Ruptura e continuidade nas instituições judiciárias do Brasil
Joanino: um olhar panorâmico sobre o direito brasileiro do
início do século XIX
Mariana Armond Dias Paes
João Vitor Rodrigues Loureiro
1. Considerações iniciais
Antes de se traçar uma linha da organização do direito vigente
na colônia brasileira, é necessário ressaltar que Portugal procurou
reproduzir na colônia os institutos que compunham a sua organização
estatal. Os portugueses implantaram no Brasil uma administração
que era apenas uma continuidade do que já estava instituído na
metrópole.
Não
houve
uma
preocupação
em
se
adaptar
as
instituições portuguesas à realidade colonial.
Conceitos como direito público, direito privado, administração,
jurisdição, separação de poderes e funções estatais não eram
princípios
que
norteavam
as
estruturas
políticas
dos
Estados
europeus do período e que, portanto, também não estavam presentes
no funcionamento dos poderes do Brasil Colonial.
Durante o período colonial brasileiro, não havia uma nítida
separação entre administração e jurisdição. Os órgãos e instituições
que compunham o aparato estatal colonial, assim como seus agentes,
exerciam ora funções administrativas, ora jurisdicionais.
O Estado, por sua vez, era visto como uma entidade universal,
indivisível,
que
abrangia
todos
os
aspectos
e
manifestações
individuais dos cidadãos. Não se fazia uma distinção clara entre
Direito Público e Direito Privado. A esfera pública e a esfera privada
se imiscuíam a todo momento. Ressalta Caio Prado Júnior:
Todas estas noções se consideram hoje “princípios
científicos”, o que quer dizer, dados absolutos,
universais.
Rejeita-los
na
pratica,
na
regulamentação jurídica de uma sociedade, naquilo
que se chamou direito positivo, constitui perante a
“ciência jurídica” moderna, um “erro”; da mesma
natureza e tão grave como seria o do arquiteto que
planejasse uma construção sem atenção às leis da
gravidade. Mas o fato é que não era assim
entendido então, naquela monarquia portuguesa
do séc. XVIII de que fazíamos parte. (PRADO JR.:
1994, p. 298)
O judiciário brasileiro anteriormente à chegada de D. João ao
Brasil, era estruturado de forma hierárquica, sendo o Rei o chefe
supremo.
Abaixo
do
monarca
estavam
situados
os
Tribunais
Superiores, que se encontravam em Portugal. Eram a Casa da
Suplicação de Lisboa, a Mesa da Consciência e Ordens e a Mesa do
Desembargo do Paço. Na colônia, as instâncias recursais eram a
Relação da Bahia e a Relação do Rio de Janeiro. Subordinadas às
relações, estavam as Juntas de Justiça.
A primeira instância era composta por ouvidores, juízes de fora,
juízes ordinários, juízes de órfãos e juízes de vintena. Os ouvidores,
além
de
atribuições
administrativas,
julgavam
ações
em
que
figurassem como partes outros juizes, procuradores, tabeliães,
fidalgos e abades. Também conhecia dos agravos e das apelações. Os
juízes de fora eram nomeados pelo poder central e substituíam os
juízes ordinários em causas de maior valor que versassem sobre bens
móveis ou imóveis. Os juízes ordinários eram eleitos entre os
chamados “homens bons” e tinham a função de julgar os processos
cíveis e criminais. Já os juízes de órfãos eram responsáveis pelos
processos de inventário, partilha, tutela, curatela ou ações que
envolvessem menores ou incapazes. As causas de pequeno valor e
complexidade
eram
julgadas
pelos
juízes
de
vintena,
eleitos
anualmente pela Câmara de Vereadores.
Com o crescimento das cidades, ocorreu uma especialização
das funções exercidas pelos agentes estatais. Começou a se delinear
uma separação entre administração e jurisdição. O juiz deixou de ser
um proprietário local, passou a “vir de fora” e a exercer a função em
caráter fixo e permanente. Os serventuários da justiça também
passaram a ter seus rendimentos aumentados e começaram a se
sustentar apenas com o salário do cargo, sem necessidade de exercer
outras funções. Nasce a figura do advogado e do solicitador, que
passam a ser considerados essenciais no exercício da jurisdição.
Ressalte-se, ainda, que o direito colonial atuava na sociedade
mais por intermédio dos usos e costumes locais do que pela própria
legislação, a qual era desconexa, repleta de particularidades e
casuísmos e não se constituía em um todo lógico. As Ordenações
Filipinas
eram
o
principal
texto
legal.
Porém,
as
ordenações
anteriores não haviam sido revogadas e havia um imenso número de
legislação extravagante. A legislação produzida visava unicamente a
satisfazer
as
necessidades
imediatas,
sendo
as
leis
aplicadas
uniformemente no tempo e no espaço. Eram, ainda, alheias à
realidade e às particularidades de cada região, o que contribuiu para
que fossem, muitas vezes, ignoradas pela população local.
A grande quantidade de leis vigentes, a falta de conexão lógica
entre elas e sua distância da realidade fática e o fato de que a justiça
colonial era cara, morosa e inacessível à grande maioria da população
colonial foram aspectos que contribuíram sensivelmente para a falta
de eficácia do direito.
2. Agentes, processos e o Direito.
Foi diante de tal contexto, que a cidade do Rio de Janeiro
encarou, após a chegada da família real, uma realidade que não
estava restrita à mudança do quadro institucional: os novos Tribunais
então criados representavam a nova configuração de poder na
colônia, numa transplantação evidente não apenas de órgãos, mas
sobretudo, de pessoas e relações decorrentes de organizações sociais
até então não presentes no Brasil.
A alteração do quadro institucional do Poder Judiciário foi
relevante para mudanças posteriores, advindas de uma progressiva
especialização da justiça e de suas funções, tanto em razão do
fortalecimento das relações evidenciadoras de privilégios, uma vez
sediada a corte portuguesa e toda sua composição, quanto da relativa
segurança oferecida por instâncias jurisdicionais mais complexas,
cujo funcionamento não tinha por fundamento oferecer garantias
como
devido processo legal e revisão judicial mas, acima de tudo,
favorecer aqueles que pudessem arcar com os ônus da Justiça, dando
respostas oficiais, advindas da boca do Estado, a seus pleitos.
Tal especialização da Justiça pôde ser observada, por exemplo,
na criação de órgãos que, em última instância, eram responsáveis por
oferecer às elites locais dirigentes, soluções imediatas a seus
problemas. A solução jurídica, originada em tais órgãos, nada mais
representava que um adicional ao sistema de concessão de graças e
mercês, vigente em sociedades coloniais de Antigo Regime.
A sociedade de corte encontrava visivelmente marcada por
concessões advindas do rei, capazes de revogar leis e distribuir a
cada
um
sua
pertença,
alterando
estamentos
e
ordens
naturais.(HESPANHA: 2005, p.6) A realeza, despojada de suas
pertenças, ainda conservava, no momento de sua chegada, sua honra
e seu caráter sagrado, que lhe conferiam o poder de transferir aos
súditos liberalidades capazes de alterar suas condições, em troca de
favores ou compromissos pessoais. Fato que nada foi desconhecido
no Brasil joanino, conforme ressalta MALERBA:
Ao franquear largamente mercês a seus vassalos,
dom João não inaugurou no Brasil nenhuma prática
que já não fosse conhecida no reino. Pagou com
honrarias e distinções a todos que o assistiram.
Para contemplar e remunerar a lealdade dos
serviços relevantes dos que com ele se arriscaram
na fuga redentora, ressuscitou com um decreto a
Ordem da Torre e Espada(...) (MALERBA, 2000, p.
213)
A obra de governar estava, neste espaço, muito próximo do
ofício de julgar, mesmo porque a concessão de cargos públicos e
honrarias das mais diversas dependia de atos de liberalidade do rei, o
qual via por necessário e imprescindível criar uma classe de
magistrados fiéis e partícipes do processo de
rearticulação da
engrenagem governativa joanina.(GOUVÊA: 2005, p. 723)
Tal
aspecto
será
decisivo
na
formação
de
uma
elite
correspondente aos interesses da realeza portuguesa e às bases da
instalação do regime monárquico no Brasil independente, uma vez
ocorrida uma absorção para o funcionamento das instituições, de
hábitos e de concessões fundadores de uma ordem de fidelidade e
compromisso.
Nesse
aspecto, tais
relações se
constituem
em
instrumentos do poder, oferecendo uma relativa segurança das
instituições e de seu funcionamento. Era necessário acomodar o
séquito real, e mantê-lo.(MALERBA: 2000, p. 232)
Para se ter uma idéia da continuidade de uma chamada
economia e espaço de relações de graça e mercê, em 22 de abril de
1808, foi criado o ofício de Escrivão do Registro das Mercês do Estado
do Brasil, no âmbito da Real Câmara, para “fazer constar, a todo
tempo, com a legalidade necessária às mercês” (GOUVÊA: 2005, p.
720). Essa legalidade encontra-se em muito distante do paradigma
da lei que, conforme se vê na história jurídica do ocidente, assume
seu papel de importância especialmente após as revoluções liberais
iniciadas no século XVIII. Na realidade colonial brasileira, e no
período ora analisado, a lei nada mais representava que parte de um
sistema de direito comum, jamais se sobrepujando às ordens
particulares, ao costume local; abaixo do plano do reino, proliferavam
as ordens jurídicas particulares, todas elas protegidas pela regra da
preferência do particular sobre o geral. (HESPANHA: 2005, p. 05). A
lei e a legalidade, neste sentido, encontram respaldo muito mais
numa oficialidade, numa assunção de formas e fórmulas produzidas
pelo Poder real, verdadeira mens legislatoris, por meio do registro de
seus atos de liberalidade e concessões, do que na conformidade com
qualquer
norma
ou
ordem
superior
de
direito.
Os
atos
de
administração e jurisdição, ainda mixados entre si em forma e em
competência de produção, passavam por uma formalização crescente,
cada vez mais registrados por escrito (GOUVÊA:2005, p. 712)
Assim, o direito está, neste período de revisão das estruturas
coloniais, ainda intimamente ligado à concepção de uma justiça
natural, uma ordem que dependesse de atos de autoridade humana,
de um poder capaz de restabelecer a ordem, concedendo a cada um
aquilo que lhe pertencesse. Tal pensamento atinge outros grupos;
evidentemente a presença de uma nobreza na terra brasileira, reforça
o
fetiche
de
grupos
sociais
locais
por
títulos,
honrarias
e
condecorações, transformando a noção de virtude, antes estritamente
ligada às condições de nascimento e de modo diferente percebida nas
sociedades ibéricas de corte, conforme leciona HOLANDA:
Por
estranho
que
pareça,
a
própria
ânsia
exibicionista dos brasões, a profusão de nobiliários
e livros de linhagem constituem, em verdade, uma
das
faces
da
incoercível
tendência
para
o
nivelamento das classes, que ainda tomam por
medida
certos
longamente
padrões
estabelecidos
do
e
prestígio
social
estereotipados.
A
presunção de fidalguia é requerida por costumes
ancestrais que, em substância, já não respondem a
condições do tempo, embora persistam nas suas
exterioridades. A verdadeira, a autêntica nobreza
já não precisa transcender ao indivíduo; há de
depender das suas forças e capacidades, pois mais
vale a eminência própria do que a herdada. A
abundância dos bens da fortuna, os altos feitos e
as altas virtudes, origem e manancial de todas as
grandezas, suprem vantajosamente a prosápia de
sangue. (HOLANDA: 1963, pp 09-10)
A administração joanina, evidenciando a cultura de privilégios
no Brasil, criou o chamado Conselho Supremo Militar, o Conselho de
Justiça e os Juízos especiais da Santa Casa de Misericórdia, o Juízo
conservador dos Privilégios do Comércio e Juízo dos Falidos, para
citar
alguns
exemplos,
conferindo
claramente
jurisdições
a
especialidades distintas, a fim de favorecer segmentos sociais
também distintos ou a fim de outorgar novos espaços em que o
poder jurisdicional não alcançava. Exemplo mais que significativo
dessas jurisdições especiais estava, conforme afirma CASTRO, numa
das mais “estranhas anomalias jurídicas que se tem conhecimento na
Idade Moderna e Contemporânea: o Juiz Conservador da Nação
Britânica”(CASTRO: 2007, p. 339), que possuía jurisdição exclusiva
sobre os cidadãos britânicos estabelecidos no Brasil. Ora, um cargo
de
tal
natureza
demonstrava
a
unilateralidade
das
relações
diplomáticas da Coroa Portuguesa, que criara verdadeiro Juízo de
Foro privilegiado, favorecendo diretamente sua nação aliada, a qual
deveria oferecer, em contrapartida, segundo o Tratado de 1810, a
compensação desta Concessão, fato que jamais fora observado.
Some-se a este painel de especialização judiciária e de controle
de
concessões
e
liberalidades,
o
acentuado
processo
de
intelectualização que se verificava no Brasil, com a fundação de
escolas superiores por D. João VI –
apesar de ainda não ter sido
fundado nenhum curso de Direito no país, o que se verificaria anos
mais tarde, após a independência (1827), a criação da Biblioteca
Nacional, a chegada de missões artísticas e científicas estrangeiras, a
fundação da Imprensa Régia e tantas outras políticas levadas a cabo
foram fundamentais à circulação de novas idéias entre as elites
brasileiras. Elites que compunham, em grande parte, o quadro de
magistrados, cuja formação se dava em Coimbra, significativamente
transformada no século XVIII, após as reformas pombalinas. É esse
quadro de juristas letrados que criará os cursos jurídicos nacionais
anos mais tarde, e dará novos contornos à própria história da
independência política nacional.
3. Instituições.
O Rio de Janeiro, capital da colônia desde 1763, por obra da
administração pombalina, passou por uma completa reestruturação
após a chegada da família real. A coroa evocou naturalmente para a
Guanabara a justiça e administração de toda a colônia e, aliás, de
toda
a
Monarquia,
incluindo
domínios
africanos
e
asiáticos
(BARRETO: 2003, p. 162). A criação de diversos órgãos, muitos
chamados de tribunais (ainda que contassem com competências
estritamente administrativas), foi decisivo ao novo horizonte em
construção na cidade.
Ainda que predominante a população rural durante muitos anos
da história brasileira, o espaço urbano é o primeiro local evidenciador
das relações complexas de jurisdição, de conflitos entre órgãos
criados e agentes sociais diversos. Na cidade se desenvolvem
atividades econômicas variadas, e o magistrado desempenha um
papel relevante na manutenção da ordem social, conforme se vê
neste relatório do Intendente-Geral de Polícia, Paulo Fernandes
Viana:
Outro exemplo darei em Polícia inferior. Pela
correspondência ativa com os Magistrados de todo
o Brasil, tenho procurado o melhoramento de
estradas interiores que facilitaram o comércio,
comunicam e civilizam os povos [...] e porque a
falta de Magistrados civis nas grandes distâncias
[...] e comarcas é tão reconhecidamente extensa
de modo que os Comandantes de Distritos sempre
serviram no Brasil com uma certa autoridade de
Ministros Criminais para acudirem as mal-feitorias
acontecidas
nos
seus
territórios,
perseguirem
ladrões, e prenderem malfeitores, negros fugidos o
que no país se chamam calhambolas, dar nos
Quilombos (...)1
Ressalte-se, a especialização de juízos foi traço marcante da
administração da justiça no Brasil joanino, exemplo disso foi a criação
de juízos para a concessão de sesmarias e direitos reais, como se vê
no seguinte Alvará, datado de 1809:
Eu o Príncipe Regente Faço saber os que o
presente Alvará com força de Lei virem, que
sendo-Me presente em Consulta da Meza do
Desembargo do Paço, que muito importava a
prosperidade deste Estado remediar o abuso de se
confirmarem
as
Sesmarias
sem
preceder
a
necessaria Medição e Demarcação Judicial das
terras concedidas, contra a expressa Decisão do
Decreto de vinte de Outubro de mil setecentos e
cincoenta e tres, e de muitas outras Ordens
Minhas, que o prohibirão, e que da transgressão
dellas provinha a indecencia de se doarem terras,
que já tinhão Sesmeiros, e a injustiça de se dar
affim occasião a pleitos, e litigios, e a perturbação
dos
direitos
adquiridos
pelas
anteriores
concessões: Propondo-se me quanto cumpria, (...)
se nomeassem Juizes, e officiaes competentes, e
se lhes taxasse conveniente salario.2
1
Plano de melhoramento geral do estabelecimento da Polícia do Reino do Brazil que apresenta o
Intendente Geral Paulo Fernandes Vianna e a que serve de demonstração a representação que o
acompanha na data de 24 de novembro de 1816. Rio de Janeiro: Arquivo Público Nacional.
2
Alvará com força de lei, pelo qual V. A. R. Há por bem ordenar que se não passem Cartas de
Concessão, ou Confirmação de Sesmaria, sem preceder Medição, e Demarcação Judicial: E
Estabelece a forma de nomeação dos Juizes das Sesmarias, e os Salarios, que elles, e mais Officiaes
devem vencer: E Dá outras Providencias, a fim da boa ordem, e regularidade das mesmas Sesmarias.
Imprensa Régia: 1809. Arquivo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Setor de Obras Raras.
E o que mudou nesse período, além do aumento do número de
comarcas e magistrados no interior do país, foi a criação da Mesa do
Desembargo do Paço e da Consciência e das Ordens, por meio do
Alvará de 22 de abril de 1808, órgão diretamente subordinado ao Rei,
bem como de uma Casa de Suplicação, por meio do Alvará de 10 de
maio de 1808, que elevou a antiga Relação do Rio de Janeiro à
condição de instância superior da Justiça:
“I – A Relação desta cidade se denominará Casa da
Suplicação do Brasil, e será considerada como
Superior Tribunal de Justiça para se findarem ali
todos os pleitos em última instância, por maior que
seja o seu valor, sem que das últimas sentenças
proferidas em qualquer das Mesas da sobredita
Casa se possa interpor outro recurso, que não seja
o das Revistas, nos termos restritos do que se acha
disposto nas Minhas Ordenações, Leis e mais
Disposições. E terão os Ministros a mesma alçada
que têm os da Casa da Suplicação de Lisboa. (...)”3
No entanto, a última voz era a do rei, que havia por decidir
qualquer conflito por meio da Mesa do Desembargo do Paço e da
Consciência e das Ordens. Assim, havia uma duplicidade de órgãos
jurisdicionais: tanto em Lisboa quanto no Rio funcionavam Tribunais
superiores, não existindo uma centralização efetiva das decisões. No
entanto, a cidade do Rio de Janeiro se sobrepôs no cenário brasileiro,
ao concentrar a instância máxima dos órgãos de jurisdição de todo o
espaço do Império Português.
Em nada mudou, no cenário do Brasil Reino, o abismo que
separava a Justiça da grande massa da população: seja pela
3
BRASIL. Colecção das Leis do Brazil de 1808. Rio de Janeiro : Imprensa Nacional, 1891. p. 23-26
Regula a Casa da Supplicação e dá providencias a bem da administração da Justiça.
estrutura
centralizada,
seja
pelo
funcionamento
hermético
e
controlado por uma elite letrada, conhecedora dos métodos de
interpretação e aplicação do mesmo, pela morosidade das decisões
ou ainda por outras razões, como os altos custos dos provimentos,
como denuncia esta carta de Principal Souza para o príncipe regente,
D. João VI:
Sobe à Real Presença huma consulta sobre o
augmento
dos
salários,
consignaturas
nos
Tribunaes e Justiças: Augusto Senhor, o povo
miúdo está muito pobre, como poderá pagar, por
exemplo, huma Provisão do Dezembargo do Paço,
por 3200r em lugar de 1600r os provedores
das
Comarcas, os Juízes dos Órfãos absorverão em
despesas
huma
bôa
parte
das
Vendas
dos
Concelhos , e dos Órfãos nos emolumentos. Eu,
Senhor, fui de voto cazo que V.A.R. Ordene algum
augmento, que este não exceda a huma terça
parte mais da actual; na realidade os povos do
Reino
não
podem
com
esta
despeza,
sendo
repetida pelo cruel foro, e sua pratica, cheia de
abusos, que pedem grande emmenda.
4
4. Conclusão
Objetivou-se por fim, demonstrar, ainda que superficialmente,
que o funcionamento das instituições judiciárias, aliado à organização
de novos grupos sociais refletiu tanto na conservação quanto na
transformação dos padrões do direito vigente no Brasil. Isto significa
dizer que há uma influência direta dos agentes envolvidos na
produção do direito com a conformação de estruturas que vigiam
4
Ofício de 13 de fevereiro de 1816 de Principal Souza para o príncipe Regente, relatando a situação de
Portugal com recomendações sobre como ocupar os ociosos, realizar o recrutamento e fomentar a
indústria, dentre outros. In: D. João VI e o Império no Brasil: a Independência e a missão Rio Maior.
Rio de Janeiro: Biblioteca Reprográfica Xerox, 1984, p. 314.
desde o período
colonial, ao mesmo tempo em
que ocorre,
paralelamente a essa conformação, a redefinição do papel político
desses grupos, no desenrolar da história de independência política
brasileira.
Logo, se durante o período colonial a Justiça brasileira esteve
caracterizada pela morosidade, escassez de magistrados, muitas
vezes despreparados para o exercício da jurisdições, pela imiscuidade
entre os poderes administrativos e jurisdicionais, tal quadro pouco ou
nada se modificou com a chegada da família real em 1808.
No
entanto,
essa
mesma
chegada
representou
a
institucionalização de práticas consagradas em Portugal, e que
passaram a fazer parte da vida brasileira. A cidade do Rio de Janeiro
foi completamente modificada, a fim de sediar a nova capital do
Império Português. Evidentemente, a chegada de estrangeiros aos
novos ares da cidade serviu de inspiração ao processo de inserção
das elites locais na formação de um direito conforme o paradigma
liberal em construção na Europa.
É exatamente essa elite social que tomará as rédeas do
processo de independência política brasileira, que oferecerá uma base
ideológica à Constituição de 1824 e que ocupará os principais cargos
do
Poder
Judiciário
brasileiro,
preconizando
valores
como
o
bacharelismo e o patrimonialismo. Logo, a chegada da família real
não só impulsionou os ares de administração independente, mas foi
fator decisivo na criação de novos órgãos que implicavam a
autonomização da Justiça, completamente separada da subordinação
a Lisboa.
Com isto, conclui-se que o olhar histórico de tal período
depende de uma compreensão de inserção dos atores no theatrum
tropicalis (MALERBA: 2000, p. 91): tais atores desempenham papel
importantíssimo à nova dinâmica das instituições brasileiras as quais,
por sua vez, refletem o comportamento dos indivíduos e sobre seu
comportamento influenciam diretamente, construindo percepções
sobre o processo histórico de soberania e independência em que se
inseriam. Verifica-se, portanto, uma via de duas mãos, em que se
sobrepõem influências estruturais. Parte-se rumo aos preceitos da
história nova, em que não há lugar para se encarar antagonismos ou
divisões da história entre história social e história institucional.
Encara-se, assim uma história que não é econômica ou social, mas
sim um história pura e simples em sua unidade. A história que é toda
social, por definição. (LE GOFF: 2001, p. 28)
5. Referências Bibliográficas.
BRASIL. Colecção das Leis do Brazil de 1808. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1891. p. 23-26. Regula a Casa da Supplicação e
dá providencias a bem da administração da Justiça.
______. Alvará com força de lei, pelo qual V. A. R. Há por bem
ordenar que se não passem Cartas de Concessão, ou Confirmação de
Sesmaria,
sem
preceder
Medição,
e
Demarcação
Judicial:
E
Estabelece a forma de nomeação dos Juizes das Sesmarias, e os
Salarios, que elles, e mais Officiaes devem vencer: E Dá outras
Providencias, a fim da boa ordem, e regularidade das mesmas
Sesmarias. Rio de Janeiro: Imprensa Régia: 1809. Arquivo da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Setor de Obras Raras.
BARRETO, Célia de Barros et. al. História da civilização brasileira:
tomo II – o Brasil monárquico. v. 3. 9. ed. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2003.
CASTRO, Flávia Lages de. História do direito geral e Brasil. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2007.
GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. As bases institucionais da construção
da unidade dos poderes do Rio de Janeiro joanino: administração e
governabilidade no Império luso-brasileiro. In: JANCSÓ, István.
Independência: história e historiografia. São Paulo: Editora Hucitec,
2005.
HESPANHA, António Manuel. Porque é que existe e em que é que
consiste um direito colonial brasileiro. Comunicação apresentada no
Encontro Brasil-Portugal: sociedades, culturas e formas de governar
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Linha de Pesquisa História Social da Cultura/PPGHIS, UFMG, Belo
Horizonte, 2005. Disponível em <www.hespanha.net>. Acesso em:
31/08/2008.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 4. ed. Brasília:
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LE GOFF, Jacques. A história nova. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes,
2001.
MALERBA, Jurandir. A corte no exílio: civilização e poder no Brasil às
vésperas da
independência (1808 a 1821). São Paulo: Companhia das Letras,
2000.
MENDONÇA, Marcos Carneiro. D. João VI e o Império no Brasil: a
Independência e a missão Rio Maior. Rio de Janeiro: Biblioteca
Reprográfica Xerox, 1984.
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 23ª
edição. São Paulo: Editora Brasiliense: 1994, p.298.
Download

55. Mariana Armond Dias Paes e João Vitor Rodrigues Loureiro