa qualidade. Ainda na segunda
metade do século XVII assiste-se a
um processo de redução, falsificação e empobrecimento progressivos
das formas dos ritos e espetáculos carnavalescos populares. (...) Ao
perder seus laços vivos com a cultura popular da praça pública, ao
tornar-se uma mera tradição literária, o grotesco degenera (Idem, p.30).
De acordo com o autor russo, o grotesco sofreu várias mudanças de
acordo com o passar do tempo. Na sua origem, o grotesco relaciona-se com os
festejos, que têm indiscutivelmente uma relação com o tempo: “as festividades,
em todas as suas fases históricas, ligaram-se a períodos de crise, de
transtorno, na vida da natureza, da sociedade e do homem. A morte e a
ressurreição, a alternância e a renovação constituíram sempre os aspectos
marcantes da festa”, principalmente no que se refere às festas carnavalescas,
em que se acentua uma espécie de liberação temporária das normas, das
relações hierárquicas, tabus, regras e privilégios, já que no carnaval “o
indivíduo parecia dotado de uma segunda vida que lhe permitia estabelecer
relações novas, verdadeiramente humanas” (Idem, p.8; 9).
O grotesco de Bakhtin refere-se às imagens ligadas ao baixo material e
corporal, profundamente positiva, herança da cultura cômica popular, em que
se observa um tipo peculiar de imagens. Tem por traço marcante o
rebaixamento, que consiste em “aproximar da terra, entrar em comunhão com
a terra concebida como um princípio de absorção e, ao mesmo tempo, de
12
nascimento: quando se degrada, amortalha e semeia-se simultaneamente,
mata-se e dá-se a vida em seguida” (Idem, p.19). Exemplos de degradação
são, por exemplo, os atos sexuais, a concepção, a gravidez, o parto, as
necessidades naturais e outros que opõem às imagens clássicas do corpo
humano perfeito, um corpo que não tem lugar dentro da “estética do belo”.
Em alguns contos de Fialho pretendemos abordar traços do grotesco
bakhtiniano, principalmente no que se refere ao rebaixamento do corpo. No
conto “Os pobres”, da coletânea O país das uvas, procuramos verificar se o
protagonista pode inserir-se no aspecto grotesco da disformidade. Em “A
Ruiva”, do volume intitulado Contos, observaremos se algumas passagens do
conto podem ser vistas como exemplo de representação de um fenômeno em
estado de transformação, começo e fim, morte e nascimento (no quarto
capítulo deste trabalho, pretendemos nos deter nessa questão).
Ainda segundo Bakhtin, na época pré-romântica e nos princípios do
Romantismo, assiste-se a uma ressurreição do grotesco, dotado então de um
novo sentido: ”ele serve agora para expressar uma visão subjetiva e individual,
muito distante da visão popular e carnalavesca dos séculos precedentes
(embora conserve alguns de seus elementos)”. O grotesco foi um
acontecimento notável na literatura mundial:
Representou, em certo sentido, uma reação contra os cânones da época
clássica e do século XVIII, responsáveis por tendências de uma seriedade
unilateral e limitada: racionalismo sentencioso e estreito, autoritarismo do
Estado e da lógica formal, aspiração ao perfeito, completo e unívoco,
didatismo e utilitarismo dos filósofos iluministas, otimismo ingênuo e banal
(Idem, p.33).
Ao contrário do “grotesco realista”, relacionado com a cultura popular e
caráter universal e público, o “grotesco romântico” é uma espécie de “carnaval
13
que o indivíduo representa na solidão, com a consciência aguda do seu
isolamento” (Idem).
Na prosa fialhiana também procuraremos observar essa nova acepção
do grotesco. Na coletânea de artigos intitulada Os Gatos, bem como nas
crônicas de Vida Irônica, 2 pretendemos mostrar como ocorrem representações
desse tipo de grotesco, pois Fialho cria um universo em que “tudo o que é
costumeiro, banal, habitual, reconhecido por todos, torna-se subitamente
insensato, duvidoso, estranho e hostil ao homem”. Nesses textos buscaremos
observar como se dá a incidência de um universo envolto em imagens noturnas
que gera medo, mantendo-se em correspondência com o “grotesco romântico”,
pois, como orienta Bakhtin, “as imagens (...) são geralmente a expressão do
temor que inspira o mundo e procuram comunicar esse temor aos leitores
(aterrorizá-los)” (Idem, p.34).
O autor russo ainda observa o renascimento do grotesco no século XX:
O grotesco, “que retoma as tradições do grotesco romântico e que atualmente
se desenvolve sob a influência das diversas correntes existencialistas”; e o
“grotesco realista”, “que retoma as tradições do realismo grotesco e da cultura
popular, e às vezes também a influência direta das formas carnavalescas”
(Idem, p.40). Quanto a essas duas acepções modernas do grotesco não
pretendemos seguir nenhuma na observação do grotesco na obra fialhiana.
Ao lado da proposta bakhtiniana, que, sem dúvida, fundamenta leituras
que levamos a termo neste trabalho, as idéias do teórico germânico Wolfgang
2
O corpus dessa dissertação compõe-se de contos, artigos e crônicas. Na obra de Fialho os
artigos, por exemplo, não são meramente jornalísticos, devido à sua linguagem e, também, ao
modo como os temas se desenvolvem, aproximando-se do literário. Por isso, o autor,
historicamente consagrado, aproxima-se tanto dos seus narradores.
14
Kayser, que se dedica com mais afinco ao grotesco moderno, sustentarão as
propostas aqui apresentadas.
A obra de Kayser O grotesco: configuração na pintura e na literatura 3,
considerado o primeiro estudo consagrado à teoria do grotesco (BAKHTIN,
1993, p.40), oferece-nos uma definição do grotesco e sugere, conforme as
manifestações ao longo do tempo, um fio condutor, um caminho para a
compreensão, da história do termo, considerado por ele mesmo frouxo, porque,
para cumprir tal percurso, seria necessário conhecer o grotesco em todos os
campos da arte, desde o seu surgimento, que data do fim do século XV, até a
época atual.
Para Kayser, os elementos essenciais do grotesco são “a mescla do
heterogêneo, a confusão, o fantástico e é possível achar nelas até mesmo algo
como o estranhamento do mundo [além do] caráter insondável, abismal, o
interveniente horror em face das ordens em fragmentação”. Além disso, o
essencial do grotesco é “a desorientação, a sensação de abismo, diante de um
mundo tornado absurdo, fantasticamente estranhado” (Idem, p.56; 75).
Através desse prisma, pretendemos observar alguns contos de Fialho,
em especial, o conto “O anão”, inserido em O país das uvas, cujo mundo
onírico, absurdo para o leitor, aparece como verdadeira realidade. A princípio, o
estranhamento ou o absurdo desse mundo fica patente somente na percepção
do leitor, pois as noções que dominam nossa realidade estão anuladas nesse
conto. Além disso, nos volumes da coletânea de artigos intitulada Os Gatos,
pretendemos observar como, por vezes, o mundo do narrador de repente
torna-se alheio à sua própria concepção de realidade. De acordo com o escritor
germânico, o grotesco também “é o mundo alheado (tornado estranho)”. Este
3
Esse estudo é de 1957 e foi reeditado postumamente em 1960-1961.
15
conceito torna-se mais claro quando Kayser o compara ao mundo dos contos
de fadas, pois se o mundo dos contos maravilhosos “quando visto de fora,
poderia ser caracterizado como estranho e exótico” esta idéia não se sustenta,
pois este “não é um mundo alheado”. Para pertencer ao mundo alheado “é
preciso que aquilo que nos era conhecido e familiar se revele, de repente,
estranho e sinistro”. Uma vez que é o nosso mundo que se transforma. “O
repentino e a surpresa são partes essenciais do grotesco” (Idem, p.159).
À medida que analisarmos a prosa fialhiana, a partir de um olhar sobre o
universo grotesco, pretendemos nos deter também no estudo de Victor Hugo,
Do grotesco e do sublime. Na verdade, trata-se de um prefácio que Victor Hugo
redigiu para o Cromwell, em 1827. Nesse estudo o escritor francês observa que
o grotesco, ainda que timidamente, na Antigüidade pré-clássica, a partir de
personagens como tritões, harpias e sereias. Em seguida, o escritor atribui um
sentido ainda mais amplo ao tipo de imagens grotescas, ao classificá-las como
pertencentes a toda a literatura pós-antiga, a partir da Idade Média. Já “no
pensamento dos Modernos, ao contrário, o grotesco tem um amplo papel, pois
está em toda parte; de um lado cria o disforme e o horrível; do outro, o cômico
e o bufo” (HUGO, 2004, p.30,31), ressaltando sua ligação com a comédia.
Ao mesmo tempo em que acentua o papel essencial da deformidade no
grotesco, observa-lhe a importância para a elevação do belo:
O sublime sobre o sublime dificilmente produz um contraste, e tem-se
necessidade de descansar de tudo, até do belo. Parece, ao contrário, que o
grotesco é um tempo de parada, um termo de comparação, um ponto de
partida, de onde nos elevamos para o belo com uma percepção mais fresca
e mais excitada (Idem, p.33).
16
Para Victor Hugo, o grotesco surge em oposição ao “belo”,
intencionalmente para ressaltá-lo. A escrita de Fialho, marcada pelo grotesco,
parece querer dizer ao mundo que o seu tempo não é o da beleza ou do
sublime, por mais que o desejasse. Em Fialho, não há a intenção de ressaltar o
belo, aliás é bem o contrário, o que se vê é a ratificação de ausência do belo. E
mesmo quando algum elemento do belo se apresenta, ele se degenera em
imagens grotescas.
Assim sendo, o escritor francês faz uma série de
observações sobre o universo grotesco, a que pretendemos recorrer
constantemente.
Devemos destacar que para lograrmos êxito na interpretação do
grotesco na prosa de Falho, não é possível descartar a necessidade de seguir
um caminho que nos leve o estudo do que provoca a escrita do autor, pois
pensar o grotesco no tempo de Fialho implica também a consideração do
contexto histórico, artístico, político e social, mesmo porque, ao que parece, o
universo do grotesco que se observará na obra fialhiana parece ter um objetivo
a mais que o puramente artístico. Portanto, antes de entrarmos no objetivo
essencial de nosso estudo, que é observar as ocorrências do universo grotesco
e a importância que este assume na prosa fialhiana, pretendemos demorar-nos
em alguns aspectos de biografia e de obra de Fialho, da sociedade de seu
tempo, dos rótulos com que os críticos tentaram enclausurá-lo nas escolas
literárias, entre outros fatores, a fim de possibilitar ao leitor o estudo da obra de
um autor pouco conhecido do nosso público, mesmo de alguns que militam na
literatura portuguesa, já que obra fialhiana é pouco divulgada. Em seqüência,
pretendemos observar que a apresentação de imagens do fascinante universo
17
grotesco poderia opor-se à visão positivista da razão, do progresso e da
ciência.
Para cumprir tal objetivo partimos do estudo de Álvaro J. da Costa
Pimpão, Fialho – introdução ao estudo da sua estética, que, para além da
excelente apresentação da vida e obra de Fialho, é ainda responsável por
alguns dos prefácios que apresentam a obra do autor de A cidade do vício. Não
falta a este trabalho o estudo de Jacinto do Prado Coelho, “Fialho e as
correntes do seu tempo”. António Cândido Franco, O Essencial sobre Fialho de
Almeida, e Óscar Lopes, Entre Fialho e Nemésio, nos oferecem a oportunidade
de estudar as correntes literárias a que o autor de “A Ruiva” foi associado, além
do estudo sobre alguns contos fialhianos. Lucília Verdelho da Costa, com o
estudo Fialho d’Almeida: um decadente em revolta, nos fornecerá bases para
verificar como a escrita fialhiana aponta para certos traços do Decadentismo.
Por fim, mas não menos importante, soma-se a esses estudos o de Raul
Brandão, amigo de Fialho, em Memórias I.
Assim pretendemos seguir o caminho nebuloso, desviante e assustador
do universo grotesco na prosa fialhiana. Este será um percurso que destacará
a anormalidade, o comprazimento pelo mórbido, as imagens de degradação do
corpo, os espaços aterrorizantes, ao mesmo tempo em que servirá para
denunciar questões do controverso posicionamento do escritor em relação ao
pensamento racional.
18
2- FIALHO: UM ESCRITOR MARGINAL
Sou um egoísta cruel, mergulhado, não
como Hamlet da Dinamarca na sua eterna
dúvida, mas no meu frio e amargo
egoísmo e numa desilusão sinistra de tudo
e de todos.
(Fialho de Almeida. Páginas de miséria –
Confissões).
Amado por uns e odiado por outros, José Valentim Fialho de Almeida
sempre conquistou a atenção das pessoas. Fosse por sua obra, fosse por sua
personalidade singular, o fato é que, após sua presença, algo permanecia por
comentar, ainda que nem sempre o comentário fosse favorável à postura do
escritor. A julgar pelos relatos de contemporâneos, a critica que Fialho
provocou justifica-se perfeitamente. Conforme relata Câmara Reis, um dos
seus contemporâneos, o autor de Os Gatos se apresentava nas reuniões
vestido de “cinta vermelha, chapéu desabado e de jaleca e calça verde-gaio”
(BARRADAS, 1917, p.69), o que, de fato, justifica certos comentários a seu
respeito, devido ao modo estranho e espalhafatoso de trajar. Contudo, o que se
falava
parece
justificar-se
não
na
indumentária,
mas
no
polêmico
temperamento, uma vez que discutia e revoltava-se contra as vigentes formas
de poder, investindo contra todos aqueles que divergiam de seus pontos de
vista.
Todavia, todos os comentários parecem não abalar Fialho; muito ao
contrário. Ele pretendeu ser reconhecido como um escritor marginal e passar à
posteridade como um escritor maldito (COSTA, 2004, p.5), condenado ao
anonimato e “proibido do sucesso pelo mau sestro de não poder ser lido por
19
senhoras” (AE, p.14) 4. O próprio Fialho revela, aos trinta e cinco anos, em sua
autobiografia intitulada “Eu” (publicada no número 60 da Revista Ilustrada, em
1892, e posteriormente incluída em À Esquina) que os contemporâneos lhe
garantiram a reputação de “desequilibrado indolente”, de “galicista” e de
“colérico” (AE, p.14). Ao que parece, essa radical negatividade com que os
contemporâneos o criticam é expressão de uma atitude pouco social por ele
mesmo assumida e reconhecida, fruto de “uma desilusão sinistra de tudo e de
todos” e dos germes da misantropia: “a orgulhosa misantropia do cavador
d’aldeia que [nele] há” (VI, p.320) 5.
De fato, Fialho sempre foi considerado um escritor “temperamental”,
revoltado contra o poder político vigente, contra as formas de instituição,
inclusive as formas literárias/artísticas em voga. Particularmente consciente
das tensões estéticas, que, pela profissão jornalística, ocuparam as páginas de
sua crítica, mesmo porque eram pertinentes e necessárias (os artigos de crítica
mordaz, encontrados nos seis volumes de Os Gatos, e as inúmeras
contribuições nos jornais da época nos dão provas cabais da consciência
social, política e econômica que Fialho possuía do país, bem como das
questões artísticas em voga), o escritor recusa qualquer academismo em prol
da tentativa de construção de uma obra original, que ratifique a identidade de
jornalista e escritor. Como bem diz Jacinto do Prado Coelho, “no caso de
Fialho, (...) creio que um simples confronto da sua obra com a dos grandes e
pequenos escritores da mesma época e as idéias literárias então vigentes
bastará para demonstrar quanto era diferente e rebelde a pressões de escola o
4
As citações ao texto literário de À Esquina serão feitas através da abreviatura AE, seguida da
numeração da página em arábicos.
5
As citações ao texto literário de Vida irônica serão feitas através da abreviatura VI, seguida da
numeração da página em arábicos.
20
autor d’O país das uvas” (COELHO, 1996, p.187), ainda que sofresse influência
do fértil meio literário a que teve acesso e com o qual conviveu em Portugal –
afinal Fialho era um homem do seu tempo.
Fialho vai atacar particularmente os medíocres jornalistas que se
vendem por interesse ao gosto da moda ou de acordo com as exigências do
mercado, fato que, na opinião do escritor, acaba “desviando a consciência
pública de todas as idéias justas” (P, p.211-220) 6. O escritor terá uma postura
contrária a esses jornalistas, pois, escrevendo em terreno minado pelas
conseqüências provocadas pelo Ultimatum inglês de 1890, passa a assinar
seus artigos com pseudônimo de Valentim Demônio ou de Irkan, o lhe servirá
de máscara para descarregar sua língua feroz contra a situação política de
Portugal, atacando (ou arranhando, como é instintivo do “gato bravo”, que
considera a si próprio) principalmente a realeza.
2.1-A originalidade do estilo fialhiano
O fim do século XIX, em Portugal, apresentava-se historicamente
conturbado, principalmente se observado a partir da crise resultante de um
longo processo de ruína histórica, agravada pelo sentimento nostálgico de
perda da grandeza nacional que o episódio do Ultimato inglês de 1890 tinha
provocado. De fato, desde o alerta contido n’Os Lusíadas, Portugal vivia em um
estado de decadência histórica. Camões já observara que sua pátria estava
imersa numa “apagada e vil tristeza”. E, até final do século XIX, as coisas não
6
As citações ao texto literário de Pasquinadas serão feitas através da abreviatura P, seguida
da numeração da página em arábicos.
21
tinham mudado muito. Segundo António Machado Pires, “a Civilização ibérica
atingiu o auge no século XVI, mas deu o que tinha a dar, vindo a morrer aos
poucos, em conseqüência da grandeza do próprio esforço despendido – após o
fim do século XVI só se encontram (...) tentativas de ‘galvanização de um
organismo morto’” (PIRES, 1992, p.21).
Conforme acentua Antero de Quental, em 1871, na conferência sobre as
“Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos”, as
causas dessa decadência podem ser justificadas por três fatores: um moral, um
político e outro econômico. Àquela altura as causas já haviam cessado, mas,
segundo o autor, seus efeitos ainda persistiam. A primeira causa deveu-se à
transformação do Catolicismo pelo Concílio de Trento, o que, segundo Antero,
transformou, pela opressão, o sentimento cristão, livre e independente,
condenando a Razão humana, propagando a idolatria e sujeitando os governos
ao poder do papa. A segunda causa deveu-se ao estabelecimento do
Absolutismo, que gerou a ruína das liberdades locais, pois “obliterou o
sentimento instintivo da liberdade, quebrou a energia das vontades, adormeceu
a iniciativa” (SERRÃO, 1982, p.285). A terceira foi o desenvolvimento das
Conquistas
longínquas,
uma
vez
que,
interessados
nas
conquistas
ultramarinas, esqueceram a terra e perdeu-se a agricultura; esqueceram a
ciência e perdeu-se a chance de acompanhar o progresso dos países
europeus. Assim, segundo Antero de Quental, é a essas causas que se deve
atribuir o estado de incerteza, o desânimo e o mal-estar que se observaram no
Portugal do final do século XIX. Causas de que o povo português, que se
encontrava adormecido, devia ter conhecimento para que pudesse acordar
desse estado de adormecimento em que se encontrava.
22
De acordo com o ponto de vista de Fialho, a sociedade desse período
tem uma feição de decadência porque:
A luta pela vida, a degenerescência das raças pelos excessos do trabalho e
abusos de prazer, a excessiva cultura mental levando o homem à negação
de todas as fés e à consciência da inutilidade de todos os esforços para
atingir a perfeição absoluta, criaram (...) sociedades inquietantes, formalistas
por cálculo, desabusadas por vício, desejosas de tudo e incapazes de coisa
alguma, cujos antros têm por missão social encher as prisões e os hospitais
de loucos, impulsionar as greves (...). Estas sociedades, ou antes esta
sociedade, tem pronunciadamente uma feição de decadência (OG V, p.289)7
Esse processo de deterioração que Fialho observa no seio da sociedade
portuguesa, vem ressaltar, dentre outros fatores, a importância da fé ante uma
sociedade descrente. O autor de Os Gatos antecipa-se, sem o saber, aos
preceitos de Freud em O mal-estar na civilização, quando observa, em junho
de 1982, que uma sociedade necessita da fé para se manter disciplinada e
próspera: “A excessiva cultura mental tirando-nos a fé, aboliu o respeito” (Idem,
p.291) 8. Freud observa nesse estudo publicado em 1929 que o preceito
“Amarás a teu próximo como a ti mesmo” é anterior à existência do cristianismo
e que essa máxima do amor universal impõe deveres aos indivíduos que
compõem a sociedade (FREUD, 1997, p.64). Por mais que exista uma série de
objeções ao cumprimento desse mandamento, o fato é que cumpri-lo (o que
para Freud é impossível devido à natureza humana eminentemente agressiva e
exploradora) conduziria ao bem-estar para a sociedade e para os indivíduos
que nela habitam. Fialho, que escrevera muitas críticas contra a instituição
religiosa – no primeiro volume de Os Gatos, Fialho revela que almeja para os
portugueses uma “igreja onde a religião de seus pais lhe custe apenas a fé”,
pois, de acordo com o ponto de vista do escritor, o que se observa em Portugal
7
As citações ao texto literário de Os Gatos V serão feitas através da abreviatura OG V, seguida
da numeração da página em arábicos.
8
Entenda-se que, guardando as devidas e necessárias proporções, Fialho foi intuitivo e
antecipou alguns conceitos de Freud, no entanto, não afirmamos que ele “antecipe” a
psicanálise.
23
é um povo explorado pelos padres (OG I, p.145) 9 –, observa a importância da
fé para a contenção das massas e para a consolação dos homens, pois
“sobreviver-se era o ideal antigo, de quando os homens ainda tinham fé. Agora
cada qual de nós levanta os braços, desesperado, a suplicar que alguém o livre
de si mesmo” (VI, p.106).
Não há como negar que o século XIX define-se, entre outros aspectos,
pela atitude cientificista, o que acarreta grande avanço e desenvolvimento.
Contudo, uma sociedade que progride, a princípio, deveria conduzir os
indivíduos ao bem-estar, já que o termo progresso implica “caminhar para a
frente, criar novas condições, melhorar” (PIRES, 1992, p.18). Entretanto, no
retrato trágico que Fialho faz dos indivíduos, o desenvolvimento, minado pelo
egoísmo, é a causa de um iminente retrocesso, pois em Portugal “quanto mais
a civilização avança, mais a individualidade se desenvolve, e este
desenvolvimento pode tornar-se em causa de decadência” (OG V, p.290). A
saída para esse declínio apresentado parece ser o que Leandro Konder
acentua: que a humanidade deveria possuir – o “bom senso”, pois que o
mesmo “abre caminho para o uso transformador dos conhecimentos; para o
questionamento das condições existentes (...)”, proporcionando aos homens a
possibilidade de se “debruçar autocriticamente sobre suas próprias convicções,
refletindo sobre elas” (KONDER, s.d.). Ao seguir o livro de Guyau, L’art au
point de vue sociologique, Fialho também aponta um caminho para a
sociedade portuguesa: o equilíbrio e a conciliação da individualidade com a
solidariedade:
9
As citações ao texto literário de Os Gatos I serão feitas através da abreviatura OG I, seguida
da numeração da página em arábicos.
24
Uma sociedade, sendo um organismo dotado de vontade e consciência
coletiva (...), só pode subsistir pela solidariedade e consenso dos indivíduos
que são os seus órgãos elementares. Esta solidariedade exprime-se pelo
espírito público, isto é, por uma subordinação das consciências particulares à
vontade geral; sendo esta subordinação o que constitui a moralidade cívica
(OG V, p.290).
O que Fialho observa entre os seus contemporâneos é a procura egoísta
do bem estar pessoal, o desprezo pelos interesses sociais, a indisciplina e uma
literatura de cunho decadente, considerada pelo escritor como “uma literatura
meio incompreensível, desconexa, arqui-furiosa, todos os fermentos de
revolução capazes de destruir o que está sem maiormente curarem do que há
de ser “(Idem, p.289). É exatamente esta a intenção da literatura Decadentista,
não se ocupar com um equilíbrio pacificante, pois o que se quer é mostrar as
“chagas” e não dar a “cura” . Essa literatura de fim de século intitulada
Decadentista, de acordo com José Carlos Seabra Pereira, é caracterizada por
um estado de sensibilidade em simultâneo com o homem desgostado de si,
devido à consciência de que, entre avanços de toda a ordem, o homem não
melhorou, e de uma civilização em crise (PEREIRA, 1975, p.22-23). (conforme
veremos com mais profundidade no próximo capítulo).
O Portugal deste período é, de fato, um país instável politicamente e
atrasado tecnologicamente, cultural e socialmente, como bem diz Eduardo
Lourenço:
Portugal
“era
lanterna
vermelha
das
nações
civilizadas”
(LOURENÇO, 1991, p.90). Essa decadência pode verificar-se, na literatura,
nas considerações de Almeida Garrett em Viagens na minha terra, em que
antevê o país às vésperas do apagamento lento em que se lançava no século
por vir, já que, de acordo com o ponto de vista do romancista, Portugal se
encontrava sem alma, agonizando, tomado pela hipocrisia e pela ignorância:
“Uma nação grande ainda poderá ir vivendo e esperar por melhor tempo,
25
apesar desta paralisia que lhe pasma a vida da alma (...). Mas uma nação
pequena, é impossível; há de morrer” (GARRETT, 1992, p.188).
Foi envolto neste clima histórico que Fialho se formou como escritor. E
não podia, evidentemente, furtar-se a tal atmosfera, principalmente pela
profissão de panfletário flagelador que exerce10. Conforme afirma Costa
Pimpão, Fialho usaria largamente a sua pena, ora com deleite, ora com certo
cinismo, para espezinhar a vida pública (e até mesmo privada de alguns de sua
desavença) do povo português e das instituições. Já a crítica o acusara de ser
um dândi na aparência e de apresentar traços de psicopatia 11.
Para Charles Baudelaire, o dandismo é uma instituição “vaga tão
estranha quanto ao próprio duelo; muito antiga, já que César, Catilina e
Alcibíades nos deram alguns modelos brilhantes”. O seguidor dessa espécie de
“religião” é chamado de dândi e caracteriza-se como:
[um] homem rico, ocioso e que, mesmo entediado de tudo, não tem outra
preocupação senão correr ao encalço da felicidade; o homem criado no luxo
e acostumado a ser obedecido desde a juventude; aquele, enfim, cuja única
profissão é a elegância sempre exibirá, em todos os tempos, uma fisionomia
distinta, completamente à parte (BAUDELAIRE, 1995, p.870).
Pertencente a aristocracia, “(...) o dândi não aspira ao dinheiro como a
uma coisa essencial; um crédito ilimitado poderia lhe bastar: ele deixaria essa
grosseira paixão aos vulgares mortais”. Além disso, distingue-se pelo luxo, pela
riqueza, pela tentativa de originalidade. Na verdade, o dândi almeja a distinção:
O dandismo não é sequer, como parecem acreditar muitas pessoas pouco
sensatas, um amor desmesurado pela indumentária e pela elegância física.
Para o perfeito dândi essas coisas são apenas um símbolo da superioridade
aristocrática do seu espírito. Por isso, a seus olhos ávidos antes de tudo por
10
Embora Fialho afirme-se um panfletário (como aquele que critica a sociedade por meio de
panfletos), a momentos em que a panfletagem confronta uma certa fuga para o discurso
literário.
11
O que só pode ser levantado como mera hipótese, já que não se tem um quadro clínico que
possa comprovar tal diagnóstico (PIMPÃO, 1945, p.95).
26
distinção, a perfeição da indumentária consiste na simplicidade absoluta, o que
é, efetivamente, a melhor maneira de se distinguir (Idem).
A ociosidade e individualidade também fazem parte do universo do
dândi, são “uma espécie de culto de si mesmo, que pode sobreviver à busca da
felicidade a ser encontrada em outrem, na mulher, por exemplo, que pode
sobreviver, inclusive, a tudo a que chamemos ilusões”. O dândi é um
represente do orgulho humano, da necessidade de combater e destruir a
trivialidade, o que resulta uma atitude provocante em sua frieza.
Pelo que foi exposto, Fialho encontra-se bastante próximo do conceito
de dândi desenvolvido por Baudelaire 12, distanciando-se dele no que se refere
ao dinheiro, à aristocracia de berço, pois nascido de uma família pobre, do
interior do Alentejo, o autor de “A Ruiva” teve de trabalhar muito para garantir o
seu sustento e ainda ajudar a família, que tinha dentre seus membros um irmão
inválido. Contudo, possui uma espécie de “aristocracia interior” dos que não
possuem dinheiro, mas são “ricos em força interior” (BAUDELAIRE, 1995,
p.872). Óscar Lopes ainda observa que em uma série de artigos chamada
Cartas fidalgas, Fialho “se dá uns ares de bon vivant entendido e dândi”
(LOPES, 1987, p.175).
Seus escritos nos jornais e os muitos artigos inseridos nos seis volumes
de Os Gatos são suficientes para demonstrar sua intensa atividade crítica, em
que se observa uma resistência mordaz a tudo, desde o trivial, como desfile de
crianças, ao assunto mais importante para a sociedade naquele momento.
Exemplo disso é o artigo “A espoliação portuguesa n’África (panfleto aos
fracos)”, inserido no terceiro volume de Os Gatos, em que o escritor ressalta
12
Fialho somente apresenta traços de dandismo, ele não é, aqui, observado como um dândi
por completo.
27
toda sua força de combate contra a usurpação das terras portuguesas pela
Inglaterra (conforme observaremos no próximo capítulo).
Fialho é, de fato, um rebelde bem apresentado, de humor oscilante e,
até mesmo, excêntrico, para o que, de fato, a aparência contava muito, tal
como o dândi, cuja indumentária demonstra “a necessidade ardente de
alcançar uma originalidade dentro dos limites exteriores das conveniências”
(BAUDELAIRE, 1995, p.871). Talvez porque sempre lhe apetecera a vida larga,
oposta ao que foi toda a sua existência, já que nunca se habituou às
desvantagens de ter nascido pobre; talvez por isso ele apresente tantos traços
de oposição e de rebeldia.
E as andanças ou passeios imaginários por suas terras nos dão conta
dessa preocupação no trajar, manifestada pelo narrador (e, por extensão, pelo
autor) no seu “Jantar no Moinho” (publicado n’O século em 1881 e
posteriormente incluído em A cidade do vício):
Com o meu chapéu derrubado e as minhas botas de couro cru, sólidas e
altas, cinta preta e jaleca de peles, à hora em que os senhores estão
digerindo ainda molhos do Silva e carinhos d’Itaira, vou eu a pé, fumando o
meu cachimbo ou pensando nos meus alqueves, pelas veredas que passam
nas folhas de semeaduras, ou como fulvas serpentes galgam as espinhas
dorsais das cordilheiras (AC, p. 315-316) 13.
Como se pode observar, ressalta-se “o prazer de provocar admiração”
até mesmo num simples passeio no interior do Alentejo. Contudo, de modo
algum, Fialho deixou que a aparência sobressaísse àquilo que considerava
como essencial. E o estudo sobre a descrição do Chalet Sassetti, inserido em
Os Gatos II, nos dá conta disso. Nesse artigo, o escritor vai visitar um chalet
em Cintra anunciado para leilão com todos os pertences e mobílias de uma
13
As citações ao texto literário de A cidade do vício serão feitas através da abreviatura AC,
seguida da numeração da página em arábicos.
28
“casa de luxo” e condena a preocupação com os bibelots, a vida de aparência,
o supérfluo luxo, em oposição às “coisas nobremente sugestivas e belas, de
cujo convívio brota essa obra d’inteligência e de graça que se chama o homem
do mundo, e de que a Europa oferece ainda alguns modelos”. Aqui, o Fialho
panfletário reclama “a coibição severa do luxo” advindo de “uma ilusão de
grandezas e [de] uma aristocracia fingida de porte, que é o mais grotesco
característico dos costumes contemporâneos” (OG II, p.284-285; 289)
14
. No
entanto, o que pode parecer oposição é, na verdade, mais um traço do
dandismo, “combater e destruir a trivialidade” (BAUDELAIRE, 1995, p.872), que
encontra correlação na vida e obra de Fialho.
Dentre outros traços semelhantes ao modelo de dandismo, observa-se a
frieza nas afirmações de sua prosa (de que adiante daremos alguns exemplos),
o desejo incessante de que seus escritos revelem originalidade, a força de
suas oposições, que ressumam das palavras empregadas no texto, fatores que
encontram correlação com o modelo do dândi, descrito por Baudelaire.
Ainda nesse artigo (sobre a descrição do Chalet Sassetti), Fialho repudia
o excesso porque “o decadismo na arte da casa, a armadilha ao gozo da
pupila, por via do exquis de contrabando, (...) tira ao espírito a possibilidade do
interesse pela obra d’arte sã, e pela obra prima absoluta”, transformando a
casa, concebida pela sociedade do século XIX, como um lugar de refúgio, de
sossego, enfim o abrigo merecido do homem depois de horas de trabalho, em
um “sitio suspeito, tendente ao cuté da comborça, e, ao beatismo fruste da
capela jesuítica. Impossível ter idéias lúcidas, raciocínios serenos, funções
másculas, e tendências honestas!” (Idem, p.290-291). Reflexo da situação
14
As citações ao texto literário de Os Gatos II serão feitas através da abreviatura OG II, seguida
da numeração da página em arábicos.
29
vivida pela família, a casa desse fim de século é vista pelo autor como um lugar
de desabrigo, de insegurança, pois que a família apresenta-se instável e
depressiva, uma vez que a
energia física se pagou na depressão do meio, na falta de exercícios
salubres, de higiene e de cultura moral, e cujo sistema nervoso se foi
exasperando até aos clownismos da nevrose, e invertendo a polarização dos
atos vitais, desde as funções das víceras até às funções do caráter, desde as
sensações até aos sentimentos, desde os atos da inteligência até aos atos
da vontade (P, p.168).
Na concepção de Fialho, o lar fixo é um “santuário de tradições
domésticas, centro d’interesses vindouros ou hereditários, museu sugestivo e
local de grandes datas, igreja e altar de todos os divinos sacrifícios da
existência humana”, de cuja posse o homem deva ter orgulho, pois a casa
carrega a sua biografia, a sua personalidade. A casa, para Fialho, é “fortaleza e
ninho, reino e reinado”, tem alma e tem memória é o reflexo do dono, como
observa em Pasquinadas: “tal a habitação, tal a família” (Idem 226; 230; 355).
Assim, o projeto crítico de Fialho, incidindo sobre vários aspectos da
vida privada, como a casa e a família, e da vida pública, configura-se como
uma fria análise social, política econômica e, até mesmo, cultural, uma vez que
recrimina a ausência de bons museus em Portugal, com intuito de reformador
15
e crítico de arte. Em Os Gatos I, Fialho além de criticar o modo como a arte é
ensinada no seu tempo, planeja a fundação de um museu, com a finalidade de
conduzir à “reconstituição da história portuguesa, e ao estudo da arte civil e
15
Por mais que Fialho apresente em seus textos argumentos condizentes com a imagem de um
reformador, ele não acredita em progresso, mudanças ou regenerações (até porque, como
todos os homens do seu tempo, Fialho via o progresso com medo); possui uma visão
altamente pessimista sobre tudo; daí que não se possa afirmar que seja um autêntico
reformador. Contudo, Fialho apresenta um desejo imenso de que sua voz seja ouvida (“se a
minha voz fosse escutada” (OG II, p.145) e de que suas sugestões sejam seguidas. Na
verdade, sua postura é semelhante à de um informador: “Por Deus, façam justiça às intenções
d’um pobre informador!” (Idem, p.193), o que se deve, de fato, a sua profissão de jornalista.
30
religiosa dos nossos grandes séculos – senão também à reorganização do
ensino artístico e industrial” (OG I, p.41), e organiza todos os passos para a
obtenção de recursos para as obras.
Nesse sentido, Fialho foi capaz de criticar o ensino e as instituições
portuguesas, porque recebeu uma cultura profícua, que, de fato, o distinguiu.
De acordo com Costa Pimpão, Fialho almeja a condição de burguês, mantendo
sobre os outros burgueses a distinção de cultura (PIMPÃO, 1945, p.75). Com
efeito, Fialho leu muito e falou de quase tudo, o que, talvez, o tenha impedido
de escrever um romance. Em seu espólio, há esboços de romances que tantas
vezes ameaçou escrever e desistiu no meio do caminho
16
. Mas, de acordo
com o próprio Fialho, o fato de não ter escrito um romance deve-se a
problemas econômicos, pois quem “tem de ganhar o seu pão dia por dia, [e,
por isso] não pode senão produzir minusculárias literárias, obrinhas de fácil
curso, pagas aos quinze tostões, Deus sabe quando, e escritas sabe Deus em
que disposições de cabeça e de barriga!” (AE, p.18) tem pouco tempo para
dedicar ao romance. Sabia que construir tal projeto não era simples assim
como os outros o pediam: “mas porque não escreve você um livro inteiro? um
grande romance, um grande quadro crítico?...”. Um romance demanda tempo,
estudo, concentração e recurso, e nada disso Fialho possuía no momento, já
que recebia menos que um carpinteiro ou um pedreiro. Também acreditava que
não existisse em Portugal público leitor para tal projeto, pois “não é por delícia
d’arte, nem por sugestões d’estética e de gosto, que em Portugal se lê um
romance (...) mas por mero passatempo, interesse d’efabulação, suspeita
16
De acordo com Costa Pimpão, o folhetim Ellen Washington, foi sua primeira tentativa de
romance (PIMPÃO, 1945, p.173). Depois, tentou escrever uma trilogia, no gênero das sagas
sociais zolaicas ou balzaquianas, intitulada Os Decadentes, segundo António Cândido Franco
(FRANCO, 2002, p.79).
31
d’escândalo, ou por banal afrodisia, simplesmente” (P, p.315) porque, de
acordo com a observação de Fialho, “em Portugal ninguém lê, e raros são os
lúcidos” (OG I, p.171) 17.
Há que se falar que, considerando os dados fornecidos pelo escritor, o
contingente de habitantes em Portugal (a “grossa massa do país”) no final do
século XIX era de cinco milhões, dentre os quais quatro milhões não eram
alfabetizados; ou seja, oitenta e três por cento eram os analfabetos
portugueses, o que, na visão de Fialho, era “a garantia mais sólida do sistema”
(Idem, p.176, 234). Cumprir tal projeto demandava um esforço que necessitava
de retorno financeiro; sem público capaz de saborear o romance tão pedido
pelos amigos, como o escritor se manteria financeiramente? Por isso o
romance sempre ficou a meio caminho.
A vida nunca foi fácil para o autor de “Os pobres”
18
. A infância sofrida
em Vila de Frades, assinalada pela pobreza, deixara uma marca indelével em
sua alma, cujos sentimentos e aspirações podem ser vistos no folhetim escrito
por Fialho a D. Elisa Curada, intitulado Páginas de miséria – confissões, em
1875, quando apenas tinha dezoito anos:
E eu tenho as faculdades que vejo brilhar nos que me chamam amigo, que
vejo desenvolvidas, colorizadas em mil dons, em mil pequenas cousas
cheias de unção, de fé, de ardor, essas faculdades, pergunto a mim mesmo
– e que sou afinal, o que penso, para onde caminho? Eles são felizes,
alegres, vários na sua descuidosa mocidade, teem dezoito anos como eu e
17
As citações ao texto literário de “Barbear, pentear” (Jornal de um vagabundo) serão feitas
através da abreviatura BP, seguida da numeração da página em arábicos.
18
Há um conto de Fialho intitulado “Os pobres”, inserido no volume de contos O País das Uvas
datado de 1893. Contudo Os Pobres também é título de um dos romances de Raúl Brandão,
datado de 1906. O autor de A Farsa conheceu Fialho pessoalmente, como consta em suas
Memórias (BRANDÃO, 1919, p.63). Além disso, segundo Óscar Lopes, o autor de Os Gatos
teve grande influência na literatura brandoniana. De acordo com o crítico, “não são poucos os
tipos sofredores de uma galeria fialhesca precursora da de Raul Brandão: o velho rabequista
mendicante, a fraca, exangue, sequinha pensionista do montepio, vagabundos e noctívagos de
olhar delirante, a violeteira alquebrada, de filhos famintos, queimando resistências já vãs às
propostas de um não menos considerável mostrengo masculino, o ardina petiz desfeiteado em
plena balbúrdia de Carnaval, um crime por rivalidade entre dois proletários rurais vizinhos, com
antecedentes e conseqüentes recortados sobre a trágica e inatingida solidariedade das suas
mulheres e filhos pequenos, etc.” (LOPES, 1987, p.180-181)
32
uma família que os adora. Alcançam sempre o que desejam. O seu
estômago nunca lhe[s] pediu pão que lho não dessem; a sua fantasia teve
sempre as proporções abastadas, para vestir as imagens. Se desejou o
deboche, teve-o. Se o idílio, mil lhe vieram. E eu, e eu... 19
Nessa época, Fialho já era um jovem folhetinista que tinha de sobreviver
com muito pouco; um folhetinista para quem o meio foi hostil. Assim, o pouco
dinheiro, a muita sensibilidade, os instintos de luxo, a curiosidade por tudo –
desejar muito e poder pouco – lhe perturbaram o curso fácil da vida (OG II,
p.58), como revela em desabafo ao amigo Raul Brandão: “_ O que eu sofri! o
que eu sofri!...” (BRANDÃO, 1919, p.63).
O tempo do colégio também não foi uma experiência fácil. Fialho
estudara em um dos melhores colégios de Lisboa, posteriormente classificado
pelo próprio Fialho como uma espécie de “necrópole”, “semi-matadouro” ou
“pocilga insalubre” (OG II, p.144,151), em que “apodrec[eu] durante 6 anos”,
tendo de cumprir rotinas severas
20
, sem ar livre e sofrendo por uma
alimentação insuficiente, que parece ter lhe deixado seqüelas – a fraqueza
física, por exemplo, – pelo resto da vida, como se queixa a Raul Brandão
(BRANDÃO, 1919, p.63). Nesse tempo, o menino Fialho enxergava a vida com
um olhar cansado, desinteressado e olhando “o belo espetáculo da vida
através d’uma nostalgia divergente, alucinatória por vezes, dentro da qual
turbilhonavam por vezes já bactérias de muitas futuras doenças incuráveis”
21
.
Um percurso que caracteriza como “batalha” ou “martírio”, que o pai o obrigara
a cumprir, em que se pode observar a rigidez das normas do colégio, pois os
19
Costa Pimpão transcreve alguns trechos desse folhetim, do qual extraímos este pequeno
trecho. Ver Pimpão, 1945, p.64.
20
Fialho conta que acordava às cinco horas da manhã, fosse no verão ou no inverno, e
estudava onze horas por dia, sem poder ser mexer (OG II, p.147-149).
21
O itálico é nosso.
33
livros enviados pelo pai como presente lhes são tirados à força das mãos 22. O
colégio revela-se um ambiente tão intransigente, que só pode ser sentido pelos
alunos como uma autêntica prisão, que marcará todos os outros dias da vida
de Fialho, pois deste período o escritor levará a sua frágil saúde e sua eterna
timidez que o fará entregar-se aos escritos. Essa “timidez invencível nunca o
deixou falar em público apesar de, como ninguém, sentir a necessidade de
aplauso” (BRANDÃO, 1919, p.76).
Depois desse tempo de colégio, e durante as horas do dia, Fialho
trabalhava como praticante numa farmácia por necessidade econômica. À noite
devaneava pelas ruas de Lisboa, inserido em um mundo de sombras e
mistérios, um ambiente propício para que o tímido Fialho pudesse pesquisar o
inédito e o marginal, registrando nos excessos da linguagem emotiva as suas
impressões de espectador.
Lisboa, para Fialho, tinha um lado desconhecido, que pelas noites, pelas
vielas dos becos escuros, ia sendo percorrido, não com o olhar deslumbrado
em que “Uma profusão de percepções vem formar bruscamente uma
impressão deslumbrante”, em que “(deslumbrar é, no limite, impedir de ver, de
dizer)” (BARTHES, 2003, p.9), porque, uma vez que se está preso na teia da
visão deslumbrante, conseqüentemente se perde a luz, ou seja, nega-se
qualquer possibilidade de enxergar a realidade, tal como ela se apresenta.
Fialho parece não correr este risco, nem com relação ao seu lugar de origem, o
Alentejo, nem com relação a Lisboa. Ao contrário, o escritor mais do que vê;
ele “repara”, “considera”, “analisa”, emite juízos de valor, parecendo seguir o
conselho de que falaria o português José Saramago anos mais tarde em seu
22
Eram dois volumes: um de Garrett e outro de Herculano, classificados pelo regime da época
como livros de leitura amena, que o pai lhe enviara depois Fialho queixar-se do “tédio mortal de
que era vítima, durante as recreações, nas salas de estudo” (OG I, p.151).
34
romance Ensaio sobre a cegueira, a respeito da capacidade de reparar,
enquanto os outros somente vêem: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”
23
, visto que Fialho volta o seu olhar para penetrar mais fundo, observando
verdades não narradas. É assim, querendo ver tudo, que o autor de Os Gatos
apresenta aos leitores um Portugal visto “por dentro”, resultado da visão
experimentada da realidade.
Por vezes, o narrador de Os Gatos não só punha os fatos em evidência
como pressentia o indesejado, como a morte de Manoel, quando o narrador em
desabafo revela: “evidenciam-me a meus olhos, coisas que tocam na minha
úlcera, e me fazem sofrer como um danado” (OG II, p.89). Inúmeras vezes o
escritor viu muito além. No artigo “O violoncelista Sérgio n’um café da
Mouraria”, inserido em Os Gatos I, por exemplo, o narrador (que tem sua voz
“colada” à do autor) nos fala do “bestiário da alucinação doida e disforme” de
que por momentos a imaginação é tomada; da alucinação visual; da “tinta
delirante” com que via (e pintava) as coisas triviais e dramáticas que o
circundavam; e ainda diz-se propenso “às meias-visões macabras da alta
nevrose” (OG I, p.121-168). Também as visões de “O enterro de Rei D. Luiz”
são feitas de febre e alucinações, o que o aproxima da arte decadentista (como
veremos no próximo capítulo).
Tudo quanto diz – ou escreve – está na ponta da língua – ou da pena –,
num exuberante estilo que se afirma na linguagem “límpida, brutal e simples",
fruto de sua “natureza rude e brutal” (VI, p.142) que, se não lhe rendeu um
romance, permitiu-lhe criar muitos contos e artigos que nos deram um perfil
bastante singular do Portugal do seu tempo.
23
Na verdade, esta passagem é a epígrafe do romance (José Saramago. Ensaio sobre a
cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1994).
35
Ainda em sua “Autobiografia”, Fialho enuncia a sua linguagem plebéia e
“suja”, fruto da ruptura com o sublime (“estilo nobre”) e da grandiloqüência
discursiva, marcada no nível ficcional, pelo predomínio da imaginação grotesca
24
, a que contrapõe a visão naturalista por um modo de escrita marcado pela
intenção de exprimir também o que não se vê. Opondo-se na escrita à
predileção do público português pelo belo, com o aparecimento de imagens do
fascinante universo grotesco, o autor de Contos vem apresentar ao leitor uma
civilização cravada por abominações que rompem com o convencional da
razão humana. Fialho visiona também a linguagem panfletária como a única
capaz de “ferir fundo”: “aquela que esbofeteie a hipocrisia infame da sociedade
egoísta que nos cerca” (AE, p.24), pois sabe que “a vida [é] uma pavorosa
guerreia de raposas contra lobos, e grande risco corr[e] quem se emaranha (...)
n’ela, despetrexado de manha ou dente agudo” (OG II, p.38). Assim Fialho,
considerado por ele mesmo um autêntico plebeu, indiferente aos juízos da
opinião pública, tem na linguagem panfletária e plebéia a desforra ou,
metaforicamente, as garras de “gato bravo”, capaz de reagir ágil e nervosa
contra agressores e adversários. Como adverte aos leitores, no prefácio de Os
Gatos I: “Razão porque nos acharás aqui, leitor, miando pouco, arranhando
sempre, e não temendo nunca” (OG I, p7).
Donos de um estilo inconfundível, os escritos de Fialho ora apresentam
estruturas semelhantes às da linguagem oral, ora apresentam um estilo
rebuscado, que alguns críticos chamam de barroco (LOPES, 1987, p.193),
talvez por assumir uma atitude anti-tradicionalista e anti-academista, ao
24
Na verdade, foi a doutora Isabel Cristina Mateus quem aborda, com mais profundidade, essa
passagem da obra de Fialho em sua tese de doutoramento Kodakização e despolarização do
real: para uma poética do grotesco na obra de Fialho de Almeida, a mesma foi devidamente
orientada pelo Professor Doutor Vítor Manuel de Aguiar e Silva na Universidade de Coimbra.
36
confessar-se um “trabalhador reputado de não querer escrever português
corretamente” (OG III, p.269) 25. Um “obscuro obreiro” da palavra, para quem o
plausível é “que o dom d’escrever se acompanhe sempre d’esse’outro d’ouvir
uma pequena voz interior que cita a frase. Fazer passar o acento d’essa voz,
nas palavras, eis o que é ter estilo” (Idem, p.252) e cujos estilos variam. O
próprio Fialho afirma orgulhosamente possuir vários estilos, pois, de acordo
com que ele mesmo afirma e divulga: é o único escritor em que o “assunto é
que dita o estilo” (AE, p.23). Desse modo, como a escolha do estilo está
intrinsecamente ligada à do assunto e seus assuntos variam na tentativa de
captar a melhor forma de expressão da vida contemporânea, o estilo, em
conseqüência dos assuntos, afirma-se como múltiplo.
Segundo Wolfgang Kayser, em seu estudo Análise e interpretação da
obra literária, o estilo pode ser entendido como “um fenómemo das línguas
nacionais”, “um fenómeno da personalidade artística” ou “um fenômeno da
época”, dependendo da concepção do investigador do texto literário. Deste
modo, todos os estudiosos (Kayser observa em seu texto que os estudiosos
discordam uns dos outros em vários assuntos) são unânimes ao afirmar que
“estilo, se trata de algo individual: aquilo que é peculiar de determinado
homem, de determinada época”. Além disso, eles concordam que o estilo é
expressão e deve ser encarado como uma unidade (KAYSER, 1985, p. 312).
Segundo Fialho, seu estilo surge do rompimento com o “estilo nobre” (AE,
p.23), recusando a condição de simples imitador da realidade, pela
necessidade de dar forma ao “indizível”, de criar a partir de passeios noturnos
e, sobretudo, pelo interesse de renovação (ou experimentação) da linguagem.
25
As citações ao texto literário de Os Gatos III serão feitas através da abreviatura OG III,
seguida da numeração da página em arábicos.
37
Além disso, os neologismos e as metáforas engenhosas e brilhantes, contidas
em sua prosa, formam, certamente, um traço nítido do estilo do autor. Segundo
Jacinto do Prado Coelho
O estilo [de Fialho] é exuberante, de tintas carregadas e fortemente
contrastantes, túrgido, fremente, irregular, excessivo: aglomera termos
vigorosos, estrídulos, adjectivos como “brutal”, “colossal”, “frenético” (...).
Traduz a turbulência interior e o barroquismo do gosto. É o estilo adequado à
pintura febril dos instintos, dos impulsos bárbaros, das grandes forças
desencadeadoras ou em formidável conflito (COELHO, 1996, p.192).
Contudo, não se sabe precisar até que ponto sua escrita tenha sofrido
influência, pois, conforme já dissemos, Fialho é um homem do seu tempo. O
escritor pode ter tido sua escrita influenciada pelos preceitos de estilos
dominantes na época, influência esta que Fialho recusa, mas a que, conforme
veremos no próximo capítulo, não pode furtar-se; pelo gosto do público, a que
o escritor também afirma não se sujeitar, vindo acusar particularmente aqueles
que cedem ao gosto da moda ou do público; por modelos representativos de
escritores, conforme ele mesmo afirma, associa sua linguagem ao sonho, ao
delírio das imagens e à febre alucinatória que admira em Goya e Edgar Allan
Poe. De modo recorrente, o escritor identificará seu processo de escrita às
“visões hamléticas” ou às “deformidades de visão” de Goya e de Poe (OG II,
p.64-67).
De fato, essas forças sobre-pessoais influem sobre o escritor e
comprometem uma certa segurança de um estilo pessoal. Contudo, pode-se
afirmar que Fialho tenha um conceito de estilo apropriado para cada assunto,
capaz de vincular sua expressão e atitude. Segundo Jacinto do Prado Coelho,
“Fialho pretendia orgulhosamente possuir um estilo para cada assunto; e não
vamos negar-lhe o dom de variar a expressão, que percorre uma extensa
38
gama, do frívolo ao patético” (COELHO, 1996, p.192). Na verdade, o que
interessa a Fialho é dar a sua obra um caráter de individualidade, o que se
pode observar em seu aconselhamento aos artistas: “deve o artista, não só
sentir, como exprimir d’uma maneira sua e original. É o que se chama estilo,
que é a expressão literária do caráter, e só têm os artistas unos que
sociologicamente ao mesmo tempo sejam tipos definidos” (OG I, p.252).
Pelo visto, a tentativa de originalidade do estilo de Fialho elabora-se,
segundo as suas afirmações, sem um programa estético prévio, na recusa de
todas as escolas ou correntes literárias, em sintonia apenas com o entusiasmo
advindo da primeira impressão, na expansão do temperamento emotivo que
Fialho salienta ser “a base da estética, devendo ser sincera não tanto no ponto
em que ela alvorota o coração do artista (...), mas n’aquele outro, primaz, em
que transforme a obra n’um produto sensibilizado contra que vem chapar-se a
polarização sentimental do espectador ou do leitor” (BP II, p.251).
Conforme disse Barthes, em sua Aula inaugural, a linguagem, e
consequentemente a língua, são objetos a serviço do poder: “Assim que ela é
proferida, mesmo que na intimidade mais profunda do sujeito, a língua entra a
serviço de um poder. Nela, infalivelmente, duas rubricas se delineiam: a
autoridade da asserção e o gregarismo da repetição” (BARTHES, 1997, p. 14).
Assim, se a linguagem está sob um poder que a determina, há que se construir
uma nova linguagem para novas vontades, para aqueles que anseiam por uma
nova maneira de enxergar a realidade.
Lançando palavras como “explosões”, “vibrações”, “a palavra vibrante
pela audácia” (VI, P.218) e sabores, através de um estilo eminentemente
emotivo, Fialho parece esquivar-se ao perigo do “gregarismo da repetição” de
39
que fala Barthes. Sabe que em uma sociedade cada vez mais artificial, “amig[a]
das coisas fáceis e ligeiras” (BP, p.251), as palavras gastam-se pela repetição,
e que, se pretendia passar à posteridade como um escritor original, cuja obra
transparecesse luz e movimento da vida, além de que representasse a sua
individualidade, seria preciso recuperar a intensidade perdida. Esta intenção de
dar vida à palavra, conservando o sabor, através do estilo, Fialho deixa clara
quando diz que “as palavras copiam-se, passam-se, como moedas falsas
correndo as bolsas sem paternidade investigada, mas não se pasticha a flama
espírita que n’uma obra delas coisa viva” (Idem p.249).
Talvez esse lado emotivo da sua escrita, juntamente com sua
misantropia, expliquem o fato de Fialho, profissionalmente ligado à imprensa,
não se envolver em nenhum dos muitos projetos literários que mobilizavam os
outros escritores. Seu projeto parece ser uma aventura individual, um percurso
marginal, tendente às “visões” das coisas, à deformação subjetiva; é produto
do seu temperamento, muitas vezes conseguido em transe, numa espécie de
embriaguez (COELHO, 1996, p.189). O próprio Fialho salienta a importância da
embriaguez para a arte em Barbear, pentear:
A embriaguez (...) acompanha todos os grandes desejos e emoções, atos de
bravura, luta, vitória, festa – todos os movimentos externos da crueza e
destruição – (...) o da vontade acumulada e dilatada, tudo isto determina, por
um sentimento vertiginal de força e plenitude, o quer que seja d’um exaspero
cerebral extra-lúcido, d’uma embriaguez que tem em si potência de arte.
“Sob o império d’ela, o artista abandona às coisas que o rodeiam, força-as a
quererem d’ele, violenta-as, transforma-as, até que elas lhe reflitam a força, e
sejam o breviário da sua perfeição” (BPI, p.249-250).
Esse percurso marginal da escrita fialhiana realiza-se principalmente à
noite, momento em que o homem pode ser ele mesmo, sem máscaras, e o
grotesco escorre em abundância.
40
2.2 - Vagabundagens soturnas
Na prosa fialhiana observa-se, de fato, uma evidente predileção pela
noite, que condiz com a predileção da maioria dos escritores do “grotesco
romântico” (BAKHTIN, 1993, p.36). A obscuridade aguça a atividade criadora
do escritor, a sua “diabólica óptica deformante” que tudo transforma/deforma
com imagens de sombras, de espectros, visões deformadas ou realidades
confusas, ou como diz Fialho,
a noite com seu mistério turbante, suas vozes erráticas, suas moles de linhas
imprecisas, suas lagoas de tinta sulfurosa, suas tragédias de nervos e de
estrelas, seus sabbats aberrantes d’idéias e deboches, é a grande caverna
da alquimia poética onde os Faustos escarvam, sob o satanismo do gênio,
os fantasmáticos poemas de mors-amor! (FD, p.53).
Esse lado noturno condiz perfeitamente com a imagem de vagabundo
que Fialho tanto apregoa de si mesmo. Conforme ele mesmo afirma aos 33
anos:
Como sou misantropo, e só trabalho na rua, – tanto mais facilmente, quanto
mais acelerada a marcha em que me estafo – a vagabundagem está
indicada entre os meus processos de formilhação intelectiva, e o meu
alheamento à vida exterior, nessas ocasiões, é tão completo, que podem
passar por mim desordens e ribombos; eu não nos ouço, eu não nos sinto, e
para além das muralhas do meu crânio, o mundo cessa 26.
Essa “vagabundagem” vai além de uma simples imagem de vagabundo,
amplamente difundida nos muitos subtítulos de seus livros, como – Jornal de
um vagabundo –, para ganhar status de expressão de vida, representação de
26
Extraímos este pequeno trecho escrito por Fialho em 1892, para o número 59 da Revista
Ilustrada, que Costa Pimpão utiliza no prefácio que fez à Vida Irônica (p.9).
41
uma escrita em tempos de crise, ou melhor, de um estado de espírito marcado
pela tensão, que encontra sua correlação na poesia de Charles Baudelaire,
Meu coração a nu: “Enaltecer a vagabundagem e aquilo que se pode designar
por uma concepção boêmia da vida – um culto da sensação multiplicada e
expressa pela música” (BAUDELAIRE, 1995, p.545). O status de “vagabundo”
fortifica o estatuto declarado de boêmio, que Fialho também associa a si
próprio, explicando que boêmios “são (...) filósofos negadores, de vistas
antagônicas, d’esse ângulo de refração que lhes perturbe a visão de conjunto
do mundo, [de onde] provém, via de regra, o ostracismo a que quase todos os
boêmios são votados”. Vagabundo e boêmio, assim Fialho se reconhecia e
anunciava/enunciava em suas passeadas noturnas. São passeios em que “a
noite realiza e dá corpo a todas as formas de exagero, e todas as
impulsividades da luxúria, a todas as estranhezas fantásticas da ilusão; ela que
calcula, ela que pensa, ela que desdobra a personalidade para além dos limites
do real humano” (FD, p.62; p.54). Pelo visto, nesses momentos de escuridão é
que o escritor se dará conta do universo grotesco.
No texto “Fantasmagorias da noite”, inserido em Vida Irônica, Fialho
apresenta uma Lisboa noturna, rica de inéditos e “à mercê de sonhos trágicos”,
em que revela aspectos ampliados de uma realidade conhecida, pois, nas
andanças pelos bairros cobertos pela negridão, a cidade perde a proporção e a
visão que proporciona é a de que “as ruas são maiores, as casas mais
lúgubres, as árvores colossais de desespero, e os próprios sinos se esquecem
de dar horas, uma angústia mortal baba das coisas, há rondas de loucura nas
tremulinas do gás” (VI, p.4). Não é mais a Lisboa amplamente conhecida por
todos, e sim “uma Lisboa diferente [que] irrompe em sobressaltos, dos abismos
42
das ruas, dos lagos de sombra das praças, e das crateras extintas dos
outeiros” (Idem, p.3), uma cidade desigual, uma Lisboa “propícia à germinação
sugestional da fantasia” (FD, p.54), que alimenta a imaginação dos artistas.
Fialho não gosta da vida diurna em Lisboa, certamente porque durante
as horas do dia, “a pupila, dominada pelo concreto, impossibilita o devaneio”
(Pimpão, 1945, p.161). Mas à noite, a “vida dos foyers e dos cafés reconciliavao com a grande cidade” (Idem, p.158). Sua predileção pela noite se deve,
principalmente, ao fato de a noite ser sedutora, pela possibilidade de perscrutar
os mistérios da sombra, cujas impressões são mais intensas e, especialmente,
porque se pode contemplar indiscretamente a vida alheia, sem ser visto.
Sob o céu fúnebre, as barreiras sociais, opostas à liberdade do homem,
podem ser derrubadas. É quando anoitece e já ninguém o observa que o
indivíduo pode ser ele mesmo, sem máscaras, sem convenções sociais,
podendo assim exceder os limites sociais que acorrentam a vontade humana.
No conto “A Ruiva” (incorporado à revista portuense de Joaquim de Araújo,
Museu Ilustrado, em 1878, e depois incluído no volume intitulado Contos, em
1881), por exemplo, quando as trevas tomam a cidade dos cadáveres, o
personagem Carolina pode ser “a rainha do cemitério”, devaneando por entre
caixões, por entre corpos mortos, a fim de escapar à visão de todos e realizar
seu desejo mórbido:
Nas horas de calor, de Verão, quando sob os ciprestes, os empregados do
cemitério dormiam, ia devagarinho, sem ser pressentida, à casa dos
depósitos, escolhia os cadáveres dos moços, dos belos, se os havia, e como
um pequeno vampiro sequioso entreabria as mortalhas, despregando com
uma navalhinha as camisas; metia a mão devagarinho pelo peito, metia,
escorregando-a ao longo das carnes, beliscando-as levemente, com prazer;
o olhar dilatava-se-lhe, havia na sua face uma mancha de excitação, mordia
os lábios, exaltada; e, palpando, estudando, compreendendo e adivinhando,
43
ficava absorta, um pouco curvada sobre os corpos, o hálito ardente, uma
palpitação larga e cheia de ímpeto (AR, p.13) 27.
Já no conto “Os pobres”, o mendigo ou o monstro, caracterizado no
texto como um “casmurro humilde de quem mangam sem piedade estranhos e
vizinhos, crivando-o de sem-razões qual mais sardônica, sobre a miséria das
roupas, os rasgões da camisa, e a sordidez de ganhar sem despender” ou visto
como “um animal bravio das selvas” (OPV, p.71-74)
28
, tem um encontro
puramente sexual e misterioso no caos da treva. Tomado por “uma fadiga
secular” em “noite hostil” em que “deus foi-se embora”, o pobre caminha “cego
das trevas, tacteando aos dois lados”, até que distingue, “no labirinto da noite”,
um casebre abandonado. A “sombra confidente” impede a visão da realidade;
no entanto, uma mulher, tão miserável quanto ele, abriga-se no mesmo lugar.
Não se olham, não se vêem, mas “nas trevas procuram-se” e “assim
entrebucham a noite numa orgia espasmódica, luxúria e danação, que faz das
suas núpcias, bacanais. Até que saciados, antes que a manhã dealbe o céu
lutuoso, cada qual deixa o casebre por sua porta”. Não se olharam, não
trocaram palavras enquanto estiveram próximos, serão eternamente estranhos
um ao outro, “não tendo (...) mesmo [como] fixar-se na escuridão profunda, o
vulto incerto”. Ao final do relato “come-os a treva, nunca mais se encontram,
nem ao dia seguinte teriam já meios de reconhecer-se”.
De fato, tanto o personagem Carolina como os personagens conhecidos
como os pobres são exemplos de encontros estranhos gerados na penumbra
da noite. Devidamente planejados ou frutos do acaso, esses encontros vêm
27
As citações ao texto literário de “A Ruiva” serão feitas através da abreviatura AR, seguida da
numeração da página em arábicos.
28
As citações ao texto literário de o país das uvas serão feitas através da abreviatura OPV,
seguida da numeração da página em arábicos.
44
acentuar a libertação das forças instintivas que o homem libera nos devaneios
da noite, acentuando a animalidade e a transgressão da moral
29
, que,
particularmente, no caso do personagem Carolina, é capaz de gerar nojo no
leitor perante o deleite experimentado pelo personagem de manifesta distorção
da sexualidade. Assim, as aventuras noturnas vêm exacerbar a liberdade, o
desejo,
a
anormalidade,
a
perturbação
da
alma,
a
perversão
e
conseqüentemente o aparecimento do grotesco, tudo o que certamente a luz
do dia lhes impediria, e que são temas constantes da literatura Decadentista.
No artigo “Lisboa monumental”, inserido em “Barbear, pentear”, por
exemplo, observa-se que, durante as horas do dia, os lisboetas vão ao Terreiro
do Paço a fim de “cervejar e sorvetar”; contudo, é ao anoitecer “que
vagabundagens por ali, nas noites quentes, perorando no ar pulcro, sobre a
madorna bronca do burgo, [ensejam] as velhas questões que fazem chispar
[um] olhito rugoso” (BP, p.103). Na opinião do escritor, que possuía uma
evidente predileção pelos ambientes luxuosos e movimentados, são as noites
de verão que vêm tirar Lisboa “da pacatez provincial em que os estrangeiros
ano após ano vem topá-la”. Todavia, ainda falta, na opinião do escritor, “encher
o paraíso de fogos claros nas noites estreladas, de músicas e ruídos festivos,
inaugurara n’esse castelo a era da vida alegre” (Idem, p.104; 106). Rica de
inédito e de expressividade, assim é que Lisboa, vista por Fialho como a
“grande cidade”, se apresenta à noite.
Já no artigo de Vida irônica observa-se que o que irrompe na magia da
noite causa uma impressão inusitada da cidade, cujas formas obscuras e o
exótico ganham corpo com imagens fantásticas. O escritor cria uma Lisboa
29
Jacinto do Prado Coelho acentua que o conto “Os pobres” tem de ser visto como amoral e
não imoral (COELHO, 1996, p.192).
45
repulsante e de tal forma estranha que causa calafrio no leitor: “uma Lisboa
outra e toda ela latente de tragédias, convulsa apesar da paresia exterior que a
cadaveriza, aflita, mau grado a impassível mordaça de pavor que lhe
estrangula os haustos, e casa vez mais inquietante, cada vez mais espectral”
(VI, p.3). Descreve-se então uma cidade-cadáver, trágica, paralisada, aflita e
inquietante, tão ao gosto da literatura Decadentista, em que carroças, “lúgubres
como sarcófagos”, adentram a cidade em direção ao mercado, que é descrito
como “sinistro, todo de ferro, acachapado e com torrelas nos ângulos,
zimboriadas de negro, onde um ou outro laivo de metal chameja cruamente”.
Uma civilização noturna, a liquidar de abominações, revela o disforme, pois
algumas pessoas chegam “espendurando carne de boi, sangrenta, em nacos
musculosos, [que] parecem evocar, naquela noturna sombra, lendas de
patíbulo”, à frente se vê “uma espécie de gnomo (...) [que] agita os braços,
cinge de golpes a mula, entre jatos de praga e expectorações de raiva biliosa”.
Por cima, o “céu fúnebre (...) restringe a elevação do olhar para as alturas,
abafa os prédios sob fuligens trágicas” e “um cheiro de hortaliça esmagada
estesia a narina” (Idem, p.4-6).
Essa cidade cadaverizada que se apresenta à noite, vista pelas lentes
fantasiosas de Fialho, harmoniza-se com a óptica do universo grotesco, pois
traz à tona o disforme, o horror, o inédito, todo o universo que se afasta do
convencional da razão humana, com o aparecimento de formas deliqüescentes
que se “desfaze[m] na (...) noite hiperbólica, incognoscível, onde as coisas têm
formas de balada – ora voltando com fermentações de larvas, n’uma fúria de
viver febricitante”
(OG I, p.105-106). Mesmo à luz do dia é descrita a
46
deterioração dos corpos noturnos, pois “é quando entra do prostíbulo e da
batota a gente que apodrece, e quando sai para a labuta a gente que trabalha”.
Em certas horas noturnas, o escritor dá-se ao prazer de percorrer, e
descrever, a vida, fascinado pela fórmula do pintar o que não se vê (OG V,
p.235), revelando “esse ruge-ruge de vida invisível, que é, à noite, a respiração
dos sítios habitados” (OG I, p.168-169).
As visões que se apresentam
despertam no solitário vagabundo imagens deformantes, dão-lhe aspirações
para seus escritos, enchem e de tal maneira perturbam a realidade, que lhe
vem, à frente, um mundo indeciso em que não se sabe se o fato realmente
ocorreu ou não. Isto talvez ocorra porque
a noite liberta a fantasia, e permite aos artistas deambulantes tecer em volta
dos seres e dos objetos sugeridos, caprichosos rendilhados, frágeis teias de
hipóteses, idílios e dramas, sem que a luz crua venha opor ao devaneio um
desmentido formal. Uma simples palavra, ouvida a um grupo com o qual se
cruza em travessa sóbria, pode ser ponto de partida de uma obsessão
(PIMPÃO, 1945, p.160).
Ao favorecer as diluições de formas, a ambigüidade, a noite favorece,
igualmente, o aparecimento do universo grotesco, já que a “diluição das coisas
nas trevas favorece a transposição do real no irreal” (Idem) e as observações
do narrador adquirem qualquer coisa de estranhamente irreal. Essa é a
capacidade especial que a literatura tem – provocar uma objetividade sui
generis, – em que, segundo Wolfgang Kayser, “os factos (...) adquirem
qualquer coisa de estranhamente irreal, pelo menos uma existência peculiar,
absolutamente diversa da realidade. Os factos ou (...) a objectualidade (...)
existem somente como realidade evocada” (KAYSER, 1985, p.6), uma vez que,
a noite, em que as sombras dão a percepção imprecisa das formas, gera o
medo, advindo da entrada num ambiente desconhecido, e que “desamarra os
47
submarinos do cérebro, os hypogrifos da normalidade epoleptoide (ou
simplesmente poética, ou viciosamente impulsiva, ou degeneradamente
criminal), a anormalidade diabólica, espiral, criadora de larvas e visões” (FD,
p.54) é que sugere o aparecimento do mundo grotesco.
Em meio à escuridão, o escritor vai dando forma ao exagero, às
estranhezas fantásticas da ilusão, desdobrando personalidades além do limite
da razão, gerando um mundo oculto e só seu, trazendo à tona imagens do
inconsciente, ultrapassando mundos e “abrindo sobre os infinitos da vida essa
grande porta de batistério tremendo onde todas as religiões escreveram para o
homem ler – não passarás!” (Idem).
Em “O violinista Sérgio n’um café da Mouraria”, por exemplo, o delírio
alucinatório de que o narrador é tomado vem não somente do fato de tornar
estranho o que antes era considerado normal; também vem apresentar um
mundo outro, acessível somente em momentos de loucura, sonho ou febre. O
narrador vai à noite ao café, encontra a música certa capaz de despertar o seu
lado emotivo e deixar manifestar-se a “alucinação visual”. Lá surpreende um
casal que acaba “remexendo na (...) razão as fundalhas de loucura pensante”;
como já não sabe se narrou o que viu, tenta explicar-se:
Explico o fenômeno por uma aberração sinérgica dos eixos oculares,
resultante da fadiga dos globos irritados pelo calor do café, pelo reverbério
das luzes, pela intoxicação talvez do fumo do tabaco, e mais remotamente,
ainda pelo dinamismo anormal em que a música me posera o cérebro,
hereditariamente propenso já de si, às meias-visões macabras de alta
nevrose” (OG I, p.121).
Neste sentido, de acordo Isabel Cristina Mateus, em quase todos os
momentos em que o escritor é tomado pela alucinação visual, ela se manifesta
como
um
“fenômeno
ótico-psíquico”,
resultante
da
desfocagem
ou
48
desrealização do real, fundamental para a emergência do grotesco (MATEUS,
2007, p.240), que só é possível de ser realizada à noite, porque, como afirma o
narrador, “os carnavais se sublinham apenas na noite, em tons d’azul e fósforo,
muito vagos, e o diabo passa, de pescoço estendido, as asas lassas, de
cócaras quase, aos pulos sobre a roca, como um grifo caduco à procura
d’almas que escorchar” (OG I, p.105).
Seres incorpóreos e “inusitados na oficina de Deus”, como “gnomos,
leves como luzernas”, tomam a noite alucinada do escritor, “corr[em] o mundo”
a “impulsionar os crimes e as doenças”, numa “dança infectante” da “noite
hiperbórea” (Idem). Diante de tal representação do universo grotesco, esfacelase qualquer possibilidade de razão e resta ao leitor a percepção de um mundo
que conspira pela ovação do horrível, um mundo fascinante pela riqueza das
imagens inéditas e surpreendentes que o escritor é capaz de nos proporcionar.
Já no texto “A tragédia d’um homem de gênio obscuro”, publicado em
1890, Fialho apresenta-nos a tragédia de Manuel, aí descrito como um artista
marginal e boêmio que fora possuído por uma força obscura, tomando-se uma
pessoa desequilibrada e, em alguns momentos, até mesmo inconveniente. De
acordo com o quadro clínico apresentado pelos médicos, no texto, Manuel é
“um dipsomaníaco, com compulsões homicidas, hereditário, incurável, a
caminhar para o término com uma rapidez vertiginosa e delirante” (OG II, p.82),
pois esse alucinado, tomado por uma “singular agitação”, faz com que Fialho
(através do narrador) tenha de segui-lo, fornecendo-lhe uma experiência
singular da noite lisboeta: “fui-me atrás dele, mais por defendê-lo d’alguma
agressão inopinada, de que por averiguar de perto os seus desregramentos”. A
noite agora é capaz de gerar medo e angústia no escritor, pois “a treva comia a
49
cidade, n’um silêncio de maxilas desdentadas, onde as perspectivas ruíam,
sepulcrais (...). À proporção que a hora ia, as ruas tinham na fuligem nocturna,
calafrios de vida criminal” , enquanto apareciam indivíduos noctâmbulos de
aspectos decadentes: “tipos sórdidos (...) caras inquietas, máscaras de bronzos
frustes, com barbas nas orelhas, beiços raxados, estrabismos demoníacos; e
todas esses anatomias raquíticas de seres falhos”. Diante desses seres
estranhos, a noite já não pode ser vista positivamente, como momento de
magia e inspiração, pois, à proporção que seguia o alucinado Manuel, era
tomado pelo pavor, como afirma: “enchiam a minha alma de medo,
debruçando-a, semi-louca, sobre um mundo d’infâmia inigualável” (Idem, p.7779).
Também na penumbra Fialho ia conhecendo e transpondo para as suas
páginas de ficção o mundo dos anormais, dos infelizes, que, ocultos nas
sombras, revelam a perspectiva de uma visão inédita e marginal. Raul Brandão
observa que Fialho envolve-se em “uma luta de noites e noites de que sai
amarfanhado – com páginas soberbas” (BRANDÃO, 1919, p.66). De fato, a
noite é a “centelha” que lhe proporciona o recanto inédito da vida, que lhe legou
as muitas páginas ficcionais da visão grotesca.
Deste modo, Fialho soube ultrapassar o limite do senso-comum e até do
que é “Belo”, para mostrar ambiente e personagens grotescos (“feios” e
anormais). De acordo com Wolfgang Kayser, um dos principais teóricos do
universo grotesco,
É somente na qualidade de pólo oposto do sublime que o grotesco desvela
toda sua profundidade. Pois, assim como o sublime – à diferença do belo –
dirige o nosso olhar para um mundo mais elevado, sobre-humano, do mesmo
modo abre-se no ridículo-disforme e no monstruoso-horrível do grotesco um
mundo desumano do noturno e abismal (KAYSER, 2003, p.61).
50
No conto “A Ruiva”, por exemplo, o cemitério dos Prazeres, que se abre
estranhamente “como a goela dum plesiossauro”, apresenta um ambiente
grotesco capaz de gerar estranheza e nojo no leitor, pois
Em anoitecendo, tudo aquilo era de uma contemplação lúgubre e misteriosa,
em que se adivinhava o trabalho de milhões de larvas; o ladrar dos cães
tinha um eco desolado, que tornava depois mais sinistro o silêncio; a porta
fechava-se sem rumor, girando em gonzos discretos, e uma luz esmaecia na
treva, no fundo dos ciprestes e dos túmulos, diante de um santuário deserto,
onde o Cristo, do alto, olhava vagamente o guarda-vento (AR, p.3-4).
A taberna, localizada em frente a este cemitério, vem apresentar
personagens tipicamente grotescos. O tio Farrusca, o “coveiro e o mais
asqueroso”, é um deles, um personagem solitário, tão estranhamente sinistro
em sua aparência e conduta. Apresenta
aspecto repelente, perfil áspero e cortante, descarnadas as faces, as
mãos aduncas e gastas, cheias de terra e de cabelos (...) tentava
caminhar; a sua sombra oscilava, amplificada na parede, como a dum
antediluviano fenomenal, e quase se não compreendia bem como aquela
cousa era um homem (Idem, p.6).
Observa-se aí, pela ótica do narrador, a construção de um ser
excêntrico, de aparência bizarra, cuja sombra revela uma mistura de homem e
animal que, de acordo com Kayser, é passível de ser enquadrado em uma
segundo tipo de grotesco: os que “apresentam aparência bizarra, jogo facial
exótico e selvagem, e movimentos excêntricos” (KAYSER, 2003, p.95).
Assim, vagabundagem, “óptica deformante” e noite surgem identificadas
ao processo de escrita fialhiana. Essas estranhas visões que sobressaem à
noite fazem parte da “cidade do vício” que Fialho “pinta” com traços do
marginal, cujos personagens se apresentam crivados de dores, angústias e
marcados pela morte.
51
3- O PORTUGAL FIALHIANO, POR ENTRE RUÍNAS
O fim do século é também, me parece, um
fim de encanto.
(Fialho de Almeida. Vida irônica).
52
Os anos finais do século oitocentos português apresentava-se, como já
salientamos, em estado de decadência política, social e econômica,
principalmente, histórica, agravada com a partilha obrigatória das terras
africanas, segundo determinou o Ultimatum. Fialho de Almeida, contemporâneo
ao fato histórico e consciente das tensões em que vivia o país, vai largamente
observar esta momento de crise da nação portuguesa no artigo “A espoliação
portuguesa n’África (panfleto aos fracos)”, inserido no terceiro volume de Os
Gatos.
Nesse texto, Fialho critica a usurpação das terras portuguesas de além
mar pela “infamíssima aliada” Inglaterra, assim considerada pelo escritor,
ressaltando que “de longa data os corsários [ingleses] seguiram a rota dos
nossos galeões [portugueses], à caça de terras que nós descobrimos, e que
por mal guarnecidas, eles muitas vezes assaltavam (...) o seu papel consistiu
quase exclusivamente em espiar-nos os passos, e em se apropriar da casa
feita” (OG III, p.65, 67). São terras de grande valor, já que, segundo Fialho, foi
onde pelejaram os heróis portugueses nos séculos XVI e XVII, e a “amiga”
Inglaterra planejara “derramar comércio, fundar cidades, e fazer homens
ativos”. Mas Fialho vai, sobretudo, observar a inércia, o adormecimento e a
falta de coragem do povo português em relação à questão africana:
De feito, a nossa expulsão d’África (...), poderia já não digo evitar-se, mas
ser recuada até um prazo ilimitado, podendo ser que os tramites da luta
empregada para fugir à morte, chamasse sobre nós o apoio das nações neoromânticas, como a França (...). Mas é que essa expulsão se está dando
com todas as agravantes de desprezível inércia, de covardia provada,
d’incapacidade autentica, e de sardônica pulhice, de que nenhuma
chancelaria da Europa tomará conta, sem achar o castigo inda inferior às
nossas culpas (Idem, p.90- 91).
Fialho pede ao povo mais iniciativa, mais engajamento: “Oponhamo-noslhe pois com todas as forças. A fórmula de protesto está criada: abaixo o
53
tratado, suceda o que suceder!” (Idem, p.94). Se os portugueses se
mantivessem nessa inércia, nessa inconsciência, “este país, [que] além de
pobre e [o] será por muito tempo ainda, se a depressão do regime político não
cessa[r], [será] um país quase por completo embrutecido” (BP, p.271). Falta
algo ou alguém “capaz d’agitar n’este fantasma de povo a consciência dormida”
(Idem, p.273). Contudo, o desfecho é trágico para a nação portuguesa; suas
terras de além-mar passam às ávidas mãos inglesas e Portugal acaba por se
render.
O autor de Os Gatos faz um retrato pessimista de Portugal, e aponta
como resultado desta decadência o lento agonizar da monarquia, a que atribui
responsabilidades pelo estado de coisas então vigentes: “250 anos quantas
decadências, quantas vergonhas!”. Acusa particularmente o rei D.Luiz, cujo
reinado, de acordo com a opinião do escritor, “adeandou mais que nenhum (...)
a ruína do país” (OG I, p.155), ruína esta que se agravou pelas circunstâncias
históricas que envolveram o Ultimatum:
Uma a uma, sob o regime deprimente de tais reis, vemos Portugal entregar
as terras d’além mar por ele descobertas ou tomadas, perder a iniciativa do
comercio e navegação d’Ásia e da América, desvincular a forte e
cavalheirosa nacionalidade dos séculos anteriores, e receber da Inglaterra,
em vergonhosíssimos tratados de comércio e diplomacias de chantages,
humilhações só comparáveis às que as nações vitoriosas costumam exigir,
pela força da guerra, das nações humilhadas e vencidas (Idem, p.240).
Portugal, visto pelas lentes de Fialho, é um país atrasado
industrialmente, crivado de dívidas, escarnecido pelos seus aliados... em
ruínas, portanto. Há que se pontuar que, entre avanços de toda ordem, o
século XIX define-se pela atitude cientificista, uma vez que estavam no auge as
descobertas científicas e o aperfeiçoamento material, que, teoricamente,
54
trariam a felicidade ao homem. Contudo, observa-se, na fria visão que Fialho
tem do Portugal seu contemporâneo, um progresso inútil, uma sociedade
injusta e decadente, em que se acentua um evidente declínio:
As dificuldades da vida, o sedentarismo anêmico (...) transformaram, em
quatro séculos de decadência histórica, os portugueses indômitos
d’outr’ora, n’uns moluscos tímidos e doces, n’uns seres de contemplação
e reflexão, n’uns homens que perderam a sombra, e que a procuram,
olhando constantemente para traz (OG III, p.228)
Ao que parece, “n’este final de século que a sensação transviou até às
fermentações macabras da nevrose” (P, p.148), o grotesco é a forma de
expressão.
Note-se que, como ressaltou Wolfgang Kayser, o grotesco floresceu no
século XVI, manifestando-se ainda no período compreendido entre o Sturm
und Drang e o Romantismo, e desde o século XX aos nossos dias.
Precisamente nos períodos históricos dominados pela contestação, em
oposição constante às imagens racionalistas do mundo, à “validez dos
conceitos antropológicos e [à] competência dos conceitos das ciências naturais
com os quais o século XIX procurara elaborar as suas sínteses” Segundo o
crítico, o grotesco ganhou mais intensidade e freqüência justamente nos
períodos em que a crença na razão ou no progresso foi posta em causa: “as
plasmações do grotesco constituem a contradição mais ruidosa e evidente a
todo racionalismo e a qualquer sistemática do pensar” (KAYSER, 2003,
p.161,162).
Pelo visto, o grotesco serve a Fialho para caracterizar esses tempos de
crise, de decadência, e sua utilização contrapõe-se à confiança positivista na
razão, na ciência e no progresso, base do projeto naturalista, movimento a que
Fialho foi tantas vezes associado pela crítica que tenta lhe impor um rótulo: o
55
de membro dessa escola, enquanto, na verdade, dela se afasta ao acentuar os
traços que caracterizam um universo que aposta na fuga da realidade.
3.1-Estilos fialhianos
Em contraponto à decadência apresentada, o cenário literário português
apresentava-se dos mais fecundos. Como afirma Jacinto do Prado Coelho, Eça
abrira a fase realista do romance, publicando em 1876 O crime do padre
Amaro (na versão chamada “definitiva”) e, dois anos depois, O primo Basílio.
Vinham a lume o Eusébio Macário, em 1879, e Corja, em 1880, romances de
Camilo, a que se soma A brasileira de Prazins, de 1882, provas de que a
atitude objetiva e o estilo impressionista se haviam integrado, até certo ponto,
na arte camiliana. Já no campo do jornalismo de crítica e reportagem, Ramalho
farpeava o governo e as instituições, entre outras “farpas”, imbuído de uma
missão social realista, nas Farpas. Por outro lado, “o baudelairianismo, com os
temas acres da cidade e da volúpia sensual, o travo satânico, a pintura dos
grotescos dolorosos, imprimia feição à poesia portuguesa” (COELHO, 1996,
p.188).
Fialho, evidentemente, não pode furtar-se a tal atmosfera; de fato, ele
saboreou de tudo. Em sua prosa podem ver-se manifestos traços realistas,
naturalistas e decadentistas. Os próprios críticos não são unânimes ao
enquadrá-lo em uma corrente literária: de acordo com António Cândido Franco,
Fialho “é entre nós o mais limpo e talentoso representante do naturalismo
literário” (FRANCO, 2002, p.13); Óscar Lopes diz que o autor de Os Gatos é
56
conhecido como “a personalidade mais saliente do nosso naturalismo”, para
depois observar que Fialho vai escrever contos de estética decadente (LOPES,
1987, p.173-177); Já Jacinto do Prado Coelho, observa a narrativa fialhiana
como realista, romântica, definindo-o como “romântico materialista, sensorial”,
acentuando que em algumas sensações se concentra o chamado “romantismo
realista”, incluindo o matiz decadente, e, até mesmo, atitudes “anti-realistas”
(COELHO, 1996, p.189-191); e António Machado Pires prefere não enquadrálo em correntes literárias e sim observá-lo como “um representante da geração
de fim de século” (PIRES, 1992, p.113).
Pelo visto, Fialho não pode ser
rotulado em uma só corrente literária ou mesmo em qualquer corrente.
Segundo Fernando Matos Oliveira, “a construção deste Fialho inominável devese também ao ecletismo da obra e à contradição que atravessou os juízos
estéticos do autor” (http://www.ciberkiosk.pt/ensaios/foliveira.htlm).
Assim, Fialho pode ser visto como múltiplo, homem de vários estilos,
cada um combinando com uma corrente literária, “pescando” um pouco de
cada uma de acordo com sua flutuação humoral, como convém ao esteta da
palavra que é. Pelo visto, como não poderia deixar de ser, na arte, o escritor
português Fialho de Almeida vai criar o(s) seu(s) estilo(s) literário(s).
Às vezes um mesmo conto pode apresentar duas correntes literárias
opostas, como, por exemplo, o conto “A Ruiva” – considerado por muitos
críticos como o mais naturalista dos contos. Esse conto apresenta
verdadeiramente traços dessa corrente literária. A princípio, o texto parece
ilustrar uma literatura somente Naturalista, cujo destino dos personagens está
restritamente atribuído às influências do meio social em que vivem e à
hereditariedade, pois nada do que eles façam parece poder retirá-los deste
57
círculo de mortes e misérias. Assim, logo no princípio do conto, o legistanarrador está investigando o corpo do personagem protagonista em sua mesa
de trabalho. Aparentemente, pretende construir e comprovar uma tese
cientificista, mas, na verdade, o texto também revela traços decadentistas, por
se preocupar com a degenerescência do homem, com as coisas obscuras,
enfim, com o discurso do mórbido. Tudo isso em um ambiente dominado pela
nevropatia e envolto numa instabilidade psíquica, em que se observa o mundo
encharcado de imagens bizarras, grotescas e horripilantes, contendo um
evidente sentimento de melancolia, infelicidade, pessimismo, desencanto, em
que também se observa um texto encharcado de paisagens de decadência, da
dor dos humildes esmagados socialmente, sem que haja um equilíbrio
pacificante ao final da leitura, até porque não tem essa pretensão
reconfortante.
Esse conto contém o que Fialho acredita que deveria sobressair em uma
literatura daquele final de século:
o pessimismo, eroto-místico, inconfidente, epileptisado da dor de viver,
com desejos de morte e terrores da sepultura, vaidoso e pusitanime,
pregando o amor sem posse e violentando ao mesmo tempo a natureza,
niilista e egoísta, impulsiva, escorrendo luz e escorrendo pederastia (OG
VI, p.68) 30.
Contudo, de acordo com o ponto de vista do escritor, somente se
encontra em Portugal “imitação dos defeitos grosseiros do decadismo”. Pelo
que foi exposto, torna-se difícil qualquer apreensão segura que defina esse
conto e o próprio autor em uma só corrente literária.
Segundo Óscar Lopes, Fialho fora atraído ao Naturalismo desde a época
em que escrevera “A Ruiva”. Na “Sinfonia de abertura”, texto inserido em A
Cidade do vício, pode-se observar sua fidelidade ao realismo militante:
30
As citações ao texto literário de Os Gatos VI serão feitas através da abreviatura OG VI,
seguida da numeração da página em arábicos.
58
“Deixando de consagrar-se exclusivamente aos regalos do mundo, nobres,
opulentos e reis, para descer à generalidade das massas e baixas classes, a
obra de arte tem, para ser útil, de ser sincera” (AC, p.15). Contudo, parece
mudar sua percepção teórica a partir da década de 1891, pois em Os Gatos IV,
ao falar da obra e personalidade de Columbano Bordalo Pinheiro (LOPES,
1987, p.177), de quem Fialho admira o trabalho pelo que ele confere de inédito
à obra de arte portuguesa
31
, já se pode observar uma mudança ao dissipar a
objetividade característica da obra naturalista:
O que é um artista?
Um homem que viu uma certa vida, experimentou emoções, e no-las conta,
transfiltrando-nos o calafrio com que as sentiu. A obra d’arte é portanto uma
porção de sensibilidade visionada, e interpretá-la é historiar a existência
interior de quem na subscreve (OG IV, p.48) 32.
Já no seguinte volume de Os Gatos observa-se claramente a sua
oposição à literatura Naturalista, por ele considerada como representação
fotográfica do real empírico, uma literatura que para a maior parte dos seus
seguidores é observada como
o colaborador assalariado da filosofia científica, tudo nela deve convergir à
missão d’um grande arquivista que ao microscópio analisa as sensações e os
sentimentos, disseca os homens, para os colecionar depois regularmente em
grandes álbuns. N’esta faina obsedante, toda a espécie d’imaginação é
proibida por contraria ao espírito d’análise que lhe preside, e assim arte reduzse a uma cópia servil da natureza, sem comentários, tendo por ideal a
fotografia colorida (OG V, p.234).
De acordo com a orientação de António Machado Pires, estamos
perante uma literatura Naturalista, “quando os processos [de observação dos
31
Observa-se uma evidente correspondência entre Columbano e Fialho, devido ao modo como
ambos interpretam a arte – “buscador d’inéditos” – e particulares semelhanças no que se refere
à personalidade de ambos: o horror ao convencional, o desdenho pela arte mercantilista, a
misantropia, a capacidade de causar irritações alheias, etc.).
32
As citações ao texto literário de Os Gatos IV serão feitas através da abreviatura OG IV,
seguida da numeração da página em arábicos.
59
fatos] se deixam de todo contaminar pelo rigor do método de observação das
ciências naturais e se faz da obra literária ilustração de teses científicas”
(PIRES, 1992, p.92). Essa corrente sofreu influências de várias teorias
científicas, particularmente do positivismo de Comte, do evolucionismo de
Darwin e das teses sobre a hereditariedade de Prosper Lucas e Jules Dèjerine.
Segundo Isabel Cristina Mateus, “o Naturalismo é, acima de tudo, uma questão
de método ou de fórmula cientifica e não de retórica ou de forma (...),
insistindo, assim, no caráter impessoal do método ou de fórmula”. No entanto,
a estudiosa revela ao longo de seu trabalho que “o Naturalismo parece definirse, antes, como um momento de precário equilíbrio entre o desejo de
transparência e a transfiguração da realidade pela escrita (...). Se o romancista
nem sempre conseguiu ocultar-se, a sua presença certamente tentou passar
por discreta” (MATEUS, (s.d.), p.68, 79, 80).
Note-se que o extremo pessimismo que Fialho deixa evidente em suas
páginas, contrapõe-se a essa confiança positivista na razão, na ciência e no
progresso, base do projeto naturalista. Se, em algum momento, sua escrita
deixa transparecer alguma influência dessa escola, essa influência é
incessantemente negada. Na crônica “Camilo”, incluída em Pasquinadas,
Fialho ressalta a modernidade dos romances do amigo (a quem o escritor
admira e a quem dedica o seu volume intitulado Contos): “Em todos esses
livros, o poeta dá o braço ao analista: e a análise, posto que incisiva, não
viviseca os tipos até aos seus últimos promenores de histologia, nem
decompõe o trabalho d’uma cabeça, como faz Zola” (P, p.34-35), condenando
a arte naturalista pelo que nela há de excesso de método científico, abdicação
à originalidade e cerceamento do poder inventivo do artista:
60
N’este luxo de ciência, que é um dos mais hábeis artifícios do romance
moderno, muita vez o sábio prejudica as qualidades inventivas do artista,
reduzindo a obra d’arte a uma monografia seca, a uma espécie de história
clínica, em que o rigor do detalhe expulsa o sonho, substitui à arte a
medicina, abdica da fantasia em favor da fórmula, e dispensa a criação do
talento individual, para produzir romances como quem cozinha pastéis,
segundo uma receita dosada, monótona, e sempre a mesma (Idem, p.35).
A revolta de Fialho vai incidir particularmente sobre uma literatura a que
chama “gá-gá”, que só existe por haver uma “multidão gá-gá de que ela seja a
expressão vital e social” (BP, p.211). Revela-se um desejo de sinceridade que
se traduz como reação contra a banalização da literatura, que exerce grande
influência sobre certas camadas de leitores, que, dados ao desejo de
“personalização falsa”, “põem-se a macaquear tipos de livros”. Fialho procurará
opor a sinceridade de sua literatura ao convencional dessa “literatura perversa”
(Idem, p.217, 224), às falsas emoções e a uma estética da imitação. Sua
postura crítica parece ser semelhante à daqueles que considera os “possessos
de talento”, pessoas a quem não importam a escola, as regras de estilo
dominante, os conselhos dos mestres e a inclinação do público, a que o
escritor se refere de modo pouco elegante, ao dizer que a atitude desses
“possessos” afeta a “pudicícia alvorotada das madamas” (AE, 25). E vai
adiante. “Se não há caminho rasgam-no”; se a censura pede prudência,
derruba[m]-[n]a; se o público o desdenha, “passem-lhe por cima, com a
insolência do gênio, para irem pedir justiça às gerações” (OG V, p. 236).
O esteticismo que a práxis literária fialhiana cultiva é indissociável da
imaginação, da tentativa de originalidade e da criação. Por isso Fialho vem
repudiar a arte Naturalista, considerando-a como aquela que é capaz de
atrofiar a alma e a imaginação dos artistas, produzindo “mais artífices que
artistas, mais repetidores que criadores (...) de não tirarem do “assunto” senão
61
a cópia morta” (Idem, p.327). Falta à arte portuguesa novidade, criação; os
artistas “imita[m] em vez de ter o sestro criador” (BP, p.233). Essa visão faz
com que Fialho chegue à amarga conclusão de que “o português, como o
macaco, sempre que admirou, macaqueou” (VE, p.74) 33.
Assim, o autor de Os Gatos vem opor uma estética da imitação, racional,
a uma visão emotiva, expressiva e extraordinária do mundo. Contrapondo a
visão exterior, centrada na “mera cópia”, à visão interior, cujas “modalidades
complexas dum espírito, têm a sua gestação na própria alma” (VE, p.74), talvez
porque Fialho quisesse contrapor sua arte ao que vê, pois estava
decididamente desgostoso de seu tempo, conforme afirma em Pasquinadas: “É
um diabo de tempo, o nosso tempo! Tudo artifícios, ilusões, exterioridades” (P,
p.40). Já no artigo ”Exposição de trabalhos dos alunos de Belas-Artes” Fialho
revela a importância da expressão no campo da criação artística moderna:
Para a arte o curioso é fixar na matéria imprevisível, não a silhueta morta dos
corpos, mas a expressão torturada, inconfundível, roaz do pensamento.
Artistas que limitam as suas pesquisas a uma animalidade meramente
plástica, que pecúlio darão eles à psicologia poética e passional do nosso
tempo, e que interesse pode essa obra ter na conquista da vida
contemporânea? (VE, p.133, 134).
Seja devido à decadência social do país, seja pela dependência dos
modelos estrangeiros ou nacionais, uma vez que os alunos não apostam na
criação (têm sua imagem tão semelhante à do professor, que correm grande
risco de se transformarem em pastiche, pois tão sem personalidade se
encontram) ou pela influência do Naturalismo francês, o fato é que a criação
artística dos portugueses, segundo Fialho, se encontra decididamente infértil:
33
As citações ao texto literário de Vida errante serão feitas através da abreviatura VE, seguida
da numeração da página em arábicos.
62
O que mais choca em toda (...) a arte portuguesa em geral, mesmo nos que
se cuidam mestres, é a ausência de pensamento, a expressão anedótica e
pueril que toda tem. Nenhuma obra portuguesa é sintética e intensa,
exprimindo estados de espírito ou idéias corais bulam com a alma-mater do
País. (...) Estátuas, quadros, romances, são tudo inexpressivas cópias de
modelo, invenções dissolventes de alguma afectividade banal em tintas
neutras, arrasoadas, histórias, lengalengas, sem que a ligá-las passe um fio
de síntese, alguma simbologia vasta sob alguma atraente forma pitoresca
(VE, p.128,129).
Para Fialho, falta a alguns artistas portugueses talento, gênio, faculdade
criadora; falta “essa iluminação interior que é a parte conceptiva, criadora,
imortal do cérebro humano; esse dom de tirar água da rocha informe, de
ressuscitar com vida d’espírito a matéria amorfa e analgésica, de criar formas,
fantasmagorias, sonhos que agitem mundos” (BP, p.271). Falta a esses artistas
essa fantasia espontânea, original, que Fialho traz para a sua prosa com a
expressão grotesca.
Contudo, Fialho também insurgir-se-á contra o decadentismo, embora
Óscar Lopes afirme que o escritor chegou a considerar-se um membro desta
escola (LOPES, 1987, p.169) e António Machado Pires afirme que Fialho é um
“decadente”, um “degenerescente” (PIRES, 1992, p.114). O que se vê na
crônica “Os amadores de Música”, em Pasquinadas, é que o autor de Os
Gatos se apresenta como melômano, ao confessar que:
(...) é singular o efeito que a música em mim produz (...) A emoção que
eu refiro d’ordinário, simultaneamente ao meu coração e ao meu
cérebro, n’um começo de síncope que me esfalece e deslumbra,
despolariza-se e alastra-se-me em crises de delícia, por toda a rede dos
nervos convulsionados (P, p.63-64).
O termo melomania significa o apego excessivo à música que, segundo
António Pires, “era considerado sintoma de decadência”, bastante observado
na poesia que se identificava com a música (PIRES, 1992, p.114). Conforme se
observa nos escritos de Fialho, a melomania, sintoma dos tempos de
63
degeneração, está intrinsecamente envolvida no âmago de seu processo de
escrita, especialmente nos momentos de despolarização.
Fialho vai louvar, sobretudo, o “S.Pedro dessa igreja decadista” – o
poeta francês Baudelaire – ao qual aponta a poesia pulsante, mística e
estranha, capaz de causar calafrio no leitor, juntamente à loucura, aos apetites
e paixões egoístas, à volúpia em que ”mergulha até à deliqüescência da
energia, n’ela ceva[ndo] a sua dolorosa cólera de gozar, sem que d’esses
prazeres lhe derive apaziguamento interior, senão refile o exaspero dos
sentidos, seu remorso e motivo de viver” (OG V, p.285-286), mas também vai
considerar a literatura Decadentista, “uma literatura meio incompreensível,
desconexa, arqui-furiosa, todos os fermentos de revolução capazes de destruir
o que está sem maiormente curarem do que há de ser“ (Idem, p.289).
De acordo com José Carlos Seabra Pereira, o movimento literário
chamado Decadentismo não deve ser confundido com o sentimento de
decadência, já que este é atemporal. Camões no século XVI, por exemplo, se
revela um decadente em Os Lusíadas com seu “desconcerto do mundo”.
Assim, para além desse sentimento pessimista, deve haver algo a mais que
determine essa atmosfera decadentista própria do homem finissecular
consciente do estado de declínio da sociedade da qual faz parte – o que difere
é uma acentuada onda de revolta –, pois o “pensamento sente-se aprisionado
no beco-sem-saída de um imanentismo absurdo. Surge, a revolta contra as
causas sistemáticas” (PEREIRA, 1975, p.23).
De fato, conforme observamos anteriormente, o desejo de originalidade
do estilo fialhiano elabora-se sem um programa estético prévio, na recusa de
todas as correntes literárias e da realidade exterior, em sintonia particularmente
64
com o entusiasmo advindo da primeira impressão, na expansão do
temperamento emotivo. Contudo, por mais que o escritor afirme e recuse os
padrões, as correntes estéticas, ele acaba sendo por elas influenciado, vindo a
utilizar o que tanto desdiz, pois nota-se em seus escritos uma evidente
aproximação das correntes estéticas que se manifestam no fim de século
português, principalmente a corrente literária Decadentista, acentuando-se
particularmente quando apresenta a expressão grotesca em sua prosa.
Segundo Lucília Verdelho da Costa, “é certo que Fialho não pode escapar à
sua época e o sonho interior que quer ver na arte se aproxima mais das
correntes decadentistas” (COSTA, 2004, p.132).
3.2 - Esteticismo e Decadentismo
Em uma crônica publicada em 1892, “A decadência do riso”, Eça de
Queiróis opõe o tempo do mestre Rabelais à sua contemporaneidade, com
intuito claro de mostrar ao leitor a melancolia que tomava a Europa do fim do
século XIX. O mundo rabelaisiano é caracterizado pela alegria, devidamente
marcada por um sorriso “largo e puro”, “fino e vivo”, que o autor de Gargantua
celebra com a frase que deriva da observação de seu tempo: “Ride! Ride!
porque o riso é próprio do homem!” (QUEIRÓIS, 1997, p.1186). Todavia, se
Rabelais “ressurgisse” nos tempos finais do século oitocentos, ao observar o
que restou do sorriso de seu tempo veria, segundo Eça de Queiróis, “apenas
um desfranzir lento e regelado de lábios, que pelo esforço com que se
desfranzem, parecem mortos ou de ferro” e diria que “chorar é próprio do
65
homem”. A justificativa fornecida pelo autor para tal perda da alegria de viver é
a de que “a humanidade entristeceu, e entristeceu – por causa de sua imensa
civilização”. Assim, o homem da nova civilização encontra-se voltado para os
benefícios da técnica e, ao mesmo tempo em que adere à modernidade,
queda-se nesse estado de tristeza. Para o autor, o homem finissecular “está
implacavelmente votado à melancolia” (Idem, p.1188, 189).
Se a observação de Eça se refere ao caso europeu, de modo geral, o
ponto de vista de Fialho vai ser mais especifico, centrado no caso português e
no marginal. A abordagem que autor de Os Gatos fará não é divergente do
relato do grande escritor; contudo, seu olhar não se detém no cerne da
melancolia, devidamente marcada na crônica pela perda do riso, e sim na
observação de um profundo desencanto ocasionado pelos avanços da técnica,
dentre eles, uma evidente ampliação às exigências do progresso e o
rompimento dos laços familiares.
Fialho observa que o povo português, principalmente os menos
abastados, que evidentemente não tiveram acesso às benesses do progresso,
tiveram sua vida agravada com essa pretensão de prosperidade, uma vez que
tudo se tornou ainda mais complicado que anteriormente: “A vida complicou-se
d’exigências, sem grandemente alargar os prazeres que lhe deviam de ser
correlativos” (OG I, p.144). Antecipava-se, sem o saber e mais uma vez, ao que
a psicanálise freudiana descobriria anos mais tarde em O mal-estar na
civilização, ao afirmar que o progresso civilizatório não fez mudar a vida para
melhor, não conduziu a uma maior felicidade:
Durante as últimas gerações, a humanidade efetuou um progresso
extraordinário nas ciências naturais e em sua aplicação técnica,
66
estabelecendo seu controle sobre a natureza de uma maneira jamais
imaginada. (...) Os homens se orgulham de suas realizações e têm todo
direito de se orgulharem. Contudo, parecem ter observado que o poder
recentemente adquirido sobre o espaço e o tempo, a subjugação das forças
da natureza, consecução de um anseio que remonta a milhares de anos, não
aumentou a quantidade de satisfação prazerosa que poderiam esperar da
vida e não os tornou mais felizes (FREUD, 1997, p. 39).
Tamanha era (e tornou-se mais grave) a disputa e ambição, que Fialho
observa, com olhar pessimista, que “o homem não é mais irmão do homem, é
seu concorrente, é seu rival” (OG I, p.182), acrescentando, como a concluir de
modo pessimista, que Portugal “escorre uma agonia de fin de la fin, uma
enregelada miséria de país charogne, de país gasto, de país morto, de país
podre!” (Idem, p.246). Segundo Isabel Cristina Mateus, a angústia perante esse
fim iminente é quase um leit-motiv na escrita de Fialho e, é claramente
indissociável do conceito de progresso que o escritor concebe como uma ilusão
(MATEUS, (s.d.), p.265), o que deixa evidente na crítica que faz no artigo
“Religião e Toilette”, inserido em Pasquinadas:
O século anterior (...) não conheceu como nós este estado d’esfacelo que se
chama o escárneo, e que é uma perturbação física coletiva das gerações
atuais, nascida da convicção de que todo o esforço é inútil, e de que tudo à
roda de nós estaciona, como nas primeiras idades do mundo, – pior do que
n’elas – porque estaciona, dando-nos a ilusão de caminhar (P, p.135, 136).
Essa descrença com relação ao progresso também se observa, por
exemplo, no conto “O filho”, inserido em O país das uvas, onde o progresso,
observado na imagem do trem de passageiros, afasta mãe e filho devido ao
encurtamento de tempo e espaço que a modernidade proporciona. Esse conto
narra a história de uma “pobre velha” que esperava na estação ferroviária o
comboio de Lisboa que traria o filho, até então ausente, em viagem ao Brasil,
para ver se conseguira melhores condições de vida, “com a esperança (...) no
67
dia em que o rapaz, tornado do Brasil, lhe fizesse passar sem fome os
derradeiros poentes da velhice”. Contudo, a notícia que lhe chega é a de que “–
O seu José, tia Rosa, o seu José... morreu na viagem” (OPU, p.100-109).
Agora não há o filho, nem as melhorias que o dinheiro possibilitaria.
A decadência que o autor de O país das uvas observa na sociedade
portuguesa, devido até mesmo ao enfraquecimento das relações humanas, é
definida como “o enfraquecimento ou a perversão vital do conjunto de forças
que resistem à morte” (OG V, p.19). Essa decadência observada pelo escritor
vem contrapor-se à idéia de progresso defendida no século XIX, já que o termo
progresso implica “caminhar para frente, criar novas condições, melhorar” e
decadência significa “retrogredir, deteriorar” (PIRES, 1992, p.18,19). Todavia,
contrastando com todos os avanços que, inegavelmente, as conquistas
científicas trouxeram e que resultaram em melhoria da condição humana, o
homem viu que a técnica não o satisfez, suas questões interiores não foram
esclarecidas, seus mistérios e suas dúvidas não foram respondidos. De acordo
com António Machado Pires, o homem almeja uma civilização perfeita,
controlada, completamente estável, negando a natureza da qual inegavelmente
faz parte e pretendendo condicionar os homens a tarefas específicas,
ocasionando um esvaziamento do conteúdo humano e a amarga conclusão de
que “o homem já não é feliz onde e quando já não é homem. A civilização é um
artifício” (PIRES, 1992, p.120).
Da pretensão de que o artificial é superior ao natural, porque “o Homem
faz melhor que a Natureza” (Idem), Fialho nos dá um exemplo no artigo
“Rosas”, incluído em Pasquinadas, ao afirmar que o floricultor é uma artista que
“leva a corrigir na flor, a obra da natureza, aristocratizando o produto, e
68
completando nos seus detalhes, a obra-prima, onde o escopo de Deus havia
lançado simplesmente as grandes linhas” (P, p.188). De acordo com o ponto de
vista pessimista de Fialho, a natureza não passa de um rascunho; somente a
arte pode atingir “a perfeição impecável” (Idem). Nota-se nessa metáfora do
floricultor o desejo pelo artificial, tão próximo à arte decadentista.
Essa crença no artificial, em que o homem é capaz de vencer a
natureza, gerou o desencanto na sociedade “que se traduziu na reacção
idealista do fim do século, no anti-positivismo, na convicção de que afinal os
artifícios desumanizam o Homem e o tornam infeliz” (PIRES, 1992, p.121). Pelo
visto, se a pretensão da ciência era superar todos os males da vida, com sua
promessa de modernidade e prosperidade, a promissão de felicidade não se
cumpriu e o homem, de fato, não melhorou. Segundo Eduardo Lourenço,
pensador da cultura portuguesa, permeia a sociedade portuguesa uma
extraordinária onda de pessimismo, de desistência, de frustração, chamada fin
de siècle, sentimentos que contrastam com “a crença universal do século, o
seu grande mito popular concretizado pela confiança nos poderes da Ciência e
nos seus efeitos para a melhoria material e moral da Humanidade”
(LOURENÇO, 1992, p.32-35).
Com efeito, a obra de Fialho se faz envolta nesse sentimento de
decadência que invade a Europa e, por extensão, Portugal no final do século
XIX. Nela observa-se a consciência da iniludível ambigüidade entre decadência
social, política e econômica, e uma arte que se insurgirá contra esse estado,
seja no campo da crítica, com a feitura de artigos de cunho moral em que se
agudiza a consciência da vida materializada, artificial, o sentimento pessimista,
o desencanto/desistência perante uma sociedade injusta, entre outros; seja no
69
campo da arte, com textos que resvalam sentimentos de melancolia, rebeldia,
pessimismo, nevropatia e a irrealidade do sonho, em um mundo sem equilíbrio
pacificante, conformando-se na desistência.
Para Fialho, a arte deve ser capaz de comportar a “tormentosa
existência contemporânea, [em que] tudo envelhece precocemente, a alma e a
laringe, a fisionomia e a inspiração” (VI, p.14), o escritor defende que ela seja
não apenas original, individual, criativa, mas também expressão “da alma
apodrecida em dissoluções todas modernas” (Idem, p.48). Sob este ponto de
vista, Isabel Cristina Mateus observa que “a valorização do estilo, a
substituição do natural pelo artificial, o fascínio do oculto (...), a desrealização
ou despolarização do real (...) têm a sua matriz neste desejo de transcensão
através da arte de uma realidade circundante considerada como abjeta”
(MATEUS, (s.d.), p.270) que encontra correlação na arte decadentista.
Em “O violinista Sérgio n’um café da Mouraria”, o narrador observa o
perfil de doente, de decadente e de artista, que define o personagem Sérgio,
“primeiro violoncelo de S. Carlos (...). Tipo do povo, alto, seco, avermelhado
d’álcool, e com uma pequena cabeça de sargento velho d’ópera cômica” (OG I,
p.97). Era um marginal, boêmio, “d’esses decilitreiros que monologam de noite
pelas ruas, às esquinas ladeirentas, às portas das escadas”, preferindo o café
da Mouraria aos lustres de São Carlos, porque, tendo convivido muitos anos
com pessoas da alta sociedade devido ao seu posicionamento na orquestra,
prefere a gente subalterna, pois é “onde os seus arrazoados impressionam, os
seus ditos têm eco, e o seu divino instrumento todas as noites o salva, pela
virtuosidade magnífica do estro, do grotesco naufrágio de uma camoeca
apanhada com grogs oferecidos” (Idem, p.97, 99). Lucília Verdelho da Costa
70
observa que “Fialho parece defender uma teoria da arte como algo de
incompatível, ou de marginal, à sociedade. É possível que, ao falar de Sérgio,
se caricature a si próprio e à marginalidade literária do homem de letras como
uma manifestação da nevrose, “doença” mais profunda” (COSTA, 2004, p.283).
É com a música que Sérgio opera a transformação, numa espécie de estado
nevrótico que beira à loucura:
E a mão de Sérgio, trêmula de grogs, dando saltos macabros, com as pontas
dos dedos choreicos, sobre as cordas, subido fixa-se, lança uma arcada
profunda, decisiva, nítida e de mestre, uma d’estas arcadas frissonantes,
onde vão quarenta anos de música e d’ouvido, d’aspirações, de sonhos, de
trabalhos, e que pela expressão patética deixaram de ser vibrações de
cordas sobre cordas, senão vozes partidas do coração da angústia humana,
Deus o sabe! para a nevoa dos problemas eternos e insondáveis (Idem,
p.101-102).
A música também ocasiona um estado de devaneio no próprio narrador, que,
completamente dominado pela instabilidade psico-sensível, já não consegue
“isolar-[se] de [si] próprio, amordaçar as animalidades d[e seu] ser”, e
caracteriza esse estado como “extraordinário fenômeno, não só da
correspondência, mas da substituição inconsciente, em dadas crises físicas,
d’um sentido por outro, sem ruptura do estado fisiológico!” (Idem, p.104).
Alguns contos fialhianos apresentam esse desequilíbrio; outros se fixam
na nevrose e na perversidade. Como orienta José Carlos Seabra Pereira, o
decadentista procura “a identificação com o espetáculo do horripilante e do
repugnante da putrefacção e da doença, ou enfim (...) a contemplação da
imagem vária da morte” (PEREIRA, 1975, p.33-34). No “Conto do Natal”,
inserido em O país das uvas, observa-se uma paródia do Natal cristão e um
patente exemplo da crueldade a que pode chegar o ser humano. Esse conto
narra a história de uma velha que perambulava pelas ruas em plena noite de
71
Natal e assiste às dores do parto de uma mulher que, comparada à Virgem,
não tem nem, ao menos, o calor do “hálito da vaca e da jumenta, e as
solicitudes ideais do carpinteiro” (OPU, p.181). No mesmo momento em que as
igrejas realizam a tradicional Missa do Galo, a velha assiste ao nascimento e
imediato assassinato da criança pelas mãos do próprio pai:
Ele [o pai] tinha nas mãos o pequeno ensangüentado, que vagia de frio,
conjugando os beicinhos numa sucção d’instinto. (...) lançou a vista ao
derredor, numa suspeita atroz de o estarem vendo, e ergueu o braço, com o
pequeno seguro pelos pés, como um coelho... Porém a luz do luar
incomodava-o. (...) veio-lhe de repente uma veneta, e bruscamente, com um
resfolegar de bezerro, escavacou o pequeno contra a rocha. A pancada dera
na pedra um som de melancia podre, esborrachada, em surdina, baça e
turgente. Foi um momento, aquilo, e todas as coisas voltaram ao êxtase
hibernal de instantes antes. (Idem, p.132-133).
Como sugere Lucília Verdelho da Costa, “Fialho serve-se da vertente
estética para pôr em cena a crueldade. É este verdadeiramente o tema central
da narração [de alguns contos], sob uma roupagem que ilude, pelo seu
esteticismo inusitado, quanto ao conteúdo da revolta e do pessimismo”
(COSTA, 2004, p.290). São freqüentes as alusões de Fialho aos acessos de
violência, aos estados de loucura e ao desvario. Em o “Conto do Almocreve e
do Diabo”, também inserido em O país das uvas, observam-se mentiras,
traições e vícios em um ambiente que se define fora dos limites da razão
humana. O personagem principal, o Almocreve, por exemplo, pede ajuda ao
Diabo para que vigie, enquanto viaja, a sua adúltera esposa, que, depois de
muitos anos de casada, desejava ter um filho e encontrava-se às escondidas
com um frade. Os diálogos entre Deus e Satanás, revelam uma relação bem
próxima entre ambos, que jogam damas todas as noites, e mostram como é
tênue a camada que separa os vícios e virtudes, pois, conforme explica o
personagem do Diabo, “os vícios não se distinguem muito das virtudes. Por
72
exemplo, no amor, onde acaba a virtude, e onde começa o vício?” (OPV,
p.235). Assim, esse conto se mostra para além de qualquer apreensão racional
da realidade, em que se destacam relações falsas e traições em um mundo
que parece não ter como ser sublime.
Já em os “Três cadáveres” observa-se um exemplo de amor tipicamente
decadentista, um amor completamente impossível de ser realizado uma vez
que a amada se encontra em estado cadavérico. O personagem João da
Graça, que se apaixonara quando Marta ainda estava enferma, revela seu
sonho romântico diante do corpo da amada que estava sendo enterrado:
“Nunca como nessa hora, João da Graça compreendeu melhor, no seu fundo
de sonho romântico, ingênuo que era, a necessidade d’acreditar que a
podridão não fosse um términus, tanto esse desfecho da vida lhe pareceu
injusto e inexplicável” (OPV, p.285). Uma vibração mórbida que também pode
ser observada no conto “A Ruiva”, no momento em que Carolina se compraz
com a manipulação dos mortos na casa de observação do cemitério.
Na composição do universo grotesco, observam-se traços que
coincidem com a estética decadentista. Fialho em seus escritos fala das
alucinações, dos delírios e das febres de que o narrador é tomado
momentaneamente, diz-se propenso “às meias-visões macabras da alta
nevrose” (OG I, p.121-168), que se realizam principalmente à noite, uma vez
que “a noite realiza e dá corpo a todas as formas de exagero, e todas as
impulsividades da luxúria, a todas as estranhezas fantásticas da ilusão” (FD,
p.54), e a fantasmagoria ganha expressão, juntamente com a apresentação de
tipos decadentes e bizarros. Como por exemplo, a cidade-cadáver de Vida
73
Irônica, quando ressalta sua forma trágica, paralisada, aflita e inquietante, que
parece conspirar pela ovação do horrível 34.
Como se pode ver, a estética de Fialho comunga, até certo ponto, com
as premissas do Decadentismo, devido à crença no artificial, à consciência da
degenerescência humana (psíquica) e social, à anormalidade, à constante
apresentação da doença (sobretudo marcada nos contos “A Ruiva” e “Três
Cadáveres”), ao anti-naturalismo, à influência da música e à redenção pela arte
(observado com o caso do personagem Sérgio), e parece querer ir mais além
do até então conhecido, num intenso desejo de busca da novidade, mesmo
sabendo que vive numa sociedade em que os laços humanos se encontram
desgastados e o progresso resulta ilusório e inútil. Diante de tudo o que foi
exposto, resta dizer que sua forma de olhar deriva do pessimismo, da rebeldia
e da loucura. Lucília Verdelho da Costa ressalta que “é pela arte (pela
Literatura) que a sociedade deve aspirar a transformar-se – as crônicas e os
contos de Fialho são eco dessa literatura nova –, mas é também em nome da
arte que o escritor se revolta, negando o mundo em que vive e recriando um
outro, fantástico” (COSTA, 2004, p.285) ou, como diríamos, grotesco.
4- O OLHAR DIFERENTE DO GROTESCO
Fialho tem de tudo na alma: a casa de
hóspedes, a existência reles de
estudante, a pobreza, as mil saburras,
os pequenos nadas que gastam,
desgastam, e transformam, e uma alma
vibrátil, um feixe de nervos ligado a uma
enchente de sonho e a um orgulho
doentio, como os que sentem dentro de
si, e o suportam, um mundo
desconhecido
e
nunca
dantes
navegado.
(Raul Brandão, Memórias, Vol.I).
34
Conforme se observa na página 45.
74
A origem do termo grotesco, como já foi visto, remonta aos fins do
século XV, quando escavações feitas em Roma trazem à luz um certo tipo de
pintura ornamental até então desconhecida. Essa nova moda fora considerada
surpreendente, tendo em vista os padrões estéticos da época, devido ao jogo
incomum de formas vegetais, animais e humanas que se confundiam e
transformavam-se entre si, chegando, até mesmo, a serem consideradas
“bárbaras” para alguns, pois sua arte consistia em “borrar as paredes com
monstros em vez de pintar imagens claras do mundo dos objetos” (BAKHTIN,
1993, p.29). Vista, sobretudo, como “estranha”, essa pintura ornamental fora
posteriormente chamada de grottesca, “derivado do substantivo italiano grotta
(gruta)” (Idem, p.28), muito utilizada por Rafael e seus discípulos quando
pintaram as galerias do Vaticano. Contudo, algumas figuras encontradas em
cavernas do período Paleolítico revelam que a existência do grotesco é bem
anterior a essa descoberta feita em Roma; na verdade, esse fora apenas um
fragmento de uma imensa variedade de manifestações artísticas chamadas
grotescas que existiam desde a Antiguidade.
Segundo Bakhtin, o método de construção das imagens grotescas deriva
de uma época muito antiga: “encontramo-lo na mitologia e na arte arcaica de
todos os povos, inclusive na arte pré-clássica dos gregos e romanos”
(BAKHTIN, 1993, p.27). Continuamente excluído da arte oficial, o grotesco
desenvolveu-se nos domínios marginais da arte. Além disso, sempre teve uma
relação direta com o tempo histórico. Bakhtin revela que o grotesco, na sua
origem, relaciona-se com as festas populares, e “as festividades, em todas as
suas fases históricas, ligaram-se a períodos de crise, de transtorno, na vida da
75
natureza, da sociedade e do homem.” (BAKHTIN, 1993, p.8). Já o “grotesco
romântico” foi um acontecimento notável na literatura mundial (conforme se
pode observar na introdução deste trabalho).
Assim, em todos os tempos e lugares, o grotesco sempre serviu para
alguém expressar uma visão subjetiva e individual, muito distante da estética
do “belo”. Desde o seu surgimento, assinala-se uma ousadia de invenção, um
gesto criativo que se aventura a libertar as amarras das convenções e da
banalidade, uma vez que permite olhar, reparar, enxergar, o universo de uma
outra maneira, desvelando uma visão/versão totalmente nova de um mundo
diverso. Seja ressaltando imagens que opõem às imagens clássicas do corpo
humano perfeito e revela um corpo que não tem lugar dentro do “belo”; seja
com o motivo da loucura, delírio ou febre; o fato é que o grotesco abarca a tudo
que permite observar o mundo com um olhar diferente.
Desse modo, a novidade que reside no universo grotesco é a anulação
das ordens do mundo, uma mistura de elementos que gera a confusão, o
“desequilíbrio”, diante de um mundo em que se esfacelou qualquer ordem,
qualquer segurança, ocasionando um evidente assombro, abismo e, até
mesmo, horror naquele que lê.
Na prosa fialhiana, esse modo de “olhar diferente”, criativo, emocionado
e surpreendente, como temos vindo a demonstrar, vem se contrapor às
imagens coerentes do mundo, até porque o irracional rompe de modo definitivo
o equilíbrio que o projeto Naturalista pretendia observar em seus textos. Em
nome de uma apresentação individual e original do universo, Fialho emprega o
grotesco para denunciar “a contradição mais ruidosa e evidente a todo
racionalismo e a qualquer sistemática do pensar” (KAYSER, 2003, p.162).
76
Assim sendo, esse modo de desrealização que se observa na prosa fialhiana,
com a utilização do grotesco, constitui-se como crítica e superação de uma
estética considerada por ele mesmo como representação fotográfica do real
empírico, “cópia servil da natureza” ou “fotografia colorida” (OG V, p.234).
4.1-Um bestiário de alucinações doidas e disformes
Em crônica incluída em Vida irônica, Fialho descreve, a partir de sua
própria experiência, um processo de despolarização do real. De acordo com a
súmula feita por Óscar Lopes, "Fialho (...) entrara nos Jerónimos em dia de
procissão e extasiara-se com a despolarização ou desrealização operada sobre
a expressão fisionómica e corpórea dos crentes pelos raios solares que os
vitrais coavam a cores diversas" (LOPES, 1987, p.177).
Com efeito, é particularmente interessante a desrealização observada
por Fialho, em que é possível, a partir de uma “alucinação cromática” (estado
propício à emergência da visão grotesca), dar conta de uma outra versão da
realidade, completamente alheia às ordens da natureza humana. Na verdade,
não se trata de um outro mundo de ordens diferentes, como, por exemplo, o
universo dos contos de fadas, uma vez que é o nosso mundo e não o é, isto é,
é o nosso mundo que de repente se torna estranho com o aparecimento de um
outro olhar, completamente distante das normas do “belo” e do sublime. Assim,
a deslocação de perspectiva, operada por uma lente que, como já observamos,
deturpa, destorce e transforma o real, vem dar forma ao invisível, interpretar
77
estados de impressão e dar relevo expressivo ao, até então, inédito, como a
mudança de perspectiva operada a partir do vitral do Jerônimos:
Há duas semanas saía dos Jerônimos uma procissão do Senhor dos Passos,
e como eu passava, não sei se de propósito, entrei na igreja, a ajoelhar junto
a uma das pilastras do coro. Da rosácea em vitral, aberta ao alto, como o sol
já se ia obliquando para o ocaso, descia em plena penumbra do templo uma
pirâmide cônica d’arco-íris, vaga, em poeiras de luz, que, apanhando as
caras dos fiéis lhes dava assim uma expressão factícia e torturada, alguma
coisa da alucinação cromática que devia ter tido a pupila de Quincey e
d’Edgar Poe, já nos seus últimos e irremediáveis períodos d’alcoolismo.
Evidente que sob aquela luz fantasiosa, as figuras ainda conservavam vida e
movimento. Somente a minúcia e a fáscias não pareciam já corresponder às
emoções que elas haviam sido chamadas a traduzir cá fora, ao ar, em pleno
sol. E havia risos que o feixe azul tornava em carantonhas; cabeças em
oração a que o feixe amarelo prestava um ar de caçoada, curiosidades
alvares que pareciam êxtases, e caras de sopeiras, lívidas como se
estivessem danadas de pecado...
Um simples vitral me despolarizara a existência da multidão que enchia a
igreja, do seu foco de realidade objetiva, atirando-ma para esses mundos do
trágico e do grotesco, que parecem feitos de vapores de delírio, e lembram
um pandemônio humano esfacelado por paixões e inércias mais fortes que
as naturais.
A cabeça dum homem de letras é mais ou menos como aquela rosácea dos
Jerônimos. Ela despolariza a vida da sua noção de realidade, faz-lhe perder
a coerência, e desorienta-lhe a fisionomia própria e individual té tê-la tornado
numa sarabanda de caricaturas, ou numa avenida de estátuas, que raras
vezes conservam a menor reminiscência do modelo que pretendiam
fotografar. (VI, p. 139-140).
Como se lê, o vitral da igreja surge como índice de mudança capaz de
estabelecer uma divisão: inicialmente, o espaço exterior é devidamente
marcado pelo termo: “cá fora, ao ar, em pleno sol”, no entanto, quando o autor
é tomado por uma espécie de “luz fantasiosa” que rompe as fronteiras do real,
a realidade modifica-se pelo poder do imaginário, e passa a ganhar expressão
na penumbra (“plena penumbra do templo”) que, como vimos demonstrando,
favorece a diluição de formas, a ambigüidade, e conseqüentemente, o
aparecimento do universo grotesco.
Observa-se que uma mudança de aspecto, provocada pela rosácea,
quando o autor se refere aos fiéis na igreja, torna diversa a realidade, pois
78
agora os fiéis recebem “uma expressão factícia e torturada”, diferente do real,
pois “raras vezes conservam a menor reminiscência do modelo que pretendiam
fotografar”. Despolarizados “do seu foco de realidade objetiva”, os fiéis são
observados como meras figuras, cujas “cabeças em oração a que o feixe
amarelo prestava um ar de caçoada, curiosidades alvares que pareciam
êxtases, e caras de sopeiras, lívidas como se estivessem danadas de
pecado...”, transformados em “sarabanda de caricaturas” que somente servem
ao autor para extasiar a sua alucinação e instaurar uma anormalidade.
Na verdade, aqui, as imagens grotescas ainda conservam o seu
conteúdo original, e somente a partir dessa base confere-se uma expressão
diferente, incidência que toma uma proporção diversa em outros textos,
conforme veremos adiante. Desse modo, os fiéis da igreja transformam-se em
caricaturas, pois os risos perdem suas proporções e transformam-se em
carantonhas, denegrindo-se ou destoando a realidade, que até pode ser visto
como uma sátira, pois segundo Bakhtin “a natureza da sátira grotesca consiste
em exagerar alguma coisa de negativo que não deveria ser” (BAKHTIN, 1993,
p.268). Contudo, é interessante notar que esses risos emitidos de dentro da
igreja, por si só, já destoam o racional ou a rigidez de que se espera de alguém
dentro de um templo religioso, talvez o riso apresente-se aqui como uma
espécie de “válvula de escape” que permite aos fiéis escapar ocasionalmente
da coerção do pensamente racional. Talvez a sátira obtida pelo autor venha
minar o prestígio da ordem religiosa com o aparecimento de imagens grotescas
que opõem às imagens clássicas do corpo humano perfeito, com pretensão de
ridicularizar o poder da igreja (instituição que Fialho tantas vezes criticou,
conforme temos demonstrado), que já se mostra bastante oscilante.
79
Com efeito, devido à alucinação do escritor, que é característica de
qualquer universo grotesco, uma vez que permite olhar o mundo com um olhar
diferente, cria-se uma atmosfera outra, de bases fincadas no nosso mundo,
mas que foge à realidade ao ressaltar uma atmosfera particularmente interna,
de mundos subjetivos, que aparece como verdadeira realidade, materializada.
Conforme afirma Fialho “esses [são] mundos do trágico e do grotesco”, que
encontram correlação com o “pandemônio” e o “humano esfacelado”,
desvendando-se “paixões e inércias mais fortes que as naturais”.
Constitui-se assim, uma “óptica divergente” devido à configuração de um
mundo que salta dos eixos humanos, totalmente alheados, ao substituir a visão
banal da realidade, para narrar uma vida interna, baseando-se na fórmula do
pintar o que não se vê (OG V, p.235). Seja evocando imagens que ressaltam
uma instabilidade de sentido e revelam uma visão subjetiva; seja distorcendo e
dando forma a uma outra realidade, a irrupção do inconsciente caracteriza essa
capacidade de subverter o real, interpretando estados visuais completamente
dispersos dos contornos familiares, tornando-se “estranhos” à razão humana.
Kayser observa que o grotesco deve ser visto assim, como “absurdo”, uma vez
que “nele se aniquilam as ordenações que regem o nosso universo” (KAYSER,
2003, p.30).
De fato, a despolarização do real constitui uma evidente rejeição à
“fotografia do real” que, de acordo com o ponto de vista de Fialho, deve
caracterizar o processo de escrita do escritor, pois, conforme ele mesmo
afirma, a mentalidade de um escritor deve ser como a rosácea dos Jerônimos,
pois “despolariza a vida da sua noção de realidade, faz-lhe perder a coerência,
e desorienta-lhe a fisionomia própria e individual (...) que raras vezes
80
conservam a menor reminiscência do modelo que pretendiam fotografar”. Em
Os Gatos, Fialho também nos emite uma opinião a cerca dos artistas:
O que é um artista?
Um homem que viu uma certa vida, experimentou emoções, e no-las conta,
transfiltrando-nos o calafrio com que as sentiu. A obra d’arte é portanto uma
porção de sensibilidade visionada, e interpretá-la é historiar a existência
interior de quem na subscreve (OG IV, p.48).
Para Fialho, o artista deve ser capaz de transpor para sua obra a
emoção, fruto da interioridade ou subjetividade. Conforme Isabel Cristina
Mateus salienta, essa crônica de Fialho sobre sua entrada nos Jerônimos
apresenta-se como “uma autêntica epifania da arte (...), “a visão pictural” do
próprio processo de escrita” (MATEUS, (s.d.), p.280). Porque nessa crônica o
autor nos relata como deve pensar um escritor, mostrando que o “que
realmente importava na arte era o ímpeto, surto irreprimível das forças íntimas”
(COELHO, 1996, p.190), caracterizando seu processo de escrita, incluindo
como etapa fundamental a despolarização do real, que ajuda a libertar o ponto
de vista racional do mundo e permite olhar o universo com novos olhos. Por
isso, desde então o grotesco pode ser observado em seus textos.
Quando se penetra nos domínios do grotesco esfacela-se qualquer
relação firme com a realidade, pois a audácia das criações é fruto de uma
imaginação fértil. Na verdade, o universo do grotesco possibilita uma outra
forma de olhar o mundo para além dos limites da razão; ele pode exagerar ou
aumentar a realidade a partir de bases reais, como pode também modificá-la
totalmente, uma vez que o grotesco “franqueia os limites da unidade, da
indiscutibilidade, da imobilidade fictícias (enganosas) do mundo existente”
(BAKHTIN, 1993, p.42). Ao artista, é essencial uma interioridade mais rica,
81
capaz de construir uma desorientação diante de um mundo tornado absurdo,
fantasticamente estranhado, que deixa o leitor com uma sensação de abismo,
devido à apresentação de jogos macabros com figuras de cera e seres
endemoninhados. Essa “confusão da fantasia” no grotesco é, para aquele que
escreve, um mergulho além das fronteiras da razão, que o torna capaz de
representar o sinistro estranhamento do mundo, em total simetria com a
subjetividade.
À semelhança do que encontramos nos Jerônimos, a despolarização do
real observada no artigo “O violoncelista Sérgio n’um café da Mouraria”,
observado anteriormente, surge propiciando imagens absurdas. No entanto, a
força elementar, o elemento desencadeador, já não é o vitral de uma igreja, e
sim a música, a que Fialho admite ter um apego excessivo:
Oh! mas outra música há de que o ouvido é mero receptáculo instantâneo,
transmissor mudo: outra música que a imaginação visual plasticisa rápido,
em imagens, quase que ia a dizer dotadas d’existência, imagens que se
vêem, se palpam, se enlaçam, sofrem e esmorecem, como essas aparições
translúcidas que os médiuns teósofos desagregam de si, e deixam no ar,
pairando, em linhas fosforescentes, feitas d’um fluido astral, e reproduzindo
aos olhos d’um círculo de crentes, a fisionomia ou a figura da criatura
ausente ou morta, que evocamos (OG I, p.104).
A substituição “inconsciente” do sentido auditivo pelo visual surge
quando o narrador é tomado por “crises físicas”, tal como ele define, “os
motivos irritantes, vindos das luzes, das cores, da permuta das idéias e da
intensidade rubra dos desejos, (...) entram em nós como agentes corrosivos da
sutílima trama mental sob que poderia dar-se a transposição sensatória”,
ocasionando uma alteração de enfoque, o tal “extraordinário fenômeno” que
deforma os sentidos acarretando em “música visual, plasticisante” e “imagem
como poder supremo d’expressão”. Neste caso, as imagens que surgem não
82
são deformadas e sim completamente imaginárias, subjetivas, sem qualquer
base de realidade. Assim, associadas à valsa dos silfos, surge na mente
imaginária do narrador uma
paisagem lunar que viu desenrolar-se-lhe deante, à margem d’uma ribeira
trágica e parada, onde os canaviais se sublinham apenas na noite, em tons
d’azul e fósforo, muito vagos, e o diabo passa, de pescoço estendido, as
asas lassas, de cócoras quase, aos pulos sobre a roca, como um grifo
caduco à procura d’almas que escorchar. E sem rumor, d’entorno aos
troncos, geleiras, penedias, começam a passar de vapor rondas de gnomos,
leves como luzernas, embriões de seres inutilizados na oficina de Deus,
fugidos do barril dos restos de criação, correndo o mundo, incorpóreos e
maus, a impulsionar os crimes e as doenças... e a cadeia d’esses pequenos
monstros expirala, n’uma dança infectante, ora quebrando a bicha das suas
formas deliqüescentes (...), ora voltando com fermentações de larvas, n’uma
fúria de viver febricitante, e apenas ritmada pelo ting-ling das gotas caídas da
folhagem.
Bem depressa, à medida que o lento se começa a caracterizar nos violinos, o
nosso ouvido pára, toda a espécie de som parece que morreu, mas os
sentidos fundem-se-nos n’um único, a visão, e ei-la seguindo no ar o
turbilhão diáfano d’espectros, que ela invocou, por cambiantes, com uma
sensação de relevo quase física, e uma magia d’assombro extraordinária!
(Idem, p.105).
Neste sentido, a visão alucinada do sujeito dissolve as ordenações do
real exterior com o surgimento de figuras estranhas como os gnomos e o diabo,
tornando estranho e assustador o universo comum do café, ao instaurar-se a
anormalidade.
O personagem do diabo, em especial, sempre foi vista pela humanidade
como o avesso da santidade. Na verdade, ele é a caracterização do sujo, do
erro, que aqui ganha “asas lassas” e “pescoço estendido” na captura de “almas
que escorchar”. Já a figura do gnomo, observada por Victor Hugo como um ser
pequeno e de aspecto disforme, “espírito da terra e das montanhas, guardião
de tesouros subterrâneos” (HUGO, 2004, p.32), aqui apresenta, além do
aspecto grotesco que lhe é característico, devido à deformidade física, o
caráter demoníaco, pois são apresentados como “seres inutilizados na oficina
83
de Deus” que “fugidos do barril dos restos de criação, corre[m] o mundo,
incorpóreos e maus,
a impulsionar os crimes e as doenças”. Na verdade,
esses seres que carregam consigo o elemento do “diabólico” ou do
“demoníaco”, estão associados a um estado de estranheza, pois são
manifestações imaginárias de caráter grotesco que geram estranheza no leitor.
Desse modo, o que parece pleno de sentido, como o relato pessoal de uma
simples noite em um café, torna-se destituído de sentido quando a perspectiva
grotesca vem à tona. O que antes era familiar, agora torna-se estranho. De
acordo com Kayser, no universo grotesco “trata-se de arrancar o leitor da
segurança de sua cosmovisão e da salvaguarda no seio da tradição e da
comunidade humana” (KAYSER, 2003, p.62).
Assim, esse “bestiário da alucinação doida e disforme” de que é tomado
por momentos pela imaginação, torna o narrador propenso “às meias-visões
macabras da alta nevrose” (OG I, p.121-168), geradora de um mundo novo e
peculiar, que deixa o leitor perplexo, “como se a terra nos fugisse debaixo dos
pés (...) em face do estranhamento do mundo” (KAYSER, 2003, p.51). O
grotesco é justamente “o que-não-devia-existir”, uma vez que “perceber e
revelar tal simultaneidade incompatível tem algo diabólico, pois destrói as
ordenações e abre um abismo lá onde julgávamos caminhar com segurança.
(...) O grotesco destrói fundamentalmente as ordenações e tira o chão de sob
os pés” (Idem, p.61). Por isso a imaginação grotesca observada na escrita de
Fialho pode ser vista como uma “diabólica óptica deformante”, pois destrói
qualquer ordem, qualquer valor instituído, derruba barreiras e institui a
anormalidade, fruto quase sempre do ambiente noturno.
84
Em outro momento, ainda no mesmo artigo, o narrador é tomado por
outras alucinações:
(...) houve um momento em que eu vi positivamente em pé, por trás da
rapariga, o tentador terrível alongar as unhas, como de quem fosse
desencravar-lhe do seio as radículas últimas do remorso; e forçoso me
foi chamar alguém, tanto a alucinação visual entrara em mim! (OG I,
p.121).
É interessante a semelhança com a cena goethiana que Fialho descreve
em Os Gatos:
O bandolim do diabo desviando Gretchen da prece, a rua esconsa, de cidade
medieva, (...), cheia de silêncio e casas de granito, nichos fumosos, lampiões
na agonia... e o tentador concitando a donzela a vir escutar a serenata, tendo
Fausto na sombra, e sobre o gorro as duas penas de fogo a esgrimirem no
ar, como floretes (Idem, p.115-116).
Fialho parece ter buscado inspiração nessa cena para compor o seu
texto. Contudo, o autor de Os Gatos prevê esta alucinação, tentando colocarnos no solo firme da realidade:
Hoje tranqüilo, posso analisar sem parti-pris a extraordinária perturbação
mental d’esse minuto. Procederia ela da tinta delirante sob que eu vejo, de
há uns tempo para cá, todas as coisas dramáticas ou triviais que me
circundam? (...) é certo que eu não fantasio (...) explico o fenômeno por uma
aberração sinérgica dos eixos oculares (...) e, mais remotamente, ainda pelo
dinamismo anormal em que a música me posera o cérebro (Idem, p.121).
Mas não convence o leitor, ao afirmar-se “hereditariamente propenso já
de si, às meias-visões macabras da alta nevrose”. Na verdade, o que irrompe
na vida cotidiana permanece inconcebível, uma vez que seus mundos são
feitos de “incertezas de fundos movediços, e perspectivas falsas”, seus
personagens são meros títeres, “ou a percepção real do grupo amoroso [lhe]
serviu apenas para evocar imagens cerebrais, que se objetivaram, dando
nascida à imaginação alucinatória do diabo, igualmente avermelhada, pelo
85
clarão da lanterna do prostíbulo” (Idem, p.122). Esta visão que nasce de bases
reais, invade o real e junto a ele se apresenta, não como um mundo paralelo,
mas como uma apresentação momentânea, pois, conforme ressalta o narrador,
“esta visão porém fora instantânea, e rápido o frio da noite restituíra ao meu ser
pensante a integridade”.
É o mundo real que ganha contornos disformes, provocando um extremo
estranhamento, que Fialho já havia visualizado nas pinturas de Goya, pintor
que o autor tantas vezes cita em seus textos, sendo declaradamente uma de
suas fontes, visto que o escritor identifica seu processo de escrita às
“deformidades de visão” que caracterizam a arte do pintor espanhol,
associando sua linguagem ao sonho, ao delírio das imagens e à febre
alucinatória que admira no pintor, apreciando inclusive o “mergulhos na mais
profunda chacina de tortura, e deformidades de visão onde se via latejar,
monstruoso, o feto do assombro, arrancado por furiosas mãos, às entradas
menstruais do inarrável” (OG II, p.64-67). Em muitos momentos, os textos de
Fialho parecem seguir a galeria de Goya. Em Vida Irônica, por exemplo, Fialho
narra uma “cavalgada grotesca”: um “fantástico cortejo, (...) arrancado às
águas-fortes de Goya!” (VI, p.288-289). Na verdade, trata-se de um cortejo
grotesco formado por “velhas nos seus jumentinhos podres” que iam às
romarias alentejanas, uma espécie de festa da “conflagração de coisas sacras
e profanas”, ou seja, onde convergiam quem pretendia vender porcos e quem
necessitava pagar promessas (Idem, p.288).
De fato, as visões do artigo “O enterro de Rei D. Luiz” também são feitas
de febre e alucinações. Nele, encontra-se uma apresentação do universo
grotesco que condiz com o surgimento do grotesco, ainda em pinturas.
86
O narrador segue o cortejo que leva o corpo rei D.Luiz, de Cascais até
aos Jerônimos. Focaliza, em especial, a rainha D.Maria Pia, cujas lágrimas que
lhe escorrem abundantemente do rosto ressaltam a dor, não pela falta do
marido, mas por sua própria existência, pela dor de ser mulher, de ter de
governar um reino, pelo destino injusto. Somente o narrador revela sua
verdadeira face. Os que seguem o cortejo vêem apenas a máscara, a máscara
da rainha que tem que representar o papel da mulher dilacerada pela morte do
marido devido à convenção social. Na verdade, quanto a esse ela sente uma
frieza de estátua:
(...) homens d’escuro virem ao chão, reverenciando a mulher que saiu do
landeau, e que parece enorme e esfíngica, n’aquela postura imóvel, entre
brumas de véu, como uma alegoria de dor e expiação.
Já prestes, grandes alas se abriram para deixá-la passar, direito à igreja.
Porém ela voltou-se, alguma coisa lhe falta, abaixa a vista; e a camareira
compreende…
É a cauda, que convém primeiro despegar nas lájeas, em pregas
majestáticas, uma a uma, não vá ela estragar a sua grande entrada de atriz
na cenografia gótica da igreja (OG I, p.171-172).
Prisioneira da sua máscara e descrita pelo narrador como uma “atriz” ou
a “alegoria de dor e expiação”, somente ele desvela a máscara que a rainha
carrega colada ao rosto, aos que a vêem, a máscara e a face não se separam.
Já o cortejo fúnebre é, na verdade, um cortejo grotesco. Apresenta-se uma
alteração no modo de olhar, pressuposto da visão grotesca, em que se revela
uma “atônita de mistura de grotesco e de trágico” (Idem, p.159). Uma espécie
de cortejo carnavalesco feito de “máscaras e bobos”, “macacos com fardas e
de mulheres com farrapos”, “figuras de cera”, “pequenos monstros de olhar
estrábico, ou vago”, “caras balofas, olheirentas, dessimétricas (...) mistura de
porco e cão de fila, de malandro e de títere” que “quando a máscara lhes
tomba, e por detrás do cortesão surge o carnívoro, tigre ou hiena”.
87
O tema da máscara é particularmente interessante no universo grotesco,
talvez pela problemática do ser e da aparência, pois “na máscara se revela
com clareza a essência profunda do grotesco” (BAKTHTIN, 1993, p.35). De
acordo com Bakhtin,
A máscara traduz a alegria das alternâncias e das reencarnações, a alegre
relatividade, a alegre negação da identidade e do sentido único, a negação
da coincidência estúpida consigo mesmo; a máscara é a expressão da
coincidência estúpida consigo mesmo; a máscara é a expressão das
transferências, das metamorfoses, das violações das fronteiras naturais, da
ridicularização, dos apelidos (Idem, p.35).
No desfile do cortejo fúnebre a máscara parece ainda conservar ou
lembrar traços de natureza popular e carnavalesca, talvez pela apresentação
da figura do bobo, que no tempo da monarquia (atual ao texto) fazia parte da
comitiva real, assim como vários anões, pessoas deformadas e felinos
selvagens. Normalmente, o bobo era alguém feio ou deformado, que por si só
já é caracteristicamente grotesco, pois se opõem aos corpos perfeitos e
dotados de movimentos impecáveis da estética do “belo”.
No desfile, ao retirar a máscara (real ou simbólica) do rosto do
personagem do cortesão, por exemplo, desvendam-se figuras animalescas
como, por exemplo, o “carnívoro, tigre ou hiena”, revelando a sua verdadeira
essência, ridicularizando-os ao mostrar a realidade que a máscara oculta. Na
verdade, a máscara pode ser vista como um disfarce ou um modo de olhar
para a verdadeira natureza do homem. No entanto, é estranho notar que, ao
retirar a máscara, revele-se o eu “verdadeiro” do personagem, que nesse caso
é uma aparição surpreendente de figuras animalescas, lembrando-nos o que
afirma o narrador: “A passagem dos grotescos é uma ovação macabra e
ininterrupta” (OG I, p.186). Essa relação do animalesco na criatura humana
88
aumenta o efeito do estranhamento e, com ele, o seu caráter sinistro; além
disso, desvela alegorias cujo conteúdo significativo é a ridicularização.
Em um dado momento, a procissão segue, e na mente do narrador
surge uma “conspiração de belo-horrível”, criada segundo uma visão noturna:
hei-de rir amanhã d’estas visões, cujo fundo d’assombro não existia
talvez senão na febre gestadora do meu cérebro: entanto é
extraordinária a epilepsia com que a imaginação começa a esfuriar-se
em certas horas, e larga, das cavernas do medo, o bestiário da
alucinação doida e disforme! (OG I, p.168).
Nasce um mundo próprio e noturno, que foge a qualquer interpretação
racional, já que nosso mundo perdeu as proporções reais. Apresentam-se
seres que emergem do abismo: “de nuvens lôbregas, d’animais-demônios, de
seres talhados na turgência de deformidade, larvas e esfinges, morcegos e
panteras, misturando espécies incoerentes, as viscosas às córneas”. Além
disso, Kayser observa o caráter sinistro e estranho do morcego, considerandoo o animal grotesco puro, pois
sugere a mistura antinatural dos domínios que se concretizou neste ente
sinistro. E, ao lado dessa cultura estranhadora, há um modo estranho de
vida: um animal crepuscular, de vôo silencioso, com inquietante agudeza
perspectiva e de segurança infalível nos rápidos movimentos (...). É
estranho, até no estado de repouso, quando permanece envolto nas asas
como num manto, dependurado de uma trave com a cabeça para baixo, mais
parecido num pedaço de matéria morta do que a um ser vivo (KAYSER,
2003, p.158).
Os animais noturnos e rastejantes, “que vivem de ordens diferentes”
(Idem, p.157), são os preferidos pelo grotesco. Para Fialho, o morcego é o
pássaro da morte “que entoa nos lugares fúnebres a ladainha do espanto”
(OPV, p.290). Assim, desse acúmulo turbulento de seres estranhos gera-se
uma profusão de seres que beira ao exagero, e indica-se a combinação de
seres heterogêneos que encontram correlação com uma concepção bem
89
antiga a respeito do grotesco, já que, ainda nas escavações descobertas em
Roma, as descrições das pinturas revelam o rompimento das fronteiras que
dividem os “reinos naturais” no quadro habitual do mundo, dando curso à livre
fantasia (BAKHTIN, 1993, p.28). Construídas da mistura entre os domínios, o
desordenada mistura de “espécies incoerentes”, “viscosas às córneas” e “porco
e cão de fila” (apresentado no cortejo) surge como monstruosa, criada em
bases unicamente imaginárias, com intenção de participação em um mundo
diferente. Essas são características do grotesco que surgem num documento
antigo da língua francesa, pois essa mistura do animalesco ao monstruoso é
uma das características fundamentais do grotesco, que “já transparece no
primeiro documento em língua alemã” (KAYSER, 2003, p.24).
Portanto, essas “animalidades quiméricas que a imaginação ergue das
trevas” (OG I, p.161), revelam uma “indecisa abundância de negrumes, sem
silhouette, imbricados uns nos outros como ardósias, e obliquando-se, em
sinuosas linhas, te à água” (Idem, p.168) que confunde os domínios da
natureza. Ao transportar essa imensa diversidade de seres como, por exemplo,
“animais-demônios”, “larvas e esfinges, morcegos e panteras”, apagam-se as
fronteiras da realidade porque se destruíram as perspectivas habituais do
mundo em todos os seus detalhes. Revelam que as imagens grotescas estão
disseminadas por toda parte do texto e mostram um corpo disforme que não
tem mais nenhuma relação com a estética do belo.
Victor Hugo observa no prefácio que redigiu para o Cromwell a
importância e combinação do sublime e do grotesco, ressaltando uma inerente
ligação e afirmando que “tudo na criação não é humanamente belo, que o feio
existe ao lado do belo, o disforme perto do grandioso, o grotesco no reverso do
90
sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz” (HUGO, 2004, p.26). Todavia,
o que tem visto na obra de Fialho contrapõe a visão do crítico, pois nesses
textos não se observa o grotesco frente à unicidade do belo, como uma
espécie de pólo oposto ao sublime, e sim como figura individual, vista
isoladamente ou como ratificação de ausência do belo.
O próprio Fialho comenta esse prefácio em Os Gatos e diz: “o prefácio
do Cromwell de Victor Hugo, jungindo o grotesco ao trágico, [supõe] que uma
tal aliança bastaria para assemelhar a arte à vida”. Para o autor, é preciso
mais, faz-se necessário “fazer o claro-escuro dos personagens, forrá-los dos
vícios e dos ridículos com que a história os explica e faz humanos” (OG III,
p.242). Os escritos do autor de “A Ruiva”, observados até o instante, não fazem
referência ao belo, ao grandioso, ao sublime, nem ao bem; somente se observa
o feio, o repugnante, o deformado, o transformado, e no momento em que o
belo pode ser visto, ele imediatamente é deteriorado, como se pode observar
no conto “A Ruiva”, no momento em que o narrador faz referência ao seio
jovem e atraente do personagem: “O seio era branco, assim descoberto,
estreito e apetitoso como uma miniatura, mas incapaz de amamentar um filho”
(AR, p.28). O seio até pode ser belo, no entanto o narrador o mostra a
incapacidade de cumprir uma das etapas mais importante da mulher-mãe, a
amamentação. Talvez Fialho apresente essa predileção pelo grotesco porque a
sua intenção tem bases fincadas na sociedade, almeja mostrar as falhas,
conforme veremos adiante.
4.2 - Mundos feitos nas incertezas de fundos movediços e perspectivas falsas
91
A propriedade característica do cânone literário clássico apresenta-nos
um corpo humano em total integridade, conforme observa Bakhtin: “corpo
perfeitamente pronto, acabado, rigorosamente delimitado, fechado, mostrado
do exterior, sem mistura, individual e expressivo” (BAKHTIN, 1993, p.279).
Tudo o que salta do corpo, isto é, tudo o que excede os seus limites, não toma
parte do relato, porque o que se pretende destacar é um corpo perfeito, sem
falhas, sem defeitos, talhado na justa medida da sua perfeição.
Essa superfície fechada, acabada, que não se funde com o outro, ganha
destaque nesse tipo de narrativa; por isso não se faz menção à fecundação, ao
parto, à gravidez, isto é, “tudo que trata do inacabamento, do despreparo do
corpo e da sua vida propriamente íntima” (Idem, p.280), porque não é de “bomtom”. Se mencionadas certas partes do corpo como, por exemplo, os órgãos
genitais, o ventre, o nariz ou a boca; essa menção tem um caráter
exclusivamente expressivo ou privado, pois só são mencionados no plano
prático e restrito, na vida corrente privada.
Para esse cânone, o corpo é único, individual, não conserva marca de
dualidades e não pode ser misturado, nem transformado. Bakhtin observa que
todos os acontecimentos que afetam esse corpo têm uma única direção: “a
morte não é mais do que a morte, ela não coincide jamais com o nascimento; a
velhice é destacada da adolescência” (Idem, p.281), pois o que marca o fim
não pode reunir-se ao começo.
Já a concepção do corpo grotesco apresenta-se-nos totalmente
diferente. Ele extrapola seus limites, como observamos, por exemplo, na
crônica dos Jerónimos, onde os fiéis da igreja transformam-se em caricaturas,
92
pois perdem suas proporções e transformam-se em carantonhas, o que se
observou também na transformação/deformação do cortejo fúnebre que
acompanha a rainha no artigo “O enterro de Rei D. Luiz”. Enfim, o corpo
grotesco não é visto como completo, acabado ou único. Aliás, é bem o
contrário, é um corpo com defeitos e falhas, como se pode observar, por
exemplo, no personagem do conto “Os pobres”, descrito pelo narrador como
um “pobre diabo”, “monstro”, “bicho”, “gorila”, “feio” e “corcovado” (OPV, p.6873), mesmo porque “o grotesco ignora a superfície sem falha que fecha e limita
o corpo” (BAKHTIN, 1993, p.278). Certamente, porque é um corpo que não tem
limites fixos, a ele podem juntar-se outros elementos, até mesmo de natureza
animal; ele pode crescer ou diminuir ao ponto de sumir, pode apresentar seu
despedaçamento e suas aberturas: “é o corpo fecundante-fecundado, parindoparido, devorado-devorador, bebendo, excretando, doente, moribundo” (Idem).
Com efeito, a morte do corpo grotesco não põe fim a nada de essencial,
porque não se tem fronteiras. O conto “A Ruiva”, por exemplo, é um texto que
se constrói a partir da morte em vida. Na verdade, vida e morte coexistem o
tempo todo no conto; no entanto, nem sempre a vida é só um começo e a
morte um fim. Essas fronteiras se dissipam a ponto de a morte impregnar toda
a vida.
“A Ruiva” é uma narrativa escrita em analepse, que se constrói da partir
a morte da protagonista, a Carolina. É diante de seu cadáver “cortado em
postas” (AR, p.3) que o legista-narrador vai revelar a história daquela que antes
de morta tinha um nome próprio, Carolina, e que, ao falecer, passa a ser
reconhecida como a “Ruiva”. De fato, essa imagem grotesca do corpo
despedaçado ressalta-lhe a desagregação, a não-integridade, o marcadamente
93
disforme que se constitui como “elemento fundamental do sistema de imagens
grotescas” (BAKHTIN, 1993, p.22). Em outro momento da narrativa, esse
mesmo corpo é visto “espedaçado pelo (...) escalpelo” e como uma “caveira
fria, limpa de películas e cartilagens, branca e escarninha, cujas maxilas
escancaram” (AR, p.96). Nesse momento, permite-se observar o caráter
macabro, sinistro e alheado do grotesco.
Na verdade, o cadáver que o legista-narrador – que muitos críticos
assemelham ao próprio Fialho porque se formou em medicina, mas somente
exerceu a profissão por dois anos, segundo dados emitidos pelo próprio autor
(foi no “concelho rural do Alentejo, onde eu cliniquei por espaço de dois anos”
(VI, p.211) –, disseca é o de uma sociedade morta de valores, hipócrita,
minada pelo vício e que condena seus filhos à prostituição: “a prostituição
desenhava-se-lhe como a solução natural no problema da vida de uma
rapariga pobre” (AR, p.30). A Carolina é apenas um pretexto para abordar as
questões que atingem essa sociedade.
Já o conto “Três cadáveres” apresenta a imagem grotesca da
decomposição cadavérica. O personagem Marta, internada em um hospital
“infecto” e “pululante de larvas” (OPV, p.250) por se encontrar tísica, ocupa a
cama 27, “local de biografia sinistra e mortuária”, acaba enamorando o jovem
estudante de medicina João da Graça. Contudo, a jovem vem a falecer, e seu
aspecto é de
uma ossada nodosa e cheia de vergões por sobre a flacidez da pele que a
revestia, às equimoses roxas pelo dorso, murcha, torcida, e bem afastada já
da gracilidade airosa d’outro tempo. O ventre, metido para dentro, começava
a encher-se de listrões de verde glauco, em que as varejeiras picavam de
raspão; o seios murchos, enrugados, vazios, descarnavam um colo cheio de
máculas de cáusticos (Idem, p. 270).
94
João faz de tudo para enterrar o corpo de Marta dignamente, mas como
não tem como cobrir as despesas de um enterro, seu corpo é conduzido à
sepultura num caixão de aluguel, que é preciso retirar antes do enterro,
entregando-o à terra sem qualquer proteção: “o horror de lançar à terra aquela
mimosa estátua d’infortúnio, sem outro invólucro mais rijo que a mortalha, que
redimi-la pudesse aos primeiros das larvas carniceiras”. O cemitério apresentase como uma “penumbra fétida e hiperbólica”, uma espécie de “Gomorra
submersa”, cujas
fervilhações misteriosas, vislumbres d’almas, agitavam aquelas carcaças
deitadas para ali, a apodrecer... vida sem cérebro, regida (...) por uma
espécie de sensibilidade espinhal inerente ainda à matéria animalizada _
como se a natureza, essa cozinheira de restos, tentasse criar com aqueles
destroços outra humanidade, acéfala, gestadora de monstros (Idem, p.290).
No enterro, João auxilia o coveiro e subitamente a terra “esbarrond[a]
por debaixo dos pés do estudante, fazendo-o largar a morta que caiu
desamparada no charco”, cobrindo o corpo da defunta de “crostas repelentes”.
O corpo enlameado, a cabeça cheia de “piolhos brancos, furiosos”, a “palidez
exangue” de “sangue deletério”, que um “excesso de mortificação fazia horror”,
conformam a visão grotesca.
Essa imagem grotesca do corpo descarnado, em decomposição e ainda
humilhado, revela a estranheza do corpo ao perder a vida. Kayser observa que
é um motivo duradouro do grotesco o corpo coagulado em larvas (KAYSER,
2003, p.158).
No grotesco, a morte pode relacionar-se ao nascimento, apresenta-se
indissoluvelmente a ele imbricada, pois “a imagem grotesca caracteriza um
fenômeno em estado de transição, de metamorfose ainda incompleta, no
95
estágio da morte e do nascimento, do crescimento e da evolução” (BAKHTIN,
1993, p.21). É uma espécie de atitude de permanente evolução que gera uma
ambivalência: “os dois pólos da mudança – o antigo e o novo, o que morre e o
que nasce, o princípio e o fim da metamorfose – são expressos (ou esboçados)
em uma ou outra forma” (Idem, p.22). Assim, no conto “A Ruiva”, o narrador
revela que a Carolina nascera da morte da mãe. O corpo que deu a vida
desaparece, e outro vem ao mundo, ressaltando, assim, a proximidade entre
berço e túmulo: “saímos do ventre materno para um berço e na hora da morte
vamos para um caixão, ambos feitos de tábuas” (OLIVEIRA, 1998, p. 7).
O corpo novo ganha destaque na narrativa, mas o antigo ainda faz falta,
pois era a mãe de Ruiva quem vendia as hortaliças viçosas plantadas pelo
marido, o coveiro, no cemitério, e que dizia serem de Odivelas. Os fregueses,
enganados, consumiam com bom gosto as verduras nutridas pelo húmus
humano: “hortaliças que com o tempo e o belo tempero da terra adquiriam
grande desenvolvimento” (AR, p.9). Revela-se que os cadáveres não são
dispensados; eles ainda são úteis, uma vez que servem de húmus para as
hortaliças que crescem viçosas e vão alimentar outras pessoas. Esse é o
reconhecimento de que a vida surge da morte e de que nada é inútil para a
natureza.
Essa imagem introduz-nos mais uma vez na lógica grotesca, pois a
fertilidade da terra, enriquecida pelo húmus humano, faz aparecer algo novo,
como as hortaliças. É o que Bakhtin chama de aspecto cósmico da fertilidade
da terra: “A morte, o cadáver, o sangue, grão enterrado no solo, faz aparecer a
vida nova: trata-se aqui de um dos motivos mais antigos e mais difundidos [do
grotesco]. Conhecemos uma outra variação dele: a morte semeia a terra
96
produtora e fá-la parir” (BAKHTIN, 1993, p.286). Assim, essa morte-renovação
de aspecto grotesco iminente parece ressaltar que a morte, observada nesse
conto, transpassa o sentido banal da realidade e cruza-se o tempo todo com a
vida, até mesmo nas menores coisas.
Terreno minado por elementos soturnos e abismais, de caráter sinistro e
angustiante, o ambiente desse conto é, na verdade, um “trampolim” para o
aparecimento do grotesco. O personagem principal, descrita pelo narrador
como uma “perdida criatura”, opera um momento de total desrealização da
realidade, ocorrida repentinamente e capaz de dar forma ao anormal de caráter
grotesco, capaz até mesmo de suscitar vertigem no próprio personagem e nojo
no leitor. Assim ocorrre a Carolina, que, em noite de solidão, mais uma noite
sem a presença do pai que dorme pelas covas sepulcrais do cemitério,
repentinamente experimenta algo até então inédito:
(...) de súbito, alguma cousa a arremessava à lembrança condenada dos
homens adormecidos na casa das observações, e via-os surgir das suas
mortalhas alinhavadas, sorrindo, com vida; estendiam os braços a procurá-la;
roídos de vermes, muitos vinham, como na dança do Roberto, roçar-lhe
pelos quadris os membros esquálidos e podres. E estonteada, fitando no
vácuo aquela visão candente, miserável nos seus quinze anos, sentava-se,
extenuada e languescida, à sombra dos ciprestes anosos e dos túmulos
soberbos, com a cabeça aos baques, revolta a alma por criminosas
comoções (AR, p.14).
Os mortos que Carolina tantas vezes acariciou, pelas escondidas na
casa de observações, ganham vida, e do mesmo modo se misturam ao mundo
humano, buscando retribuir-lhe os afagos e desfilando sorrisos sórdidos. A
vivência desse alheamento se introduz justamente no momento em que o
elemento espectral é manifestado. A visão que se tem é a de um corpo
monstruoso e disforme, de “membros esquálidos e podres”, portador de algo
97
estranho e desumano, de aspecto grotesco que, de repente, se manifesta
diante de Carolina. Kayser ressalta que “o repentino e a surpresa são partes
essenciais do grotesco” (KAYSER, 2003, p.159). Talvez por isso o horror a
assalte com tanta força fazendo-a sentar-se, pois os mortos são parte
integrante de seu mundo. Mas essa aparição retira toda a segurança que o
personagem pode demonstrar frente a um mundo racional, desorientando-a.
A deslocação da realidade, devido à manifestação de uma forma
sobrenatural, utilizada para a produção do grotesco, vem dar conta do
desconhecido e provocar o processo de estranhamento ante o repugnante. Em
crônica inserida em “Barbear, pentear”, Fialho parece apreciar a continuidade
do ser, quando diz que se deve “dar aos mortos uma ação de presença sobre
os vivos, misturando à beleza augusta do sonho que a obra d’arte, genuína,
sintetiza...” (BP, p.141). Assim, no conto, o ser corroído pela deformação ganha
vida e atormenta, vem mexendo-se ao encontro de Carolina. Esse motivo
contém por si só um conteúdo macabro, que, de acordo com Kayser, entra na
estrutura do grotesco (KAYSER, 2003, p.159).
Já no conto “O Anão”, inicialmente publicado com o título “Lenda do
Carrasquinho” no jornal O Ocidente, em 1884, e inserido em O país das uvas,
apresenta um mundo tão particular, de meios estruturais tão próprios, que se
pensa que não chegará a qualquer espécie de “estranhamento”. A princípio, o
universo do conto é visto como um mundo totalmente diferente de nossa
realidade, como se tratasse de uma nova ordem mundial distinta ou um mundo
especial que teria definições próprias, que nos faz perder um pouco a
capacidade de estranheza.
98
O personagem Carrasquinho, conhecido também como anão ou grão de
milho, é um homem de vinte e cinco anos que com o passar do tempo e cada
dia diminui mais. É de estatura tão baixa que
estando ao sol, num olho de couve, veio uma vaca e meteu-os a ambos
no bicho. Primeiro que o tirassem da vaca, um trabalho medonho, e
todas as raparigas da aldeia tinham vindo oferecer-se para o lavar dos
enxovalhos da viagem (OPV, p.153).
A imagem do impossível beira o exagero; a figura do anão, freqüente no
universo do grotesco pela disformidade física, é vista de maneira acentuada,
pois ele diminui com o passar dos dias, incorrendo em exagero. Kayser
observa que “o exagero, (...) o excesso são, (...) os sinais característicos mais
marcantes do estilo grotesco” (BAKHTIN, 1993, p.265), um recurso
extremamente utilizado nesse conto. Além disso, a inesperada viagem de
Carrasquinho ao interior da vaca e sua difícil volta ao mundo, apresenta um
caráter ainda mais grotesco e bizarro, que tende a destruir a perspectiva
racional do nosso mundo em todos os detalhes.
Devido à diminuta estatura, algumas de suas ações revelam uma
dimensão satírica, pois é impossível não perceber que o grotesco se apresenta
aqui com tintas de humor: a primeira é sua viagem ao interior da vaca; a
segunda é que, estando o patrão recebendo magnatas em casa, Carrasquinho
aproxima-se do chapéu de pêlo de um dos convidados, curiosamente vai
observar o interior do chapéu e lá acaba caindo, sem conseguir sair. Depois,
Carrasquinho necessitava de uma capa para casar-se; não tendo saída, vai ao
casamento com a capa de uma boneca; por fim, sua esposa confunde-o com o
filho, distraída leva-o ao colo à igreja e ainda lhe troca as fraldas.
Para o leitor, a insanidade rege o conto como principio de ordem, até
que um dos personagens introduz o estranhamento: “– Já se viu noutra terra
99
homem daquele tamanho?”. Contudo, o fato só é suscitado quando a
população compara a figura estranha do anão com uma aparição misteriosa,
associada à figura de um diabo, uma vez que uma figura de aspecto estranho
atormenta à noite a população, que acredita ver nela semelhanças com
Carrasquinho: “– Vocês repararam como ele se parece tanto com um bode? Os
olhos, o focinho, a voz balada e profunda, e aquele ar de maganice nos
solavancos da cabeça?...”. A figura disforme do anão, de acentuada feiúra,
ainda apresenta uma sinistra semelhança com um animal – o bode,
encarnação do diabo: “os maiorais de Gamenha tinham-no visto em forma de
bode, com pés de gente, a barba açafroada, dançando à volta duma cruz
partida na encruzilhada da Vargem” (Idem, 160; 162), a quem atribuem todas
as desgraças, humilhando-o socialmente ao compará-lo à figura demoníaca de
conduta e aspecto grotescos.
Na verdade, Carrasquinho havia sumido porque sua esposa, Rosa – que
também apresenta aspecto grotesco, pois era “uma cavalão da mais
desmedida estatura” que “a mãe trouxera (...) vinte e sete meses no ventre, e
tinha (...) parido durante seis dias” – o expulsou de casa. Não tendo onde viver,
“ia por esses campos, batendo os queixos de frio, à procura de valhacouto
onde esperasse a madrugada. Buscava então os rebanhos, entrava
cuidadosamente nas arribadas das granjas, nas ramadas das ovelhas, os cães
eram amigos dele – e ali passava a noite, aquentado na lã das reses”. Todavia,
poderes demoníacos são atribuídos a Carrasquinho, que não consegue fugir ao
julgamento da população:
Já os olhos se acendiam de faúlhas sinistras, e os gritos de – mata! mata! –
entravam a circular.
100
– É o diabo! declaravam todos. Nós o vimos, fora de horas, este mesmo, aos
pulos por esses rivais!
– Então damos cabo dele (Idem, p.166).
O padre até tenta acalmar os ânimos da população, mas um homem que
se encontrava bêbado, conhecido como Palhaço, sobe à torre da igreja e atira
Carrasquinho que “ve[m] amachucar-se em baixo, cavamente, nas velhas lajes
sepulcrais do adro”, o que provoca o final trágico do conto.
Assim, no conto “O Anão” apresenta-se uma figura cara ao universo
grotesco, o anão, que pelo corpo físico se mostra diferente, destoante perante
outros homens, pois sua disformidade física diferencia-se claramente das
imagens clássicas, preestabelecidas e perfeitas. Nesse caso, ele ainda
apresenta a feiúra e a semelhança a um animal, o bode, outro recurso bastante
utilizado no grotesco. Além disso, o conto parece ter seu mundo próprio, de
estrutura diversa, que não causa estranheza às demais personagens, até
mesmo quando é ressaltado o seu tamanho diminuto que mais diminuto se
torna com o passar do tempo. Contudo, o estranhamento vem à tona quando
um dos personagens acentua a sua unicidade, que gera estranheza. Revela-se
que esse não é um universo além da nossa ordem, e sim que apresenta seres
e aspectos estranhos à nossa realidade.
Assim pode ser visto o universo grotesco na prosa de Fialho, como a
apresentação de uma nova forma de olhar. O grotesco, como vimos
demonstrando, é fruto de uma visão emotiva, expressiva e extraordinária do
mundo, que vem contrapor a visão exterior à interior, ressaltando mundos
subjetivos, cujas “modalidades complexas dum espírito, têm a sua gestação na
própria alma” (VE, p.74). Recusando a condição de simples imitador da
realidade, pela necessidade de dar forma ao “indizível” e de criar a partir de
101
passeios noturnos, Fialho revela em sua obra, e a partir do grotesco, a força
criadora e libertadora da imaginação.
Foi assim, “pinta[ndo] uma coisa fora do modelo visto” (OG IV, p.51),
talvez porque
misantropo e retirado, não [sentisse] a vida senão por fragmentos, e tudo
aperceb[esse] por uma só máscara, a lívida, ei-lo envolvendo o fundo
dos quadros em brumas cor de cinza, não acabando nunca, pela
necessidade de só pintar (...) – tipos incompletos, almas em pedaços
(Idem)
que Fialho revelou esse “grito” da alma, esse “tic” do cérebro, conforme
ressalta em “Barbear, pentear”:
(...) esse grito, esse tic, essa iluminação interior que
criadora, imortal do cérebro humano; esse dom de
informe, de ressuscitar com vida d’espírito a
analgésica, de criar formas, fantasmagorias, sonhos
(BP, p.271).
é a parte concetiva,
tirar água da rocha
matéria amorfa e
que agitem mundos
Fialho reconhece que seu cérebro não consegue ficar imune ao “poder
amplificador dos grotescos” (OG II, p.51); sabe-se propenso “às meias-visões
macabras da alta nevrose” ( OG I, p.121-168), que se realizam principalmente
à noite, como é condizente com sua imagem de “vagabundo boêmio” que tanto
aprecia. Além disso, encena a atmosfera grotesca porque lhe é intrínseca: ”A
minha natureza não compreende infelizmente os Hermann, senão castrados.
Ela gosta de sentir no idílio a carne latejante, a paysaneria rude e brutal; jamais
figurinhas de Kate Greenaway, brancas e bonitas” (VI, p.142), pois sabe que,
diferentemente de alguns artistas portugueses, não tem as “asas cortadas”
nem os “vôos muito curtos” (OG V, p.237), se mostra em sua obra tantas
disformidades e alucinações, que muitas vezes beira ao exagero, foi porque
quis mostrar que a arte portuguesa precisava de mais sonho, mais imaginação.
Estava cansado da literatura contemporânea, pois desabafa que
102
n’este luxo de ciência, que é um dos mais hábeis artifícios do romance
moderno, muita vez o sábio prejudica as qualidades inventivas do artista,
reduzindo a obra d’arte a uma monografia seca, a uma espécie de
história clínica, em que o rigor do detalhe expulsa o sonho, substitui à
arte a medicina (P, p.35).
Para Fialho, a arte deve ser capaz de comportar a “tormentosa
existência contemporânea, [em que] tudo envelhece precocemente, a alma e a
laringe, a fisionomia e a inspiração” (VI, p.14). O escritor defende que ela seja
não apenas original, individual, criativa, mas também expressão “da alma
apodrecida em dissoluções todas modernas” (Idem, p.48). Se o grotesco
nasceu e ganhou freqüência nos períodos históricos marcados pela
contestação e oposição às imagens racionalistas do mundo, conforme nos
ensinou Wolfgang Kayser, a sua utilização na obra de Fialho não se apresenta
diferente. Pois o grotesco serve a Fialho para caracterizar esses tempos de
crise, de decadência, e sua utilização contrapõe-se à confiança positivista na
razão, na ciência e no progresso, base do projeto naturalista, movimento a que
Fialho foi tantas vezes associado pela crítica.
Assim, o predomínio da imaginação grotesca, fruto do rompimento com
o sublime (“estilo nobre”) e da grandiloqüência discursiva (AE, p.23), contrapõe
a visão naturalista a um modo de escrita marcado pela intenção de transcender
a realidade. Assim é que recusa a condição de simples imitador da realidade,
pela necessidade de dar forma ao “indizível”, de criar a partir de passeios
noturnos e, sobretudo, pelo interesse de renovação (ou experimentação) da
linguagem, opondo-se claramente com sua arte à predileção do público
português pelo belo, aí ausente, a que opõe essas imagens grotescas, modo
irônico de contestar e resistir ao apelo das formas cientificizadas do
Naturalismo corrente.
103
O autor de Os Gatos cria esse universo diverso, bem distante da
deplorável condição portuguesa de que Fialho se dizia cansaço: “É um diabo
de tempo, o nosso tempo! Tudo artifícios, ilusões, exterioridades” (P, p.40). Em
sua obra o grotesco pode ser visto como um desejo intenso de transcender
através da arte uma realidade considerada desumana e também uma forma de
rebeldia, ao negar o mundo real e recriar um outro. Se “n’este final de século
que a sensação transviou até às fermentações macabras da nevrose” (P,
p.148), o grotesco pode sim ser a forma rebelde de expressão.
CONCLUSÃO
Sigo o curso dos meus sonhos, fazendo das
imagens degraus para outras imagens;
desdobrando, como um leque, as metáforas
casuais em grandes quadros de visão
interna.
(Fernando Pessoa/ Bernardo Soares. Livro
do Desassossego).
Ao final desta dissertação, as palavras do semi-heterônimo de Pessoa,
Bernardo Soares, parecem evocar o processo de escrita de Fialho. Um modo
de escrita calcado na emoção, no transbordamento da visão interior, em
compasso com um desejo intenso de originalidade.
Dono de um polêmico temperamento, Fialho sempre desejou ser
reconhecido como um escritor marginal, revoltando-se contra o poder político
vigente, contra as formas de instituição, inclusive as formas literárias/artísticas
104
em voga e investindo, inclusive, contra todos aqueles que divergiam de seus
pontos de vista. Considerado por alguns críticos como um escritor
temperamental, de humor oscilante, o autor de Os Gatos recusou qualquer
academismo em prol da construção de uma obra original, que possuísse a sua
marca, a sua assinatura.
Considerado por si mesmo como panfletário flagelador, Fialho critica as
instituições de uma forma geral, dedicando maior atenção ao jornalismo, até
mesmo pela profissão que exerceu, condenando os jornalistas que se vendem
ao gosto da moda e do público. Para cumprir tal objetivo utiliza-se da
“máscara”, ou seja, assina os artigos com pseudônimo de Valentim Demônio
ou de Irkan, pois escrevera em terreno minado pelas conseqüências
provocadas pelo Ultimatum inglês de 1890.
Já o desejo do luxo e a excêntrica indumentária com que os colegas
relatam que ele se portava nas reuniões, gerara uma série de comentários. O
autor de “A Ruiva” chegou a ser considerado um dândi pela critica. Ao
observarmos o modelo de dândi construído por Charles Baudelaire, pode-se
ressaltar que Filho apresenta realmente alguns traços desse dândi,
distanciando-se, porém, no que se refere à aristocracia de berço, pois Fialho
nasceu de uma família pobre, embora demonstrasse uma espécie de
“aristocracia interior” dos que são “ricos em força interior” (BAUDELAIRE, 1995,
p.872). Tal como o dândi, a aparência contava muito para Fialho, e o distinguia
entre os demais. Era, de fato, um rebelde bem apresentado, e, até mesmo,
excêntrico, que se opunha ao excesso tal como o dândi no combate a
trivialidade, pregando a originalidade.
105
Criticando tanto a vida pública como a privada dos portugueses,
incluindo desde as formas de ensino a desfile de criancinhas, Fialho pôde falar
de quase tudo, porque possuía uma cultura profícua. Esse foi um dos fatores
que o impediram de conter-se em um romance. Também confessa em
“Autobiografia” que um romance demanda tempo e dinheiro, duas coisas que
não possuía no momento; além disso, não acreditava que existisse em
Portugal público leitor para tal projeto. Talvez por isso limitou-se a escrever
muitos contos e artigos que, pelo que vimos, nos deram um perfil bastante
singular do Portugal do seu tempo.
Pesquisando o inédito e o marginal, inserido em um mundo de sombras
e mistérios, Fialho ia registrando nos excessos da linguagem emotiva as suas
impressões de espectador. Lisboa, para Fialho, tinha um lado desconhecido,
que ia sendo percorrido, não com um olhar deslumbrado, como aponta
Barthes, de que é tomado diante de Paris, quando se acentua a “cegueira” que
esse “deslumbramento” provoca. Dissemos que Fialho parece não correr este
risco; ao contrário, o escritor mais do que vê, ele “repara”, “considera”,
“analisa”, parecendo seguir o conselho de que falaria o português José
Saramago anos mais tarde em seu romance Ensaio sobre a cegueira, a
respeito da capacidade de reparar, enquanto os outros somente vêem. Fialho
volta o seu olhar para penetrar mais fundo, observando verdades não narradas.
Ainda em “Autobiografia”, Fialho revela a sua linguagem plebéia e
“suja”, fruto da ruptura com o sublime pelo predomínio da imaginação grotesca,
opondo-se na escrita à predileção do público português pelo “belo”, com o
aparecimento de imagens desse fascinante universo. Confessando-se um
“trabalhador reputado de não querer escrever português corretamente” (OG III,
106
p.269) ou um “obscuro obreiro” da palavra, para quem o presumível é “que o
dom d’escrever se acompanhe sempre d’esse outro d’ouvir uma pequena voz
interior que cita a frase” e “Fazer passar o acento d’essa voz, nas palavras”,
que, para ele, é que significa “o que é ter estilo” (Idem, p.252), o escritor afirma
orgulhosamente possuir vários estilos. De acordo com que ele mesmo afirma e
divulga, é o único escritor em que o “assunto é que dita o estilo” (AE, p.23).
Como a escolha do estilo está intrinsecamente ligada à do assunto e como
seus assuntos variam na tentativa de captar a melhor forma de expressão da
vida contemporânea, o estilo, em conseqüência dos assuntos, afirma-se como
múltiplo e original, recusando influências ou programa estético prévio, na
recusa de todas as escolas ou correntes literárias.
Todavia, como se pôde observar, Fialho foi um homem do seu tempo e
não pôde passar imune às influências do fértil meio literário que Portugal
possuía no momento. Os outros escritores, o gosto do público, entre outras
forças sobre-pessoais influem sobre o escritor e comprometem a certa
segurança de um estilo pessoal. Contudo, pode-se afirmar que Fialho tinha um
conceito de estilo apropriado para cada assunto, capaz de vincular sua
expressão e atitude. Na verdade, a obra de Fialho pode ser vista como
múltipla, de vários estilos, cada um combinando com uma corrente literária,
“pescando” um pouco de cada corrente de acordo com sua flutuação humoral,
como convém ao esteta da palavra que foi.
O projeto de Fialho, como também se pôde ver, parece ter seguido um
percurso marginal, uma aventura individual, que se realizou principalmente nos
ambientes noturnos. De fato, a noite foi o lugar, na prosa fialhiana, de uma
evidente predileção, pois a atividade criadora do escritor, a sua “diabólica
107
óptica deformante” que tudo transformou/deformou com imagens de sombras,
de espectros, visões deformadas ou realidades confusas condiz perfeitamente
com a imagem de “vagabundo boêmio” que Fialho fez de si mesmo.
Em suas passeadas noturnas, o escritor nos deu conta, em sua obra, do
universo grotesco, ao apresentar uma Lisboa noturna, rica de inéditos,
“propícia à germinação sugestional da fantasia” (FD, p.54), que alimenta a
imaginação dos artistas. É sob o céu fúnebre, que as barreiras sociais, opostas
à liberdade do homem, podem ser derrubadas. É quando anoitece e já
ninguém o observa que o indivíduo pode ser ele mesmo, sem máscaras, sem
convenções sociais, e exceder os limites sociais que acorrenta a vontade
humana. Assim, em certas horas noturnas, o escritor dá-se ao prazer de
percorrer, e descrever, a vida, fascinado pela fórmula do pintar o que não se vê
(OG V, p.235) – afirmamos mais de uma vez com as palavras do próprio
escritor -, revelando “esse ruge-ruge de vida invisível, que é à noite, a
respiração dos sítios habitados” (OG I, p.168-169).
Em meio à escuridão, o escritor deu forma ao exagero, às estranhezas
fantásticas da ilusão, despolarizando o real e gerando um mundo oculto;
trazendo à tona o lógico e o inconsciente, ultrapassando mundos e transpondo
para as suas páginas de ficção o mundo dos anormais, dos infelizes, que,
ocultos nas sombras, revelam a perspectiva de uma visão inédita e marginal.
De fato, a noite foi a “centelha” que lhe proporcionou encontrar o recanto
inédito da vida, que lhe legou as muitas páginas ficcionais da visão grotesca.
Na verdade, a imaginação grotesca foi, na obra de Fialho, um modo de
negar e recusar olhar a realidade portuguesa, uma vez que estava
decididamente desgostoso do seu tempo, utilizando-se do grotesco para criar
108
um universo outro, visto ao avesso da nossa realidade. Com isso, contrapondose à confiança positivista na razão, na ciência e no progresso, base do projeto
naturalista, movimento a que Fialho foi tantas vezes associado pela crítica, dele
se afasta ao acentuar os traços que caracterizam um universo que aposta na
fuga da realidade.
De fato, Fialho fora atraído ao Naturalismo na época em que escrevera
“A Ruiva”, mas, logo depois, no quinto volume de Os Gatos, pudemos observar
a
sua
oposição
à
literatura
Naturalista,
por
ele
considerada
como
representação fotográfica do real empírico. Contudo, Fialho também se
revoltara contra o Decadentismo, embora, como também foi visto, Óscar Lopes
afirme que o escritor chegou a considerar-se um membro desta escola
(LOPES, 1987, p.169).
Na verdade, a originalidade do estilo fialhiano elaborou-se sem um
programa estético prévio, na recusa de todas as correntes literárias e da
realidade exterior, em sintonia particularmente com o entusiasmo advindo da
primeira impressão. Contudo, por mais que o escritor afirmasse e recusasse as
correntes estéticas, é fato que ele foi por elas atingido, vindo a utilizar o que
tanto desdisse, pois evidenciou-se em seus escritos uma evidente aproximação
a corrente literária Decadentista quando em sua prosa se apresenta a
expressão grotesca.
Traços como o extremo pessimismo, a angústia perante um fim
iminente, a concepção de progresso ilusório, a superação do artificial ao
natural, revelam como a obra fialhiana se fez envolta nesse sentimento de
decadência que invade a Europa e, por extensão, Portugal no final do século
XIX, e como ela se aproximou da arte decadentista, acentuando-se quando ao
109
observar o desencanto/desistência perante o país, os sentimentos de
melancolia, rebeldia, pessimismo, nevropatia e a irrealidade do sonho, em um
mundo sem equilíbrio pacificante, conformando-se na desistência.
Na composição do universo grotesco, observaram-se ainda outros traços
que coincidem com a estética decadentista, devido ao aparecimento constante
de alucinações, delírios e febres, e também a fantasmagoria e a apresentação
de tipos decadentes e bizarros.
O grotesco, desde o seu surgimento, assinalou uma ousadia de
invenção, um gesto criativo que se aventura a libertar as amarras das
convenções e da banalidade, uma vez que permite olhar, reparar e enxergar o
universo de uma outra maneira, desvelando uma versão totalmente nova. Na
prosa fialhiana, esse modo de “olhar diferente”, contrapõe-se às imagens
coerentes do mundo, até porque o irracional rompe de modo definitivo qualquer
pretensão racional.
A desrealização observada por Fialho ou por seus narradores em seus
textos, surgiu tanto de uma “alucinação cromática”, como por outra força
elementar, que pode ser até mesmo a música. O fato é que se operou nele
uma “óptica divergente”, capaz de proporcionar uma outra versão da realidade,
completamente alheia às ordens da natureza humana.
O vitral de uma igreja, como vimos, transformou os risos dos fiéis em
carontonhas, e o cortejo fúnebre de um rei, de repente, passou a ser visto
como um cortejo grotesco e carnavalesco, em que ainda sobressaíram figuras
estranhas como gnomos e o diabo. Enfim, é um mundo que salta dos eixos
humanos, totalmente alheados, substituto da visão banal da realidade, para
narrar uma vida interna, subjetiva.
110
Também o grotesco na prosa fialhiana vai dar conta do corpo grotesco,
ao se observar um corpo que extrapola os seus limites, apresentando-se com
defeitos e falhas, até porque “o grotesco ignora a superfície sem falha que
fecha e limita o corpo” (BAKHTIN, 1993, p.278), como já foi visto no corpo
“cortado em postas” da Ruiva, “espedaçado pelo (...) escalpelo” e como uma
“caveira fria, limpa de películas e cartilagens, branca e escarninha, cujas
maxilas escancaram” (AR, p.3, 96). O conto “Três cadáveres” apresenta a
imagem grotesca da decomposição cadavérica. Para mais, “A Ruiva” ainda
apresenta um outro tipo de grotesco, o da morte-renovação,
pois a própria
protagonista nascera no momento da morte da mãe, além da referência à
população que consome as hortaliças viçosas plantadas no cemitério. A
desrealização da realidade, provocada repentinamente, também é capaz de
dar forma ao anormal de caráter grotesco. É quando os mortos que Carolina
tantas vezes acariciou às escondidas na casa de observações, ganham vida e
se misturam ao mundo humano, buscando retribuir-lhe os afagos e desfilando
sorrisos sórdidos.
Já no conto “O Anão”, apresenta-se uma figura cara ao universo
grotesco; o anão, que pelo corpo físico se mostra diferente, destoante perante
outros homens, mostra sua disformidade física, que o faz claramente diferente
das imagens clássicas, preestabelecidas e perfeitas. Nesse caso, ele ainda
apresenta a feiúra, a semelhança a um animal, outro recurso bastante utilizado
no grotesco, e uma pequenez inverossímil.
Assim, Fialho deu forma e fisionomia a tudo, de seres incorpóreos a
animais demônios. Tudo na sua obra é visível e palpável. Seus narradores e
personagens não se furtam a uma nova forma de olhar; germina-lhes alguma
111
faculdade inesperada que os leva a ver as coisas sob um aspecto novo. Vimos,
por exemplo, corpos em estado de putrefação, ao redor dos quais as moscas
zumbem, ou vimos cadáveres fragmentados. Não se confundem, porém, em
sua obra, a sombra e a luz, pois é na penumbra que o narrador persiste,
perscrutando corpos marginais, à procura do inaudito.
A imaginação grotesca na prosa fialhiana deu forma ao ridículo, a todas
as enfermidades e feiúras. Emoldurou infernos e distribuiu máscaras.
Desenrolou seus demônios e monstros, sem lançar uma aliança com o “belo”,
talvez porque Fialho quis deformar a realidade e o grotesco foi decididamente
“o que-não-devia-existir” , mas existiu, fazendo-nos ver o que se vê com
estranheza.
Perceber e revelar tal universo revela algo de diabólico, pois destrói as
ordenações e abre um abismo lá onde o leitor julgava caminhar com
segurança. O grotesco destrói as ordenações e nos tira o chão de sob os pés.
Por isso a imaginação grotesca observada na escrita de Fialho pode ser vista
como uma “diabólica óptica deformante”, pois destrói qualquer ordem, qualquer
valor instituído, derruba barreiras, institui a anormalidade, numa época que o
melhor era olhar ou criar outro mundo.
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A IMAGINAÇÃO GROTESCA NA PROSA DE FIALHO DE ALMEIDA: