CENTRO UNIVERSITÁRIO ADVENTISTA DE SÃO PAULO
CAMPUS ENGENHEIRO COELHO
A INFLUÊNCIA DA IDEOLOGIA SOBRE O TRADUTOR NO “DIÁRIO
DE ANNE FRANK”
LAIZ MONIQUE ROSA DE ALMEIDA
ENGENHEIRO COELHO
2012
LAIZ MONIQUE ROSA DE ALMEIDA
A INFLUÊNCIA DA IDEOLOGIA SOBRE O TRADUTOR NO DIÁRIO
DE ANNE FRANK
Trabalho de conclusão de curso apresentado
como requisito parcial para obtenção do
título de Bacharel em Tradutor e Intérprete,
pelo Centro Universitário Adventista de São
Paulo, campus Engenheiro Coelho, sob
orientação da Profª Drª Ana M. M. Schäffer
ENGENHEIRO COELHO
2012
Trabalho de Conclusão de Curso do Centro Universitário Adventista de São Paulo,
do curso de Tradutor e Intérprete apresentado e aprovado em 15 de novembro de
2012.
_________________________________________________
Orientadora: Profª Drª Ana M. M. Schäffer
__________________________________________________________
Segundo Leitor: Profº Drº Milton L. Torres
DEDICATÓRIA
A produção de um trabalho de conclusão
de curso é sempre trabalhosa e exige
muita dedicação e apoio. E é por isso que
eu dedico este trabalho a todos os que
me incentivaram e me apoiaram nesse
trajeto,
Muito obrigada.
AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus, por ter me concedido a oportunidade e por
ter aberto as portas para que este sonho fosse realizado. E é na reta final
deste curso que eu vejo o quanto Ele sempre esteve comigo. Deus me ajudou
e me capacitou para que, apesar de tantas dificuldades, eu chegasse até
aqui.

Agradeço
também
a
instituição
de
ensino
UNASP,
professores,
coordenadores e funcionários por nos fornecer sempre os melhores recursos,
materiais, suporte intelectual e espiritual para que nos tornemos profissionais
capacitados para realização de um bom trabalho, muito obrigada!

Agradeço a minha professora e orientadora Profa Dra Ana M. M. Schäffer pela
orientação, dedicação e credibilidade depositadas em mim, não só agora,
mas durante todo o curso. Obrigada pela paciência, pelas dicas e até mesmo
pelas repreensões, pois sei que foi tudo para o nosso crescimento pessoal e
profissional. Sempre me lembrarei com carinho da senhora... Thank you very
much!

Aos meus familiares pela força, pela ajuda, pelas orações e torcida pra que
eu chegasse até aqui; o meu muito obrigado. Quero agradecer principalmente
a minha mãe, Damaris Rosa de Jesus de Almeida, por toda a dedicação,
apoio, esforços e por estar sempre ao meu lado nos momentos bons e ruins
que se desenrolaram durante esses quatros anos. Posso dizer que a vitória
da conclusão desse curso não é apenas minha, mas nossa. Não tenho
palavras para agradecer, te amo.
 E ao meu ex- noivo Fredson Souza (em memória) pela pessoa maravilhosa
que ele foi e de como em diversas formas me ajudou durante todo o percurso
do curso; pelos inúmeros momentos agradáveis e pela compreensão da
minha ausência e cansaço em vários momentos. As minhas lembranças
sobre nós sempre serão as melhores, pelos momentos inesquecíveis que
passamos juntos. Muito obrigada, Fred.
“Os autores fazem as literaturas
nacionais, mas são os tradutores que
fazem a literatura universal.”
José Saramago
RESUMO
Nos últimos anos, a profissão do tradutor vem crescendo consideravelmente no
Brasil. Dos estudos linguísticos focados na área de tradução, pouco ainda se fala da
relação tradução, ideologia e censura. Muito além do que muitos pensam, a
tradução não está ligada apenas à transferência de palavras de um idioma para o
outro, mas há por trás do processo um sistema de muitas faces que atua
poderosamente, do qual fazem parte a ideologia pessoal ou social mesclada à
cultura, política e poética vigentes, como é o caso do contexto a que remete esse
trabalho de pesquisa, “O Diário de Anne Frank”. A problemática que justifica o
interesse de pesquisa é se existiria um protocolo de comportamento a ser seguido
por quem traduz diante das restrições impostas pela ideologia ou censura, ao se
trabalhar com obras que impõem posicionamentos ideológicos específicos; ainda
mais, como lidar com o construto defendido por Lefevere (2007) de que quem traduz
assume o papel de reescritor, ou seja, autor responsável pelo que produz, se este
reescritor está limitado? Numa tentativa de problematizar as questões mais do que
respondê-las, ventilamos a hipótese de que os profissionais da tradução se acham
sempre diante de uma encruzilhada, tendo que decidir entre omitir ou alterar alguma
parte do chamado “original” e, ao fazerem isso, inevitavelmente deixam aflorar
posicionamentos ideológicos que os atravessam. Diante disso, os objetivos da
pesquisa visam abordar a tarefa de quem traduz, com base nos aspectos
ideológicos por trás da atividade, ao se buscar identificar alguns fatores ideológicos
que podem ter influenciado a tradução do “Diário de Anne Frank” e, ao mesmo
tempo, trazer à tona a ideologia vigente na época da reescrita da obra e as razões
dela ter sofrido tanta influência na sua produção editorial. Para debater essas e
outras questões, convidamos para dialogar conosco Lefevere (2007), Leonardi
(2008) e Coracini (2008), autores que nos permitiram compreender que os
profissionais da tradução se acham, de fato, diante de uma encruzilhada e que não
são livres para dizerem na língua alvo tudo o que está no texto de partida, o que os
leva à omissão, substituição de palavras, como apontam os resultados de nossa
pesquisa.
Palavras-Chave: Tradução; Ideologia; Censura; O Diário de Anne Frank.
ABSTRACT
In recent years the translation profession has increased significantly in Brazil. Not so
much has been said about the relationship between translation, ideology and
censorship in linguistic studies focused on translation area. Differently from what
many have thought, the translation process is not only to transfer words from one
language to another, but there is behind the process a multiform system which
operates powerfully, and the personal and social ideology related to current culture,
politics and poetics makes part of it, as is the case of “The Diary of Anne Frank’s”
context, to which our research refers. The problematic surrounding the research is if
there would be a protocol of behavior to be followed by those translating, before the
restrictions imposed by ideology and censorship, when working with works which
impose specific ideological position. In addition, how to handle with Lefevere’s
construct that who translates is also a rewriter; in other words, the translator is a
responsible author for his production. In an attempt to problematizing the questions
more than to answer them, we ventilate the hypothesis that the translation
professionals are always at a crossroad, all time having to decide between to change
or omit some part of the called “original”, and by doing this, they are definitely
showing their ideology. So the research aimed to address the task of those who
translate, based on ideological aspects behind the activity, by seeking to identify
some ideological factors that may have influenced the translation of “The Diary of
Anne Frank”. At the same time, we intended to bring up the current ideology of the
time of the rewriting of the work and the reasons of so much influence on its editorial
production. To discuss these and other matters, we based on Lefevere (2007),
Leonardi (2008) and Coracini (2008), whose authors have made clear to us that the
translation professionals all the time find themselves at a crossroad and they are not
free to say all that is in the source language to the target culture, and this situation
take them to omission and replacement of words, as showed on the results of our
study.
Keywords: Translation; Ideology; Censorship; “The Diary of Anne Frank”.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 10
1.1 Objetivos ........................................................................................................................ 11
1.2 Problemática pesquisa ................................................................................................... 11
1.3 Hipótese......................................................................................................................... 11
1.4 Metodologia ................................................................................................................... 12
2 A INTERFACE IDEOLOGIA/TRADUÇÃO ........................................................................ 13
2.1 O papel do tradutor: entre ideologia e censura .............................................................. 16
3 IDEOLOGIA E CENSURA NO DIÁRIO DE ANNE FRANK .............................................. 19
3.1 O processo de autoeditoração ....................................................................................... 20
3.2 A tentativa de reconstrução de uma Anne Frank diferente ............................................. 21
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 27
5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 28
10
1 INTRODUÇÃO
Nos últimos anos os estudos linguísticos focados na área de tradução vêm
crescendo consideravelmente no Brasil e, junto com eles, a profissão do tradutor. De
todos os aspectos relacionados à tradução, pouco ainda se fala da relação tradução,
ideologia e censura. Podemos dizer que a tradução é uma arte e o tradutor, um
artesão. Quem traduz trabalha com as palavras como se estivesse tecendo uma
rede, sendo necessário cuidado e atenção para não embaralhar e nem criar nós no
tecido e entre as linhas. Muito além do que muitos pensam, a tradução não está
apenas na transferência de palavras de um idioma para o outro, mas é exigido de
quem traduz bagagem cognitiva/cultural, compromisso e fidelidade. Seguindo essa
linha de raciocínio e sabendo que as palavras não são apenas signos, mas que são
acompanhadas de significado e posicionamento ideológico, Leonardi (2008, p. 80)
afirma que:
Do ponto de vista linguístico, a tradução é composta de palavras que
podem carregar consigo um posicionamento ideológico, em
particular. Do ponto de vista cultural, a tradução é uma atividade que
toma lugar em contextos econômicos e político-sociais reais onde as
pessoas podem ter interesses significativos na produção ou
reprodução de um texto específico em uma determinada
comunidade. Os tradutores podem se deparar com muita pressão em
seu trabalho, em termos de padrões de qualidade, fidelidade,
ideologia e censura. A tradução pode estar sujeita a vários atos
conscientes de seleção, adição e/ou omissão. Estudar uma tradução
de uma perspectiva ideológica e de censura significa analisar todos
aqueles casos de manipulação que ocorrem no texto. Censura e
ideologia tem sido vista, em momentos, como tendo o mesmo
significado. Ambas pode ser um resultado de pressão interna e/ou
externa que pode levar à manipulação ou à reescrita de um texto1
(nossa tradução – doravante n.t.).
Considerando a atividade tradutória sob este olhar, a responsabilidade de
quem traduz passa a ter outra dimensão, visto que nem sempre o profissional tem
ao seu alcance os mecanismos para driblar a situação, pois algumas são impostas
1
From a linguistic point of view, translation is made up of words which may carry with them a
particular ideological positioning. From a cultural point of view, translation is an activity which takes
place in real socio-political and economic situations where people may have significant interests in the
production or reproduction of a specific text in a given community. Translators may face a great deal
of pressure in their work in terms of quality standards, faithfulness, ideology and censorship.
Translation may be subjected to several conscious acts of selection, addition and/or omission.
Studying a translation from a censorship or ideological perspective means analysing all those cases of
manipulation which occur in the text. Censorship and ideology have at times been viewed as meaning
the same. Both may be a result of external and/or internal pressure which may lead to manipulation or
rewriting of a text.
11
ideológica ou culturalmente, enquanto outras dependem das escolhas de quem
traduz, e estas são também mediadas pela ideologia pessoal.
Surge desses pressupostos teóricos uma problemática que circunda o nosso
interesse de pesquisa; isto é, existiria um protocolo de comportamento a ser seguido
por quem traduz diante das restrições impostas pela ideologia ou censura, ao se
trabalhar com obras que impõem posicionamentos ideológicos específicos? Como
lidar com o construto defendido por Lefevere (2007) de que quem traduz assume o
papel de reescritor, ou seja, autor responsável pelo que produz, se este reescritor
está limitado? Até onde ele pode ir? Qual é o seu limite? Numa tentativa de
problematizar as questões mais do que respondê-las, ventilamos a hipótese de que
os profissionais da tradução se acham sempre diante de uma encruzilhada, tendo
que decidir a todo o momento a que rumo seguir e, ao fazerem escolhas entre omitir
ou alterar alguma parte do chamado “original”, inevitavelmente deixam aflorar os
posicionamentos ideológicos que os atravessam.
Diante disso, o objetivo geral da pesquisa visa discutir o quão árdua é a tarefa
de quem traduz, pontuando basicamente os aspectos ideológicos por trás da tarefa
e suas implicações para o produto final que é a tradução; de modo específico, temos
como meta identificar alguns fatores ideológicos que podem ter influenciado a
tradução do “Diário de Anne Frank” e, decorrente deste objetivo, discutir a ideologia
vigente na época da reescrita da obra, e como ela influenciou os resultados finais da
produção editorial.
Para embasar o que abordamos no trabalho, tomaremos como principal autor
André Lefevere (2007), por fazer profundas reflexões sobre os elementos que
atravessam o processo de reescrita, cuja ênfase recai sobre a tradução como a
forma mais poderosa de reescrita, além de outros tipos como a crítica, a
historiografia, a edição e a antologização, as quais se acham sempre imbricadas
com a ideologia, aspecto bastante problematizado por Lefevere, em sua obra
“Tradução, reescrita e a manipulação da fama literária” (2007). Além de Lefevere,
convidamos outros autores para dialogarem conosco e, entre eles ressaltamos
Leonardi (2008) e Arrojo (1997), ambos por também trazerem contribuições sobre o
papel da ideologia na formação do sistema literário. Estes autores embasam nossa
pesquisa porque são os que tratam do assunto de forma específica e atendem os
nossos objetivos.
12
Ao buscarmos fontes bibliográficas para a realização do estudo, percebemos
que não há muitas pesquisas sobre a questão central do trabalho, daí termos
entendido que a interseção tradução e ideologia merece atenção especial por parte
de pesquisadores, pois consideramos extremamente importante a percepção do que
pode estar por trás de todo processo de reescrita, que muitas vezes, passa
despercebido, mas que pode ser um campo minado. Daí o nosso interesse em
abordar o assunto de forma mais aprofundada, além de disponibilizar material que
incentive alunos e ingressantes na profissão da tradução a lerem e questionarem
mais sobre esses aspectos referentes à influência da ideologia e a consequência
disso na produção literária do país.
Quanto à metodologia de trabalho, por se tratar de uma pesquisa que busca
discutir teoricamente o papel da ideologia, empregamos a pesquisa bibliográfica e
documental, além da pesquisa analítica e descritiva, visto que temos como um de
nossos objetivos identificar, pela análise e comparação entre texto original e
traduzido, alguns fatores ideológicos por trás da tradução do “Diário de Anne Frank”.
Realizamos o trabalho na Universidade Adventista de São Paulo (UNASP), campus
de Engenheiro Coelho, que nos disponibilizou todos os recursos necessários para a
realização deste trabalho, como: ampla biblioteca, acervo de periódicos, laboratório
de informática, e outros.
Os passos seguidos para a realização do estudo foram: no primeiro capítulo,
após esta introdução, trazemos o embasamento teórico que retrata a influência da
ideologia na reescrita de modo geral; em seguida, apresentamos aspectos
biográficos referentes à personagem principal, Anne Frank, já que é na história da
sua vida que o trabalho se desenrolou; o segundo capítulo trata da identificação de
elementos que podem ter sido motivados pela ideologia e, para compor nossas
considerações, fizemos uma leitura aprofundada do “Diário” por ser um documento
histórico que apresenta nuanças diversas da cultura alemã da década de 1940,
servindo como pano de fundo para a análise das traduções feitas. A partir daí,
analisamos os aspectos levantados por Lefevere (2007) sobre as mudanças
provocadas pela ideologia, na obra de Anne Frank e os comparamos com a
reescritura (tradução) do texto. Sob este olhar, discutimos a relação entre ideologia e
censura e como estão ligadas, sem ser a mesma coisa.
13
2 A INTERFACE IDEOLOGIA/TRADUÇÃO
Neste capítulo fazemos um percurso histórico sobre o que é a ideologia e
suas implicações para a reescrita. Conforme informamos na introdução, o objetivo
visa problematizar o quão árdua é a tarefa de quem traduz, pontuando basicamente
os aspectos ideológicos por trás da tarefa e suas implicações para o produto final
que é a tradução.
Não haveria como desenrolar o tópico ideologia na tradução sem antes
falarmos de reescritura, pois ela está diretamente ligada ao tema, afinal, tradução,
edição, antologização de textos, compilação de histórias da literatura, críticas
(resenha) de livros, são reescrituras, que são, em sua maioria, feitas por
professores, críticos, resenhistas, autores e tradutores. Através dela, é possível fazer
uma ponte entre a obra literária em si e o leitor profissional e não profissional –
sendo o último o que mais recorre a esses meios para ter acesso e maior
compreensão da obra original.
Tratando-se de reescrita literária, podemos afirmar que as obras dessa área
estão sujeitas a um sistema de alto poder que controla toda a sua produção e que
tem a autoridade para manipular ou até mesmo alterar o produto final. Esse sistema
é formado por intelectuais da literatura, os que compõem o cânone do país, além de
entidades educacionais, editoriais, religiosas e governamentais. O domínio da
produção literária é uma maneira de controlar tudo o que se produz e é lido pelo
público; é uma forma de manter o controle sobre os padrões pré-estabelecidos e a
ideologia de certa sociedade ou comunidade que coloca limite para o que é
considerado “aceitável” para o contexto, época e lugar, tanto em termos de poética
vigente, quanto de movimento literário em atuação.
A decisão de como trabalhar com a poética e com as palavras dos textos não
está apenas nas mãos do reescritor, que se envolve e mergulha nas palavras tão
profundamente na intenção de transmitir o real significado da forma mais clara e fiel
possível – não estamos dizendo também que não cabe a ele boa parte da
responsabilidade sobre o que vai ser transmitido para o leitor – mas tal tarefa pode ir
além do que ele por si só pode controlar. Para Lefevere (2007), a literatura não tem
o poder de retirar a liberdade do leitor, porém, antes disso, o sistema atua com uma
14
série de restrições sobre os reescritores e leitores. O autor ainda afirma que os
tradutores, em muitos casos, precisam agir como “traidores”, muitos de forma não
consciente porque não lhes é dado alternativa, a escolha sempre terá de ser feita
enquanto permanecerem dentro dos muros que cercam a cultura que nasceram ou
que tomaram para si; ou seja, ou escolhem opor-se ao sistema tentando atuar fora
de suas restrições ou escrevem/reescrevem obras literárias que não se encaixam na
poética dominante ou na ideologia de um dado tempo ou lugar.
Outro poder que exerce controle sobre as obras literárias produzidas e que
atua também de igual forma fora do sistema literário é chamado sistema do
mecenato. É composto por pessoas de grande influência, como políticos, líderes
religiosos, uma determinada classe social, algumas entidades religiosas e também
de certa forma pela mídia. Os mecenas, como são chamados, querem nas mãos, e
na maioria das vezes o têm, o poder de manipular, podar e alterar as produções
literárias da reescritura, ou se dessa forma não o conseguem, procuram controlar
sua distribuição nas livrarias, escolas e outros meios na intenção de padronizar sua
ideologia literária. Dentro desse sistema,
O mecenato é constituído por três elementos que podem ser vistos
interagindo de diferentes formas. Há um componente ideológico que
age restringindo a escolha e o desenvolvimento tanto da forma
quanto do conteúdo. [...] Há também um componente econômico: o
mecenas garante que escritores e reescritores sejam capazes de
ganhar a vida, dando-lhes uma pensão ou indicando-os para algum
cargo. [...] Finalmente há também um elemento de status envolvido.
Aceitar o mecenato implica em integrar-se num grupo de apoio
determinado e ao seu estilo de vida [...] (LEFEVERE, 2007, p. 35-36).
O grande interesse do sistema mecenato, na verdade, é na ideologia presente
nas obras literárias, e não na poética em si. Seu objetivo é controlar os fatores
formadores da cultura, que podem influenciar e formar opiniões. Dos três elementos
que compõem o sistema do mecenato, o objeto do nosso estudo é a interface da
ideologia diretamente no processo tradutório de uma formal geral.
Ao tomamos ciência de que a questão da total invisibilidade do tradutor,
apesar
das
inúmeras
discussões
a
respeito,
é
relativamente
impossível.
Percebemos que como seres humanos não somos vazios, pelo contrário,
carregamos conosco valores e conceitos de vários lugares e situações que
compuseram e compõem a nossa identidade e, dessa forma, nos tornamos
completos de sentido e sentimento. As palavras, que já vêm com uma carga natural
15
de sentido, cruzam o reescritor e levam consigo uma junção do que seria a
somatória da carga ideológica e cultural contida na palavra, mais a bagagem
ideológica e cultural de quem está manipulando o texto em questão, e,
consequentemente, chega ao leitor que vai acrescentar a sua bagagem cultural e
cognitiva, formando assim, o entendimento.
Quem traduz se depara primeiro com os fatores culturais/ ideológicos que se
estruturam como uma muralha a ser atravessada; muito ainda se questiona sobre o
quanto de uma cultura/ideologia pode se exprimida e comunicada através de
palavras que nasceram em outra cultura/ideologia. Borges e Nercolini (2002) alegam
que:
A tradução cultural [ideológica] implica um contato cultural profundo
entre duas ou mais culturas. Aproximar-se e deixar-se tocar pelo
desconhecido, mesmo correndo-se o risco do enfrentamento, do
conflito, parece ser uma maneira mais profícua e certamente mais
trabalhosa de tradução cultural. Possibilidade–impossibilidade: a
tradução trabalha nesse limiar: entre a impossibilidade da tradução
total e completa e as muitas possibilidades de diálogos,
aproximações, tentativas melhores sucedidas, embates...
De igual forma, a relação de poder e manipulação por trás da tradução são
bem abordadas por Leonardi (2008, n.t.) ao afirmar que
Alguns estudiosos começaram a mostrar forte interesse nos
mecanismos de manipulação que ocorreram no processo de
tradução, a fim de, consciente ou inconscientemente, alterar ou
distorcer o sentido do texto original. O conceito de manipulação foi
ligado ao de poder e ambas as noções foram eventualmente
associadas às questões de ideologia e censura. A tradução passou a
ser vista como uma ferramenta de manipulação em todos aqueles
lugares onde a situação econômica e sócio-política estavam em
jogo.2
Podemos relacionar os padrões ideológicos de uma determinada época ou
lugar como fatores de grande influência na reescritura. Os tradutores são um dos
grupos
que
mais
sofrem
com
as
questões
ideológicas,
pois
além
da
responsabilidade de passar uma ideia de um idioma para outro, a escolha do que
traduzir, ou do que omitir, e como já dissemos anteriormente na introdução deste
trabalho de pesquisa, quem traduz parece estar sempre diante de uma estrada com
2
Some scholars began to show an active interest in the manipulative mechanisms that took place in
the translation process in order to consciously or unconsciously change or distort the meaning of the
original text. The concept of manipulation was linked to that of power and both notions were eventually
associated with issues of ideology and censorship. Translation began to be viewed as a manipulation
tool in all those places where the socio-political and economic situation was at stake.
16
duas direções, tendo que decidir a todo o momento que caminho tomar quanto à
fidelidade, ou seja, está nas mãos do tradutor optar por atender as restrições do
sistema mecenato, a suas próprias convicções do que seria correto ou não ou
literalmente atender a exigência do público que espera por uma obra completa.
Ao traduzir, lidamos com interfaces diferentes de costumes, pensamentos,
pessoas e todo um sistema já estabelecido e concreto, no qual, através das
palavras, é possível formar e mudar opiniões e até mesmo contrariar alguma delas.
Arrojo (1992) afirma que a tradução em primeiro lugar reconhece o seu papel de
produtora ativa de significados, interpreta e serve como representante do autor e dos
textos que traduz. Além disso, cabe a quem traduz assumir a responsabilidade pela
produção de significados que realiza e pela representação do autor a que se dedica,
ou seja, ele deverá situar-se do que é permitido ter do texto e do autor que interpreta
de acordo com a visão do ideário de seu tempo e lugar.
Outro fator crucial que está envolvido na relação ideologia/ tradução é a
questão da censura, altamente ligada à tradução por colocar-se como consequência
da repressão ideológica, ser uma das maiores, se não a maior, responsável pelas
alterações feitas no texto. É necessário que todo tradutor ao iniciar um trabalho, leve
em conta todos esses fatores aqui já mencionados para conseguir chegar a um bom
produto final, pois, ao driblar as repressões feitas pelos mecenas em relação ao que
será publicado, o reescritor automaticamente altera o produto para que fique
“adequado” ao padrão exigido.
2.1 O papel do tradutor: entre a ideologia e censura
Definir censura não é tão simples quando se parece. O significado exato da
palavra varia de acordo com o contexto em que ela está inserida, em muitos casos,
é vista de modo pejorativo devido aos muitos contextos de natureza negativa a que
se implanta, porém, pode ser encontrada em situações favoráveis positivamente.
Baseados no contexto tradutório da nossa pesquisa, podemos entender censura
como uma forma de supervisão e controle de informações e ideias que circulam
dentro de uma sociedade. O termo censura, de acordo com o dicionário online
Oxford, se refere a “um oficial [ou funcionário] que analisa livros, filmes, notícias,
17
etc., que estão prestes a ser publicados e que reprime os elementos que são
considerados obscenos, politicamente inaceitáveis, ou que sejam uma ameaça à
segurança” (http://www.askoxford.com, n.t.).3
A respeito da censura no campo da tradução, Leonardi (2008, n.t.) afirma:
O papel desempenhado pelos tradutores no processo de censura é
muito importante. De uma perspectiva sociológica, quem traduz se
torna juiz de sua comunidade linguística e cultural; sua principal
tarefa é decidir o que está errado e correto para os seus leitores. Os
tradutores estão constantemente sujeitos a uma variedade de
pressões internas e externas no seu trabalho, e essas pressões
podem levar à manipulação e/ou reescritura do texto fonte4.
Essas pressões internas e externas sobrevêm sobre quem traduz como uma
forma de repressão do sistema para controlar o que será lido pela comunidade. Tais
pressões podem, muitas vezes, comprometer o trabalho final, porque, além de lidar
com a ideologia vigente de um determinado contexto, o tradutor precisa lidar com a
censura dos poderes que estão com olhos atentos a tudo o que é escrito. Em muitos
casos, fragmentos importantes de determinado texto são retirados pela censura por
terem sido considerados ofensivos ou por causarem ameaça de conflitos políticos.
Tais conflitos foram sistematizados e esquematizados em tabela por Darwish (1999,
p. 20) apud Leonardi (2008), mostrando que dentro desses fatores externos e
internos podemos abrir um leque de elementos extrínsecos, intrínsecos, cognitivos,
textuais, interlinguísticos e atitudinais que são responsáveis pelas “interferências”
ocorridas no texto e que funcionam como combustível de estímulo à censura.
Leonardi (2008) destaca a censura preventiva, a censura repressiva e a autocensura
como os três tipos principais.
A censura preventiva pode ser praticada por uma autoridade espiritual ou
secular; essa autoridade revisa todo material antes de sua publicação ou
disseminação a fim de prevenir, alterar ou negar o seu aspecto. A censura
repressiva geralmente é feita por uma autoridade espiritual ou secular após a
impressão e publicação de um material específico que é considerado depreciador ou
prejudicial à comunidade a fim de coibir sua circulação nacional. E a autocensura é
3
An official who examines books, films, news, etc. that are about to be published and suppresses any
parts that are considered obscene, politically unacceptable, or a threat to security […]
4
The role played by translators in the censorship process is very important. From a sociological
perspective they become the judges of their own linguistic and cultural community. Their task is to
decide what is wrong and what is right for their readers. Translators are constantly subjected to a
variety of internal and external pressures in their work and these could lead to text manipulation and/or
rewriting of the source text.
18
uma forma de censura imposta por nós mesmos, causada pelo receio de desagradar
ou ofender a alguém ou a uma comunidade, mas sem necessariamente sermos
pressionados por alguma autoridade (LEONARDI, 2008, n.t.).
Alguns
aspectos
práticos
do
mundo
moderno
também
devem
ser
considerados, afinal, conforme defende Coracini (2008, p. 12),
Embora censuras com base na moralidade e nos bons costumes,
ainda existam [...] nos dias de hoje, a mais evidente manifesta-se em
torno do racismo, de preconceitos contra a mulher, contra o
homossexual (o chamado preconceito de gênero), contra a liberdade
de religião, dentre outros – enfim, em torno do que se tem
denominado, por vezes de modo insensato e apressado,
“politicamente correto”. Essa censura, que, quando internalizada,
naturalizada, torna-se (auto-) censura, porque é o próprio tradutor
que (se) censura sem que disso se aperceba [...].
Mediante as interfaces já abordadas sobre ideologia, reescritura e censura,
pudemos compreender que tanto em um contexto passado quanto em um mais
moderno, a ideologia sempre esteve presente, de forma que a censura,
consequentemente, sempre rodeará os campos da reescritura, afoita e voraz por
reprimir o que não cai bem e não agrada as autoridades maiores. O que é exigido do
tradutor, dentro desse contexto, é que não seja ingênuo a ponto de pensar que a
tradução se baseia apenas na tradução de palavras e na transferência de idiomas; é
necessário que ele entenda, principalmente os ingressantes, que tradução é
manipulação de textos, jogo de palavras, de sentidos. É preciso estar preparado
para saber lidar com os elementos que circundam o processo de tradução; ou seja,
as diferenças culturais e ideológicas, encontrando formas de dizer aquilo que nem
sempre está evidente no texto de partida, ou não é permitido dizer na língua alvo.
Apesar das muitas discussões feitas a esse respeito, muito ainda precisa ser
discutido e questionado sobre a censura dos sistemas que cerceiam a reescritura, a
forma de controle e manipulação da produção escrita em todas as suas dimensões.
No capítulo seguinte, analisamos alguns excertos selecionados da tradução
do “Diário de Anne Frank”, a fim de exemplificarmos os aspectos ideológicos e o
efeito da censura sobre a produção do “Diário”, tema principal do nosso trabalho,
apontando as alterações feitas nos fragmentos, além de omissões percebidas no
processo de reescrita. Paralelamente, buscamos identificar as motivações
ideológicas das editoras que editoraram e publicaram o Diário, como um documento
histórico para o mundo.
19
3 IDEOLOGIA E CENSURA NO DIÁRIO DE ANNE FRANK
O “Diário de Anne Frank”, um conjunto de relatos que se tornou documento
bélico histórico mundialmente conhecido e escrito por uma menina judia entre seus
13 e 15 anos, é um exemplo autêntico de como não apenas os mecenas, mas
também os próprios reescritores legitimados pelos mecenas podem limitar ou
constranger, de modo censurável, qualquer obra.
Annelise Maria Frank, mais conhecida como Anne Frank, manteve o seu
diário entre 12 de junho de 1942 e 1° de agosto de 1944, a princípio, estritamente
pra si. Relatava os horrores da perseguição feita pelos nazistas aos judeus na
Segunda Guerra Mundial. Em seu diário, Anne Frank descreve situações cotidianas
sobre a convivência difícil entre a sua família e os oito moradores do anexo secreto
(o local que serviu de esconderijo para a família Frank durante a guerra); discute
sobre a condição das mulheres em sua época; política, sobre as descobertas
pessoais do período da adolescência e a indiferença que sentia em relação à mãe,
além da preferência explícita tida pelo pai. Como a sociedade em que vivia não
aceitava que uma menina da sua idade tivesse tais ideias e tamanha maturidade
demonstradas, Anne sentia na sua precocidade que não era compreendida devido à
maneira que transitava pelos vários assuntos com conhecimento de causa e
segurança, e acabou por se confinar às páginas do seu diário, personalizado como
Kitty.
A ideologia vigente da década de 1940, ortodoxa ao extremo, não permitia a
uma menina de 13 anos a liberdade de fazer perguntas e questionar fatos sobre a
vida pouco claros em sua mente. O que nos chama a atenção é que, apesar de toda
a repressão da sociedade e dos próprios pais, o que na verdade era uma tentativa
de preservar os filhos da exposição direta a assuntos que eram tidos por tema
adulto, Anne não se intimidava e demonstrava interesse em discutir com os ditos
‘adultos’ sobre os tabus da sociedade. Como não tinha abertura para dialogar, ela
vivia numa eterna busca por respostas sobre o desconhecido da vida tentando
encontrar meios de descobrir alguma coisa sem que fosse necessário perguntar aos
adultos; muitas vezes, questionava abertamente com os pais as suas dúvidas,
porém, não era aceita e tão menos compreendida, e por causa do seu
20
comportamento foi considerada uma menina rebele e anormal, quando comparada
às outras.
3.2 O processo de autoeditoração
Em 1944, Gerrit Bolkestein, membro do governo holandês no exílio, anunciou
numa transmissão via rádio que esperava depois da guerra recolher testemunhos
oculares do sofrimento do povo holandês sob a ocupação alemã para que fossem
postos à disposição do público, e mencionou como exemplo, cartas e diários.
Impressionada com aquele discurso, Anne, que já tinha em si um desejo de ser
escritora, começou o processo de edição do diário, uma autoeditoração dos próprios
escritos onde ela reformulava ou retirava as passagens que não achavam tão
importantes.
Interessante observar que a menina Anne Frank, ao entrever a possibilidade
de publicar o seu diário após a guerra, começa a reescrevê-lo, filtrando a sua escrita
numa atitude de autocensura, uma vez que ela identificou elementos que não
correspondiam ao ideário ideológico.
Durante o processo de autoeditoração dos relatos, Anne dividiu a sua
reescrita em dois níveis: pessoal e literário. No nível pessoal, retirou passagens
pouco elogiosas de sua mãe, num momento em que ela olhou para trás e se
considerou amadurecida, e numa atitude de autocensura se questionou: “Anne, foi
mesmo você que mencionou ódio? Oh, Anne como você pode?” (LEFEVERE, 2007,
p. 103). Ao reler o diário, automaticamente se deu conta de que o que tinha escrito
não era aceitável para si e sabia que muito menos para a sociedade que
possivelmente leria aquelas páginas. No seu consciente, Anne sabia bem que muito
do que tinha escrito não se enquadrava na imagem que uma adolescente tinha que
ter.
No nível literário, Anne reescreve o momento em que esteve com Peter, rapaz
que também morava no anexo secreto e que foi seu primeiro verdadeiro amor; na
primeira versão lemos “enquanto sentava quase à frente de seus pés [...]” escrito de
forma simples e pouco poética, enquanto que na versão editada por ela “eu [...]
sentei em uma almofada no chão, pus meus braços em torno dos meus joelhos
21
dobrados e olhei-o atentamente” (LEFEVERE, 2007, p. 103). Ao sabermos que Anne
sempre gostou de ler e que a leitura era uma das atividades que ela cumpria com
assiduidade, vemos que nesse trecho que ela procura reproduzir toda a linguagem
poética e literária que conhece e que com certeza via nos livros e revistas que
passou lendo durante os seus últimos dois anos reclusos no anexo.
Outro exemplo de autoeditoração no nível literário feito por Anne está no
momento em que ela decidiu mudar os nomes dos moradores no anexo por nomes
fictícios do que até então seriam “personagens” de uma grande história, como por
exemplo, os da família Van Pels, que foram chamados de família Van Daan; Fritz
Pfeffer chamado de Dussel e seu próprio nome Anne Frank que ela mudou para
Anne Robin.
Com esses exemplos de autoeditoração, entendemos que a responsabilidade
do reescritor quanto ao que será expresso é grande e cabe a ele escolher o que
será dito e como. A censura vai muito mais além dos limites impostos pelos regimes
autoritários, a ideologia intrínseca em cada um de nós como indivíduos sociais transborda
de nós de forma que censura ocorra automaticamente, em muitos casos, sem que
percebamos, domesticalizamos e enquadramos o texto e seus respectivos termos
ao aceitável. Do mesmo modo, Coracini (2008) confirma dizendo:
A censura de regimes políticos autoritários se faz presente para
impedir que se digam certas coisas silenciando o que não pode e
não deve ser dito; [...] no dia-a-dia [...] censura vem de dentro, habita
o simbólico e nele faz corpo, penetrando em sua constituição
identitária, ou seja, a autocensura está muito mais presente e atua
muito mais ativamente no indivíduo de forma automática do que
através das autoridades maiores.
3.3 A tentativa de reconstrução de uma Anne Frank diferente
Ao ter certeza da morte de sua filha e dos demais moradores do anexo, Otto
Frank decidiu realizar o sonho de Anne publicando o Diário depois da Guerra. Ao ler
os escritos da filha, Otto se impressionou com a maturidade e com a facilidade que
Anne tinha ao transitar entre questões que, até então, não eram bem vistas quando
abordadas por meninas. Além de ter que lidar com o espanto da descoberta de que
a menina que tinha escrito todas aquelas páginas era a mesma Anne, sua filha, o
que o fez reconhecer que realmente não a conhecia tão bem como imaginava, Otto
precisou ter em mente de que para o diário ser publicado, no contexto pós-guerra
22
que viviam, não seria viável expô-lo com as mesmas palavras que foi escrito, afinal,
Anne expressou o seu parecer claro e aberto sobre tudo o que, segundo a sua
visão, não estava correto. Ao procurar editoras alemãs e holandesas para a
publicação do diário, notou-se por parte do editor holandês e do próprio Otto a
necessidade de fazer algumas alterações e cortes. Momentos em que Anne
indagava sobre a condição de inferioridade das mulheres, ou ridicularizava a política
e os soldados que prendiam os judeus foram retirados da primeira edição de 1947. A
repercussão da sinceridade exposta de uma menina de treze anos seria imensa,
principalmente pelo recente conflito social e político que acabara acontecer, que
poderia desestruturar a recente estabilizada relação entre os envolvidos na guerra,
uma vez que o diário ia contra a ideologia vigente da época.
As alterações feitas foram divididas em três categorias: de nível pessoal,
ideológicas, e de mecenato (LEFEVERE, 2007).
No nível pessoal, onde ela escreveu: “Fico realmente envergonhada quando
leio aquelas páginas que lidam com assuntos que eu prefiro imaginar mais bonitos
[...]” (LEFEVERE, 2007, p.103), vemos que Anne se mostra com autocensura, pois
se envergonha dos seus comentários de natureza sexual que até então eram um
tabu. Algumas referências pouco elogiosas de conhecidos, amigos até mesmo
familiares foram retirados, porque a intenção principal nesse momento foi proteger a
imagem e reputação de algumas pessoas. Trechos em que Anne deixa claro sua
preferência pelo pai e sua indiferença com a mãe, como quando diz: “Simplesmente
não suporto mamãe, e tenho de fazer força para não gritar com ela o tempo todo e
para ficar calma quando tenho vontade de lhe dar um tapa na cara” (Frank, 2011,
p.60) também foram censurados, afinal, era inconcebível que as filhas falassem
assim da mãe.
Outro exemplo é quando “Anne Frank dá uma descrição não muito amigável e
parcialmente pouco acurada do casamento de seus pais nas 47 linhas que foram
omitidas”. Esta passagem foi retirada a pedido da família Frank (LEFEVERE, 2007,
p. 105). Essa com certeza foi uma restrição que parte do pessoal para o ideológico,
uma vez que tal trecho não se encaixava na expectativa que a sociedade fazia do
imaginário de uma menina de 14 anos, até porque casamento e vida conjugal não
fazia parte do repertório da conversa de adolescente.
23
No nível ideológico, o trecho em que Anne se pergunta: “Por que as mulheres
ocupam uma posição tão inferior à dos homens entre as nações?” (LEFEVERE,
2007, p. 108) nos revela que a menina levanta um questionamento não muito
comum para a época e para a idade que tinha, uma vez que a maioria das meninas
de sua idade se preocupava com um futuro promissor como esposa, mãe e dona de
casa; tal questão não era indagada nem mesmo pelas mulheres adultas, já que se
entendia que a situação inferior das mulheres sempre se estendeu por gerações
mundo afora por “tradição,” e não cabia questionamento. A natureza pessoal do
diário nos mostra que Anne, como toda adolescente curiosa para desvendar os
tabus impostos pela sociedade, comenta e questiona funções corporais ainda não
muito esclarecidos, e não só na sua mente, mas como a maioria das meninas da
mesma idade; casos de hemorroidas e defecação, que ainda estava ligado ao
nascimento, também são omitidos.
Compreendendo que as ideias precoces de sua filha não caberiam no formato
da ideologia da época, Otto Frank viu que não havia escolha e foi obrigado a aceitar
as restrições impostas pela editora holandesa que fez a publicação do Diário, afinal,
sem essas alterações, nenhuma editora aceitaria publicar a reescritura, muitas
devido à ideologia vigente, outras devido ao temor político que regia o país, mas no
entanto o Diário foi publicado, porém, 26 cortes foram feitos em sua versão
datilografada (LEFEVERE, 2007).
Para a publicação em alemão, o Diário foi traduzido por uma amiga da família
dos Frank, Annelise Schütz, uma jornalista refugiada na Holanda para escapar da
repressão da guerra. A versão datilografada entregue para Schütz não havia sido
editada e chegou à editora alemã com trechos a versão holandesa não continha.
Nesse contexto, temos exemplos claros da responsabilidade atribuída ao tradutor no
processo de compreensão do sentido das palavras e de transmissão de significado
para a língua fonte. Nesse momento, Schütz se encontra numa encruzilhada onde é
necessário decidir entre ser fiel aos padrões culturais ou à escrita sincera de Anne;
Schütz escolheu seguir à ideologia alemã.
Para a publicação do Diário na Alemanha, também foram feitas várias
alterações no original, afinal, nas palavras da própria Annelise Schütz: “Um livro que
você queira vender bem na Alemanha [...] não se deve conter nenhum insulto direto
aos alemães” (LEFEVERE, 2007, p. 112). A linguagem aberta e sem pudores da
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menina judia causaria problemas políticos e sociais, além de que, ideologicamente
falando, a linguagem sem pudores, os questionamentos e discussões feitos por
Anne não eram concebidos socialmente.
Ao traduzir o Diário, Schütz precisou levar em conta todos esses aspectos
que há pouco foram mencionados. Sentindo as limitações ideológicas, Schütz se
encontrou na encruzilhada que todo o tradutor fica ao traduzir, principalmente
quando se trata de reescrever em uma cultura sobre uma personagem que pertence
à outra cultura. No trecho em que Anne comenta a situação crítica em que viviam os
prisioneiros de guerra nos campos de concentração, dizendo: “Voor honderden
mensen 1 wasruimte em er zijn veeel te weining WC’s. De slaapplaatsen zjin alle
door elkaar gegooid” que significa [1 lavatório para centenas de pessoas, e existem
muito poucos banheiros. Os espaços de dormir foram todos amontoados num só],
Schütz traduz como: “viel zu wenig Waschgelegenheiten und WC’s vorhanden. Es
wird erzählt, dass in den Baracken alles durcheinander schläft” [Muito pouca
infraestrutura para lavagem e banheiros. Dizem que muitos dormem juntos em
barracões] (LEFEVERE, 2007, p.113). Na tradução vemos que as alterações
produzidas pela tradutora tenta abrandar o estado crítico e de calamidade que se
encontravam os prisioneiros. O “dizem” faz sugerir incerteza de verdade e faz pensar
que há poucos lavatórios, e não apenas um; nesse trecho, Schütz acaba
amenizando o fato, não transmitindo a denuncia que a menina fazia e a real situação
vivida dos campos de concentração.
No excerto em que Anne se mostra revoltada pela política alemã de atirar em
reféns, ela diz: “zet de Gestapo doodgewoon een stuk of 5 gijzelaars tegen de muur”
[a Gestapo simplesmente coloca uns 5 reféns contra a parede], Schütz traduz como:
“dann hat man einen Grund, eine Anzahl dieser Geiseln zu erschiessen” [eles então
têm uma razão para atirar em alguns desses reféns] (LEFEVERE, 2007, p. 113). Ao
traduzir “eles estão” em vez de “a Gestapo” Schütz retira a identidade cruel exercida
pela polícia alemã de atirar explicitamente em qualquer refém judeu, deixando um
espaço sugestivo para quem seria “eles”.
Numa tentativa de tornar o Diário vendável e aceito na Alemanha, Schütz
busca trazer a imagem do ideal de uma menina de 14 anos. O linguajar aberto e
sem pudores de Anne jamais seria compreendido e aceito pela sociedade; em todos
os trechos em que Anne usava expressões fortes e revoltantes, a tradutora se viu
25
obrigada, pela ideologia da época e também pela própria a recorrer a eufemismos
para tentar construir a imagem de uma Anne Frank diferente do que estava expressa
nos escritos. Excertos como: “Zulke uilen” [esses idiotas] maneira como a escritora
se referiu aos soldados alemães se torna “solche Faulpelze” [essas pessoas
preguiçosas]; “Rot” [podre] é traduzido como “rötlich” [avermelhado] (LEFEVERE,
2007).
O mais famoso dos “erros de tradução” de Schütz é aquele do holandês “er
bestaat geen groter vijandschap op de wereld dan tussen Duitsers em Joden” [não
há maior inimizade no mundo do que a entre alemães e judeus], que é traduzido
como: “eine grössere Feindschaft als zwischen diesen Deutschen und den Juden
gibt es nicht auf der Welt!” [não há maior inimizade no mundo que a entre esses
alemães e judeus] (LEFEVERE, 2007, p.113). Entendemos que “entre alemães” é de
natureza abrangente, Anne se refere a todos eles sem exceção, e, no entanto, foi
traduzido como “esses alemães”, o que nos transmite a ideia de que o grande
conflito entre alemães e judeus está relacionado apenas àquele grupo seleto.
Colocamos aqui entre aspas “erros de tradução” porque foram cometidos de
forma consciente, por uma razão melhor descrita como ideológica – uma mistura de
uma ideologia vigente do país, baseada em certa visão de mundo, e a ideologia
mais contemporânea do simples e puro lucro, afinal, a intenção principal da editora
era a venda do produto e para isso deveria estar de acordo ao “aceitável”.
Ao analisarmos alguns trechos das questões ideológicas envolvidas na edição
de 1947 do Diário de Anne Frank, entendemos que Schütz se utiliza de maneira
consciente da (auto-) censura, com palavras amenas e eufemismos para alguns
fragmentos para fazer o sofrimento dos judeus parecer menor do que foi de fato.
Não houve, na verdade, esforços para reproduzir em alemão o estilo da escritora
Anne Frank, afinal, em 1944 uma menina de 14 não fazia julgamento da mãe e irmã.
O que Schütz queria mostrar era que meninas “adequadas” da idade de Anne
também deveriam escrever de modo “adequado”, e o esforço para mostrar uma
Anne mais enquadrada nos padrões fez com que todas as nuanças da inteligente
precocidade da adolescente judia fossem enfraquecidas ou até mesmo perdidas por
causa da ideologia.
O caso ocorrido no Diário de Anne Frank nos faz meditar sobre a questão que
envolve a temática dessa pesquisa. O reescritor uma vez que se prende às suas
26
raízes culturais e ideológicas sempre estará na encruzilhada entre a ideologia social
e o texto a ser traduzido, tendo que decidir a todo o momento qual caminho
percorrerá para transmitir a mensagem do texto.
O tradutor sempre será considerado traidor por algum aspecto, afinal, se ele
for fiel aos seus princípios e ideologia pessoal, poderá estar traindo o autor, ou a
mensagem do texto, ou aos mecenas ou a ideologia vigente. Por mais que ele
queira ser fiel a um, acabará sendo infiel ao outro e assim por diante. Não há como
definir de forma definitiva os limites e padrões a serem seguidos, pois cada
reescritor tem a sua ideologia e age de acordo com o que acredita ser viável, já que
o que pode ser correto para um, não é para o outro. O que é primordial ao reescritor
no seu trabalho de reescrita é que ele saiba que a sociedade e cada elemento dela
giram entre os seus próprios limites pré-estabelecidos, que podem ser culturais,
tradicionais, políticos ou ideológicos e que esses limites devem ser respeitados.
Diante da impossibilidade de ser de um todo fiel, cabe a quem traduz o
melhor desempenho e comprometimento com o trabalho, sendo encabida a ele a
tarefa de escolher a quê dedicar a sua fidelidade, mas independentemente da
escolha feita, espera-se que o mais importante seja feito: que a mensagem seja
transmitida e que o real entendimento seja alcançado.
27
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante dos trechos censurados escolhidos e depois de uma breve análise
deles, podemos chegar à conclusão de que a hipótese formulada no início desse
trabalho de pesquisa de que os profissionais da tradução se acham sempre diante
de uma encruzilhada, tendo que decidir a todo o momento a que rumo seguir, se
confirma ao analisarmos quando Schütz, ao traduzir o “Diário de Anne Frank”, se
depara com o contraste ideológico de uma menina de 14 anos que se destacava das
demais devido a sua precocidade e a ideologia social predominante que não
aceitava essa diferença. E diante disso ela precisava escolher qual caminho seguiria
e a que seria fiel; no entanto, Schütz escolheu respeitar a ideologia vigente de sua
época. Ao fazer a escolha, muito do estilo literário e da personalidade de Anne não
foram transmitidos, o que confirma o fato de que o tradutor sempre fará a escolha
entre omitir ou alterar alguma parte do chamado “original”; na sua melhor intenção,
porque todo tradutor busca ser fiel, sempre deixará de corresponder a algum
aspecto.
A propósito dos limites sobre até onde o tradutor pode seguir com omissões
no texto sem que desrespeite o autor e muito menos o leitor que receberá o
resultado final de todo o processo, chegamos à conclusão baseados na leitura do
principal autor que embasou o trabalho de pesquisa, Lefevere (2007), de que é
necessário que, não apenas o tradutor, mas o reescritor no geral se situe do que é
permitido ter do texto e do autor que interpreta de acordo com a visão do ideário de
seu tempo, lugar e poética vigente. É de extrema importância estar preparado para
manipular os elementos que circundam o processo de tradução; ou seja, as
diferenças culturais e ideológicas, e encontrar formas de dizer aquilo que nem
sempre está evidente no texto de partida, ou não é permitido dizer na língua alvo.
As áreas de estudo voltadas para a relação tradução – ideologia ainda não
são vastas e necessitam de que mais estudiosos e pesquisadores notem a
importância dessa relação e se interessem por essa linha de pesquisa.
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5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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a leitura e o ensino. Campinas: Pontes, 1992.
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TCC – A Influência da Ideologia Sobre o Tradutor no