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TRADUTORES (ABRAPT-UFOP, Ouro Preto, de 7 a 10 de setembro de 2009)
O fantasma da ópera: das páginas para a tela
Natássia Guedes
(Universidade Federal da Bahia)
Resumo: Em 1910, Gaston Leroux escreve O fantasma da ópera. Um
século depois ainda é amplamente reescrito em diversos meios,
continuando presente em outras formas artísticas. No cinema, aparece
mais romântico, como reescreve Joel Schumacher (2004), ou
verdadeiramente aterrorizante, como mostra Rupert Julian na primeira
versão cinematográfica (1925). Assim, no trabalho “O fantasma da ópera:
das páginas para a tela”, buscamos discutir assuntos acerca da tradução
intersemiótica através de uma breve análise da tradução do texto de
Leroux para a versão no cinema mudo e em preto em branco: a versão
de Julian. Ao estudar o processo de adaptação da obra, pontuaremos as
escolhas do autor como manipulações (Lefevere, 2007), já que o filme
será considerado uma reescritura, como é toda tradução. As especificidades de cada meio também serão relevantes. O foco principal desta
análise estará sobre a construção da personagem do Fantasma.
O double bind, definido por Jacques Derrida, também será identificado
através de uma metáfora da tradução, que criamos a partir da história da
obra em questão. Este trabalho faz parte de uma pesquisa no Mestrado
em Letras e Linguística na Universidade Federal da Bahia, na qual, além
da adaptação de Julian, pretendemos estudar a de Schumacher (2004).
Palavras-chave: Tradução Intersemiótica; Reescritura; Manipulação.
No trabalho intitulado “O fantasma da ópera: das páginas para a
tela”, estudamos a adaptação do romance de Gaston Leroux (1910)
para as telas do cinema na versão cinematográfica de Rupert Julian, de
1925. A escolha desta obra se deve à sua larga reescritura interlingual e
intersemiótica (Jakobson, 2001). Desde 1910, o texto de Leroux tem
sido traduzido para as formas de peça teatral, musical, dança, música,
história em quadrinhos e mais de vinte filmes já foram produzidos. Por
isso, é o centro do corpus de análise da nossa pesquisa no Mestrado
em Letras e Linguística na Universidade Federal da Bahia, na qual
analisamos o papel da manipulação nas adaptações de Rupert Julian e
de Joel Schumacher (2004). Aqui, apresentamos um recorte do que
será feito.
Como toda tradução é uma manipulação (Lefevere, 2007), cada
reescritura manipula a história de O fantasma da ópera e o retrata mais
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ou menos sádico, romântico ou deformado, dependendo de fatores
como o gênero da obra, por exemplo, dos outros elementos textuais,
dos recursos e sentidos abordados pelo novo meio (Plaza, 2003), no
nosso caso, bem como de muitos outros fatores, como a patronagem e
o público do sistema de chegada (Lefevere, 2007). Assim, veremos que
Julian manipula o texto de forma a equilibrar ao gênero terror e a
encaixar-se no momento em que o cinema vivia.
Essa manipulação será feita pelo indivíduo conhecido como
tradutor, “um sujeito que participa de maneira efetiva na transformação e
produção de significados”, pois ele contribui ativamente no processo
através de “implantes”, “enxertos”, “promovendo uma espécie de dupla
tradução” (Ottoni, 2005, p. 127). É esse o tradutor que vemos no
processo de adaptação da obra que aqui analisamos: um tradutor que
transcria, como diz Haroldo de Campos (Plaza, 2003).
Na história que estudamos (e também em outras adaptações do
texto de Leroux às quais já tivemos acesso), esses “enxertos” e “cortes”,
poderíamos por assim dizer, acontecem principalmente acerca de três
assuntos: a arte, a beleza e o amor. A arte, pois o Fantasma é um gênio
da música, um ventríloquo, um arquiteto, um ilusionista e ao menos uma
dessas características será mantida nas adaptações que já pudemos
analisar. A beleza da arte, a beleza abrindo portas, quando Christine
com sua bela voz torna-se a cantora principal, a falta da beleza/a
deformação como o grande obstáculo para Erik atingir seus sonhos
profissionais e românticos (de gênio e homem, passa a Fantasma).
Finalmente, o amor: à música, entre duas pessoas, o amor não
correspondido, o amor como causa, como explicação e como solução
para todas as coisas, o que todos buscam ao fim de tudo.
Na adaptação de Julian isso não é diferente. Continuaremos
nossa análise com foco nesta adaptação. Seguiremos pela ficha técnica
de The phantom of the opera:
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Direção: Rupert Julian
Ano: 1925
Produção: Carl Laemmle, Universal Pictures
Roteiro adaptado: Raymond Schrock / Elliot Clawson
92 minutos
Erik, o Fantasma: Lon Chaney
Christine Daaé: Mary Philbin
Preto e branco, mudo
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As sequências finais foram dirigidas por Edward Sedgwick, que
ajudou na direção de todo o filme e assumiu o lugar de Julian no fim das
gravações, mas não tem o crédito como diretor. Muitos finais diferentes
para o filme foram filmados, mas o que possuímos foi o escolhido pela
produtora, no qual Erik morre ao se jogar no rio, depois de ser
perseguido por uma multidão enfurecida após fugir do teatro.
Nossa análise segue pela escolha do ator principal, o que pode
nos dizer muito. Lon Chaney, “o homem das mil faces”. Ele atuava em
muitos filmes de terror e a maioria de seus personagens era
assustadora ou horrenda. Entre eles, estão o deformado “Quasímodo”,
de O Corcunda de Notre Dame, de Wallace Worsley (1923), e o velho
“Fagin”, de Oliver Twist, de Frank Lloyd (1922). Chaney ficou famoso
por colaborar na direção e na sua própria maquiagem, na qual utilizava
grampos, linhas e objetos que machucavam. Costuma-se dizer que ele
atuava sentindo dor física devido à sua maquiagem. A lenda conta que a
maquiagem do Fantasma foi tão realista que provocou desmaios na sala
de cinema na sua estreia. Com a escolha desse ator, já não se espera
que o romance presente na história de Leroux permeie na tradução de
Julian.
O momento em que o filme foi realizado participa da manipulação
e colabora para a construção do cenário. Muitos filmes de terror
começaram a ser produzidos no início do século XX, principalmente com
a herança alemã. Podemos citar como exemplo O Gabinete do Doutor
Caligari, de Robert Wiene (1919), como também outros filmes de terror
não alemães da época: Nosferatu, o vampiro, de F. W. Murnau (1922),
Drácula, de Tod Browning (1931), Frankestein, de James Whale (1931),
e A Noiva de Frankestein, de James Whale (1935).
A mistura desse momento, com uma história que fornecia muitos
elementos para a construção de um filme de terror, e a manipulação que
sofreria o texto, resultaram em O fantasma da ópera de Julian.
É interessante observar que as adaptações cinematográficas de
O fantasma da ópera que já pudemos analisar são sempre creditadas
como tais e mantêm o mesmo título. Outra curiosidade sobre essas
adaptações é que a manipulação age ao redor de algumas marcas que
estarão sempre presentes. A história se passa em um teatro, há o
triângulo Fantasma – Christine – Raoul, a obsessão do protagonista
pela soprano a ponto de cometer crimes passionais, seu poder sobre
ela, sua reclusão devido à sua deformação e a máscara do Fantasma.
E assim acontece no filme de Julian. Ainda muitos outros pontos se
cruzam aqui, mas nosso interesse é como a história é manipulada, e
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nossa escolha para análise neste trabalho é exatamente a cena na qual
este símbolo, a máscara do Fantasma, é a “personagem” central. E aqui
fazemos um parêntese para chamar a atenção da importância desta na
história. A máscara foi de tal forma convencionada como símbolo de
O fantasma da ópera que muitos filmes decidiram usá-la em seus
cartazes como única imagem, e imediatamente entendemos de qual
história se trata. Por isso, a cena que escolhemos para analisar é a da
retirada da máscara do rosto do Fantasma.
No livro, quando Christine o vê sem a máscara pela primeira vez,
ele fica extremamente irritado e magoado, já que havia pedido que ela
jamais tocasse em sua máscara, e se sente humilhado quando ela vê
seu rosto horrendo. Ele diz que é um cadáver, que agora não a deixará
jamais; ela terá que conviver com aquele rosto deformado. Também
revela que seu pai jamais o viu e que sua mãe lhe deu sua primeira
máscara. Sua atitude é tempestuosa e são esses traços de horror e da
obsessão do Fantasma que serão mantidos por Julian na sua tradução,
pois condizem com o gênero do filme que realiza e com a personagem
que retrata.
Em seguida, ao se trancar no quarto e tocar o órgão, através da
música Christine entende a sua dor, entra em seu quarto, pede para ver
seu rosto e jura que a partir daquele momento só estremecerá ao
pensar no esplendor do seu gênio. Erik, o Fantasma, cai aos seus pés,
beija a barra de sua saia e faz juras de amor. Ela queima a sua máscara
e fica com ele por quinze dias, ao fim dos quais pede para retornar para
sua vida. Ele permite, mas não sem antes ameaçá-la.
Aqui vemos a face carente de Erik e a face piedosa de Christine,
o que será reescrito e manipulado por Julian, pois tal combinação não
interessa a um filme de terror. Apenas o fim da cena está em equilíbrio
com esse gênero e será mantido na tradução. Dessa forma, as
características românticas e dramáticas das personagens apresentadas
na continuação dessa passagem serão omitidas na reescritura de Julian
para que o terror seja central na história, o que acarretará na recriação
do Fantasma e de Christine.
Assim, no filme, a mesma cena mostra uma Christine horrorizada
ao ver o Fantasma sem a máscara, e ela não se sente tocada pela
situação. Ela cai no chão com sua mão em um pedido de afastamento e
podemos ler em seus lábios “Don’t, please” (Não, por favor). O
Fantasma segura sua cabeça e a obriga a olhar seu rosto. Ela pede
para ir embora e jura que será sua escrava, que não mais verá Raoul.
Ele permite que ela parta, mas antes ameaça matar os dois. O início da
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cena, o horror sentido pela jovem e o desfecho são o mesmo. Erik se
encosta à parede como que derrotado e ela continua aterrorizada, já
que se trata de um filme de terror e nenhuma piedade é sentida pela
jovem.
Ao selecionar as palavras de Leroux, Julian transforma os
significados, manipulando os sentidos. Em ambos textos, a máscara do
Fantasma é retirada sem seu consentimento, ele se irrita, mas permite
que ela volte para o “seu [dela] mundo”, ao fim, não sem antes
chantageá-la nas duas histórias. No filme, são omitidas as referências à
piedade ou ao romance para que o foco seja mantido no horror.
Uma das técnicas utilizadas por Julian para colaborar com a
construção de uma imagem de terror é colocar o rosto deformado do
Fantasma ocupando toda a tela e provocar no público a mesma
sensação de horror sentida por Christine, e não de pena ou piedade,
como também a música e a disposição das personagens. No exato
instante em que vemos o rosto deformado do Fantasma, ele levanta e
derruba Christine, que fica dois degraus abaixo dele, no chão, sentindose ameaçada e muito menor em comparação ao Fantasma, que
aparenta ser muito maior nesta cena. Essa impressão é enfatizada
quando ele levanta os braços e a câmera colabora fazendo a tomada de
cima para baixo, causando a sensação de que o Fantasma é
ameaçador, realmente um ser não digno de pena, mas de horror. Assim,
a empatia do espectador só pode ser dedicada a Christine.
Dessa forma, Christine (como o público) mostra apenas horror, já
que o Fantasma é uma figura aterrorizante e que lhe causa grande
repulsa, mesmo após ele parecer desolado e a música se tornar mais
dramática. Enquanto o leitor de Leroux é capaz de sentir piedade de
Erik, o espectador do filme de Julian divide do sentimento de repulsa
sentido por Christine devido à recriação de Julian.
Ao utilizar sua liberdade de coautor e através de cortes e enxertos
(de sua manipulação), Julian cria uma imagem muito mais típica de um
filme de terror. Manter todos os elementos da descrição de Leroux
causaria um desequilíbrio com relação ao gênero do filme que realizava;
por isso, é mais condizente que se atenha aos detalhes de terror do que
aos de romance, ou mesmo de drama, presentes no texto de Leroux.
Devemos lembrar que uma das razões de fazer um filme de terror era o
momento econômico que o cinema vivia (em busca de maior bilheteria),
ou seja, a questão lucrativa.
Construímos uma metáfora entre o Fantasma e a tradução, que
acreditamos resumir a nossa visão do que é a tradução. A relação do
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texto traduzido com seu texto-fonte é uma relação apaixonada, de
necessidade e rejeição, da mesma forma que é a relação do Fantasma
com a sua máscara. O Fantasma é o texto de partida, e a máscara que
ele usa é ele transformado, a sua tradução. É uma relação de
interdependência. A tradução é necessária e impossível, como a define
Jacques Derrida através do double bind (Ottoni, 2005). Para viver,
o Fantasma precisa da máscara. Onde nasceu, alguns conheceram sua
face, mas, para que o mundo o conhecesse, ele teria que usar a
máscara. O texto/Fantasma possui vontade própria, não é o pai do
Fantasma/autor que ditará seus passos. O pai desaparece ao seu
nascimento; da mesma maneira, há a morte do autor (Barthes, 1988).
O Fantasma quer mostrar a todos seu talento, sua música, porém sabe
que não será possível caso se apresente tal como é. De modo
semelhante ao que acontece com o texto, ele pode chegar até
determinado ponto sem a tradução, mas para aumentar seu alcance,
para que as pessoas o conheçam, tem que aceitá-la e desejá-la.
O texto quer rejeitar a tradução, mas deve aceitá-la, pois nela
reside sua chance de alçar voo e continuar a viver. Jacques Derrida
(1982, p. 169) fala sobre a traduziblidade do texto: “Um texto ‘só sobrevive se é, ao mesmo tempo, traduzível e intraduzível [...]. Totalmente
traduzível, ele desaparece como texto, como reescritura, como corpo da
língua. Totalmente intraduzível, mesmo no interior do que acreditamos
ser uma língua, ele morre logo’” (apud Michaud, 2005, p. 118)
Assim como o Fantasma, o texto é obrigado a aceitar a máscara,
mas não sem rejeitá-la a princípio. E apesar de não a querer
inicialmente, sua mãe é a primeira a despertar nele a consciência da
necessidade da máscara. Consciência tal, intrínseca à língua materna:
a mãe do Fantasma é a língua mãe, que sabe da importância da
tradução para que o texto ande por novos caminhos.
Após ser despertada no Fantasma a necessidade do uso da
máscara, ele mesmo passa a fabricá-las e decidir qual será utilizada em
cada situação. Por isso, aqui dividimos o Fantasma em dois, um será
seu corpo, outro, sua alma. Um irá vestir a máscara, enquanto outro irá
tecê-la. O tradutor é, então, a alma da tradução. Por isso, sua personalidade não pode ser ignorada.
Dessa forma, desde o surgimento do texto, ele já está fadado a
ser traduzido, já que a própria língua materna carrega a consciência
dessa necessidade, e o tradutor é a alma da tradução. O pai do
Fantasma não existe mais, como o autor do texto; este sim, o texto,
continua a existir, como suas traduções. Aqui verificamos o double bind:
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a necessidade e a impossibilidade da tradução (Ottoni, 2005). A máscara também precisa do original, pois sem ela não existiria, e ela é o
símbolo do Fantasma da Ópera. Ela é necessária para a existência do
Fantasma, mas é impossível sua existência por si só. A tradução deseja
apropriar-se do original (Derrida, 1985 apud Ottoni, 2005).
A tradução reescreve, remodela o texto, que fica por trás desta,
junto com seu tradutor, que deve se manter “alma”. E o Fantasma, como
a tradução, é incompreendido. O tradutor passa a ser o próprio fantasma do Fantasma.
Concluímos com uma citação de Ottoni (2005, p. 42-53), e
pedimos licença para reescrevê-la, substituindo “línguas” por
“linguagens”:
Só através do double bind um texto se faz outro ao
evidenciar que a diferença de significados não é privilégio
das diferenças e de diferentes línguas [linguagens], mas de
como essa diferença cria uma espécie de tradução
recíproca a partir da intervenção do tradutor, que não se
liberta da imposição e da intervenção das línguas
[linguagens] envolvidas na tradução.
Dessa forma, acreditamos tornar essa citação mais apropriada
não só para nosso estudo em tradução intersemiótica, mas também
para qualquer estudo em tradução na contemporaneidade, já que hoje
transcendemos as barreiras das línguas e muitas são as linguagens que
utilizamos para nos comunicar. Assim, podemos dizer que estamos em
um eterno trânsito entre meios.
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O FANTASMA DA ÓPERA. Direção: Dwight H. Little. Produção: Harry Alan
Towers. Roteiro: Duke Sandefur. Intérpretes: Robert Englund, Jill Schoelen, Alex
Hyde-White, Bill Nighy e outros. Manaus: Sonopress Rimo da Amazônia, 1989.
1 DVD (92 min.).
O FANTASMA DA ÓPERA. Direção: Tony Richardson. Produção: Ross Milloy.
Roteiro: Arthur Kopit. Intérpretes: Burt Lancaster, Teri Polo, Charles Dance e
outros. São Paulo: Cooperdisc, 1990. 1 DVD (180 min.).
O FANTASMA DA ÓPERA. Direção: Joel Schumacher. Produção: Odyssey
Entertainment / Andrew Lloyd Webber. Roteiro: Andrew Lloyd Webber.
Intérpretes: Gerard Butler, Emmy Rossum, Patrick Wilson, Minnie Driver e
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