A Vida Econômica e a Realização da Moral
(extraído para fins didáticos de Ética – Adolfo Sánchez Vázquez)
A vida econômica da sociedade compreende, em primeiro lugar, a produção
material de bens destinados a satisfazer as necessidades humanas vitais:
alimentar-se, vestir-se, morar, etc. O desenvolvimento da produção – desde a pobre
e limitada dos tempos primitivos até a altamente mecanizada e automatizada dos
nossos tempos – delimita, em cada sociedade e em cada época, o nível alcançado
pelo homem no domínio sobre a natureza. Mas os indivíduos não produzem
isoladamente, e sim associados ou organizados de certo modo para poder dominar,
com o seu trabalho, as forças naturais e fazê-Ias servir a si. Para produzir, contraem
certas relações que se referem tanto ao modo de participar na própria produção
(divisão social do trabalho), como à forma de propriedade (privada ou social) ou à
maneira de distribuir a riqueza social. Este conjunto de relações dos homens
constitui a base econômica da sociedade e recebe, desde Marx, o nome de
relações de produção.
Por conseguinte, o econômico compreende tanto a própria produção material
como as relações sociais que os homens nela contraem. Os dois aspectos
constituem uma totalidade ou modo de produção determinado que muda
historicamente: comunidade primitiva, modo asiático de produção, escravidão,
feudalismo, capitalismo e socialismo.
A vida econômica da sociedade é tão humana como qualquer outra forma de
vida, pois o homem aparece necessariamente nos dois aspectos antes assinalados:
a) na produção material, 1) na medida em que, como trabalhador, é uma força
produtiva, porque exerce sua capacidade ou força de trabalho (muscular e
intelectual); 2) na medida em que a produção - como criação de objetos úteis que
satisfazem necessidades humanas vitais - só tem sentido em relação a ele; b) nas
relações de produção, enquanto estas são, em definitivo, relações sociais,
humanas.
Por esta presença do homem, a economia não pode deixar de estar em relação
com a moral. Os problemas morais que a vida econômica propõe são duplos,
porque surgem precisamente na dupla inserção - antes assinalada - do homem na
produção: como força produtiva e como sujeito das relações de produção.
Como força produtiva, o homem é um ser que trabalha: isto é, realiza uma
atividade transformadora sobre uma matéria ou um objeto. O trabalho é uma
atividade prática consciente e como tal tem um aspecto objetivo, prático, porque é a
transformação de uma matéria com o concurso das mãos e dos músculos; e um
aspecto subjetivo, espiritual, dado que supõe necessariamente a intervenção de
uma consciência que traça fins e projetos, destinados a materializar-se nos
produtos de trabalho. Mas o homem não só trabalha com as mãos, e sim com
instrumentos e máquinas que vêm a ser seu prolongamento e aliviam o seu esforço,
ao mesmo tempo em que aumentam consideravelmente a sua produtividade.
As forças produtivas compreendem, pois, o homem que trabalha e os
instrumentos ou meios de que se serve no seu trabalho. Com respeito às forças
produtivas, apresentam-se dois graves problemas morais que não podem ser
descuidados: 1) como o homem é afetado pelo seu trabalho? (eleva-o como ser
humano ou degrada-o?); 2) como o uso dos meios ou instrumentos de produção
afetam o trabalhador na sua verdadeira natureza (as máquinas e a técnica em
geral)? Do ponto de vista moral, as relações de produção - isto é, as formas de
propriedade e de distribuição - levantam uma série de questões morais que
interessam particularmente à justiça social (posse e espoliação; distribuição da
riqueza produzida segundo a propriedade de que se dispõe, a capacidade
intelectual e manual desenvolvida ou a necessidade que se tem).
Os problemas morais da vida econômica surgem necessariamente quando se
transforma o seu sujeito - como produtor, consumidor e suporte da produção - num
simples "homem econômico", isto é, numa simples peça de um mecanismo ou de
um sistema econômico, deixando de lado por completo as conseqüências que para
ele como ser humano concreto - traz o seu modo de integrar-se no próprio sistema.
Somente reduzindo o humano ao econômico ou fazendo o homem depender da
economia - como pretendiam os economistas clássicos ingleses - a vida econômica
deixa de ter implicações morais. Mas esta exclusão dos problemas morais do
âmbito da vida econômica não é possível pela simples razão de que, na realidade,
não existe tal "homem econômico"; este é somente uma abstração, porque não
pode ser isolado do homem concreto, real. Por conseguinte, o modo como o
operário trabalha, o uso da máquina e a técnica e o tipo de relações sociais em que
se efetuam a produção e o consumo não podem deixar de ter conseqüências para
ele como homem real.
Significação moral do trabalho humano - o trabalho implica uma transformação
prática da natureza externa e, como seu resultado, surge um mundo de produtos
que somente existe pelo e para o homem. No trabalho, este desenvolve a sua
capacidade criadora fazendo surgir um mundo de objetos nos quais, concretizando
seus fins e seus projetos, imprime seu vestígio ou marca como ser humano. Por
isso, no trabalho, ao mesmo tempo em que humaniza a natureza externa, o homem
humaniza a si mesmo, isto é, desenvolve e eleva as suas forças criadoras latentes.
O trabalho responde, pois, a uma necessidade especificamente humana e, por isso,
a rigor, somente o homem trabalha para substituir humanamente mediante a
criação de um mundo de objetos úteis. Por ser uma atividade criadora, é algo
valioso, mas o seu valor assenta, antes de tudo, no seu poder de humanização. Daí
também o seu valor moral: o homem deve trabalhar para ser verdadeiramente
homem. Quem não trabalha, vivendo antes à custa do trabalho dos outros, possui
uma humanidade que não lhe pertence, isto é, que ele pessoalmente não contribuiu
para conquistar e enriquecer. Uma sociedade vale moralmente o que nela vale o
trabalho como atividade propriamente humana.
Este valor do trabalho era desconhecido na Antigüidade. Na Grécia clássica, por
exemplo, o valioso era o ócio de uma minoria de homens livres que, graças à sua
liberação do trabalho físico, podia entregar-se à teoria ou contemplação. Nos
tempos modernos, canta-se o trabalho como fonte de riqueza e se louva a
laboriosidade e suas virtudes respectivas (abstinência, frugalidade etc.). As
conseqüências negativas para o trabalhador - miséria, exploração, enfermidades
etc. - são consideradas naturais ou inevitáveis. O trabalhador interessa enquanto
"homem econômico", ou produtor de lucros.
Nestas condições, que são características de uma economia na qual a produção
não está a serviço do homem ou da sociedade inteira, o operário não pode ver no
seu trabalho uma atividade realmente sua, já que ela o empobrece material e
espiritualmente; seus produtos deixam de ser uma expressão ou objetivação de
suas forças criadoras e se lhe apresentam como objetos estranhos ou hostis, com
os quais não pode estabelecer uma relação propriamente humana. Tal é o
fenômeno social do trabalho alienado. A utilização de instrumentos de produção
mais perfeitos - na fase da indústria mecanizada - e, com ela, a divisão cada vez
mais parcelada das operações do trabalho, que culmina no trabalho em série, não
fazem senão alienar cada vez mais o operário. O trabalho se transforma numa
atividade monótona, impessoal, mecânica, cuja finalidade lhe é alheia e que realiza
como uma penosa atividade necessária para subsistir.
O trabalho perde assim o seu conteúdo vital e criador, propriamente humano, e
com isso se atenua também a sua significação moral. Mas esta perversão da
essência e do valor humano e moral do trabalho não pode desaparecer enquanto
subsistir o núcleo da sua alienação: a contradição entre a sua finalidade interna
(produzir para o homem) e a sua finalidade externa (produzir para o capital). O
trabalho pode recuperar o seu verdadeiro valor somente quando a sua origem não
mais estiver na imperiosa necessidade de subsistir ou exclusivamente num estímulo
material - por mais elevado que seja - que o transforma numa atividade puramente
utilitária, mas quando a sua fonte estiver no estímulo moral que o ponha a serviço
da comunidade inteira.
Moral e Consumo - Nas sociedades altamente industrializadas e naquelas
menos desenvolvidas, que se regem também pela lei da mais-valia, a alienação não
só afeta o trabalhador, mas, sob outras formas, estende-se a amplos setores
sociais. Trata-se da alienação do consumidor. As relações entre produção e
consumo se subordinam também às exigências da obtenção dos maiores lucros, e,
por este motivo, não se produz para satisfazer as necessidades normais do
consumidor, mas para atender a necessidades nele criadas artificialmente, com a
finalidade de ampliar a colocação dos artigos fabricados. O "homem econômico"
não é somente o produtor, mas o consumidor sujeito a uma nova e particular forma
de alienação.
O consumidor tem necessidades que não são propriamente suas e os produtos
que adquire não são realmente queridos por ele. Sob a influência de uma
publicidade insistente e organizada, e seduzido pelas refinadas e veladas técnicas
de persuasão, o consumidor se defronta com um produto que lhe agrada e fascina e
acaba por comprar aquilo que se impõe à sua vontade, independentemente de
precisar ou não. Deste modo, as necessidades do homem concreto são
manipuladas para que consuma não o que satisfaz as suas reais necessidades,
mas as dos outros. Como na produção, também no consumo o homem real já não
pertence a si mesmo, mas àqueles que o manipulam ou persuadem de um modo
sutil.
Esta manipulação, que atinge a maior parte da população, ao controlar a sua
aquisição dos produtos mais variados - desde os gêneros alimentícios até as obras
de arte -, traduz-se nos indivíduos numa perda da sua capacidade de decisão
pessoal e no aproveitamento da sua falta de decisão, ignorância ou fraqueza para
fins alheios ou estranhos, que lhe são apresentados como se fossem seus. Assim o
consumidor é considerado como uma fortaleza - mais ou menos firme - cuja
resistência deve ser vencida sob a investida da publicidade e das técnicas da
persuasão oculta. Exerce-se assim uma coação externa, que se interioriza como
uma necessidade pessoal. Nessa sutil submissão, não declarada, do consumidor
aos manipuladores de consciências, minam-se as condições indispensáveis para
que o sujeito escolha e decida livre e conscientemente. Desse modo, esta
manipulação do consumidor é profundamente imoral, e por duas razões
fundamentais: 1a) porque o homem, como consumidor, é rebaixado à condição de
coisa ou objeto que se pode manipular, passando por cima de sua consciência e de
sua vontade; 2a) porque, impedindo que escolha e decida livre e conscientemente,
minam-se as próprias bases do ato moral e, deste modo, restringe-se o próprio
domínio da moral.
Avaliação Moral da Vida Econômica - Enquanto cada indivíduo estiver inserido,
de uma maneira ou de outra, na vida econômica (quer como produtor, quer como
consumidor), a realização da moral não pode deixar de ser afetada
consideravelmente, num sentido ou no outro, pelas relações econômicas
dominantes. Contudo, a vida econômica não influi somente desta maneira na
realização da moral, e tem por isso uma significação moral, mas também influi
reclamando uma moral à sua altura. Assim, por exemplo, numa sociedade na qual o
trabalho é antes de tudo meio para subsistir e não uma necessidade humana vital,
na qual domina o culto do dinheiro e na qual um sujeito é pelo que possui
privadamente, criam-se as condições favoráveis para que qualquer um aspire a
satisfazer os seus interesses mais pessoais, à custa dos demais. Fortalecem-se os
impulsos individualistas ou egoístas, não porque correspondam a uma suposta
natureza universal do homem, mas porque assim exige um sistema econômico no
qual a segurança pessoal encontra-se tão-somente na propriedade privada. A
economia tem, portanto, a sua moral apropriada - a do egoísmo - e esta impregna a
sociedade por todos os seus poros.
Uma nova vida econômica, sem alienação do produtor nem do consumidor,
porque a produção e o consumo estão de fato a serviço do homem, torna-se assim
condição necessária - ainda que não suficiente _ para uma moral superior, na qual
o bem de cada um se combine com o bem da comunidade.
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Economia e Realização Moral