CENTRO UNIVERSITÁRIO ADVENTISTA DE SÃO PAULO CAMPUS ENGENHEIRO COELHO A INFLUÊNCIA DA IDEOLOGIA SOBRE O TRADUTOR NO “DIÁRIO DE ANNE FRANK” LAIZ MONIQUE ROSA DE ALMEIDA ENGENHEIRO COELHO 2012 LAIZ MONIQUE ROSA DE ALMEIDA A INFLUÊNCIA DA IDEOLOGIA SOBRE O TRADUTOR NO DIÁRIO DE ANNE FRANK Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Tradutor e Intérprete, pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo, campus Engenheiro Coelho, sob orientação da Profª Drª Ana M. M. Schäffer ENGENHEIRO COELHO 2012 Trabalho de Conclusão de Curso do Centro Universitário Adventista de São Paulo, do curso de Tradutor e Intérprete apresentado e aprovado em 15 de novembro de 2012. _________________________________________________ Orientadora: Profª Drª Ana M. M. Schäffer __________________________________________________________ Segundo Leitor: Profº Drº Milton L. Torres DEDICATÓRIA A produção de um trabalho de conclusão de curso é sempre trabalhosa e exige muita dedicação e apoio. E é por isso que eu dedico este trabalho a todos os que me incentivaram e me apoiaram nesse trajeto, Muito obrigada. AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a Deus, por ter me concedido a oportunidade e por ter aberto as portas para que este sonho fosse realizado. E é na reta final deste curso que eu vejo o quanto Ele sempre esteve comigo. Deus me ajudou e me capacitou para que, apesar de tantas dificuldades, eu chegasse até aqui. Agradeço também a instituição de ensino UNASP, professores, coordenadores e funcionários por nos fornecer sempre os melhores recursos, materiais, suporte intelectual e espiritual para que nos tornemos profissionais capacitados para realização de um bom trabalho, muito obrigada! Agradeço a minha professora e orientadora Profa Dra Ana M. M. Schäffer pela orientação, dedicação e credibilidade depositadas em mim, não só agora, mas durante todo o curso. Obrigada pela paciência, pelas dicas e até mesmo pelas repreensões, pois sei que foi tudo para o nosso crescimento pessoal e profissional. Sempre me lembrarei com carinho da senhora... Thank you very much! Aos meus familiares pela força, pela ajuda, pelas orações e torcida pra que eu chegasse até aqui; o meu muito obrigado. Quero agradecer principalmente a minha mãe, Damaris Rosa de Jesus de Almeida, por toda a dedicação, apoio, esforços e por estar sempre ao meu lado nos momentos bons e ruins que se desenrolaram durante esses quatros anos. Posso dizer que a vitória da conclusão desse curso não é apenas minha, mas nossa. Não tenho palavras para agradecer, te amo. E ao meu ex- noivo Fredson Souza (em memória) pela pessoa maravilhosa que ele foi e de como em diversas formas me ajudou durante todo o percurso do curso; pelos inúmeros momentos agradáveis e pela compreensão da minha ausência e cansaço em vários momentos. As minhas lembranças sobre nós sempre serão as melhores, pelos momentos inesquecíveis que passamos juntos. Muito obrigada, Fred. “Os autores fazem as literaturas nacionais, mas são os tradutores que fazem a literatura universal.” José Saramago RESUMO Nos últimos anos, a profissão do tradutor vem crescendo consideravelmente no Brasil. Dos estudos linguísticos focados na área de tradução, pouco ainda se fala da relação tradução, ideologia e censura. Muito além do que muitos pensam, a tradução não está ligada apenas à transferência de palavras de um idioma para o outro, mas há por trás do processo um sistema de muitas faces que atua poderosamente, do qual fazem parte a ideologia pessoal ou social mesclada à cultura, política e poética vigentes, como é o caso do contexto a que remete esse trabalho de pesquisa, “O Diário de Anne Frank”. A problemática que justifica o interesse de pesquisa é se existiria um protocolo de comportamento a ser seguido por quem traduz diante das restrições impostas pela ideologia ou censura, ao se trabalhar com obras que impõem posicionamentos ideológicos específicos; ainda mais, como lidar com o construto defendido por Lefevere (2007) de que quem traduz assume o papel de reescritor, ou seja, autor responsável pelo que produz, se este reescritor está limitado? Numa tentativa de problematizar as questões mais do que respondê-las, ventilamos a hipótese de que os profissionais da tradução se acham sempre diante de uma encruzilhada, tendo que decidir entre omitir ou alterar alguma parte do chamado “original” e, ao fazerem isso, inevitavelmente deixam aflorar posicionamentos ideológicos que os atravessam. Diante disso, os objetivos da pesquisa visam abordar a tarefa de quem traduz, com base nos aspectos ideológicos por trás da atividade, ao se buscar identificar alguns fatores ideológicos que podem ter influenciado a tradução do “Diário de Anne Frank” e, ao mesmo tempo, trazer à tona a ideologia vigente na época da reescrita da obra e as razões dela ter sofrido tanta influência na sua produção editorial. Para debater essas e outras questões, convidamos para dialogar conosco Lefevere (2007), Leonardi (2008) e Coracini (2008), autores que nos permitiram compreender que os profissionais da tradução se acham, de fato, diante de uma encruzilhada e que não são livres para dizerem na língua alvo tudo o que está no texto de partida, o que os leva à omissão, substituição de palavras, como apontam os resultados de nossa pesquisa. Palavras-Chave: Tradução; Ideologia; Censura; O Diário de Anne Frank. ABSTRACT In recent years the translation profession has increased significantly in Brazil. Not so much has been said about the relationship between translation, ideology and censorship in linguistic studies focused on translation area. Differently from what many have thought, the translation process is not only to transfer words from one language to another, but there is behind the process a multiform system which operates powerfully, and the personal and social ideology related to current culture, politics and poetics makes part of it, as is the case of “The Diary of Anne Frank’s” context, to which our research refers. The problematic surrounding the research is if there would be a protocol of behavior to be followed by those translating, before the restrictions imposed by ideology and censorship, when working with works which impose specific ideological position. In addition, how to handle with Lefevere’s construct that who translates is also a rewriter; in other words, the translator is a responsible author for his production. In an attempt to problematizing the questions more than to answer them, we ventilate the hypothesis that the translation professionals are always at a crossroad, all time having to decide between to change or omit some part of the called “original”, and by doing this, they are definitely showing their ideology. So the research aimed to address the task of those who translate, based on ideological aspects behind the activity, by seeking to identify some ideological factors that may have influenced the translation of “The Diary of Anne Frank”. At the same time, we intended to bring up the current ideology of the time of the rewriting of the work and the reasons of so much influence on its editorial production. To discuss these and other matters, we based on Lefevere (2007), Leonardi (2008) and Coracini (2008), whose authors have made clear to us that the translation professionals all the time find themselves at a crossroad and they are not free to say all that is in the source language to the target culture, and this situation take them to omission and replacement of words, as showed on the results of our study. Keywords: Translation; Ideology; Censorship; “The Diary of Anne Frank”. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 10 1.1 Objetivos ........................................................................................................................ 11 1.2 Problemática pesquisa ................................................................................................... 11 1.3 Hipótese......................................................................................................................... 11 1.4 Metodologia ................................................................................................................... 12 2 A INTERFACE IDEOLOGIA/TRADUÇÃO ........................................................................ 13 2.1 O papel do tradutor: entre ideologia e censura .............................................................. 16 3 IDEOLOGIA E CENSURA NO DIÁRIO DE ANNE FRANK .............................................. 19 3.1 O processo de autoeditoração ....................................................................................... 20 3.2 A tentativa de reconstrução de uma Anne Frank diferente ............................................. 21 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 27 5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 28 10 1 INTRODUÇÃO Nos últimos anos os estudos linguísticos focados na área de tradução vêm crescendo consideravelmente no Brasil e, junto com eles, a profissão do tradutor. De todos os aspectos relacionados à tradução, pouco ainda se fala da relação tradução, ideologia e censura. Podemos dizer que a tradução é uma arte e o tradutor, um artesão. Quem traduz trabalha com as palavras como se estivesse tecendo uma rede, sendo necessário cuidado e atenção para não embaralhar e nem criar nós no tecido e entre as linhas. Muito além do que muitos pensam, a tradução não está apenas na transferência de palavras de um idioma para o outro, mas é exigido de quem traduz bagagem cognitiva/cultural, compromisso e fidelidade. Seguindo essa linha de raciocínio e sabendo que as palavras não são apenas signos, mas que são acompanhadas de significado e posicionamento ideológico, Leonardi (2008, p. 80) afirma que: Do ponto de vista linguístico, a tradução é composta de palavras que podem carregar consigo um posicionamento ideológico, em particular. Do ponto de vista cultural, a tradução é uma atividade que toma lugar em contextos econômicos e político-sociais reais onde as pessoas podem ter interesses significativos na produção ou reprodução de um texto específico em uma determinada comunidade. Os tradutores podem se deparar com muita pressão em seu trabalho, em termos de padrões de qualidade, fidelidade, ideologia e censura. A tradução pode estar sujeita a vários atos conscientes de seleção, adição e/ou omissão. Estudar uma tradução de uma perspectiva ideológica e de censura significa analisar todos aqueles casos de manipulação que ocorrem no texto. Censura e ideologia tem sido vista, em momentos, como tendo o mesmo significado. Ambas pode ser um resultado de pressão interna e/ou externa que pode levar à manipulação ou à reescrita de um texto1 (nossa tradução – doravante n.t.). Considerando a atividade tradutória sob este olhar, a responsabilidade de quem traduz passa a ter outra dimensão, visto que nem sempre o profissional tem ao seu alcance os mecanismos para driblar a situação, pois algumas são impostas 1 From a linguistic point of view, translation is made up of words which may carry with them a particular ideological positioning. From a cultural point of view, translation is an activity which takes place in real socio-political and economic situations where people may have significant interests in the production or reproduction of a specific text in a given community. Translators may face a great deal of pressure in their work in terms of quality standards, faithfulness, ideology and censorship. Translation may be subjected to several conscious acts of selection, addition and/or omission. Studying a translation from a censorship or ideological perspective means analysing all those cases of manipulation which occur in the text. Censorship and ideology have at times been viewed as meaning the same. Both may be a result of external and/or internal pressure which may lead to manipulation or rewriting of a text. 11 ideológica ou culturalmente, enquanto outras dependem das escolhas de quem traduz, e estas são também mediadas pela ideologia pessoal. Surge desses pressupostos teóricos uma problemática que circunda o nosso interesse de pesquisa; isto é, existiria um protocolo de comportamento a ser seguido por quem traduz diante das restrições impostas pela ideologia ou censura, ao se trabalhar com obras que impõem posicionamentos ideológicos específicos? Como lidar com o construto defendido por Lefevere (2007) de que quem traduz assume o papel de reescritor, ou seja, autor responsável pelo que produz, se este reescritor está limitado? Até onde ele pode ir? Qual é o seu limite? Numa tentativa de problematizar as questões mais do que respondê-las, ventilamos a hipótese de que os profissionais da tradução se acham sempre diante de uma encruzilhada, tendo que decidir a todo o momento a que rumo seguir e, ao fazerem escolhas entre omitir ou alterar alguma parte do chamado “original”, inevitavelmente deixam aflorar os posicionamentos ideológicos que os atravessam. Diante disso, o objetivo geral da pesquisa visa discutir o quão árdua é a tarefa de quem traduz, pontuando basicamente os aspectos ideológicos por trás da tarefa e suas implicações para o produto final que é a tradução; de modo específico, temos como meta identificar alguns fatores ideológicos que podem ter influenciado a tradução do “Diário de Anne Frank” e, decorrente deste objetivo, discutir a ideologia vigente na época da reescrita da obra, e como ela influenciou os resultados finais da produção editorial. Para embasar o que abordamos no trabalho, tomaremos como principal autor André Lefevere (2007), por fazer profundas reflexões sobre os elementos que atravessam o processo de reescrita, cuja ênfase recai sobre a tradução como a forma mais poderosa de reescrita, além de outros tipos como a crítica, a historiografia, a edição e a antologização, as quais se acham sempre imbricadas com a ideologia, aspecto bastante problematizado por Lefevere, em sua obra “Tradução, reescrita e a manipulação da fama literária” (2007). Além de Lefevere, convidamos outros autores para dialogarem conosco e, entre eles ressaltamos Leonardi (2008) e Arrojo (1997), ambos por também trazerem contribuições sobre o papel da ideologia na formação do sistema literário. Estes autores embasam nossa pesquisa porque são os que tratam do assunto de forma específica e atendem os nossos objetivos. 12 Ao buscarmos fontes bibliográficas para a realização do estudo, percebemos que não há muitas pesquisas sobre a questão central do trabalho, daí termos entendido que a interseção tradução e ideologia merece atenção especial por parte de pesquisadores, pois consideramos extremamente importante a percepção do que pode estar por trás de todo processo de reescrita, que muitas vezes, passa despercebido, mas que pode ser um campo minado. Daí o nosso interesse em abordar o assunto de forma mais aprofundada, além de disponibilizar material que incentive alunos e ingressantes na profissão da tradução a lerem e questionarem mais sobre esses aspectos referentes à influência da ideologia e a consequência disso na produção literária do país. Quanto à metodologia de trabalho, por se tratar de uma pesquisa que busca discutir teoricamente o papel da ideologia, empregamos a pesquisa bibliográfica e documental, além da pesquisa analítica e descritiva, visto que temos como um de nossos objetivos identificar, pela análise e comparação entre texto original e traduzido, alguns fatores ideológicos por trás da tradução do “Diário de Anne Frank”. Realizamos o trabalho na Universidade Adventista de São Paulo (UNASP), campus de Engenheiro Coelho, que nos disponibilizou todos os recursos necessários para a realização deste trabalho, como: ampla biblioteca, acervo de periódicos, laboratório de informática, e outros. Os passos seguidos para a realização do estudo foram: no primeiro capítulo, após esta introdução, trazemos o embasamento teórico que retrata a influência da ideologia na reescrita de modo geral; em seguida, apresentamos aspectos biográficos referentes à personagem principal, Anne Frank, já que é na história da sua vida que o trabalho se desenrolou; o segundo capítulo trata da identificação de elementos que podem ter sido motivados pela ideologia e, para compor nossas considerações, fizemos uma leitura aprofundada do “Diário” por ser um documento histórico que apresenta nuanças diversas da cultura alemã da década de 1940, servindo como pano de fundo para a análise das traduções feitas. A partir daí, analisamos os aspectos levantados por Lefevere (2007) sobre as mudanças provocadas pela ideologia, na obra de Anne Frank e os comparamos com a reescritura (tradução) do texto. Sob este olhar, discutimos a relação entre ideologia e censura e como estão ligadas, sem ser a mesma coisa. 13 2 A INTERFACE IDEOLOGIA/TRADUÇÃO Neste capítulo fazemos um percurso histórico sobre o que é a ideologia e suas implicações para a reescrita. Conforme informamos na introdução, o objetivo visa problematizar o quão árdua é a tarefa de quem traduz, pontuando basicamente os aspectos ideológicos por trás da tarefa e suas implicações para o produto final que é a tradução. Não haveria como desenrolar o tópico ideologia na tradução sem antes falarmos de reescritura, pois ela está diretamente ligada ao tema, afinal, tradução, edição, antologização de textos, compilação de histórias da literatura, críticas (resenha) de livros, são reescrituras, que são, em sua maioria, feitas por professores, críticos, resenhistas, autores e tradutores. Através dela, é possível fazer uma ponte entre a obra literária em si e o leitor profissional e não profissional – sendo o último o que mais recorre a esses meios para ter acesso e maior compreensão da obra original. Tratando-se de reescrita literária, podemos afirmar que as obras dessa área estão sujeitas a um sistema de alto poder que controla toda a sua produção e que tem a autoridade para manipular ou até mesmo alterar o produto final. Esse sistema é formado por intelectuais da literatura, os que compõem o cânone do país, além de entidades educacionais, editoriais, religiosas e governamentais. O domínio da produção literária é uma maneira de controlar tudo o que se produz e é lido pelo público; é uma forma de manter o controle sobre os padrões pré-estabelecidos e a ideologia de certa sociedade ou comunidade que coloca limite para o que é considerado “aceitável” para o contexto, época e lugar, tanto em termos de poética vigente, quanto de movimento literário em atuação. A decisão de como trabalhar com a poética e com as palavras dos textos não está apenas nas mãos do reescritor, que se envolve e mergulha nas palavras tão profundamente na intenção de transmitir o real significado da forma mais clara e fiel possível – não estamos dizendo também que não cabe a ele boa parte da responsabilidade sobre o que vai ser transmitido para o leitor – mas tal tarefa pode ir além do que ele por si só pode controlar. Para Lefevere (2007), a literatura não tem o poder de retirar a liberdade do leitor, porém, antes disso, o sistema atua com uma 14 série de restrições sobre os reescritores e leitores. O autor ainda afirma que os tradutores, em muitos casos, precisam agir como “traidores”, muitos de forma não consciente porque não lhes é dado alternativa, a escolha sempre terá de ser feita enquanto permanecerem dentro dos muros que cercam a cultura que nasceram ou que tomaram para si; ou seja, ou escolhem opor-se ao sistema tentando atuar fora de suas restrições ou escrevem/reescrevem obras literárias que não se encaixam na poética dominante ou na ideologia de um dado tempo ou lugar. Outro poder que exerce controle sobre as obras literárias produzidas e que atua também de igual forma fora do sistema literário é chamado sistema do mecenato. É composto por pessoas de grande influência, como políticos, líderes religiosos, uma determinada classe social, algumas entidades religiosas e também de certa forma pela mídia. Os mecenas, como são chamados, querem nas mãos, e na maioria das vezes o têm, o poder de manipular, podar e alterar as produções literárias da reescritura, ou se dessa forma não o conseguem, procuram controlar sua distribuição nas livrarias, escolas e outros meios na intenção de padronizar sua ideologia literária. Dentro desse sistema, O mecenato é constituído por três elementos que podem ser vistos interagindo de diferentes formas. Há um componente ideológico que age restringindo a escolha e o desenvolvimento tanto da forma quanto do conteúdo. [...] Há também um componente econômico: o mecenas garante que escritores e reescritores sejam capazes de ganhar a vida, dando-lhes uma pensão ou indicando-os para algum cargo. [...] Finalmente há também um elemento de status envolvido. Aceitar o mecenato implica em integrar-se num grupo de apoio determinado e ao seu estilo de vida [...] (LEFEVERE, 2007, p. 35-36). O grande interesse do sistema mecenato, na verdade, é na ideologia presente nas obras literárias, e não na poética em si. Seu objetivo é controlar os fatores formadores da cultura, que podem influenciar e formar opiniões. Dos três elementos que compõem o sistema do mecenato, o objeto do nosso estudo é a interface da ideologia diretamente no processo tradutório de uma formal geral. Ao tomamos ciência de que a questão da total invisibilidade do tradutor, apesar das inúmeras discussões a respeito, é relativamente impossível. Percebemos que como seres humanos não somos vazios, pelo contrário, carregamos conosco valores e conceitos de vários lugares e situações que compuseram e compõem a nossa identidade e, dessa forma, nos tornamos completos de sentido e sentimento. As palavras, que já vêm com uma carga natural 15 de sentido, cruzam o reescritor e levam consigo uma junção do que seria a somatória da carga ideológica e cultural contida na palavra, mais a bagagem ideológica e cultural de quem está manipulando o texto em questão, e, consequentemente, chega ao leitor que vai acrescentar a sua bagagem cultural e cognitiva, formando assim, o entendimento. Quem traduz se depara primeiro com os fatores culturais/ ideológicos que se estruturam como uma muralha a ser atravessada; muito ainda se questiona sobre o quanto de uma cultura/ideologia pode se exprimida e comunicada através de palavras que nasceram em outra cultura/ideologia. Borges e Nercolini (2002) alegam que: A tradução cultural [ideológica] implica um contato cultural profundo entre duas ou mais culturas. Aproximar-se e deixar-se tocar pelo desconhecido, mesmo correndo-se o risco do enfrentamento, do conflito, parece ser uma maneira mais profícua e certamente mais trabalhosa de tradução cultural. Possibilidade–impossibilidade: a tradução trabalha nesse limiar: entre a impossibilidade da tradução total e completa e as muitas possibilidades de diálogos, aproximações, tentativas melhores sucedidas, embates... De igual forma, a relação de poder e manipulação por trás da tradução são bem abordadas por Leonardi (2008, n.t.) ao afirmar que Alguns estudiosos começaram a mostrar forte interesse nos mecanismos de manipulação que ocorreram no processo de tradução, a fim de, consciente ou inconscientemente, alterar ou distorcer o sentido do texto original. O conceito de manipulação foi ligado ao de poder e ambas as noções foram eventualmente associadas às questões de ideologia e censura. A tradução passou a ser vista como uma ferramenta de manipulação em todos aqueles lugares onde a situação econômica e sócio-política estavam em jogo.2 Podemos relacionar os padrões ideológicos de uma determinada época ou lugar como fatores de grande influência na reescritura. Os tradutores são um dos grupos que mais sofrem com as questões ideológicas, pois além da responsabilidade de passar uma ideia de um idioma para outro, a escolha do que traduzir, ou do que omitir, e como já dissemos anteriormente na introdução deste trabalho de pesquisa, quem traduz parece estar sempre diante de uma estrada com 2 Some scholars began to show an active interest in the manipulative mechanisms that took place in the translation process in order to consciously or unconsciously change or distort the meaning of the original text. The concept of manipulation was linked to that of power and both notions were eventually associated with issues of ideology and censorship. Translation began to be viewed as a manipulation tool in all those places where the socio-political and economic situation was at stake. 16 duas direções, tendo que decidir a todo o momento que caminho tomar quanto à fidelidade, ou seja, está nas mãos do tradutor optar por atender as restrições do sistema mecenato, a suas próprias convicções do que seria correto ou não ou literalmente atender a exigência do público que espera por uma obra completa. Ao traduzir, lidamos com interfaces diferentes de costumes, pensamentos, pessoas e todo um sistema já estabelecido e concreto, no qual, através das palavras, é possível formar e mudar opiniões e até mesmo contrariar alguma delas. Arrojo (1992) afirma que a tradução em primeiro lugar reconhece o seu papel de produtora ativa de significados, interpreta e serve como representante do autor e dos textos que traduz. Além disso, cabe a quem traduz assumir a responsabilidade pela produção de significados que realiza e pela representação do autor a que se dedica, ou seja, ele deverá situar-se do que é permitido ter do texto e do autor que interpreta de acordo com a visão do ideário de seu tempo e lugar. Outro fator crucial que está envolvido na relação ideologia/ tradução é a questão da censura, altamente ligada à tradução por colocar-se como consequência da repressão ideológica, ser uma das maiores, se não a maior, responsável pelas alterações feitas no texto. É necessário que todo tradutor ao iniciar um trabalho, leve em conta todos esses fatores aqui já mencionados para conseguir chegar a um bom produto final, pois, ao driblar as repressões feitas pelos mecenas em relação ao que será publicado, o reescritor automaticamente altera o produto para que fique “adequado” ao padrão exigido. 2.1 O papel do tradutor: entre a ideologia e censura Definir censura não é tão simples quando se parece. O significado exato da palavra varia de acordo com o contexto em que ela está inserida, em muitos casos, é vista de modo pejorativo devido aos muitos contextos de natureza negativa a que se implanta, porém, pode ser encontrada em situações favoráveis positivamente. Baseados no contexto tradutório da nossa pesquisa, podemos entender censura como uma forma de supervisão e controle de informações e ideias que circulam dentro de uma sociedade. O termo censura, de acordo com o dicionário online Oxford, se refere a “um oficial [ou funcionário] que analisa livros, filmes, notícias, 17 etc., que estão prestes a ser publicados e que reprime os elementos que são considerados obscenos, politicamente inaceitáveis, ou que sejam uma ameaça à segurança” (http://www.askoxford.com, n.t.).3 A respeito da censura no campo da tradução, Leonardi (2008, n.t.) afirma: O papel desempenhado pelos tradutores no processo de censura é muito importante. De uma perspectiva sociológica, quem traduz se torna juiz de sua comunidade linguística e cultural; sua principal tarefa é decidir o que está errado e correto para os seus leitores. Os tradutores estão constantemente sujeitos a uma variedade de pressões internas e externas no seu trabalho, e essas pressões podem levar à manipulação e/ou reescritura do texto fonte4. Essas pressões internas e externas sobrevêm sobre quem traduz como uma forma de repressão do sistema para controlar o que será lido pela comunidade. Tais pressões podem, muitas vezes, comprometer o trabalho final, porque, além de lidar com a ideologia vigente de um determinado contexto, o tradutor precisa lidar com a censura dos poderes que estão com olhos atentos a tudo o que é escrito. Em muitos casos, fragmentos importantes de determinado texto são retirados pela censura por terem sido considerados ofensivos ou por causarem ameaça de conflitos políticos. Tais conflitos foram sistematizados e esquematizados em tabela por Darwish (1999, p. 20) apud Leonardi (2008), mostrando que dentro desses fatores externos e internos podemos abrir um leque de elementos extrínsecos, intrínsecos, cognitivos, textuais, interlinguísticos e atitudinais que são responsáveis pelas “interferências” ocorridas no texto e que funcionam como combustível de estímulo à censura. Leonardi (2008) destaca a censura preventiva, a censura repressiva e a autocensura como os três tipos principais. A censura preventiva pode ser praticada por uma autoridade espiritual ou secular; essa autoridade revisa todo material antes de sua publicação ou disseminação a fim de prevenir, alterar ou negar o seu aspecto. A censura repressiva geralmente é feita por uma autoridade espiritual ou secular após a impressão e publicação de um material específico que é considerado depreciador ou prejudicial à comunidade a fim de coibir sua circulação nacional. E a autocensura é 3 An official who examines books, films, news, etc. that are about to be published and suppresses any parts that are considered obscene, politically unacceptable, or a threat to security […] 4 The role played by translators in the censorship process is very important. From a sociological perspective they become the judges of their own linguistic and cultural community. Their task is to decide what is wrong and what is right for their readers. Translators are constantly subjected to a variety of internal and external pressures in their work and these could lead to text manipulation and/or rewriting of the source text. 18 uma forma de censura imposta por nós mesmos, causada pelo receio de desagradar ou ofender a alguém ou a uma comunidade, mas sem necessariamente sermos pressionados por alguma autoridade (LEONARDI, 2008, n.t.). Alguns aspectos práticos do mundo moderno também devem ser considerados, afinal, conforme defende Coracini (2008, p. 12), Embora censuras com base na moralidade e nos bons costumes, ainda existam [...] nos dias de hoje, a mais evidente manifesta-se em torno do racismo, de preconceitos contra a mulher, contra o homossexual (o chamado preconceito de gênero), contra a liberdade de religião, dentre outros – enfim, em torno do que se tem denominado, por vezes de modo insensato e apressado, “politicamente correto”. Essa censura, que, quando internalizada, naturalizada, torna-se (auto-) censura, porque é o próprio tradutor que (se) censura sem que disso se aperceba [...]. Mediante as interfaces já abordadas sobre ideologia, reescritura e censura, pudemos compreender que tanto em um contexto passado quanto em um mais moderno, a ideologia sempre esteve presente, de forma que a censura, consequentemente, sempre rodeará os campos da reescritura, afoita e voraz por reprimir o que não cai bem e não agrada as autoridades maiores. O que é exigido do tradutor, dentro desse contexto, é que não seja ingênuo a ponto de pensar que a tradução se baseia apenas na tradução de palavras e na transferência de idiomas; é necessário que ele entenda, principalmente os ingressantes, que tradução é manipulação de textos, jogo de palavras, de sentidos. É preciso estar preparado para saber lidar com os elementos que circundam o processo de tradução; ou seja, as diferenças culturais e ideológicas, encontrando formas de dizer aquilo que nem sempre está evidente no texto de partida, ou não é permitido dizer na língua alvo. Apesar das muitas discussões feitas a esse respeito, muito ainda precisa ser discutido e questionado sobre a censura dos sistemas que cerceiam a reescritura, a forma de controle e manipulação da produção escrita em todas as suas dimensões. No capítulo seguinte, analisamos alguns excertos selecionados da tradução do “Diário de Anne Frank”, a fim de exemplificarmos os aspectos ideológicos e o efeito da censura sobre a produção do “Diário”, tema principal do nosso trabalho, apontando as alterações feitas nos fragmentos, além de omissões percebidas no processo de reescrita. Paralelamente, buscamos identificar as motivações ideológicas das editoras que editoraram e publicaram o Diário, como um documento histórico para o mundo. 19 3 IDEOLOGIA E CENSURA NO DIÁRIO DE ANNE FRANK O “Diário de Anne Frank”, um conjunto de relatos que se tornou documento bélico histórico mundialmente conhecido e escrito por uma menina judia entre seus 13 e 15 anos, é um exemplo autêntico de como não apenas os mecenas, mas também os próprios reescritores legitimados pelos mecenas podem limitar ou constranger, de modo censurável, qualquer obra. Annelise Maria Frank, mais conhecida como Anne Frank, manteve o seu diário entre 12 de junho de 1942 e 1° de agosto de 1944, a princípio, estritamente pra si. Relatava os horrores da perseguição feita pelos nazistas aos judeus na Segunda Guerra Mundial. Em seu diário, Anne Frank descreve situações cotidianas sobre a convivência difícil entre a sua família e os oito moradores do anexo secreto (o local que serviu de esconderijo para a família Frank durante a guerra); discute sobre a condição das mulheres em sua época; política, sobre as descobertas pessoais do período da adolescência e a indiferença que sentia em relação à mãe, além da preferência explícita tida pelo pai. Como a sociedade em que vivia não aceitava que uma menina da sua idade tivesse tais ideias e tamanha maturidade demonstradas, Anne sentia na sua precocidade que não era compreendida devido à maneira que transitava pelos vários assuntos com conhecimento de causa e segurança, e acabou por se confinar às páginas do seu diário, personalizado como Kitty. A ideologia vigente da década de 1940, ortodoxa ao extremo, não permitia a uma menina de 13 anos a liberdade de fazer perguntas e questionar fatos sobre a vida pouco claros em sua mente. O que nos chama a atenção é que, apesar de toda a repressão da sociedade e dos próprios pais, o que na verdade era uma tentativa de preservar os filhos da exposição direta a assuntos que eram tidos por tema adulto, Anne não se intimidava e demonstrava interesse em discutir com os ditos ‘adultos’ sobre os tabus da sociedade. Como não tinha abertura para dialogar, ela vivia numa eterna busca por respostas sobre o desconhecido da vida tentando encontrar meios de descobrir alguma coisa sem que fosse necessário perguntar aos adultos; muitas vezes, questionava abertamente com os pais as suas dúvidas, porém, não era aceita e tão menos compreendida, e por causa do seu 20 comportamento foi considerada uma menina rebele e anormal, quando comparada às outras. 3.2 O processo de autoeditoração Em 1944, Gerrit Bolkestein, membro do governo holandês no exílio, anunciou numa transmissão via rádio que esperava depois da guerra recolher testemunhos oculares do sofrimento do povo holandês sob a ocupação alemã para que fossem postos à disposição do público, e mencionou como exemplo, cartas e diários. Impressionada com aquele discurso, Anne, que já tinha em si um desejo de ser escritora, começou o processo de edição do diário, uma autoeditoração dos próprios escritos onde ela reformulava ou retirava as passagens que não achavam tão importantes. Interessante observar que a menina Anne Frank, ao entrever a possibilidade de publicar o seu diário após a guerra, começa a reescrevê-lo, filtrando a sua escrita numa atitude de autocensura, uma vez que ela identificou elementos que não correspondiam ao ideário ideológico. Durante o processo de autoeditoração dos relatos, Anne dividiu a sua reescrita em dois níveis: pessoal e literário. No nível pessoal, retirou passagens pouco elogiosas de sua mãe, num momento em que ela olhou para trás e se considerou amadurecida, e numa atitude de autocensura se questionou: “Anne, foi mesmo você que mencionou ódio? Oh, Anne como você pode?” (LEFEVERE, 2007, p. 103). Ao reler o diário, automaticamente se deu conta de que o que tinha escrito não era aceitável para si e sabia que muito menos para a sociedade que possivelmente leria aquelas páginas. No seu consciente, Anne sabia bem que muito do que tinha escrito não se enquadrava na imagem que uma adolescente tinha que ter. No nível literário, Anne reescreve o momento em que esteve com Peter, rapaz que também morava no anexo secreto e que foi seu primeiro verdadeiro amor; na primeira versão lemos “enquanto sentava quase à frente de seus pés [...]” escrito de forma simples e pouco poética, enquanto que na versão editada por ela “eu [...] sentei em uma almofada no chão, pus meus braços em torno dos meus joelhos 21 dobrados e olhei-o atentamente” (LEFEVERE, 2007, p. 103). Ao sabermos que Anne sempre gostou de ler e que a leitura era uma das atividades que ela cumpria com assiduidade, vemos que nesse trecho que ela procura reproduzir toda a linguagem poética e literária que conhece e que com certeza via nos livros e revistas que passou lendo durante os seus últimos dois anos reclusos no anexo. Outro exemplo de autoeditoração no nível literário feito por Anne está no momento em que ela decidiu mudar os nomes dos moradores no anexo por nomes fictícios do que até então seriam “personagens” de uma grande história, como por exemplo, os da família Van Pels, que foram chamados de família Van Daan; Fritz Pfeffer chamado de Dussel e seu próprio nome Anne Frank que ela mudou para Anne Robin. Com esses exemplos de autoeditoração, entendemos que a responsabilidade do reescritor quanto ao que será expresso é grande e cabe a ele escolher o que será dito e como. A censura vai muito mais além dos limites impostos pelos regimes autoritários, a ideologia intrínseca em cada um de nós como indivíduos sociais transborda de nós de forma que censura ocorra automaticamente, em muitos casos, sem que percebamos, domesticalizamos e enquadramos o texto e seus respectivos termos ao aceitável. Do mesmo modo, Coracini (2008) confirma dizendo: A censura de regimes políticos autoritários se faz presente para impedir que se digam certas coisas silenciando o que não pode e não deve ser dito; [...] no dia-a-dia [...] censura vem de dentro, habita o simbólico e nele faz corpo, penetrando em sua constituição identitária, ou seja, a autocensura está muito mais presente e atua muito mais ativamente no indivíduo de forma automática do que através das autoridades maiores. 3.3 A tentativa de reconstrução de uma Anne Frank diferente Ao ter certeza da morte de sua filha e dos demais moradores do anexo, Otto Frank decidiu realizar o sonho de Anne publicando o Diário depois da Guerra. Ao ler os escritos da filha, Otto se impressionou com a maturidade e com a facilidade que Anne tinha ao transitar entre questões que, até então, não eram bem vistas quando abordadas por meninas. Além de ter que lidar com o espanto da descoberta de que a menina que tinha escrito todas aquelas páginas era a mesma Anne, sua filha, o que o fez reconhecer que realmente não a conhecia tão bem como imaginava, Otto precisou ter em mente de que para o diário ser publicado, no contexto pós-guerra 22 que viviam, não seria viável expô-lo com as mesmas palavras que foi escrito, afinal, Anne expressou o seu parecer claro e aberto sobre tudo o que, segundo a sua visão, não estava correto. Ao procurar editoras alemãs e holandesas para a publicação do diário, notou-se por parte do editor holandês e do próprio Otto a necessidade de fazer algumas alterações e cortes. Momentos em que Anne indagava sobre a condição de inferioridade das mulheres, ou ridicularizava a política e os soldados que prendiam os judeus foram retirados da primeira edição de 1947. A repercussão da sinceridade exposta de uma menina de treze anos seria imensa, principalmente pelo recente conflito social e político que acabara acontecer, que poderia desestruturar a recente estabilizada relação entre os envolvidos na guerra, uma vez que o diário ia contra a ideologia vigente da época. As alterações feitas foram divididas em três categorias: de nível pessoal, ideológicas, e de mecenato (LEFEVERE, 2007). No nível pessoal, onde ela escreveu: “Fico realmente envergonhada quando leio aquelas páginas que lidam com assuntos que eu prefiro imaginar mais bonitos [...]” (LEFEVERE, 2007, p.103), vemos que Anne se mostra com autocensura, pois se envergonha dos seus comentários de natureza sexual que até então eram um tabu. Algumas referências pouco elogiosas de conhecidos, amigos até mesmo familiares foram retirados, porque a intenção principal nesse momento foi proteger a imagem e reputação de algumas pessoas. Trechos em que Anne deixa claro sua preferência pelo pai e sua indiferença com a mãe, como quando diz: “Simplesmente não suporto mamãe, e tenho de fazer força para não gritar com ela o tempo todo e para ficar calma quando tenho vontade de lhe dar um tapa na cara” (Frank, 2011, p.60) também foram censurados, afinal, era inconcebível que as filhas falassem assim da mãe. Outro exemplo é quando “Anne Frank dá uma descrição não muito amigável e parcialmente pouco acurada do casamento de seus pais nas 47 linhas que foram omitidas”. Esta passagem foi retirada a pedido da família Frank (LEFEVERE, 2007, p. 105). Essa com certeza foi uma restrição que parte do pessoal para o ideológico, uma vez que tal trecho não se encaixava na expectativa que a sociedade fazia do imaginário de uma menina de 14 anos, até porque casamento e vida conjugal não fazia parte do repertório da conversa de adolescente. 23 No nível ideológico, o trecho em que Anne se pergunta: “Por que as mulheres ocupam uma posição tão inferior à dos homens entre as nações?” (LEFEVERE, 2007, p. 108) nos revela que a menina levanta um questionamento não muito comum para a época e para a idade que tinha, uma vez que a maioria das meninas de sua idade se preocupava com um futuro promissor como esposa, mãe e dona de casa; tal questão não era indagada nem mesmo pelas mulheres adultas, já que se entendia que a situação inferior das mulheres sempre se estendeu por gerações mundo afora por “tradição,” e não cabia questionamento. A natureza pessoal do diário nos mostra que Anne, como toda adolescente curiosa para desvendar os tabus impostos pela sociedade, comenta e questiona funções corporais ainda não muito esclarecidos, e não só na sua mente, mas como a maioria das meninas da mesma idade; casos de hemorroidas e defecação, que ainda estava ligado ao nascimento, também são omitidos. Compreendendo que as ideias precoces de sua filha não caberiam no formato da ideologia da época, Otto Frank viu que não havia escolha e foi obrigado a aceitar as restrições impostas pela editora holandesa que fez a publicação do Diário, afinal, sem essas alterações, nenhuma editora aceitaria publicar a reescritura, muitas devido à ideologia vigente, outras devido ao temor político que regia o país, mas no entanto o Diário foi publicado, porém, 26 cortes foram feitos em sua versão datilografada (LEFEVERE, 2007). Para a publicação em alemão, o Diário foi traduzido por uma amiga da família dos Frank, Annelise Schütz, uma jornalista refugiada na Holanda para escapar da repressão da guerra. A versão datilografada entregue para Schütz não havia sido editada e chegou à editora alemã com trechos a versão holandesa não continha. Nesse contexto, temos exemplos claros da responsabilidade atribuída ao tradutor no processo de compreensão do sentido das palavras e de transmissão de significado para a língua fonte. Nesse momento, Schütz se encontra numa encruzilhada onde é necessário decidir entre ser fiel aos padrões culturais ou à escrita sincera de Anne; Schütz escolheu seguir à ideologia alemã. Para a publicação do Diário na Alemanha, também foram feitas várias alterações no original, afinal, nas palavras da própria Annelise Schütz: “Um livro que você queira vender bem na Alemanha [...] não se deve conter nenhum insulto direto aos alemães” (LEFEVERE, 2007, p. 112). A linguagem aberta e sem pudores da 24 menina judia causaria problemas políticos e sociais, além de que, ideologicamente falando, a linguagem sem pudores, os questionamentos e discussões feitos por Anne não eram concebidos socialmente. Ao traduzir o Diário, Schütz precisou levar em conta todos esses aspectos que há pouco foram mencionados. Sentindo as limitações ideológicas, Schütz se encontrou na encruzilhada que todo o tradutor fica ao traduzir, principalmente quando se trata de reescrever em uma cultura sobre uma personagem que pertence à outra cultura. No trecho em que Anne comenta a situação crítica em que viviam os prisioneiros de guerra nos campos de concentração, dizendo: “Voor honderden mensen 1 wasruimte em er zijn veeel te weining WC’s. De slaapplaatsen zjin alle door elkaar gegooid” que significa [1 lavatório para centenas de pessoas, e existem muito poucos banheiros. Os espaços de dormir foram todos amontoados num só], Schütz traduz como: “viel zu wenig Waschgelegenheiten und WC’s vorhanden. Es wird erzählt, dass in den Baracken alles durcheinander schläft” [Muito pouca infraestrutura para lavagem e banheiros. Dizem que muitos dormem juntos em barracões] (LEFEVERE, 2007, p.113). Na tradução vemos que as alterações produzidas pela tradutora tenta abrandar o estado crítico e de calamidade que se encontravam os prisioneiros. O “dizem” faz sugerir incerteza de verdade e faz pensar que há poucos lavatórios, e não apenas um; nesse trecho, Schütz acaba amenizando o fato, não transmitindo a denuncia que a menina fazia e a real situação vivida dos campos de concentração. No excerto em que Anne se mostra revoltada pela política alemã de atirar em reféns, ela diz: “zet de Gestapo doodgewoon een stuk of 5 gijzelaars tegen de muur” [a Gestapo simplesmente coloca uns 5 reféns contra a parede], Schütz traduz como: “dann hat man einen Grund, eine Anzahl dieser Geiseln zu erschiessen” [eles então têm uma razão para atirar em alguns desses reféns] (LEFEVERE, 2007, p. 113). Ao traduzir “eles estão” em vez de “a Gestapo” Schütz retira a identidade cruel exercida pela polícia alemã de atirar explicitamente em qualquer refém judeu, deixando um espaço sugestivo para quem seria “eles”. Numa tentativa de tornar o Diário vendável e aceito na Alemanha, Schütz busca trazer a imagem do ideal de uma menina de 14 anos. O linguajar aberto e sem pudores de Anne jamais seria compreendido e aceito pela sociedade; em todos os trechos em que Anne usava expressões fortes e revoltantes, a tradutora se viu 25 obrigada, pela ideologia da época e também pela própria a recorrer a eufemismos para tentar construir a imagem de uma Anne Frank diferente do que estava expressa nos escritos. Excertos como: “Zulke uilen” [esses idiotas] maneira como a escritora se referiu aos soldados alemães se torna “solche Faulpelze” [essas pessoas preguiçosas]; “Rot” [podre] é traduzido como “rötlich” [avermelhado] (LEFEVERE, 2007). O mais famoso dos “erros de tradução” de Schütz é aquele do holandês “er bestaat geen groter vijandschap op de wereld dan tussen Duitsers em Joden” [não há maior inimizade no mundo do que a entre alemães e judeus], que é traduzido como: “eine grössere Feindschaft als zwischen diesen Deutschen und den Juden gibt es nicht auf der Welt!” [não há maior inimizade no mundo que a entre esses alemães e judeus] (LEFEVERE, 2007, p.113). Entendemos que “entre alemães” é de natureza abrangente, Anne se refere a todos eles sem exceção, e, no entanto, foi traduzido como “esses alemães”, o que nos transmite a ideia de que o grande conflito entre alemães e judeus está relacionado apenas àquele grupo seleto. Colocamos aqui entre aspas “erros de tradução” porque foram cometidos de forma consciente, por uma razão melhor descrita como ideológica – uma mistura de uma ideologia vigente do país, baseada em certa visão de mundo, e a ideologia mais contemporânea do simples e puro lucro, afinal, a intenção principal da editora era a venda do produto e para isso deveria estar de acordo ao “aceitável”. Ao analisarmos alguns trechos das questões ideológicas envolvidas na edição de 1947 do Diário de Anne Frank, entendemos que Schütz se utiliza de maneira consciente da (auto-) censura, com palavras amenas e eufemismos para alguns fragmentos para fazer o sofrimento dos judeus parecer menor do que foi de fato. Não houve, na verdade, esforços para reproduzir em alemão o estilo da escritora Anne Frank, afinal, em 1944 uma menina de 14 não fazia julgamento da mãe e irmã. O que Schütz queria mostrar era que meninas “adequadas” da idade de Anne também deveriam escrever de modo “adequado”, e o esforço para mostrar uma Anne mais enquadrada nos padrões fez com que todas as nuanças da inteligente precocidade da adolescente judia fossem enfraquecidas ou até mesmo perdidas por causa da ideologia. O caso ocorrido no Diário de Anne Frank nos faz meditar sobre a questão que envolve a temática dessa pesquisa. O reescritor uma vez que se prende às suas 26 raízes culturais e ideológicas sempre estará na encruzilhada entre a ideologia social e o texto a ser traduzido, tendo que decidir a todo o momento qual caminho percorrerá para transmitir a mensagem do texto. O tradutor sempre será considerado traidor por algum aspecto, afinal, se ele for fiel aos seus princípios e ideologia pessoal, poderá estar traindo o autor, ou a mensagem do texto, ou aos mecenas ou a ideologia vigente. Por mais que ele queira ser fiel a um, acabará sendo infiel ao outro e assim por diante. Não há como definir de forma definitiva os limites e padrões a serem seguidos, pois cada reescritor tem a sua ideologia e age de acordo com o que acredita ser viável, já que o que pode ser correto para um, não é para o outro. O que é primordial ao reescritor no seu trabalho de reescrita é que ele saiba que a sociedade e cada elemento dela giram entre os seus próprios limites pré-estabelecidos, que podem ser culturais, tradicionais, políticos ou ideológicos e que esses limites devem ser respeitados. Diante da impossibilidade de ser de um todo fiel, cabe a quem traduz o melhor desempenho e comprometimento com o trabalho, sendo encabida a ele a tarefa de escolher a quê dedicar a sua fidelidade, mas independentemente da escolha feita, espera-se que o mais importante seja feito: que a mensagem seja transmitida e que o real entendimento seja alcançado. 27 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante dos trechos censurados escolhidos e depois de uma breve análise deles, podemos chegar à conclusão de que a hipótese formulada no início desse trabalho de pesquisa de que os profissionais da tradução se acham sempre diante de uma encruzilhada, tendo que decidir a todo o momento a que rumo seguir, se confirma ao analisarmos quando Schütz, ao traduzir o “Diário de Anne Frank”, se depara com o contraste ideológico de uma menina de 14 anos que se destacava das demais devido a sua precocidade e a ideologia social predominante que não aceitava essa diferença. E diante disso ela precisava escolher qual caminho seguiria e a que seria fiel; no entanto, Schütz escolheu respeitar a ideologia vigente de sua época. Ao fazer a escolha, muito do estilo literário e da personalidade de Anne não foram transmitidos, o que confirma o fato de que o tradutor sempre fará a escolha entre omitir ou alterar alguma parte do chamado “original”; na sua melhor intenção, porque todo tradutor busca ser fiel, sempre deixará de corresponder a algum aspecto. A propósito dos limites sobre até onde o tradutor pode seguir com omissões no texto sem que desrespeite o autor e muito menos o leitor que receberá o resultado final de todo o processo, chegamos à conclusão baseados na leitura do principal autor que embasou o trabalho de pesquisa, Lefevere (2007), de que é necessário que, não apenas o tradutor, mas o reescritor no geral se situe do que é permitido ter do texto e do autor que interpreta de acordo com a visão do ideário de seu tempo, lugar e poética vigente. É de extrema importância estar preparado para manipular os elementos que circundam o processo de tradução; ou seja, as diferenças culturais e ideológicas, e encontrar formas de dizer aquilo que nem sempre está evidente no texto de partida, ou não é permitido dizer na língua alvo. As áreas de estudo voltadas para a relação tradução – ideologia ainda não são vastas e necessitam de que mais estudiosos e pesquisadores notem a importância dessa relação e se interessem por essa linha de pesquisa. 28 5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARROJO, Rosemary (Org.). O signo desconstruído: implicações para a tradução, a leitura e o ensino. Campinas: Pontes, 1992. BORGES, Ana Isabel; NERCOLINI, Marildo José. A (im) possibilidade da tradução cultural. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE HISPANISTAS, 2., 2002, São Paulo. Associação Brasileira de Hispanistas, Disponível em: <http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC000000001 2002000300006&lng=en&nrm=abn>. Acesso em: 10 de out. 2012. CORACINI, M.j. A constituição identitária do tradutor: a questão da (auto-) censura. Tradução & Comunicação, São Paulo, p. 7-20, 30 set. 2008. Disponível em: <http://sare.unianhanguera.edu.br/index.php/rtcom/article/view/143>. Acesso em: 20 Out. 2012. FRANK, O; PRESSLER, M. O Diário de Anne Frank.32. ed. Rio de Janeiro: Record, 2011. LEFEVERE, André. Tradução, reescrita e manipulação da fama literária. 1. ed. Bauru, SP: Edusc, 2007. LEONARDI, Vanessa. Power and control in translation: between ideology and censorship. Disponível em: <http://lse2010.narod.ru/yazik_kommunikatsiya_i_sotsialnaya_sreda_vipusk_6_2008 /vanessa_leonardi_power_and_control_in_translation_between_ideology_and_censo rship_/>. Acesso em: 02 de ago. 2012. OXFORD DICTIONARIES. Disponível em: <http://oxforddictionaries.com/definition/american_english/censorship?region=us&q= censorship>. Acesso em outubro de 2012.