Maria Telles Ribeiro
quarteto de cristal
a maleta
Entre as inúmeras vantagens de morar em fim de linha, a
de tomar um ônibus vazio à sua espera é sem dúvida das mais
reconfortantes. Mas nossa natureza ávida incorpora rapidamente essas pequenas dádivas do acaso, e era já com um ar de
acostumado, beirando a desfaçatez, que todas as manhãs eu
subia no ônibus vazio, sentando-me no meu lugar habitual, duas
filas atrás do chofer; ele, por sua vez, apossando-se do seu com
a mesma presteza do cavaleiro montando seu corcel e uma vez
instalados, eu contemplativo na minha janela, ele na sua sela,
engatamos a marcha dando início à nossa jornada.
Há alguns anos faço esse mesmo percurso para o trabalho.
Conheço de cor as paradas e de vista muitos dos companheiros
de viagem, na maioria gente simples como eu.
O jovem que logo adiante entrou não era nenhum deles. O
que chamou atenção não foi o fato de subir antes do ponto, coisa
corriqueira naquela altura, nem a maleta que tinha na mão. O
que estranhei foi sentar-se a meu lado. Neste início de trajeto
dispomos dos lugares e, embora este privilégio dure pouco,
causa espécie um cidadão entrar num ônibus vazio e sentar-se
justamente ao nosso lado. A menos que se trate de um suíço –
como todos sabem os suíços são disciplinados por natureza, nos
cinemas costumam preencher, na mais perfeita ordem, os claros da plateia do centro à periferia. Mas pelo visto ele nada tem
de um suíço, bem tropical nos seus trajes sumários e no jeito
um tanto desabusado de pousar a maleta entre nós, demarcando
seus territórios.
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Só então reparei na valise. Era cor havana, sanfonada, um
modelo antiquado como não se vê mais. Do fundo do passado
veio à lembrança a figura do tio paulista, domingo à noite se
despedindo, uma valise idêntica nas mãos. Vai tomar o trem das
nove, o trem azul, um luxo na época. Olho com uma ponta de
nostalgia e uma certa cautela também, vivemos tempos estranhos, quantos já não pagaram por um riso à toa, um olhar mais
insistente. Esta maleta pode não conter dólares que ninguém é
louco de levar dinheiro de mão beijada para o assaltante, mas
um objeto valioso, roubado, sabe-se lá.
E se resistira tão bem ao mercenarismo dos tempos, ereta e
altiva na sua postura vertical, o mesmo não acontecia com seu
dono, refestelado no banco, o braço forte sobre sua presa como
quem diz: “olhe lá não se atreva!” Detalhes não me escapam,
por dever de ofício fui me transformando num observador contumaz e se me vejo agora imprensado entre uma janela e uma
pasta... não é o que me acontece o tempo todo no escritório?
Em casa a solução veio tacitamente duplicando os objetos. Duas
geladeiras, dois freezers, dois aparelhos de som, duas televisões,
dois quartos. Minha vida é muito tacitamente.
O belo desse trajeto é a paisagem. Embora a mesma todos
os dias, aprendi a captar-lhe os matizes mais variados; hoje o
Cristo está encoberto e as águas da baía encapeladas, coisa rara.
Passei a anotar num caderno uma espécie de diário, não os fatos
aborrecidos do dia a dia, nem as bobagens que as pessoas falam,
mas as mutações delicadas da natureza.
– Hoje vai chover – disse Dandara ao separar minha roupa
de trabalho como costuma fazer pela manhã, deixando tudo
sobre a cama, a camisa combinando com o terno, a gravata com
a camisa. Na mocidade, Dandara foi uma mulher de uma beleza
impactante, de coxas macias e seios copiosos, mas ficou muito
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aquém das promessas, nem um filho me deu. Antes tivesse me
casado com Lucinha, esguia como uma japonesa, que nada prometia, mas cumpria, dando de saída àquele idiota do Telles um
belo par de gêmeos. Estivesse Dandara no meu lugar e esse moço
insolente não teria se sentado a meu lado, ela teria barrado seus
passos com grande estardalhaço. Dandara lá é mulher de levar
desaforos para casa como eu que levo todos os dias?
E se eu fosse o Alain meu colega, a situação se resolveria de
maneira diferente. Alain puxaria logo conversa com o vizinho
brindando-o com o seu fraseado irresistível de expressões eruditas, de preferência francesas. Alain é um homem de cultura
europeia, um crítico mordaz dos tristes tempos que vivemos.
“Só para nos atermos ao idioma”, diz ele. “Uma barbárie o que
está acontecendo. Tudo por nos afastarmos de nossas origens”.
E aí, Dandara sabendo onde ele quer chegar, salta em defesa
dos gringos e tudo o que devemos a eles, de Hollywood a essa
maravilhosa tecnologia.
– Vejam as entrevistas de emprego! Como são civilizados –
diz ela empurrando o congelado do nosso jantar no micro-ondas.
– O candidato apresenta seu currículo, diz quanto quer ganhar.
Aqui, se alguém pedir três mínimos, vai para o olho da rua.
Mas o fato de estar imprensado entre uma valise e uma
janela não me priva de reparar no meu vizinho. Incrível a soma
de informações que o olho humano pode captar! Os antigos
sabiam disso muito bem quando nos legaram em efígies memoráveis os perfis augustos dos Plinius e Antoninus, para ficar só
com os romanos. Mas se esse moço nada tem de suíço, muito
menos terá de romano, o cabelo escovinha nascendo no meio
da testa, um mau sinal a meu ver, o nariz afilado, este sim, um
perfeito divisor de caras. A boca não vejo nem quero, basta essa
concha acústica captando como uma câmera o menor dos meus
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movimentos. Na certa acordou aturdido, pouco afeito às madrugadas de julho, enfiando às pressas as roupas mornas da véspera
e atracando-se com a maleta que lhe confiaram. Pois é visível
que não lhe pertence. Objetos e donos prontamente se identificam, haja vista as pastas pretas que os executivos trazem coladas ao corpo. Mas esta aqui é diferente. Não se abrirá à toa, só
ao toque inconfundível de seu dono. Fosse minha estaria a salvo
nos joelhos, longe do alcance de terceiros. O que haverá dentro?
Algum objeto contundente apontado na minha direção?
Honni soit qui mal y pense, diria o Alain. Pouco a pouco fui
incorporando esses dizeres à minha maneira, bem entendido.
Alguns aprendi na hora, outros levaram algum tempo. Paris
vaut bien une messe é um deles. Por requerer um conhecimento
maior da bela história da França e uma certa empatia com aqueles Luíses todos, dos mignons aos santos, até chegar ao que mandou o papa às favas, uma proeza naqueles tempos.
O chofer até agora só parou para pegar um passageiro, este
seu comparsa, seu cúmplice naturalmente. Céus! Não é o Théo,
nem o Nando, nem o Brito que corre como um louco, mas é um
ás no volante. Tento decifrar seu rosto enigmático, o escafandrista se esquiva atrás da máscara. Sim, porque nessas alturas
navegamos em águas procelosas, profundas. Mas posso ver suas
mãos atracadas no volante, sua nuca poderosa.
De repente ele freia, brusco, e eu saco a minha primeira
conclusão: não é do ramo, não conhece os buracos da pista.
A valise resvala para o meu lado e eu, claro, me abstenho de
tocá-la, apertando-me ainda mais contra a janela, aspirando o ar
puro lá de fora. Imagine se tocaria num objeto que não é meu,
logo eu que tenho pelas coisas alheias o maior respeito. Está aí
um preceito divino que sigo à risca. Só quero mesmo o que é
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meu, fiquem todos com suas terras, suas Mercedes, suas coberturas de Ipanema!
Mas já que me deu esta chance poderia aproveitar e cruzar o Rubicão das pernas do meu vizinho, mas esse chofer lá é
homem de atender a campainha? Coisa que faço o tempo todo
no escritório, não só a campainha como aos carimbos insolentes que pespegam no alto dos processos: “pague-se”, “arquive-se”,
“publique-se”. Pago e arquivado assim sou eu. Quanto ao “publique-se” é o que estou tentando fazer agora.
E a valise? Estará recheada de heroína, ecstasy, crack, talões de
cheque dos laranjas das Ilhas Cayman? E se a polícia der uma blitz?
Nada mais fácil para esses dois homens do que me incriminar.
É isso aí, senhor policial, de há muito que estávamos de olho
nele. Só mesmo quem anda com uma maleta ridícula dessas...
E se poriam a rir debochados e, se por desencargo de consciência um dos policiais perguntasse pela valise sou capaz de titubear,
tais as saudades do meu tio paulista. E com a polícia já viu.
É tempo de me apresentar.
Meu nome é Ogadai. Um nome extravagante que tem suas
vantagens. Dispensa apresentações, apelidos, homônimos e até
sobrenome. As pessoas prestam atenção se você se chama Ogadai. Se estão escrevendo levantam os olhos conferindo com o
original.
– É com H?
– Com O de Olga sua mãe – respondo silenciosamente. Sou
muito de responder silenciosamente.
Mas um dia quis saber:
– Quem foi Ogadai, meu pai?
– Um destemido e valoroso guerreiro em seu tempo. Consolidou o império do pai, o Grande Khan. Seus exércitos glo-
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riosos avançaram sobre a China, ocuparam a Ásia quase toda,
invadiram a Rússia e entraram pela Europa adentro.
Fico só pensando que feitos heróicos os pais esperam de
seus filhos tão pequenos, coitadinhos, para arremessá-los às
estepes geladas da Ásia só parando às portas de Budapeste? E
meu pai, que diria hoje de mim, meu pai, eu que nunca passei
de Brás de Pina?
Para Dandara problemas que tais não impressionam. Dandara leva a vida plugada na televisão, uma bênção, eu passo ao
largo banhado por sua luz benfazeja. Só novelas temos três,
admiráveis! E ademais bonitos seriados, mesas-redondas, noticiários. Da telinha Dandara passa aos livros de autoajuda que
operam maravilhas segundo ela, e uma delas é fazer a coisa certa
na hora certa. Eu cá comigo tenho minhas dúvidas. Se já é difícil fazer a coisa certa imagine juntar a coisa e a hora. Aí Dandara se exalta, eu não entendi nada, os livros só tratam de situações-limite, não de rotina. E ao dizer essas palavras a sua voz se
reveste de entonações muito insultuosas. Não abro a boca que
casamento é uma coisa complicada, só perdura se um dos dois
sabe se calar. Só que deveríamos revezar. Mas não faz mal. Um
dia desses dou o troco.
Se fosse aplicar as ideias de Dandara, o certo seria descer já,
na marra. Mas não é a boa hora. Não neste viaduto.
O trânsito engarrafara. Nosso chofer levanta os braços deixando-os cair sobre o volante, dando mostras de grande irritação.
Ai que saudades do Brito! Aquele sim sabia correr, sabia pacientar.
Tão bom rapaz, o Brito! Numa hora dessas relaxava, puxava conversa. Olha. Se me safar dessa, juro que a primeira coisa que vou
fazer é ir a sua casa. Vou levar um champanhe que tenho guardado. Quero conhecer a mulher do Brito, os filhinhos do Brito.
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Pensando bem, talvez esta seja a boa hora, correndo o risco
de passar por um meliante e levar um tiro nas costas. Quem
dispara por um viaduto acima só pode ser um alucinado, suicidar-se é que não vai, nem fechar nenhum negócio urgente.
homem se atira da janela de ônibus na subida do viaduto.
As pessoas não vão entender, vão ler duas vezes. Atirou-se da
janela ou do viaduto? Sumiu? Morreu? Só os jornais dispõem
dessa coisa genial que é a manchete. Manchete dá a notícia, não
te amarra. Lê quem quer. Como respeita teu livre arbítrio. Tão
diferente dos livros, filmes e peças de teatro que te enrolam traiçoeiras, quando vês está metamorfoseado em barata ou coisa
que o valha! Por isso amo os jornais, compro todos, leio todos,
quero dizer, as manchetes.
Nosso chofer toma um rumo diferente. E agora? Um pensamento instigante se insinua na minha mente. Será que sempre
estive na jogada deles? De pura distração entrando num ônibus que não é o meu e eles, por sua vez, me tomando como o
Terceiro Homem que conheceriam na hora. O chefe é famoso
pelo seu estilo maquiavélico, costuma trazer seus homens de
rédeas curtas e na absoluta ignorância de seus próximos passos.
Só assim se explica o fato de alguém entrar num ônibus vazio e
sentar-se a meu lado. O olhar que me lançou era de reconhecimento, não de estranheza.
Sei o que vai acontecer. Saco do bolso o “diário da natureza”,
não quero perder nenhum detalhe. Que impulso é este que nos
leva a perenizar os momentos fugazes de nossas vidas, a eternidade que nos aguarda não é o bastante? E eis-me nostálgico,
como os namorados que desenham nos troncos das árvores
corações entrelaçados, como o náufrago que esconde o manuscrito na garrafa lançando-a ao mar.
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O ato de escrever enerva meu vizinho que recolhe as pernas, sentando-se rígido. Nossas posições agora se invertem, é a
sua vez de me olhar de viés. E embora meu perfil seja dos mais
modestos, nada tendo da majestade de um Frederico da Prússia
nem da realeza de um Henrique da Baviera, faço por merecer
adiantando uma trama imaginária: O chofer para no meio do
túnel. Descemos. A maleta fica. Andamos num passo apertado
sem correr para não chamar atenção. O jovem na frente, eu no
meio, o chofer atrás.
Passa um Fiat Palio vermelho, passa um Fiat Uno preto.
Duas Paratis, uma van escolar. Passa um Cadillac 66 cor-derosa do rei do rock, Elvis Presley. Passa uma ambulância. Sorte
deles.
Olho para trás para ver o clarão. Amanhã nos jornais, a
manchete: ônibus incendiado no meio do túnel. Talvez nem dê
manchete, é fato corriqueiro.
Hipótese descartável, muito pouco convincente.
Meu vizinho tosse, mas não é para marcar presença, é algo
forte que vem de suas entranhas. Como todo homem que vive
no limite de seus instintos terá suas cismas, suas pautas de conduta. Não vai na conversa de um idiota desses que no último da
hora, no pique do maior suspense, se põe a ler e a escrever, coisas que abomina.
Guardo o diário. Não convém irritá-lo. Após o túnel descemos, desta vez para valer. O caminhar me faz bem, a natureza surpreendendo com uma névoa espessa que não havia na
Zona Sul. Andamos um bom tempo em silêncio subindo ruelas
estreitas até chegar à casa. Como é patética uma casa vazia. E
esta, então, com suas janelas estilhaçadas, a porta escancarada
para o terreno baldio. Na saleta escura, o mesmo ar de descaso
e abandono. Empilhados num canto, caixas de papelão e jor18
nais velhos, as cadeiras espalhadas. Mas há roupa de homem e
mulher secando no varal.
Com um suspiro de alívio, o jovem pousa a valise sobre a
mesa e retira o celular do bolso. Missão cumprida. O chofer vai
até a cozinha e volta com uma lata de cerveja na mão. O detalhe
da cerveja gelada aumenta minha ansiedade. Por incrível que
pareça até agora o silêncio entre nós não foi rompido. Melhor
assim. Uma palavra, um gesto descabido nesta atmosfera volátil
pode ser mais perigoso do que o riscar de um fósforo.
Que esperam de mim esses homens?
Instintivamente busco refúgio nas coisas sentando-me
numa cadeira desgarrada antes que vejam o tremor de minhas
pernas. Que não tenho o physique du rôle não tenho mesmo.
Nem deste nem de outro qualquer. Mas um idiota pode se sair
bem no seu papel. Não seria a primeira vez. Sei o que fazer com
a dinheirama que tem nessa maleta. Já vi a cena no cinema muitas vezes. E um idiota, que diabos, não é necessariamente um
covarde, aí está a História para contar. Usar de subterfúgios,
alegar mal-entendidos é que não farei. Inocência, então, nem
pensar. Um estorvo, inocência. A última coisa que se espera de
alguém numa hora dessas.
O jovem se plantou no meio da sala, o rádio nas mãos. Só
que esta não me parece a hora nem o lugar para ficar parado assobiando. Prefiro o chofer às voltas com sua cerveja. Um homem
é sempre bem melhor depois de uma bebida. O jovem aumenta
o volume do som. É uma ária de ópera. Belíssima. Reconheço
de imediato a voz de Pavarotti. O chofer sorve sua bebida em
pequenos goles, devagar. Milagre para mim é isso: Que-gelidamanina ecoando num casebre miserável. Ogadai, cuidado. Lembre-se! Aqueles belos oficiais das ss também aplaudiam Don
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Giovanni de pé, dos seus camarotes dourados, e partiam para as
Longas Noites de Punhais.
Quando o chofer consulta seu relógio o telefone toca. Ação
cronometrada à distância. O jovem desliga o rádio e atende. O
chofer atira pela janela a lata vazia e parte de minha atenção se
desloca para o tilintar que se vai perdendo ao longe de pedra em
pedra. O jovem responde ao interlocutor invisível com pequenos acenos de cabeça, olhando na minha direção. Sim, sim, suas
ordens serão cumpridas. O jovem está olhando muito para mim.
Quando desligar vai me mandar abrir a maleta. E eu, ora! Sempre quis muito saber o que havia dentro da maleta havana do
meu tio paulista.
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