Orgão Oficial da Associação Portuguesa de CUIDADOS PALIATIVOS volume 01 - número 02 - outubro 2014 Significado da alimentação em Cuidados Paliativos O Psicólogo em Cuidados Paliativos: uma reflexão possível Investigação colaboracional e multicêntrica em Cuidados Paliativos em Portugal: traços da realidade e perspetivas sobre como promover e melhorar Últimos dias ou horas de vida: fatores que interferem no processo de diagnóstico clínico Equipa Intra Hospitalar de Suporte em Cuidados Paliativos no interior Norte de Portugal – casuística de uma nova actividade e discussão do contributo multidisciplinar no final da vida Identificação da necessidade em doentes de Medicina Interna Desenvolvimento histórico dos Cuidados Paliativos: visão nacional e internacional cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 1 indice 05 Editorial 07 Artigo especial 14 Artigo original O Psicólogo em Cuidados Paliativos: Uma reflexão possível Investigação colaboracional e multicêntrica em Cuidados Paliativos em Portugal: traços da realidade e perspetivas sobre como promover e melhorar Últimos dias ou horas de vida: fatores que interferem no processo de diagnóstico clínico Equipa Intra Hospitalar de Suporte em Cuidados Paliativos no interior Norte de Portugal – casuística de uma nova actividade e discussão do contributo multidisciplinar no final da vida Cuidados Paliativos: Identificação da necessidade em doentes de Medicina Interna Cuidados Paliativos: saída do impasse? a caminhar para a expansão? Desenvolvimento histórico dos cuidados paliativos: visão nacional e internacional Significado da alimentação em Cuidados Paliativos cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 3 Conselho Científico Diretor Prof.ª Doutora Maria dos Anjos Dixe Prof. Doutor Manuel Luís Capelas Prof.ª Doutora Maria Emilia Santos Sub-diretor Mestre Ana Bernardo Comissão diretiva Direção da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos Prof.ª Doutora Helena José Prof.ª Doutora Zaida Charepe Doutora Joana Mendes Prof. Paulo Alves Prof.ª Maria João Santos Prof.ª Patrícia Coelho Comissão Científica Mestre Alexandra Ramos Prof.ª Doutora Paula Sapeta (presidente) Mestre Ana Bernardo Prof. Doutor José Manuel Pereira de Almeida Mestre Catarina Pazes Prof. Doutor Sérgio Deodato Mestre Cátia Ferreira Prof. Doutor Telmo Batista Mestre César Fonseca Doutor José Nuno Silva Doutora Bárbara Gomes Doutora Carla Reigada Doutora Sandra Pereira Mestre Catarina Simões Mestre Edna Gonçalves Mestre Isabel Galriça Neto Mestre Cristina Galvão Mestre Cristina Pinto Mestre Filipa Tavares Mestre Helena Salazar Mestre José Eduardo Oliveira Mestre Mara Freitas Mestre Margarida Alvarenga Mestre Maria de Jesus Moura Comissão Científica Internacional Mestre Miguel Tavares Prof. Doutor Alvaro Sanz Rubiales (Espanha) Mestre Nélia Trindade Prof. Doutor Carlos Centeno (Espanha) Mestre Paulo Pina Prof. Doutor Jaime Boceta Osuna (Espanha) Mestre Sandra Neves Prof. Doutor Javier Rocafort (Espanha) Mestre Sónia Velho Prof.ª Doutora Maria Nabal (Espanha) Mestre Fátima Ferreira Doutor José Carlos Bermejo (Espanha) Frei Hermínio Araújo Prof. José Luís Pereira (Canadá) Dr. Eduardo Carqueja Dr. Enric Benito (Espanha) Dr. João Sequeira Carlos Dr. Ricardo Tavares (Brasil) Dr. Lourenço Marques Dr.ª Maria Goreti Maciel (Brasil) Dr. Rui Carneiro Dr.ª Alina Habert (Brasil) Comissão Consultiva Dr.ª Ana Lacerda Grupo de reflexão ética da APCP Dr.ª Elga Freire Direção da APCP Dr.ª Carolina Monteiro Dr.ª Marília Bense Othero (Brasil) Revisores Prof. Doutor Alexandre Castro Caldas Prof. Doutor João Amado Prof. Doutor Luís Sá Prof. Doutor Manuel Luís Capelas Dr.ª Rita Abril Normas de referenciação bibliográfica Vancouver superscript Prof. Doutor Pedro Ferreira Secretariado Prof.ª Doutora Ana Querido Ad Médic Administração e Publicações Médicas, Lda. Ficha técnica Revista Cuidados Paliativos Diretor: Prof. Doutor Manuel Luís Capelas Editor: Direção da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos Propriedade, Edição e Redação: Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos Morada: Serviço de Cuidados Paliativos, Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil, E.P.E. Rua Dr. António Bernardino de Almeida 4200-072 Porto, e-mail: [email protected] Periodicidade: Semestral Design Gráfico e Publicidade: Ad Médic Administração e Publicações Médicas, Lda. Calçada de Arroios, 16 C - Sala 3, 1000-027 Lisboa, e-mail: [email protected] Isenta de Registo na ERC, ao abrigo do Decreto Regulamentar 8/99 de 9 de Junho, artigo 12, nº1 – A. ISSN 2183-3400 4 cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 Editorial Cuidados Paliativos: saída do impasse? a caminhar para a expansão ? Paula Sapeta Presidente da Comissão Cientifica da Revista Cuidados Paliativos A Revista Cuidados Paliativos da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos (APCP) tem como propósito principal publicar e divulgar a produção científica original na área dos Cuidados Paliativos, quer de autores nacionais, quer internacionais. Procura, deste modo e implicitamente, mostrar as evidências produzidas pelos profissionais implicados na prática de cuidados paliativos de Portugal. Tornou-se difícil reunir um número suficiente de artigos científicos para compor este número 2 da revista, talvez um sinal das inúmeras dificuldades que os profissionais de CP tem de, em primeiro lugar, investigar e a seguir publicar; por outro lado, um indicador da fase de desenvolvimento dos Cuidados Paliativos no nosso país. A Lei de Bases dos Cuidados Paliativos, publicada na Lei nº 52/2012 de 5 de setembro enuncia os princípios, clarifica termos e conceitos, estabelece a organização, apresenta as tipologias previstas, mas ainda carece de Regulamentação. Não obstante este atraso na regulamentação, a lei funcionou como um ‘alerta’ importante para toda a sociedade em geral, e para os responsáveis e gestores dos hospitais e serviços do Sistema Nacional de Saúde, em particular. Temos conhecimento de várias iniciativas, públicas e privadas, para ‘arrancar’ com novas equipas, reconhecemos o esforço que os seus responsáveis estão a desenvolver, as preocupações com a composição das equipas, a sua qualificação e formação - e o quão difícil está a ser a celebração de contratos com profissionais detentores de formação avançada, devida aos constrangimentos decorrentes da conjuntura social, económica e política. Multiplicam-se os projetos, os pedidos de formação para os profissionais, acreditamos que se trata de um esforço sério. Para a APCP o desafio é apoiar estes projetos, contribuir para a sua consecução, construção e consolidação. Ao mesmo tempo, tem o dever de escrutinar a observância dos critérios de qualidade e os resultados efetivos, diferenciando os que estão a ‘caminhar’ no sentido pretendido ou não, nos termos previstos na Lei. Numa outra perspetiva, encontramos a difícil realidade de doentes e famílias. Sem respostas adequadas em hospitais de ‘agudos’ e com escassas alternativas de suporte na comunidade, designadamente na Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI). O Relatório da Entidade Reguladora da Saúde1 dá conta da desigualdade no acesso e na distribuição geográfica dos recursos em cada região. Além de que, no âmbito da RNCCI, as equipas de cuidados paliativos não foram as que mais se incrementaram nos últimos anos, seja em número, seja na qualificação dos seus membros, apesar de serem das mais prementes e urgentes. Esta análise intensifica a necessidade de regulamentar a Lei de Bases de CP e sobretudo de ver comprometidos os responsáveis políticos ou não, em replicar os exemplos de sucesso, recrutar os profissionais que reúnam o conjunto de competências necessárias para alcançar os padrões de qualidade, numa ação objetivada em preservar a dignidade, garantir conforto, qualidade nos últimos dias de vida, de cada doente e suas famílias. 1 Avaliação do Acesso dos Utentes aos Cuidados Continuados de Saúde. Relatório da Entidade Reguladora da Saúde. 2012 cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 5 Apesar dos cuidados paliativos em Portugal existirem desde 1992/1994, continuam a ser uma área relativamente recente, ainda estamos numa fase inaugural, a ‘desbravar terreno’, a vencer resistências, preconceitos e tabus que existem na população em geral, mas também nos profissionais de saúde. Muito está por fazer, investigar, definir e consolidar. Pouco adianta a existência da lei, se ela não for exequível em termos práticos, ou ainda que o seja, ser inviabilizada por constrangimentos económicos, culturais, crenças ou valores arreigados a tabus ancestrais. Provavelmente um dos desafios é o de orientar a investigação para a demonstração das necessidades da nossa população, do custo-efetividade da implementação de serviços/equipas de cuidados paliativos, dos processos e dos resultados conseguidos, e deles fazer notícia, publicando-os. Por exemplo na revista de Cuidados Paliativos, da APCP. l Artigo especial Desenvolvimento histórico dos Cuidados Paliativos: visão nacional e internacional Manuel Luís Capelas Enfermeiro, Docente no Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa, Doutor em Ciências da Saúde Sandra Catarina Fonseca Simões da Silva Enfermeira, Unidade de Cuidados Paliativos da CLIPÓVOA Margarida Isabel Santos Freitas Alvarenga Enfermeira, Serviço de Cuidados Paliativos do IPO Porto Sílvia Patrícia Coelho Enfermeira, Docente no Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa, Doutoranda em Enfermagem Resumo A história e evolução dos cuidados paliativos a nível nacional e internacional ajudam a demonstrar as etapas do desenvolvimento desta área científica, assim como a revelar conjuntos de documentos que pela sua importância contribuíram para esta evolução. Pretende-se com este artigo especial dar a conhecer esta evolução e realizar uma síntese de documentos nucleares em cuidados paliativos, a nível nacional e internacional. Abstract The history and the evolution of the palliative care at national and international level help to demonstrate the steps of the development of this scientific area of the care, as well as to reveal sets of documents for its importance contributed to this development. This paper aims to make known this evolution a to make a synthesis of the primordial documents in the field of the palliative care, at national and international level. Resumen La historia y la evolución de los cuidados paliativos en los planos nacional e internacional ayudan a demostrar las etapas del desarrollo de esta área científica, y para mostrar conjuntos de documentos para su importancia contribuyeron a este desarrollo. El objetivo de este artículo especial para llevar esta evolución y hacer una síntesis de los documentos nucleares en los cuidados paliativos a nivel nacional e internacional Palavras-chave Cuidados Paliativos, história, legislação. Key words Palliative Care, history, legislation. Palabras-llave Cuidados Paliativos, historia, legislación. cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 7 Evolução histórica e legal internacional O surgimento dos cuidados paliativos, na sua perspetiva mais moderna, combinando cuidados clínicos, formação e investigação, reporta-se ao final dos anos 50 e início dos anos 60 do século passado.1 Foi catalisador deste acontecimento, o encontro, num grande hospital universitário londrino em 1948, de Cicely Saunders com um doente, judeu polaco que com 40 anos estava a morrer de cancro e que lhe levantou o desafio de melhor compreender o adequado controlo da dor e outros sintomas. Tudo culminou com a abertura do 1º hospice da era moderna em Londres, em 1967, o St. Christopher’s Hospice.2 No entanto, importa revisitar historicamente a sua evolução ao longo dos tempos e identificar alguns marcos mais significativos. Até ao século IV a.C. não se considerava ético tratar o doente durante o seu processo de morte. Os médicos tinham medo de o fazer, pelo risco de serem castigados por estarem a desafiar as leis da natureza.3 Após a propagação do Cristianismo, estabelece-se a necessidade de ajudar estas pessoas, surgindo a primeira instituição para ajudar os desprotegidos, doentes e moribundos em Roma, por Fabíola, como resultado do seu compromisso cristão.2–4 É neste contexto que surge a ligação do termo hospice (do latim hospititium), com hospitalidade, pois era esse o seu significado, e que passaria a identificar locais onde os peregrinos descansavam e que, progressivamente, foram também acolhendo doentes e moribundos, passando-se a associar o termo hospice a estes locais.3–7 Mais tarde, no século XI, os cruzados acreditavam ter sido os primeiros a criarem casas para doentes incuráveis, existindo mesmo a Ordem dos Cavaleiros Hospitaleiros que abriu a primeira casa deste tipo três séculos mais tarde.7 Embora, neste período da Idade Média, o número de instituições de acolhimento de cariz religioso tenha 8 aumentado exponencialmente, passou-se por um período de cerca de 3-4 séculos em que se verificou uma diminuição devida à perda de influência das ordens religiosas por altura da Reforma.4,7 Só mais tarde, no século XIX, e desta vez como locais de prestação de cuidados a doentes em final de vida, ressurgiram de forma mais clara e evidente estas iniciativas, continuando associadas a Ordens religiosas, com duas grandes pioneiras: Jeanne Garnier e Mary Aikenhead.4,6,8 Jeanne Garnier fundou a Ordem religiosa Association des Dames du Calvaire e em que após o seu contacto com a população doente, das zonas mais degradadas de Lyon, sentiu a necessidade da abertura da primeira instituição específica para doentes moribundos, no mundo, em 1843 em Lyon. Mais tarde, em 1874 e em 1899, abriram outras instituições, em Paris e Nova Iorque respetivamente.2,3,8 Por sua vez, Mary Aikenhead, enquanto Superior da Ordem Irish Sisters of Charity promoveu a abertura do Our Lady’s Hospice for the Dying em Dublin, no ano de 1879.3,4,7,8 Mais tarde, em 1893 e em 1905 fundam o St. Luke’s Home e o St. Joseph’s Hospice em Londres.2,3 Até esta altura, o alívio sintomático era o objetivo principal do tratamento clínico visto as doenças evoluírem de acordo com a sua história natural. No século XX a medicina transferiu a sua orientação para a descoberta das causas e cura das doenças, relegando o controlo sintomático para segundo plano.4 Mais tarde, nos meados do século passado, Cicely Saunders, com a sua postura de grande atenção e proximidade, humana e científica aos doentes, constatou que a tendência era de ocultar o prognóstico e situação clínica a estes, que o local de morte estava a transferir-se para o hospital e que se verificava uma cada vez maior “repressão” da expressão em público das emoções perante a morte, o que revelava cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 que a sociedade tinha perdido as suas estratégias de enfrentamento da sua própria mortalidade.4 Foi em resultado destas constatações e da sua permanente inquietude, que Cicely Saunders foi a pioneira do Movimento Moderno dos Hospices, com a fundação do St. Christopher’s Hospice, em Londres, no ano 1967, e depois em 1969 o programa de cuidados paliativos domiciliários.3,4,7,9 Este movimento teve como imperativo, a conjugação das novas competências em controlo da dor e outros sintomas, compreensão dos diversos problemas do doente e família, assim como da formação e investigação.5 É a partir deste movimento, que os cuidados ao doente em fim de vida começam o seu desenvolvimento exponencial, ao longo de todo o globo, procurando abranger todos os povos, e cujos marcos significativos, a nível internacional, passamos aqui a enunciar. Assim, nos anos 60 foi fundada a primeira unidade de cuidados paliativos (UCP) na Coreia, no Calvary Hospice of Kangnung em 1965, pelas irmãs católicas da Little Company of Mary. Dois anos mais tarde, foi fundado em Londres, o St. Christopher’s Hospice, que seria a referência dos cuidados paliativos modernos. Também nesta década, no seu final, em 1969 Elizabeth Kubler-Ross edita o seu importante livro On Death and Dying o qual em muito vai contribuir para a compreensão da fase final da vida.1,3–15 Na década de 70, surgem os primeiros serviços de cuidados paliativos no Japão, Noruega, Estados Unidos da América (EUA), Canadá, Polónia, Suécia, assim como a 1ª equipa intra-hospitalar e domiciliária do Reino Unido. No que respeita a organizações internacionais surge a International Association for the Study of Pain e a Japanese Association for Clinical Research on Death and Dying. Acontece, também, em Montreal, o primeiro congresso interna- cional na área, o 1st International Congress on the Care of the Terminally Ill. Um outro marco importante surge na Áustria com a formação pré-graduada em cuidados paliativos a tornar-se obrigatória. Surge, também pela 1ª vez o termo “Cuidados Paliativos”, por Balfour Mount, no Royal Victoria Hospital, Canadá, devido ao estigma que o termo hospice tinha na população de língua francesa.1,3–15 Nos anos 80, a OMS incorpora Cuidados Paliativos nos seus conceitos e promove a necessidade de um programa de cuidados paliativos como parte integrante da abordagem ao doente oncológico. Além de iniciar o programa Cancer Pain and Palliative Care, editou importantes documentos tais como Cancer Pain Relief and Palliative Care16 e o Palliative Cancer Care17 (primeiras recomendações sobre cuidados terminais no doente com cancro). Surge, também, na Austrália a primeira Cátedra Universitária em Cuidados Paliativos e a especialidade de Medicina Paliativa, no Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia, Bélgica, Hong Kong, Polónia, Singapura, Taiwan e Roménia. São criadas as primeiras UCP em África (no Zimbabué e depois na África do Sul), no Japão, Israel, Alemanha, Espanha, Rússia, Bélgica, India, França, Itália. Novas organizações surgem, nomeadamente o International Hospice Institute que mais tarde, em 1999, dará origem à International Association for Hospice and Palliative Care, a Hospice Association of South Africa e a European Association for Palliative Care. 1,3–15 Por sua vez, nos anos 90, os planos oncológicos do Reino Unido, Estados Unidos da América, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, recomendam a introdução precoce dos cuidados paliativos na trajetória da doença oncológica, assim como foi introduzida na China, como prática regular a utilização da escada analgésica da OMS. Por sua vez a Organização Pan-americana de Saúde incorpora de forma oficial os pro- cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 9 gramas de cuidados paliativos nos planos nacionais e regionais de saúde. Acontece o 1º Congresso da European Association for Palliative Care, em Paris, sendo que na mesma associação surgem a Education Network e a Research Network. Surgem as primeiras UCP na Holanda, Uganda, Argentina, Colômbia, Brasil e Chile, e a primeira UCP num hospital universitário, Noruega. São nesta década fundadas a Sociedad Espanõla de Cuidados Paliativos, a Israel Palliative Care Association, a Indian Association of Palliative Care e a International Association for Hospice and Palliative Care e criada a especialidade de medicina paliativa na Irlanda, Austrália e Nova Zelândia. São também elaboradas a Declaração de Florianopolis18, que se constitui de um conjunto de recomendações que incluem a disponibilização de opióides e de monitorização dos custos dos cuidados aos doentes em final de vida e a Declaração de Poznan19 que viria a dar origem à fundação da Eastern and Central European Palliative Task Force. 1,3–15 Já neste nosso século são fundadas a Foundation for Hospices in Sub-Saharan Africa”, a Latin American Association of Palliative Care, a Asia Pacific Hospice Palliative Care Network, a African Association for Palliative Care e o United Kingdom Forum for Hospice and Palliative Care Worldwide, pela organização Help the Hospices. É lançada pela OMS a mais recente definição de cuidados paliativos, que ainda hoje é consensual, assim como por esta organização são elaborados importantes documentos tais como o Better Palliative Care for Older People20 com o objetivo de incorporar os cuidados paliativos para as doenças crónicas progressivas no interior das políticas de saúde para o envelhecimento, e o Palliative Care – The Solid Facts.21 Por sua vez, o Conselho da Europa elabora diversos documentos estruturantes para o desenvolvimento dos cuidados paliativos e publica guidelines, consideran- 10 do os cuidados paliativos como cuidados básicos e necessários. Elaborada a Cape Town Declaration22, Korea Declaration23, Budapest Commitments24, o Lisbon Challenge25, a Carta de Praga26 e o Clinical Practice Guidelines for Quality Palliative Care.27 Também nestes tempos foi criada a especialidade de Medicina Paliativa, nos EUA e surgiu a primeira UCP na Eslováquia.1,3–15 No final de 2013 e início de 2014, a Organização Mundial de Saúde, através do seu departamento para os Cuidados Paliativos, emitiu dois importantes documentos, Strengthening of palliative care as a component of integrated treatment throughout the life course28 e o Strengthening of palliative care as a component of integrated treatment within the continuum of care.29 Estes documentos foram posteriormente apresentado à 67ª Assembleia, deste importante organismo, em maio de 2014, de onde resultou o documento final, Strengthening of palliative care as a component of comprehensive care throughout the life course.30 Já no final de 2014, em outubro, surge a 2014 European Declaration on Palliative Care.31 Como podemos constatar, foi primeiro um desenvolvimento mais local que se foi disseminando por uma grande vastidão de países, em que hoje em dia, mais de 115 países dos 234 existentes têm um ou mais serviços de cuidados paliativos, com uma grande diversidade de programas, de tipologias, assim como de objetivos dos programas, especialmente no que respeita ao público-alvo.1,11 Nacional No que respeita ao nosso país, a história dos cuidados paliativos tem cerca de 20 anos, embora já desde o século XVI estes cuidados estejam já referidos em alguns textos médicos.32 Pode dizer-se que, no nosso país, os cuidados paliativos iniciaram-se em 1992, com cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 a inauguração da Unidade de Dor do Hospital do Fundão que quase de imediato se transformou no Serviço de Medicina Paliativa do mesmo hospital.32,33 Dois anos mais tarde, surge a primeira UCP, também com valência de consultoria intra-hospitalar e apoio domiciliário, num hospital oncológico, no Instituto Português de Oncologia (IPO) do Porto em 1994, a que se seguiu mais tarde, em 2001, a do IPO de Coimbra. Neste período intercalar foi fundada a Associação Nacional de Cuidados Paliativos, em 1995, e que hoje se designa de Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos. Surgiu, também, a primeira equipa de cuidados paliativos domiciliários, do país, no Centro de Saúde de Odivelas, em 1996. Fora do Serviço Nacional de Saúde, surge em 2001, a Equipa de Cuidados Paliativos da Santa Casa da Misericórdia de Azeitão.32,33 No mesmo ano de 2001, é lançado o Plano Oncológico Nacional, no qual é referido como objetivo estratégico “dar continuidade aos cuidados paliativos na fase terminal da doença”.34 Ainda neste ano, é aprovado por despacho ministerial, o Plano Nacional de Luta Contra a Dor, que viria depois a ser atualizado, em 2008.35,36 Em 2002, inicia-se o primeiro Curso de Mestrado em Cuidados Paliativos do País, na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Em 2003, mais precisamente em 14 de junho, a Direção Geral da Saúde, através da sua circular normativa n.º 09/DGCG considera a Dor como o 5º Sinal Vital e considera como boa prática o Registo Sistemático da Avaliação da Intensidade da Dor.37 Mais tarde, em 2004, o Plano Nacional de Saúde para o período 2004-201038, definia os cuidados paliativos como área prioritária, pelo que em consequência de tal, o Ministério da Saúde lança o Programa Nacional de Cuidados Paliativos que considerava estes cuidados como constituintes essenciais dos cuidados de saúde e definia-os em três níveis de prestação. Este Programa não viria a ter nenhum efeito prático no que respeita ao surgimento de novos recursos de cuidados paliativos, tendo vindo a sofrer uma nova edição em 2010.32,39,40 Em 2005, mais precisamente em 26 de fevereiro, foi entregue na Assembleia da República, uma petição assinada por mais de 24 mil pessoas, reclamando os cuidados paliativos como um direito de todos os cidadãos e solicitando que estes cuidados fossem apostos na Constituição da República Portuguesa e incluídos entre os cuidados da medicina que incumbe ao Estado garantir para assegurar o direito à proteção da saúde de todos os cidadãos. A Petição foi analisada em julho de 2005, em Sessão Plenária da Assembleia da República e todos os Grupos Parlamentares concordaram na necessidade de implementação de uma rede de cuidados paliativos.41 Em 2006, surge o forte elemento catalisador, com a criação da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI), através do Decreto-Lei N.º 101/200642, onde os cuidados paliativos são integrados, sendo nesta altura que estes cuidados avançam de forma mais visível no nosso país. Também, em 2006, a Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos, elabora 3 importantes documentos de recomendações: “Formação de Enfermeiros em Cuidados Paliativos”,43 “Organização de Serviços em Cuidados Paliativos”44 e “Critérios de Qualidade para Unidades de Cuidados Paliativos”.45 No ano de 2008,os despachos 10279/2008 e 10280/2008, de 11 de março definiram as condições de dispensa, comparticipação e utilização de medicamentos opióides prescritos para o tratamento da dor oncológica e não-oncológica, moderada a forte.46,47 Em 2011, o novo Plano Nacional de Saúde, volta a evidenciar a necessidade de cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 11 desenvolvimento sustentado e equitativo de um programa nacional de cuidados paliativos.48 Também neste ano, através do Despacho 7968/2011 do Gabinete da Ministra da Saúde, considera-se a obrigatoriedade da existência de uma equipa intra-hospitalar de suporte em cuidados em cada hospital do Serviço Nacional de Saúde.49 No ano seguinte, 2012, surgem dois documentos legais da mais elevada importância. O primeiro, a Lei do Testamento Vital (Lei 25/2012 de 16 de julho)50 e posteriormente a Lei de Bases dos Cuidados Paliativos (Lei 52/2012 de 5 de setembro).51 Mais recentemente, em 2014, é publicado em maio, a Portaria n.º 96/2014, do Ministério da Saúde, que regulamenta a organização e funcionamento do Registo Nacional do Testamento Vital (RENTEV).52 Também em maio, a Assembleia da República, através da sua Resolução n.º48/2014 recomenda ao Governo que reforce o estudo das necessidades e devidas respostas no âmbito dos Cuidados Paliativos Pediátricos.53 Tal recomendação viria a concretizar-se através do Despacho n.º 8266-A/2014, do Gabinete do Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Saúde, é criado o Grupo de Trabalho para os Cuidados Paliativos Pediátricos, para estudo e apresentação de propostas para o desenvolvimento desta área dos cuidados paliativos.54 Mais tarde, em agosto, surge o Despacho n.º 10429/2014 com posterior retificação pela Declaração de Retificação n.º 848/2014 que preconizam a obrigatoriedade de implementação de Equipas Intrahospitalares de Suporte em Cuidados Paliativos nas Instituições Hospitalares do nosso país.55,56 Finalmente, ainda no mesmo ano, é publicado o Decreto-Lei n.º173/2014, que procede a ajustamentos à Lei Orgânica do Ministério da Saúde, às Orgânicas da Administração Central do Sistema de Saúde 12 e das Administrações Regionais de Saúde, por forma a acolher a Comissão Nacional e as Regionais de Cuidados Paliativos.57 l Bibliografia 1. 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Ministério da Saúde-Gabinete do Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Saúde. Despacho n.o 8266-A/2014 (25 de junho). 2014. 55. Ministério da Saúde-Gabinete do Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Saúde. Despacho n.o 10429/2014 (12 de agosto). 2014. 56. Ministério da Saúde-Gabinete do Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Saúde. Declaração de Retificação n.o848/2014 (22 de agosto). 2014 p. 8175. 57. Ministério da Saúde. Decreto-Lei n.o 173/2014 (19 de novembro). 2014 p. 5896–8. cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 13 Artigo original Significado da Alimentação em Cuidados Paliativos Cíntia Pinho-Reis Nutricionista, Aluna do Mestrado em Cuidados Paliativos, Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa (ICS-UCP) Patrícia Coelho Professora ICS-UCP, Aluna do Doutoramento em Enfermagem ICS-UCP Resumo A presente revisão narrativa da literatura reflete o conhecimento actual sobre o Significado da Alimentação em Cuidados Paliativos para o doente e sua família no que diz respeito aos significados fisiológico/ terapêutico, social, psicológico, religioso/ espiritual. Para além disso este artigo foca-se no significado da redução da ingestão alimentar, da recusa alimentar, da nutrição e hidratação artificiais e das alterações físicas da pessoa doente. Abstract This narrative literature review reflects the current knowledge on the Meaning of Feeding in Palliative Care for the patients and their families with regard to physiological / therapeutic, social, psychological, religious / spiritual meanings. Furthermore, this article focuses on the meaning of food intake reduction, food refusal, artificial nutrition and hydration and patients’ physical changes. Resumen Esta revisión narrativa de la literatura refleja el conocimiento actual del Significado de la Alimentación en los Cuidados Paliativos para el paciente y su familia con respecto a los significados fisiológico/ terapéutico, social, psicológico, religioso/ espiritual . Además, este artículo se centra en el significado de la reducción de la ingesta de alimentos , lo rechazo de la alimentación , la nutrición y la hidratación artificial y los cambios físicos de la persona enferma. Introdução Em Cuidados Paliativos (CP), o suporte nutricional constitui uma parte integrante dos cuidados holísticos prestados ao doente e à sua família. Com o objetivo de prestar cuidados holísticos a estes doentes é necessário que os profissionais estejam preparados para lidar com as questões e as preocupações que estes consideram importantes.1 As questões em torno da alimentação ganham especial relevância em fase paliativa, sendo que os doentes e em especial a sua família, dão-lhes mais importância em comparação com outros Palavras-chave Significado da alimentação, Cuidados paliativos, Fim de vida, Doente, Família. Key words Meaning of Feeding, Palliative Care, End of Life, Patient, Family. 14 cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 Palabras-llave Significado de la alimentación, Cuidados paliativos, Final de la Vida, Enfermo, Familia. de Lellis; Sufrimiento. Quadro 1 Sintomas que afetam a alimentação do doente paliativo Astenia Fraqueza Anorexia Mucosite Disfagia para líquidos Náuseas/ vómitos Disfagia para sólidos Obstipação Hipogeusia/ alteração do paladar Saciedade precoce / enfartamento Diarreia Xerostomia Fonte:3,14 tratamentos médicos.2 A grande maioria dos doentes paliativos, por evolução da doença de base ou como consequência dos tratamentos que realiza, confronta-se com o aparecimento de inúmeros sintomas (Quadro 1) que afectam amplamente o seu padrão e hábitos alimentares.3 Assim, os doentes confrontam-se com inúmeras perdas ao nível da alimentação. Essas perdas poderão ir desde a incapacidade de sentir o sabor, o cheiro, deglutir, digerir os alimentos e absorver nutrientes de forma adequada3,4, aliando-se em alguns casos, à perda da autonomia, da capacidade de comunicar e de utilizar a via oral.3,5,6 Eventualmente, todas estas alterações poderão transformar as refeições num momento desconfortável e levar o doente à depressão, ao isolamento social, à perda da confiança e da auto-estima, à perda de apetite e de peso e à desnutrição.3 Para a família, que transmite o seu afeto através da alimentação, todas as alterações mencionadas assim como as suas consequências, poderão ser entendidas como o inevitável aproximar da morte. É também importante referir que as situações de suspensão da alimentação ou de cessação da mesma por escolha voluntária do doente, são fonte de extrema preocupação por parte da família.3 É importante salientar que este artigo não se foca numa doença específica, uma vez que diferentes doenças incuráveis partilham muitos dos diferentes sintomas relacionados com a alimentação e, sendo assim, os significados desenvolvidos ao longo desta revisão poderão aplicar-se a qualquer doença (oncológica; neurológica; SIDA; insuficiência cardíaca, hepática e renal; doença pulmonar obstrutiva crónica ou fibrose quística). Com o objetivo de compreender melhor o significado da alimentação em CP, recolheram-se e colocaram-se numa tabela transcrições de entrevistas a doentes e famílias, publicadas em diversos artigos (Quadro 2). Significado da Alimentação em Cuidados Paliativos Significado Fisiológico/ Terapêutico A maioria dos doentes em CP considera que a alimentação significa saúde7, fonte de vida e, frequentemente, a fonte de energia necessária para dar poder ao corpo. A energia proveniente da alimentação é compreendida como algo necessário para (sobre)viver e para continuar a luta contra a doença. Para além disso, a alimentação é vista como o alimento do corpo e da alma.7,8 Para a família, a alimentação é considerada o “primeiro cuidado”, uma necessidade humana básica2,3,7 que se correlaciona com a energia2 e a boa saúde2,9 mas é indubitavelmente um condutor privilegiado de alimento nutritivo e afectivo desde o nascimento e que se prolonga durante toda a vida.2 Para além disso, a alimentação significa uma forma de controlar a doença e um instrumento de luta para a compensação do equilíbrio nutricional inexistente naquele momento, adiando assim a morte do seu ente querido. O facto de a maioria dos doentes, à medida que a doença progride perderem o interesse na alimentação,3 origina na família a sensação de que estão a regredir na alimentação. Esta regressão na alimentação opõe-se à introdução dos alimentos na infância. Se na infância cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 15 Quadro 2 Transcrições de entrevistas a doentes e famílias, publicadas em diversos artigos Significado Transcrição Referências “Apenas significa um modo de energia… é um combustível.” “(…) a alimentação serve para manter a minha força… para combater a doença.” “Se eu não comer não vou viver durante muito mais tempo.” “(…) O significado de alimentar é viver. Uma pessoa sem alimento não pode viver.” Fisiológico / Terapêutico “ (…) Eu dizia-lhe isto não pode ser, não pode viver sem comer (…). “Quero tentar comer alguma coisa para manter a minha energia mental.” 2,15,22-24 “(…) Continuo a dar de comer é porque virar as costas, vir-me embora e ver que ela não comeu nada, é pensar que se calhar tem menos um dia de vida (…) É tentar até ao fim.” “Quero tentar dar as calorias suficientes ao meu corpo para lhe dar as melhores hipóteses possíveis e ajudar na cura.” “Nós só lhe dizemos vais ficar muito fraco se não comeres mais do que uma colher de chá de cada vez, e ele diz que a comida não assenta (…)” “(…) quando é a hora de estarmos juntos em família, realmente não é só 8,13,16,17, 23 alimentar o estômago, às vezes é o que menos necessita e o que menos se alimenta…” “Eu fazia as refeições e é muito divertido cozinhar e virem-me dizer que está saboroso ou que sabe bem… agora nunca ouço que a comida está saborosa como me diziam antes (…) Não, estas refeições são uma tortura.” “Nós não podemos sair e comer fora, porque já não dá prazer… quando não é da mesma forma que costumava ser.” “(…) ele sempre gostou de comer. Tem sido o maior evento na família e Social nós sempre gostamos de sair para comer fora e apreciar a nossa comida. Mas neste último ano tem havida muito poucas ocasiões em que ele tenha apreciado a sua comida e, uma vez que ele não aprecia mais comer, já nem tem graça nenhuma convidar pessoas para jantar connosco (…)” “E claro os hábitos alimentares. É um pouco duro, porque eu e o meu marido costumávamos sair todas as quartas-feiras para jantar fora com os amigos. E claro tomava a minha sopinha e dependia do tipo de sopa que eles tinham disponível, às vezes nem sequer podia comê-la e só tomava uma chávena de chá ou de café e bebia a minha água.” “Estou socialmente isolado por causa do embaraço que sinto em comer e beber junto das outras pessoas.” “O meu papel é ter a certeza que ele estava a receber a sua nutrição.” “(…) Agora não comes, agora sinto-me triste. E agora o que é que eu faço – o que é que tu queres, eu não me apetece.” “Vê-lo a comer motiva-me a continuar, é como se ainda houvesse uma réstia de esperança que ele ia melhorar.” Psicológico “Quando eu como um pouco mais vejo o sorriso na cara da minha filha (…) fica tão feliz por me ver comer. ” “Para o meu marido, quando eu rejeito a alimentação ele pensa que não quero que ele cuide de mim e fica zangado. Ele não entende. Pensa que eu não como porque não quero e isso também me deixa triste.” “Sinto-me aliviada por ver que ela tolera a alimentação.” 16 cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 8,15-17,21 Significado Transcrição Referências “… Começou a ficar bem claro na nossa cabeça que ele não comia por causa da doença, como é evidente.” “(…) esse sentimento de pai que tenta alimentar o filho e está a ver que o filho rejeita o comer, e que está a definhar mais, que o vai perder e é esse sentimento de impotência (…). “Sabendo que a minha mulher está a tentar alimentar-me… fico um pouco preocupado em recusar estes alimentos… não a consigo ajudar.” Recusa Alimentar “Eu dou-lhe comida e depois ela não come, depois sinto-me culpado pelo facto de ela não ter nada lá dentro. Fico preocupado e triste por ela não comer e ela fica zangada comigo por estar sempre a chateá-la com a comida e, às vezes, a situação segue o caminho oposto, em que ela simplesmente recusa comer o que quer que seja.” 2,16,20,23 “Fiz o jantar, fiz aquilo que ele gostava, sempre gostou e que comeria sempre e ele disse que não gostava, que não queria, pelo que fiquei um pouco zangado com isso.” “Eu tentei com todos os tipos possíveis de alimentos, todos aqueles que se possam imaginar. Dei-lhe tudo o que funcionava naquele momento mas se mais tarde eu voltasse a sugerir a mesma comida novamente, ela dizia-me que não queria ver aquela comida outra vez.” “Bem eu nunca estou com fome, mas a minha esposa e filha estão sempre a dizer - come isto agora, come isto agora. Uma vida sossegada e amor é tudo o que eu preciso agora, por isso só como o que eu posso quando me dão de comer. De qualquer forma, para elas nunca é suficiente…” Redução da Ingestão Alimentar “Eles tentam dar-me tudo para comer. Não se importam se eu quero comer ou não; eles continuam a fazer-me comer e eu digo - não quero”. “Ela continua a colocar um prato cheio, cheio à minha frente (…) Eu digo que só como aquilo que conseguir comer e é isso.” 20,24 “Quando o apetite dele diminuiu… nós desistimos e ele começou a comer, mas foi por nós. A sério, acho que nós o estávamos a forçar a comer.” “Eu sabia que ele estava em fase terminal, mas… assim que alguém tinha uma ideia diferente sobre como podíamos fazê-lo comer, eu dizia, porque não tentar?” “Eu vi que ela foi perdendo um quilo atrás do outro… avaliei a situação e acreditei que ela estava era a morrer à fome. Ela não comia nada de nada – apenas deitava tudo fora.” Alterações Físicas “(…) tu não estás a perder peso, entende aquilo que te estou a dizer, a balança pesava 54, mas a balança está avariada não está boa.” 13,16 “Eu olho-me ao espelho e fico doente. Parece que saí de um campo de concentração ou assim. De qualquer forma é muito difícil ganhar algum peso.“ “Senti um alívio enorme quando a nutrição parentérica foi iniciada (…)” “Se eu não conseguir alimentar-me suficientemente por mim própria, então eu prefiro este tipo de alimentação. Sinto-me mais forte quando tenho alguma coisa dentro do meu corpo do que quando não tenho nada.” Nutrição e Hidratação Artificiais “(…) a nutrição dá qualidade de vida para toda a família e para o doente… só posso dizer que estou feliz, que ele fica com energia e força, e com isso vem o prazer e sim, existe certamente uma espécie de harmonia que vem daí.” “Senti logo que isso ajudou. Talvez não no primeiro dia mas (…) na primeira semana, e eu saí da cama e fui cozinhar.” 22,25 “Não me interessa se o meu marido tem tubos em quatro locais do seu corpo, porque significa muito obter a energia e as coisas positivas da nutrição.” “(…) isto significa que eu não estou pior, sabe. Porque é muito difícil não ser capaz de fazer as coisas por mim próprio, ter que chamar por ajuda todas as vezes que tenho que ir à casa de banho ou sair da cama… desde que me alimento assim consigo gerir por mim de uma forma completamente diferente.” cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 17 quem cuida vê que a introdução de novos alimentos contribui para o crescimento da criança, numa fase de doença a família vai progressivamente “suprimindo” os alimentos, assistindo2 e associando este facto ao agravamento da doença e à própria morte3 (Quadro 2). Significado Social A alimentação é detentora de uma forte componente social1-3,5,7,10-13 pois constitui um acto simbólico de relacionamento que tem por base o acto de dar e receber, uma forma de afeto representada pelos alimentos, estreitando assim os laços sociais.2 O momento da refeição constitui um foco de interacções com inúmeras pessoas e lugares,14 uma vez que há uma série de datas importantes, festividades e cultos religiosos que assinalam essas mesmas datas e que relembram a importância que a alimentação possui.2 Para cada família as refeições possuem não só um código secreto de regras, ordem e estrutura do dia7 como também um código de sabores, partilhas e afetos.2 As refeições são momentos de ensino de regras sociais com a imposição de horários que poderão perdurar para toda a vida. Mas as refeições quer no momento de preparação, quer na partilha e proximidade são uma forma de demonstrar afeto, cuidado e companheirismo para com a família e os amigos.2,15 Desta forma, para alguns doentes, pelo facto de já não comerem como antes, por terem a sua autonomia diminuída e pela presença de sintomas que afetam a sua alimentação, poderão ver as refeições tornar-se num momento desagradável,3,5,6 deixando de representar um momento de prazer5,13 e tornando-se numa barreira que se repete dia após dia, várias vezes ao dia.5 Sendo assim, o ser incapaz de participar nas refeições como antes da doença, poderá levar o doente ao isolamento social e familiar3,5,6,13 e à sensação de descontextua- 18 lização,12 influenciando negativamente o seu sentimento de pertença à família e aos amigos. Para além disso, estas limitações ao nível social poderão originar depressão e contribuir para a diminuição do apetite, do peso e do prazer em comer.3,5-7 É importante salientar que também o papel social do doente e dos membros da sua família poderá alterar-se consoante o sexo da pessoa doente.2 Na sociedade atual, os papéis de cuidador e de gestão das questões domésticas são maioritariamente atribuídos à mulher. Assim, em muitos casos, poderá ocorrer uma mudança no papel social desempenhado nas famílias em que as mulheres são a pessoa doente.2 De uma forma geral, os cuidados com a alimentação passam para outro membro da família impreparado para assumir os cuidados ao nível da compra, da preparação e da confeção dos alimentos. Neste contexto, é frequente que o momento das refeições signifique fonte de preocupação e de desespero,16 tornando-os num período da vida desagradável,2 que interfere amplamente com as relações familiares.13,16 Em outros casos, vinculado à alimentação está a ideia de transmissão de amor. O elemento da família que prepara as refeições, cozinha habitualmente de modo a agradar à pessoa doente, transmitindo o seu cuidado através dos alimentos. Em alguns casos, os familiares encaram os cuidados com a alimentação como a sua total responsabilidade16 e função,17 expressando o medo de não conseguirem estar sempre presentes na preparação e no horário das refeições e no encorajamento da ingestão alimentar (Quadro 2). Significado Psicológico O papel psicológico que a alimentação desempenha em CP poderá funcionar como motivação numa luta contra a doença e como tentativa de controlar a mesma. Para alguns doentes, este papel cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 motivacional poderá ainda estar associado a sensações de bem-estar, satisfação, prazer, alegria ou esperança por conseguirem comer, cheirar ou saborear um prato que lhes traga boas recordações. Por outro lado, caso não o consigam fazer poderão expressar sentimentos de tristeza, desânimo e falta de esperança.18 Para a família, na estrutura de cuidados que esta considera adequada, o acto de conseguir alimentar o seu ente querido provoca-lhe sensações de conforto, alegria e, sobretudo, de vitória contra a morte, pois pensam que ao alimentar estão a adiá-la. O desejo da família em fazer algo pelo seu ente querido, leva a que a alimentação seja considerada uma recompensa positiva pelos cuidados prestados, pelo afeto que lhe está a ser devotado em aceitar as suas refeições,2 pelo prazer que os alimentos proporcionam, pelos momentos agradáveis partilhados, pelas recordações das refeições em datas festivas. Por outro lado, no caso de não terem sucesso no controlo da alimentação manifestam, frequentemente, sentimentos de frustração, culpa, ansiedade, incompetência, rejeição e falta de esperança2 (Quadro 2). O significado religioso e espiritual da alimentação em CP é um tema pouco estudado. No entanto, sabe-se que cada religião possui as suas especificidades ao nível do regime alimentar, o que poderá condicionar a alimentação do doente paliativo. Sendo assim, a dimensão religiosa ganha especial relevância nas situações de suspensão e abstenção da alimentação em fim de vida. No caso da Religião Católica, com excepção de doentes em estado vegetativo persistente, se a alimentação for considerada fútil é aceitável a sua suspensão/ abstenção. Relativamente à Religião Protestante, se a alimentação representar um risco é aceitável que esta seja suspensa ou não iniciada. No entanto, no caso de o doente se encontrar profundamente in- consciente a alimentação deverá manterse. Para os crentes no Judaísmo Ortodoxo a alma permanece ligada ao corpo, pelo que, mesmo em casos em que o doente esteja em coma a alimentação deverá ser preservada. Pelo contrário, no caso do Judaísmo Conservador se a alimentação prolongar o sofrimento, deverá ser rejeitada. Porém, uma vez iniciada a alimentação a sua suspensão não é aceite. No caso da Religião Islâmica, a suspensão e a abstenção da alimentação não é de todo aceite, pois a alimentação é considerada uma necessidade humana básica que deve ser providenciada a todos os doentes independentemente do seu estado de saúde, pois a vida humana é considerada um valor supremo que deve ser mantido. Finalmente, na Religião Hindu, suspender ou não iniciar a alimentação é aceitável, pois se alimentar significar a prolongação do sofrimento, então a vida não deve ser prolongada.19 Significado da Redução da Ingestão Alimentar Para o doente, a redução da ingestão alimentar significa um acontecimento natural que é fruto da evolução da doença e dos tratamentos que realizam. No entanto, na maioria dos casos, a família não compartilha da mesma opinião. As mudanças ocorridas nas preferências e hábitos alimentares são, frequentemente, fonte de conflito entre o doente e a sua família, conflito esse que se vê agravado pela perda de peso e pelas alterações ocorridas na autoimagem do doente.2, 8,13,15,17 Assim, a família foca-se demasiado nas questões alimentares pressionando o doente a conformar-se a comer.15,17 Neste contexto, havendo uma insistência persistente por parte da família, o doente acaba por atribuir um significado fútil à alimentação. Muitas vezes, o comportamento bem-intencionado da família resulta numa repercussão negativa, que de forma frequente, deixa o doente preocu- cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 19 pado e furioso pelo contínuo foco na alimentação.20 O desespero e o sofrimento emocional inerente a este tipo de atuação são particularmente stressantes dado que isto se intensifica durante os últimos meses de vida do doente.20 Alguns familiares revelam ainda que observam e controlam a ingestão alimentar do seu ente querido ao ponto de calcular as calorias ingeridas, originando assim tensão no momento das refeições. No entanto, outros revelam medo por pensarem que o facto de encorajar o doente a comer piore a situação,16 sentindo angústia que se expressa em muitos casos através de culpa por obrigar o doente a comer.20 Apesar de estas situações serem muitas vezes vivenciadas em constante conflito familiar, alguns doentes atribuem um significado positivo à atitude da família. Sentem-se gratos pelo esforço demonstrado ao nível do apoio nos cuidados alimentares já que isso significava um sinal do seu amor, preocupação com o seu bem-estar e compaixão para com a sua frágil saúde. Preferiam no entanto que a família se preocupasse com outras questões que não a redução da ingestão alimentar.16 Em outras situações, quer o doente quer a família tendem a demarcar-se das questões da alimentação. Ou seja, por um lado o doente isola-se socialmente na esperança de não ser forçado a comer.20 Por outro lado, alguns familiares entendem que o melhor é deixar “que a natureza siga o seu rumo”, pelo que esta atitude significa que aceitam que o melhor é que este não coma ou que coma apenas aquilo que tolera. Compreendem assim que a redução da ingestão alimentar é algo natural de acontecer. Mantêm contudo a mesma atitude de preocupação e cuidado, questionando o seu ente querido quanto ao facto de sentirem fome ou sede sem no entanto forçar caso a resposta seja negativa.21 Sendo assim, para alguns familiares, uma vez que a redução da ingestão alimentar era 20 algo que não conseguiam controlar, optaram por desenvolver estratégias de cuidados para outras áreas que não a alimentação.21 (Quadro 2). Significado da Recusa Alimentar Para o doente a recusa alimentar significa algo natural. Para a família vê a alimentação como um veículo de ajuda na sua recuperação, pelo que a recusa não é de todo aceite. Para alguns, a alimentação passa assim a significar uma fonte de apreensão e preocupação.2, 8 Para além disso, sentem culpa por não conseguirem respeitar o desejo do doente em não comer, continuando a oferecer alimentos, pois se fizessem o contrário isso poderia ser interpretado como um acto de negligência de sua parte.13,15,17 Em outras situações, quando as refeições são recusadas, a família vê a alimentação como um acto de apoio, de amor e de cuidado que foi recusado.20 Posteriormente, a recusa alimentar é vista pela família como revolta, desânimo, depressão e, sobretudo, como o desejo de antecipar a morte.3 Por outro lado, para alguns familiares a recusa alimentar representa uma forma de chamar a atenção para que mais cuidados e afetos sejam prestados.2,8,13,20 No entanto, em alguns casos, nas últimas semanas ou dias de vida, a visão que a família possuía em relação à recusa alimentar altera-se, passando a ser percepcionada como uma consequência da doença, aceitando que o a pessoa doente já não necessita desses alimentos2 ou que o seu ente querido deseja antecipar a sua morte e que essa decisão deverá ser respeitada3,23,24 ainda que envolva um enorme sofrimento (Quadro 2). Significado da Nutrição e Hidratação Artificiais A mudança da via de alimentação, quer seja para a via entérica ou parentérica, representa uma das alterações mais profundas nos hábitos alimentares do doen- cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 te, afectando também a sua família.6 Para alguns doentes, a nutrição artificial poderá significar uma sensação de alívio e segurança por verem as suas necessidades nutricionais momentâneas atingidas. Para outros, poderá ser sinónimo de alterações na sua autoimagem, na perceção que a família tinha deles próprios e na sua autonomia.5,6 Tanto para o doente como para a família estar a receber alimentação mesmo por uma via que não a oral significava que havia uma melhoria não só na sua qualidade de vida como também no nível de energia e da força necessária para realizar pequenas tarefas do dia-a-dia.16,17,22,25 Contudo, para alguns membros da família a nutrição artificial poderá ser fonte de dúvidas pois não acreditam que seja uma forma eficaz de alimentar,22 por este tipo de alimentação não ser considerado natural. Em outros casos, a nutrição artificial constitui o único meio que liga o doente à vida, pelo que deve ser mantida a todo o custo. Sendo assim, situações em que o doente opte pela cessação voluntária da alimentação e da hidratação ou que a nutrição e a hidratação artificiais sejam suspensa ou não iniciadas, são fonte de preocupação e tristeza (Quadro 2). Significado das Alterações Físicas Para alguns doentes, as alterações da sua autoimagem (por exemplo: no peso, na pele, no cabelo, entre outros) são associadas à diminuição da ingestão alimentar e à perda de apetite, sendo que a perda de peso foi considerada a alteração que os fez compreender e aceitar que estavam seriamente doentes e que não haveria possibilidade de cura.9,13,16 Para a família, o facto de presenciarem as alterações físicas evidentes, levam-na a concluir que estas são consequência da alimentação (ou a falta desta).13 Alguns familiares referem que não estavam plenamente conscientes da extensão que a doença iria atingir e muito menos que o doente passaria por tantas alterações. Sendo assim, à medida que a doença progride, a família via todas estas alterações como algo ameaçador, sendo que, muitos familiares referiam que sentiam medo que o seu ente querido morresse à fome16 (Quadro 2). Conclusão Para instituir a intervenção nutricional mais adequada em CP é primeiramente necessário que o Nutricionista aceite a filosofia e os princípios dos CP reconheça o significado fisiológico, social, psicológico, religioso/ espiritual da alimentação. Para além disso, é necessário que compreenda o significado que outras situações relacionadas com a alimentação possuem (diminuição da ingestão alimentar, recusa alimentar, nutrição e hidratação artificiais, alterações da autoimagem). É importante salientar que o Nutricionista deverá reconhecer o significado da mesma para o doente e família, bem como, a sua importância na envolvência familiar e progressão da doença. Dada a conjuntura atual será importante contextualizar o meio onde o doente está inserido e a possibilidade de aquisição de nutrientes/ alimentos para uma alimentação adequada que se encontre dentro das preferências do doente. Sendo assim, o suporte nutricional e alimentar prestado deverá ser ajustado às expectativas e necessidades do doente e sua família tendo em conta o significado que a alimentação vai ganhando e simultaneamente perdendo na vida de ambos. Da literatura consultada parece existir carência de estudos que descrevam o significado religioso/ espiritual atribuído à alimentação, sendo que o mesmo acontece na temática da mudança da via de alimentação que também adquire o seu significado próprio. Parece ainda existir carência de artigos de investigação que cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 21 foquem o significado da alimentação em CP atribuído pelos Nutricionistas, para que assim estes possam centrar mais a sua intervenção no doente e sua família, proporcionando-lhes cuidados nutricionais holísticos. A área dos CP é cada vez mais de primordial importância para o Nutricionista, uma vez que o número de pessoas com doença crónica, progressiva e incurável tem vindo a aumentar ao longo dos anos, pelo que o seu investimento na formação e na investigação na área dos CP é de suma importância. Conclui-se que na área do significado da alimentação em CP há ainda muita investigação a ser realizada, no sentido de colmatar as lacunas anteriormente referidas e a auxiliar o Nutricionista a personalizar ainda mais a sua intervenção. l 36(4):439-445 21. McClement S, Harlos M. When advanced cancer patients won’t eat: family responses. International Journal of Palliative Nursing 2008;14(4):182-188 22. Orrevall Y, Tishelman C, Permert J. Home parenteral nutrition: A qualitative interview study of the experiences of advanced cancer patients and their families. Clinical Nutrition 2005;24:961-970 23. Hopkinson J, Corner J. 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Oncology Nursing Forum 2009; 22 cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 Artigo original O Psicólogo em Cuidados Paliativos: Uma reflexão possível Eduardo Carqueja Psicólogo Clínico; Assistente principal da carreira dos Técnicos Superiores de Saúde; Doutorando em Bioética na Universidade Católica Portuguesa. Serviço de Cuidados Paliativos - Centro Hospitalar de S. João, EPE. Gabinete de Investigação em Bioética - Instituto de Bioética. Universidade Católica Portuguesa Celso Costa Psicólogo Clínico, Mestre em Psicologia pela Universidade Católica Portuguesa. Oporto International School (Colégio Luso-Internacional do Porto). Docente de Psicologia Resumo A intervenção psicológica em cuidados paliativos, na sua contribuição específica, não está ainda claramente definida ou suficientemente compreendida. É frequente existirem conflitos ou sobreposição entre psicólogos, médicos, enfermeiros, assistentes sociais e voluntários, quanto à prestação de suporte psicológico. Acreditamos que um dos fatores que mantém e potencia esta situação prende-se, de facto, com a ausência de conhecimento por parte de outros profissionais do trabalho concreto realizado pelo psicólogo. Um desafio fundamental é, então, delinear competências centrais exclusivas, acordando numa definição clara que distinga de forma objetiva, o papel dos psicólogos de outros profissionais, sendo tal (re)formulação de papéis compreendida por toda a equipa. Neste artigo, pretendemos efetuar uma reflexão que contribua para uma compreensão mais clara e abrangente do papel do psicólogo em Cuidados Paliativos. Abordaremos a pertinência da psicologia na compreensão do sofrimento em fim de vida, as competências centrais exclusivas do psicólogo, a intervenção psicológica e psicoterapêutica nas suas abordagens ecléticas e meta-teóricas, especificando os quatro níveis de intervenção que se encontram dirigidos para: a) intervenção psicológica com pessoas com doença avançada progressiva; b) intervenção psicológica com familiares durante a experiência de prestação de cuidados; c) intervenção psicológica com familiares em processo de luto e d) intervenção psicológica com outros profissionais da equipa. Abstract The specificity of psychological intervention in palliative care is not yet sufficiently understood or clearly defined. Often, there are conflicts or overlapping situations occurring between psychologists, physicians, nurses, social workers and volunteers in the provision of psychological support. We believe that one of the factors that maintains and enhances this situation, is based on the lack of knowledge that other professionals have about the specific work done by the psychologist. A central challenge, is therefore, to delinea Palavras-chave Psicologia, Cuidados Paliativos, Sofrimento. Key words Psychology, Palliative Care, Suffering. Palabras-llave Psicología, Cuidados Paliativos, Sufrimiento. cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 23 te unique core competencies, agreeing on a clear definition to distinguish objectively, the role of psychologists from other professionals, being such (re)formulation of roles acknowledged by the whole team. Through this article, we primarily aim to promote a reflection that contributes to a broader and clearer comprehension of the role played by psychologists in palliative care. We will discuss the relevance of psychology to the understanding of suffering near the end of life, the unique core competencies of psychologists, the psychological and psychotherapeutical interventions in an ecletic and meta-theoretical approach, specifying the four levels of intervention that are directed toward: a) psychological intervention with people with an advanced progressive disease, b) psychological intervention with family members during their caregiving experience, c) psychological intervention with bereaved family members and d) psychological intervention with other professionals in the team. Resumen La intervención psicológica en los cuidados paliativos en su aportación específica, aún no está claramente definida o suficientemente comprendida. A menudo hay conflictos o solapamientos entre psicólogos, médicos, enfermeras, trabajadores sociales y voluntarios, para la prestación de apoyo psicológico. Creemos que uno de los factores que mantiene y potencia esta situación se deriva, de hecho, con la falta de conocimiento de otros profesionales en el trabajo concreto realizado por el psicólogo. Un desafío clave es entonces delinear las competencias básicas únicas, ponerse de acuerdo sobre una definición clara de distinguir objetivamente el papel de los psicólogos de otros profesionales, como la (re)formulación de los roles entendidos por todo el equipo. En este artículo se pretende hacer una reflexión que contribuya a una comprensión más clara y completa de la función de los psicólogos en los cuidados paliativos. Abordaremos la importancia de la psicología en la comprensión del sufrimiento en el final de la vida, las competencias básicas y únicas de los psicólogos, la intervención psicológica y psicoterapéutica en sus planteamientos eclécticos y meta- teóricas, especificando los cuatro niveles de intervención que se dirigen hacia: a) la intervención psicológica en personas con enfermedad avanzada y progresiva, b) intervención psicológica con las familias durante la experiencia del cuidado, c) intervención psicológica con familias en el proceso de duelo y d) intervención psicológica con otros profesionales del equipo. Introdução A problemática associada à especificidade e ao papel dos psicólogos que trabalham em cuidados paliativos tem vindo a merecer especial atenção de vários dos seus intervenientes. Em Portugal, esta problemática começa a emergir com maior visibilidade, tendo em conta o número crescente de equipas e serviços de cuidados paliativos. Junger, Eggenberger, Greenwood e Payne¹ e Junger e Payne² afirmam que, “apesar de já existirem um número considerável de psicólogos a tra- 24 balhar em Cuidados Paliativos, em muitos países, a sua contribuição específica não está ainda claramente definida ou suficientemente compreendida”. Segundo Junger e Payne², na realidade Europeia é frequente existirem conflitos ou sobreposição entre psicólogos, médicos, enfermeiros, assistentes sociais e voluntários, quanto à prestação de suporte psicológico. Acreditamos que um dos fatores que mantém e potencia esta situação prende-se, de facto, com a ausência de conhecimento por parte de outros profissionais do traba- cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 lho concreto realizado pelo psicólogo. Um desafio fundamental é, então, “delinear competências centrais exclusivas”,² acordando numa definição clara que distinga de forma objetiva, o papel dos psicólogos de outros profissionais, sendo tal (re)formulação de papéis compreendida por toda a equipa.²¯³. Procuraremos neste artigo, contribuir para uma compreensão mais clara e abrangente do papel do psicólogo em Cuidados Paliativos. 1. Pertinência da Psicologia na Compreensão do Sofrimento em Fim de Vida Vila-Chã4 refere que,“(...) aquilo que cada ser humano é em sua mesma unicidade não é pensável, na esfera da finitude, sem a experiência do sofrer”. O sofrimento é, de facto, parte integrante da vida, estando naturalmente presente no fim de vida. Kuhl5 explica que, quando alguém recebe a notícia de que tem uma doença incurável, a perceção do seu tempo narrativo altera-se, podendo a compreensão da sua finitude resultar num estado de intenso sofrimento. Arranz, Barbero, Barreto e Bayés,6 referem que um indivíduo se encontra em sofrimento quando, “acontece algo que perceciona como uma ameaça importante para a sua existência (...); ao mesmo tempo, sente que carece de recursos para lidar com a situação”. O sofrimento de uma situação irreparável, irremediável, irreversível, poderá provocar num indivíduo com doença avançada progressiva uma rutura do seu sentido de coerência. Summerfield7 lembra-nos, no entanto, que o sofrimento não é patológico, mas sim um fenómeno humano natural, modulado por um contexto cultural, o que se coaduna com a perspetiva construtivista em que o sofrimento é representado como uma necessidade de encontrar significado.8 Bayés9 salienta o caráter subjetivo do sofrimento referindo que, aqueles que sofrem, tendem a percecionar uma descontinuidade e interrupção, muitas vezes brutal e irreversível, do seu percurso de vida, confrontando-se com o fim da sua existência, não como uma ideia teórica ou algo que acontece apenas aos outros, mas como uma realidade estranha e única, que independentemente da sua vontade, terá que ser enfrentada. Quando um indivíduo se confronta com o fim da sua vida, muitas vezes resulta deste encontro, uma crise existencial, à medida que o indivíduo se apropria do facto inevitável de que irá morrer.10 Os processos através dos quais um indivíduo constrói um sentido pessoal da vida e da morte dependerão de aspetos emocionais, cognitivos, sociais e experienciais.10 Neste sentido, os psicólogos encontram-se particularmente preparados para compreender a experiência idiossincrática de morrer e portanto para intervir junto dos indivíduos com doença avançada progressiva e seus familiares.10 De acordo com os mesmos autores, um conceito central associado à necessidade de Cuidados Paliativos especialistas é a noção de “sofrimento total”. Sabemos hoje que o sofrimento se constitui através de componentes de natureza física, emocional, espiritual e cognitiva.10 Contudo, o sofrimento não se resume à soma destes componentes. Cada indivíduo experiencia o sofrimento de forma diferente, podendo mesmo experimentar diferentes tipos de sofrimento num mesmo momento. Assim, os psicólogos, a partir da sua formação direcionada para a regulação emocional e controlo do sofrimento, e da sua formação mais abrangente no desenvolvimento humano ao longo do ciclo de vida, constituem-se como os profissionais mais competentes e melhor colocados para intervir no sentido da construção de significado de situações complexas (e.g. sofrimento concomitantemente a vários níveis) e para ajudar outros profissionais a reconhecerem e identificarem estas questões.10 Os mesmos autores descrevem ainda a pertinência do psicólogo na inter- cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 25 venção sobre o “sofrimento biográfico”, o qual surge sobretudo no fim da vida, no momento em que um indivíduo reconhece que determinados aspetos da sua vida não podem mais ser alterados. Também aqui, o psicólogo tem um papel preponderante, sobretudo através de intervenções de natureza existencial.10 De acordo com Kon e Ablin,¹¹ o tratamento paliativo consiste no tratamento do sofrimento, sendo para isso necessário reconhecê-lo nas suas diversas formas. Estes autores organizam o sofrimento em 5 dimensões: físico, psicológico, social, espiritual e existencial. Reconhece-se portanto, a necessidade de uma intervenção multidisciplinar na qual estejam incluídos médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, entre outros.¹² Contudo, é através da dimensão psicológica que um indivíduo organiza toda a sua experiência e perceção da realidade: desde aspetos físicos ou biológicos como a dor ou dificuldades respiratórias; aspetos de natureza especificamente psicológica como a ansiedade, o desespero ou a depressão; aspetos sociais como as dinâmicas de interação com os outros; aspetos espirituais como a forma de relacionamento com a religião ou o posicionamento face à própria existência; e aspetos existenciais como a construção de significado do percurso de vida.¹³ Como refere Carqueja.14 é na dimensão psicológica onde todo o sofrimento vem “desaguar”. Seja qual for a origem do sofrimento é nesta dimensão que ele emerge. É na vivência psicológica que são sentidos e percecionados os sentimentos de perda ou ameaça, que põem em questão o equilíbrio e a unidade do Self. Payne e Haines15 reforçam este argumento lembrando que, a adaptação de um indivíduo a uma doença avançada progressiva consiste num conjunto de “processos psicológicos que ocorrem ao longo do tempo à medida que os indivíduos procuram lidar com, aprender e 26 adaptarem-se a uma multiplicidade de mudanças associadas ao percurso da doença num conjunto de contextos sociais”. Concluímos portanto, que a intervenção psicológica e psicoterapêutica é particularmente pertinente no contexto dos Cuidados Paliativos e na promoção de bem-estar e/ou diminuição do sofrimento, repercutindo-se inequivocamente numa melhor qualidade de vida das pessoas com doença e dos seus familiares. Beloff et al.10 refere ainda que, é amplamente reconhecido que o psicólogo se constitui como um elemento imprescindível numa equipa de Cuidados Paliativos, em que o seu papel e a pertinência das suas intervenções são, não só de inquestionável relevância e eficácia demonstrada por investigação cientificamente e empiricamente validada, como são também económicas.16-17 2. Competências Centrais Exclusivas do Psicólogo De acordo com a British Psychological Society,10, o Oxford Handbook of Palliative Care18 e a European Association for Palliative Care Task Force² as principais áreas de atuação do psicólogo em Cuidados Paliativos consistem na: -Avaliação; - Formulação e Conceptualização de Problemas; -Intervenção; - Implementação de Projetos; - Treino e Formação a outros profissionais; - Supervisão a outros profissionais; -Investigação; -Comunicação. Por uma questão metodológica, neste artigo, apenas daremos relevo à intervenção psicológica, em virtude de entendermos ser uma área de maior proximidade não só dos doentes e seus familiares, mas também de outros profissionais. Contudo, qualquer outra das áreas de atuação é de relevante importância e, como tal, cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 merecedora de uma elevada atenção e especial desenvolvimento que tornaria excessivamente longo o presente artigo. 2.1. Intervenção Psicológica e Psicoterapêutica: Abordagens Ecléticas/Meta-teóricas A intervenção em Cuidados Paliativos, seja com pessoas em fim de vida e os seus familiares prestadores de cuidados, seja com familiares em processo de luto, obriga o psicólogo a obter conhecimentos e formação em diversas áreas e modelos de intervenção, culminando num tipo de intervenção avançada, meta-teórica, ou aquilo a que Castonguay, Reid, Halperin e Goldfried19 denominaram de abordagens ecléticas, que possibilita diferentes tipos de resposta perante diferentes tipos de problemas e/ou necessidades. Os modelos teóricos com eficácia cientificamente e empiricamente comprovada na intervenção psicoterapêutica com pessoas com doença física, doenças ameaçadoras de vida, processo de luto, e doença mental no contexto dos Cuidados Paliativos, são os seguintes:20-2 - Psicoterapia Cognitivo-Comportamental; - Psicoterapia Construtivista; - Psicoterapia Humanista-Experiencial; - Psicoterapia Narrativa; - Psicoterapia Existencialista; - Modelos Sistémicos de Psicoterapia Familiar; - Psicoterapia Interpessoal Psicodinâmica; -Abordagens de Consciencialização baseadas na Terapia Cognitivo-Comportamental. 2.1.1. Intervenção Psicológica com Pessoas com Doença Avançada Progressiva O objetivo central do psicólogo nas pessoas com doença avançada progressiva consiste, em consonância com a filosofia dos Cuidados Paliativos, em intervir sobre o sofrimento, nas suas várias dimensões.¹¹ Arranz et al.6 propõem um modelo orientador da intervenção psicológica com pessoas com doença avançada progres- siva, no qual para diminuir o sofrimento da pessoa doente e promover o seu bem-estar é necessário: a) identificar situações que são percebidas, do ponto de vista da pessoa doente, como ameaças importantes, estabelecendo dimensões prioritárias de intervenção; b) controlar, compensar ou eliminar essas situações (e.g. sintomas aversivos, alterações psicológicas); c) potenciar os recursos da pessoa doente visando diminuir a sua sensação de impotência e incrementando a sua perceção de controlo sobre a situação; d) intervir sobre reações desadaptativas (e.g. perturbação depressiva major); e) atuar preventivamente, antecipando consequências, reformulando expectativas, promovendo estratégias de coping para complicações futuras. Este modelo constitui-se como uma ferramenta organizadora interessante da intervenção psicológica com pessoas com doença avançada progressiva, contudo não ilustra exaustivamente o potencial da intervenção do psicólogo. Arranz et al.6 sublinham que, “nunca se deverá duvidar que cada situação clínica é diferente e irrepetível, e que cada ser humano possui dados biográficos e genéticos inseridos na própria cultura, constituindo-se como uma entidade única não só na sua realidade presente como nos trajetos do seu passado e nas suas expectativas para o futuro”. Torna-se, portanto, necessário reconhecer a individualidade e realidade única da pessoa em sofrimento, adaptando as intervenções para que vão de encontro às necessidades identificadas em cada pessoa. Uma das principais áreas de intervenção do psicólogo consiste na promoção de um processo de resiliência na pessoa com doença avançada progressiva18 facilitando a sua adaptação à doença, e às circunstâncias associadas, favorecendo o seu ajustamento psicoemocional.6 Perante pessoas em fim de vida, é impor- cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 27 tante visando a diminuição do seu sofrimento, intervir no sentido de favorecer um ajustamento à irreversibilidade da doença, antecipando possíveis consequências da progressão inevitável da doença (e.g. paralisia devido a metástases na coluna), promovendo a adaptação à morte como realidade e facilitando a reorganização de objetivos de vida.²¹ Uma dimensão crucial no ajustamento psicoemocional à doença é a comunicação de “más notícias”,²² que do ponto de vista da intervenção do psicólogo poderá ser mais adequado formular como promoção da adaptação à realidade da situação clínica. É fundamental ajudar a pessoa com doença avançada progressiva a adaptar-se a uma nova realidade para que planifique a sua vida em função de objetivos realistas.6 A adaptação a uma situação clínica com um prognóstico desfavorável deverá ser abordada com a pessoa de forma gradual, facilitando progressivamente a sua adaptação.18 O psicólogo, através de competências específicas e únicas numa equipa de Cuidados Paliativos, é importante na medida em que explora intencionalmente o conhecimento que a pessoa tem da sua doença, em que medida se encontra disponível para receber nova informação, transmitindo informação de forma compreensível utilizando os códigos usados pela pessoa, ajudando-a a identificar e explorar significados, sentimentos, preocupações, medos, promovendo recursos que permitam à pessoa processar a informação e as emoções decorrentes da sua situação de doença, diminuindo a sua vulnerabilidade e reencontrando um sentido e propósito para a sua vida.²³ Outro aspeto particularmente importante na potenciação de um ajustamento psicoemocional à doença é a promoção de esperança.²¹ Snyder24 conceptualiza a esperança como um constructo multideterminado que envolve a avaliação 28 cognitiva complexa e dinâmica dos objetivos desejados, a distância relativamente à concretização desses objetivos, a capacidade para iniciar e desenvolver comportamentos no sentido da realização dos objetivos pretendidos e a motivação para atingir esses resultados. Todos os profissionais de saúde de uma equipa de Cuidados Paliativos deverão ser capazes de promover esperança junto de pessoas com doença avançada progressiva. Gum e Snyder²¹ explicam no entanto, que a esperança poderá ser promovida por psicólogos, através da realização do luto de objetivos irrealistas (e.g. sobrevivência), desenvolvimento de objetivos alternativos realistas, potenciação de estratégias de coping aumentando a perceção de controlo sobre a situação e aprendizagem de novas competências. De acordo com Arranz et al.,6 é comum, ao longo do processo de uma doença avançada progressiva, o aparecimento de vários sintomas que, sendo uma manifestação de sofrimento, podem agravá-lo, vulnerabilizando ainda mais, o indivíduo doente. Arranz et al.6 listam como os sintomas mais comuns: a ansiedade, a tristeza ou depressão, a hostilidade, o medo, a culpa, a negação e o isolamento. Também aqui, o psicólogo tem um papel importante, podendo atuar através de intervenções psicológicas específicas direcionadas para um particular sintoma, recorrendo por exemplo a estratégias cognitivas para corrigir, reformular ou reestruturar crenças erróneas ou mal adaptativas, promover a identificação de recursos psicológicos, potenciar estratégias de coping e mobilizar recursos internos no indivíduo para mudar a sua perceção da situação.24-28 Estratégias de intervenção, como a reestruturação cognitiva¹³, são eficazes na medida em que atuam em pessoas com doença e seus familiares, no sentido de modificarem a avaliação que fazem da sua situação atual, diminuindo cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 a intensidade do seu sofrimento e potenciando um sentido de maior confiança e dignidade.26 Por exemplo, o simbolismo negativo catastrofizante que uma pessoa com doença avançada progressiva pode atribuir à diminuição da sua mobilidade, tendo que se deslocar numa cadeira de rodas, focando-se na sua perda de autonomia, poderá ser explorada e modificada pelo psicólogo, através de intervenções como a reestruturação cognitiva, que levam a pessoa a construir uma nova representação simbólica da situação, percecionando a situação de forma menos ameaçadora, à medida que o próprio indivíduo encontra novos significados, tal como compreender que deslocar-se numa cadeira de rodas lhe permitirá continuar a participar de forma ativa na vida familiar, por exemplo.¹³ Uma dimensão de primordial relevância, indissociável do processo de adaptação psicoemocional à doença e da presença de sintomatologia, é a construção de sentido da vida. O psicólogo, assume então, um papel fulcral na intervenção sobre o sentido de vida da pessoa doente e sobre a sua construção de significado da experiência de doença que agora enfrenta. As intervenções Humanista-Existenciais assumem aqui maior protagonismo, sobretudo intervenções existencialistas como a Logoterapia.29 Frankl29 explica a Logoterapia como “o tratamento da atitude do paciente em relação ao seu destino inalterável”. Schulenberg, Nassif, Hutzell e Rogina30 explicam que logos corresponde a sentido, significado ou propósito, sendo então o seu objetivo ajudar a pessoa em sofrimento a encontrar sentido para a sua vida.³¹ De acordo com Frankl,29 o papel do psicólogo consiste em “demonstrar que a vida nunca deixa de ter significado (...) ele não pode mostrar ao paciente qual é o significado, mas pode mostrar-lhe que existe um significado, e que a vida o tem: que permanece com significado, sejam quais forem as circunstâncias”. A Logoterapia consiste então, num encontro pessoal, que se processa através de um diálogo terapêutico que é conduzido intencionalmente para a procura de sentido de vida.³² Intervenções que envolvem técnicas de exploração ou revisão da vida, assim como a Terapia da Dignidade, constituem-se como intervenções promotoras de construção de um sentido para a vida³³, na medida em que facilitam uma reavaliação construtiva de acontecimentos de vida importantes e significativos, através dos quais a pessoa encontra novo sentido no seu percurso de vida.26 As intervenções direcionadas para o insight, podem ajudar a pessoa com doença a reconhecer que continuam a existir, apesar da sua situação, tarefas e momentos importantes e significativos para serem vividos, alegrias e emoções positivas para serem sentidas, coisas para dizer ou para completar, relações para serem apreciadas e valorizadas, e conflitos para serem resolvidos.¹³ O psicólogo poderá igualmente intervir no sentido de promover uma comunicação mais ajustada entre a pessoa doente e os seus familiares, evitando ou desconstruindo a conspiração do silêncio6 e facilitando a partilha de sentimentos,18 algo que exploraremos com maior pormenor no próximo capítulo. Ainda, a intervenção psicológica revelou-se eficaz no controlo sintomático, como no controlo da dor,34 mas também noutras condições clínicas como dificuldades respiratórias e náuseas,35 recorrendo a intervenções sobretudo Cognitivo-Comportamentais.34 Estratégias, como a reconceptualização, permitem que os problemas apresentados pela pessoa com doença sejam traduzidos em dificuldades específicas, que podem ser claramente identificadas, potenciando assim a perceção das dificuldades como circunscritas e tratáveis, em oposição a uma perceção vaga e esmagadora da experiência de sofrimento.35 A reestruturação cognitiva é cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 29 aqui também eficaz, na medida em que incentiva a pessoa a identificar os pensamentos e emoções subjacentes às sensações desagradáveis provocadas pelos sintomas, facilitando a compreensão da forma como estes influenciam a sua perceção da intensidade do sintoma, permitindo assim a reflexão sobre e consequente modificação de pensamentos e emoções, resultando na diminuição do sofrimento da pessoa doente35 e numa maior perceção de competência para lidar com a situação. Outras estratégias têm-se revelado eficazes no controlo de sintomas desagradáveis, como a respiração diafragmática, imaginação guiada, técnicas de distração, técnicas de relaxamento, entre outras.35 2.1.2. Intervenção Psicológica com Familiares durante a Experiência de Prestação de Cuidados O papel do familiar prestador de cuidados no contexto dos Cuidados Paliativos, está associado a exigências físicas e emocionais extremamente elevadas,36 assumindo um papel social multidimensional, que se altera ao longo do percurso da doença do familiar, em que as exigências e necessidades variam da mesma forma que os recursos.37 Arranz et al.6 listam como situações merecedoras de atenção clínica por parte do psicólogo: esgotamento físico e mental, labilidade emocional, sintomatologia e/ou perturbações depressivas, sintomatologia e/ou perturbações de ansiedade, abuso de substâncias, perturbações do sono, alterações do apetite, perturbações de somatização e sintomas de hipocondria. As áreas de intervenção do psicólogo com esta população são quase ilimitadas, dependendo naturalmente das necessidades de cada pessoa em particular.38 Partindo das necessidades identificadas nos familiares, o papel do psicólogo consistirá em facilitar um processo de adaptação à realidade da situação clínica do familiar, potenciando os seus recursos e diminuindo a sua vulnerabilidade.6 30 O psicólogo poderá ter um contributo singular na promoção de um sentido de autoeficácia sobre a experiência de prestação de cuidados, potenciando a esperança, promovendo competências de resolução de problemas, antecipando consequências da doença, reformulando expectativas quanto ao papel de cuidador,¹³ preparando os momentos finais de vida facilitando a conclusão de assuntos por resolver, entre outras dimensões.6 Uma outra importante dimensão de intervenção é na facilitação da construção de sentido na experiência de prestação de cuidados.38 As intervenções Humanista-Existenciais assumem particular predominância nesta dimensão. Payne e Ellis-Hill38 sublinham a importância de intervir ajudando os familiares a identificarem e reconhecerem aspetos positivos na sua experiência de prestação de cuidados como um importante recurso de coping. De suma importância constitui-se a intervenção do psicólogo sobre formas de comunicação desajustadas quer entre os familiares, quer entre os familiares e a pessoa doente. A conspiração do silêncio, definida por Arranz et al.6 como “um acordo implícito ou explícito para alterar a informação ao paciente por parte de familiares, amigos e/ou profissionais de saúde com o fim de se ocultar o diagnóstico e/ou prognóstico e/ou gravidade da situação”, representa uma forma de comunicação desajustada encontrada com frequência no contexto dos Cuidados Paliativos. Intervenções baseadas nos Modelos Cognitivo-Comportamentais e Sistémicos são particularmente eficazes neste tipo de situações. 2.1.3. Intervenção Psicológica com Familiares em Processo de Luto O luto é um processo complexo, multidimensional, que envolve o domínio físico, psicológico, social39 e espiritual. Stroebe40 descreve o luto como um processo cog- cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 nitivo e emocional que envolve a confrontação com e a reestruturação de, pensamentos sobre a pessoa perdida, a experiência da perda, e o mundo alterado no qual o indivíduo em luto tem agora que viver. De acordo com Worden41, o psicólogo tem um papel essencial no processo de luto intervindo no sentido de promover: 1) a aceitação de realidade da perda, 2) o processamento das emoções e sofrimento da perda, 3) a adaptação a um novo mundo sem a pessoa perdida, 4) construindo com a mesma uma ligação duradoura prosseguindo com a sua nova vida. O psicólogo assume-se essencial na facilitação de um processo de reconstrução de significado da perda ajudando a pessoa em processo de luto a: 1) construir um sentido na experiência de perda; 2) encontrar benefícios na experiência de perda; e 3) modificar a sua identidade, favorecendo o crescimento pós-traumático da perda,42-43 integrando uma nova realidade8 na qual os valores e crenças sobre o mundo e a sua forma particular de o percecionar, fica permanentemente modificada.44 De acordo com Currier, Holland, e Neimeyer,45 a intervenção psicológica no luto, direcionada para a reconstrução de significado após a perda de alguém significativo, deverá incluir os seguintes aspetos: facilitar a integração e favorecer a procura de significado; promover a reelaboração de uma nova narrativa e recorrendo também para este efeito ao uso de estratégias narrativas; manter o foco na procura de benefícios decorrentes da perda, incentivando a expressão e processamento de emoções; explorar questões existenciais e espirituais relevantes; dar informação pertinente e acessível ao nível da compreensão da pessoa sobre as características do processo de Luto; potenciar a aquisição de novas competências e recursos de coping; facilitar a cons- trução de um vínculo ou ligação contínua com a pessoa falecida. De acordo com os autores, toda a intervenção deverá ser sustentada na promoção de esperança e confiança, na concretização do potencial de transformação da pessoa em ganhos reais, direcionando-a progressivamente para a vida futura. 2.1.4. Intervenção Psicológica com Outros Profissionais da Equipa Brennan46 refere que o trabalho com pessoas com doenças ameaçadoras de vida, quase inevitavelmente tem um impacto nos profissionais de saúde, influenciando os seus comportamentos, as suas crenças, os seus medos e mesmo os seus relacionamentos com pessoas significativas. A intensidade emocional decorrente do tipo de trabalho realizado em Cuidados Paliativos pode exercer uma importante influência nas dinâmicas de uma equipa, afectando as relações entre profissionais no trabalho.10 A perceção de stresse continuada e prolongada no tempo poderá levar ao burnout do indivíduo.10 De acordo com os autores, a síndrome de burnout pode ter repercussões importantes nos profissionais de saúde e respetivamente nas suas equipas, especialmente nos profissionais que trabalham em Cuidados Paliativos. Os autores explicam ainda que, a maior parte dos profissionais de saúde não obtiveram formação ou preparação adequada para o impacto emocional que a sua função acarreta. Neste sentido, os psicólogos, através da sua formação e competências específicas, encontram-se particularmente bem preparados para intervir sobre este tipo de problemas.10 Brennan46 salienta contudo, a necessidade de que este tipo de trabalho seja realizado por um membro externo à equipa com formação adequada que possa atuar como facilitador na resolução de problemas intrapessoais, interpessoais ou organizacionais. Payne e Haines15 acrescentam cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 31 que, os psicólogos deveriam estar mais envolvidos na avaliação das dinâmicas de interação entre os profissionais de equipas multidisciplinares. Os autores explicam que os psicólogos têm competências para atuar junto da equipa no sentido de atenuar o stresse associado à perda contínua de pessoas acompanhadas pelas equipas de Cuidados Paliativos. Uma forma através da qual os psicólogos podem atuar a este nível é através da realização de sessões de debriefing direcionadas para a partilha livre de experiências, facilitando o suporte emocional e reduzindo eventuais sentimentos de culpabilidade. Conclusão A estrutura de referência para intervir no contexto dos cuidados paliativos tem-se apoiado na tríade básica: comunicação eficaz, controlo sintomático e apoio à família, sendo que estes elementos são considerados como estrutura ideal para alcançar os objectivos desejados.6 Esta visão redutora da complexidade e individualidade das vivências de cada pessoa que se encontra em cuidados paliativos, demonstra, segundo Arranz et al.,6 a fragilidade conceptual deste modelo universalmente estabelecido, que terá sido considerado empiricamente eficaz por médicos e enfermeiros, sendo contudo um reflexo de uma prática profissional imbuída no Modelo Biomédico. Esta tríade poderia, metaforicamente, comparar-se à imagem de um arquitecto – o médico – ao qual se pede que construa uma complexa e magistral catedral gótica – o bem-estar da pessoa alvo de cuidados – sem ter qualquer plano para o efeito, mas apenas com a simples indicação de que a tríade instrumental básica para construí-la será formada por água – comunicação eficaz –, cimento – controlo sintomático, – e areia – apoio emocional à família.6 Urge desenvolver-se um novo paradigma, o qual contemple uma visão verdadeiramente 32 holística do ser humano em sofrimento próximo do fim de vida, representando uma estrutura eficaz, orientadora, empiricamente pertinente, contudo sempre flexível, abrangendo e nunca simplificando a riqueza da complexidade, unicidade, individualidade e subjectividade, intrinsecamente humana. O psicólogo, partindo de conhecimentos decorrentes de diferentes modelos e abordagens teóricas e investido da competência necessária para criativamente se adaptar, pessoal e profissionalmente, a diferentes modos de relação e intervenção com o Outro, constitui-se como um elemento indispensável para o enriquecimento da investigação, avaliação e intervenção realizada no contexto dos cuidados paliativos. l Bibliografia 1. Junger S, Eggenberger E, Greenwood A, Payne S. Psychologists in palliative care in Europe: A discipline “under construction”. Abstracts of the 6th Research Congress of the European Association for Palliative Care. Palliative Medicine. 2010; 24:212-213. 2. Junger S, Payne S. Guidance on postgraduate education for psychologists involved in palliative care. European Journal of Palliative Care. 2011; 18(5):238-252. 3. Junger S, Payne S, Constantini A, Kalus C, Werth J. The EAPC Task Force on Education for Psychologists in Palliative Care. 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VU Medical Center, EMGO+ Institute for Health and Care Research; FP7 Project Euro-Impact Pablo Hernández-Marrero Enfermeiro; Mestre e Doutor em Health Services Research; Profesor Ayudante Doctor, Universidad de Las Palmas de Gran Canaria, Facultad de Ciencias de La Salud, Departamento de Enfermería Manuel Luís Capelas Mestre em Cuidados Paliativos; Doutor em Ciências da Saúde; Professor Adjunto, Universidade Católica Portuguesa, Instituto de Ciências da Saúde Resumo A realização de projetos de investigação de cariz colaboracional e multicêntrico tem vindo a ser implementada e fomentada, quer a nível nacional quer internacional, inclusive no domínio científico dos cuidados paliativos. O objetivo do presente estudo é o de descrever a realidade portuguesa nesta matéria, apontando possíveis estratégias para a promoção e melhoria deste tipo de projetos. A partir do envio de um questionário misto aos coordenadores de cursos de mestrado, pós-graduação e equipas de cuidados paliativos portugueses, num total de 25 respondentes, foi possível identificar que a maioria (15 dos 25 participantes) nunca participou em estudos de cariz colaboracional, quer de âmbito nacional quer internacional. Não obstante, praticamente todos os inquiridos (24 dos 25 respondentes) foram unânimes em apontar a relevância deste tipo de estudo, manifestando-se disponíveis para participar neste tipo de iniciativa. Como possíveis estratégias promotoras de investigação colaboracional e multicêntrica os participantes salientaram o estabelecimento de redes interprofissionais e interinstitucionais (networking), a realização de seminários de investigação, e o estabelecimento de acordos bilaterais (consórcios). Pese embora a parca experiência na realização de investigação colaboracional e multicêntrica em cuidados paliativos em Portugal, o presente estudo evidencia o interesse, viabilidade e potencialidade de iniciativas promotoras deste tipo de projetos neste país. Palavras-chave Investigação colaboracional; investigação multicêntrica; cuidados paliativos. Key words Collaborative research; multicentred research; research networks or consortiums; palliative care. 34 cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 Palabras-llave Investigación colaborativa; estudios multicéntricos; redes de investigación; cuidados paliativos. Abstract The development of national and international collaborative and multicentred research projects is becoming a major and relevant feature, namely in the field of palliative care. Hence, the aim of this study is to describe the state of the development of this type of research in Portugal, pointing out possible strategies to promote and improve such collaborative projects. All coordinators of masters and post-graduation courses in palliative care and all coordinators of Portuguese specialised palliative care teams were requested to fill in a questionnaire where they were asked on their experience in conducting collaborative research projects. Out of a total of 25 participants, 15 never participated in such studies. Nonetheless, almost all participants were unanimous in stating that they consider these projects relevant, expressing their willingness in participating in initiatives of this kind. As possible strategies to promote collaborative research in Portugal, the participants indicated networking, research seminars and the establishment of bilateral research consortiums. Despite of the scarce of experience in conducting collaborative research in palliative care in Portugal, this study highlights the interest, feasibility and potential of initiatives promoting this type of research in this country. Resúmen Los proyectos de investigación de naturaleza multicéntrica y colaborativa han sido implementados, tanto a nivel nacional como internacional, en diversos campos científicos como el de los cuidados paliativos. El objetivo de este estudio es describir la situación de la investigación colaborativa y multicéntrica en cuidados paliativos en Portugal, señalando las posibles estrategias para la promoción y mejora de este tipo de proyectos. Como instrumento de recolección de datos, se envió un cuestionario a todos los coordinadores de cursos de master y postgrado en cuidados paliativos, así como a todos los coordinadores de equipos especializados de cuidados paliativos portugueses. De un total de 25 participantes, 15 no había participado nunca en estudios de naturaleza colaborativa y multicéntrica, ni a nivel nacional ni internacional. Sin embargo, casi todos los encuestados (24 del total de 25 encuestados) fueron unánimes en señalar la relevancia de este tipo de estudios, manifestándose disponibles para participar en este tipo de iniciativas. Como posibles estrategias promotoras de esto tipo de investigación multicéntrica y colaborativa, los participantes indicaron la creación de redes interprofesionales (networks), la realización de seminarios de investigación, y el establecimiento de acuerdos multi(bi)laterales (consorcios). A pesar de la escasa experiencia en la realización de investigación colaborativa multicéntrica en cuidados paliativos en Portugal, este estudio pone de relieve el interés, la viabilidad y el potencial para la promoción de iniciativas promotoras de este tipo de proyectos en este país. Introdução te das agências de financiamento de in- A realização de projetos de investigação vestigação, quer por parte das próprias de cariz colaboracional e multicêntrico instituições promotoras de investigação. tem vindo a ser implementada e fomen- O desenvolvimento dos cuidados palia- tada, quer a nível nacional quer interna- tivos, enquanto área de subespecializa- cional. Com efeito, a constituição de con- ção no âmbito da saúde, tem sido acom- sórcios de investigação, particularmente panhado duma preocupação crescente de cariz interdisciplinar, tem conhecido com a realização de projetos de inves- um investimento crescente, quer por par- tigação deste âmbito. Não obstante, a cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 35 participação portuguesa em projetos de investigação de cariz colaboracional e multicêntrico tem sido escassa. Além disso, desconhece-se a existência de um Centro de Investigação, única e exclusivamente dedicado à investigação em cuidados paliativos, pese embora a concretização, há já uma década, de diversos cursos de mestrado e pós-graduação em cuidados paliativos em Portugal. Consequentemente, a investigação realizada neste domínio tem assumido caraterísticas que a tornam pouco competitiva, no panorama internacional. O presente estudo visa traçar o perfil e estado de desenvolvimento da investigação colaboracional e multicêntrica em cuidados paliativos, em Portugal. Além disso, tem por intuito identificar possíveis estratégias para a promoção e melhoria do desenvolvimento deste tipo de projetos neste país. Quadro teórico A investigação colaboracional pode ser definida como a concretização de um projeto de investigação desenvolvido por ou em mais do que uma instituição, centro de investigação, centro médico e/ou universitário, contando com a colaboração de todos os parceiros implicados. Na maior parte das vezes, entre estes, é estabelecido um consórcio e protocolo de cooperação bilateral. No que concerne ao projeto de investigação, em si mesmo, este é único, partilhado por todos e coordenado por um dos parceiros. Não obstante, o projeto está, comummente, subdividido nos designados work packages, os quais são múltiplos e liderados por investigadores pertencentes às diferentes instituições parceiras. Pese embora a definição de investigação colaboracional acima enunciada,1 na realidade não existe uma definição consensualizada para este tipo de projetos.2 Com efeito, diferentes autores apre- 36 sentam conceitos distintos, podendo considerar-se que uma investigação colaboracional acontece desde que dois ou mais investigadores estejam implicados no processo de investigação, ou então quando este é implementado por mais do que uma instituição. Em qualquer dos casos, os autores são unânimes em considerar que a investigação colaboracional consiste numa forma especial de colaboração com o propósito de produzir evidência científica, conectando pessoas, disciplinas, organizações.3 Acresce ainda o reconhecimento de que este tipo de investigação se constitui como uma maisvalia, reunindo uma importância crescente no domínio científico.4 O desenvolvimento dos cuidados paliativos enquanto área de cuidados especializados e diferenciados na saúde requer uma prática baseada em evidência e, como tal, investigação rigorosa e de qualidade.5-8 A investigação é, aliás, considerada um elemento central na definição dos níveis de desenvolvimento dos cuidados paliativos num país.9 Não obstante, vários são os desafios que se colocam neste domínio, algumas de cariz ético10, nomeadamente: dificuldades na realização de ensaios clínicos devido ao risco de perda de participantes ao longo do processo de recolha de dados;11 vulnerabilidade dos participantes; investigação de temas perspetivados como delicados e de abordagem complexa e difícil; entre outros. Uma das formas de colmatar e minimizar estas dificuldades e desafios passa, precisamente, pelo desenvolvimento de projetos de cariz colaboracional e multicêntrico em cuidados paliativos,8;12 estabelecimento de parcerias e cooperações entre clínicos e investigadores13 e pela definição de áreas e programas prioritárias de investigação.13 É neste contexto que emergem os objetivos do presente estudo, o qual visa: (a) descrever a realidade atual da investiga- cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 ção colaboracional e multicêntrica em cuidados paliativos em Portugal; (b) saber quais as vantagens da investigação colaboracional e multicêntrica em cuidados paliativos na ótica dos profissionais que exercem funções nesta área; (c) compreender de que modo será possível fomentar este tipo de investigação em Portugal, na perspetiva dos profissionais que exercem funções nesta área. Metodologia Este estudo assume um cariz exploratório e descritivo, na medida em que visa obter uma perspetiva acerca do fenómeno em estudo, neste caso, descrevendo e traçando a realidade da investigação colaboracional e multicêntrica em cuidados paliativos em Portugal. Este tipo de metodologia é a que melhor se enquadra quando o intuito é o de obter informação acerca duma problemática relativamente à qual existe pouco evidência ou conhecimento.14-16 Em termos de recolha de dados, optámos por enviar um questionário online. Este questionário assumiu um cariz misto: por um lado, incluiu um conjunto de perguntas fechadas, dicotomizadas, acerca da experiência do respondente no que concerne à realização de investigação colaboracional e multicêntrica em cuidados paliativos, de âmbito nacional ou internacional, acesso a financiamento para concretização deste tipo de estudos, reconhecimento da relevância destes, e disponibilidade para participar neste tipo de projetos; por outro lado, foi solicitado, aos participantes, que detalhassem informação e/ou justificassem as suas opções face às dimensões descritas e partilhassem a sua perspetiva e sugestões sobre como melhorar este tipo de investigação em cuidados paliativos, em Portugal. Os dados obtidos foram analisados do seguinte modo: relativamente às perguntas fechadas, estas foram objeto duma análise meramente descritiva, quantitativa; quanto às perguntas abertas, estas foram sujeitas a uma análise de conteúdo, temática e indutiva. No que concerne aos possíveis participantes, foram incluídos todos os coordenadores de mestrados em cuidados continuados e paliativos com 120 ou mais ECTS, todos os coordenadores de pós-graduações em cuidados paliativos com 60 ou mais ECTS, e todos os coordenadores de equipas de cuidados paliativos indicadas no site da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos em dezembro de 2013.17 Os convites para participação neste estudo foram enviados, por correio eletrónico, para todos os potenciais participantes (6 coordenadores de mestrados, 7 coordenadores de pós-graduações, 21 coordenadores de equipas) em meados de dezembro de 2013. O período de recolha de dados perdurou até março de 2014, tendo sido enviados, para além do convite inicial, dois lembretes adicionais aos potenciais participantes. Em termos éticos, a devolução do questionário preenchido foi definida e entendida como o consentimento para participar no estudo e divulgar os resultados de forma anonimizada e confidencial. Um total de 4 coordenadores de mestrado, 5 coordenadores de pós-graduações e 16 coordenadores de equipas devolveram o questionário devidamente preenchido. Estes 25 documentos constituíram o corpus de análise, cujos resultados passam a apresentar-se. Apresentação e discussão de resultados Os resultados deste estudo serão apresentados e discutidos em torno de três dimensões centrais, estreitamente relacionadas com os objetivos acima enunciados: (a) a realidade atual da investigação colaboracional e multicêntrica em cuidados paliativos em Portugal; (b) Vantagens da investigação colaboracional e multicên- cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 37 trica em cuidados paliativos na ótica dos profissionais que exercem funções nesta área de cuidados; (c) perspetivas dos profissionais sobre como fomentar este tipo de investigação em Portugal. A realidade atual da investigação colaboracional e multicêntrica em Cuidados Paliativos, em Portugal: No que se refere aos coordenadores de mestrados em cuidados paliativos, 3 dos 4 participantes neste estudo referiram ter participado em estudos de cariz colaboracional e multicêntrico de âmbito nacional. Não obstante, nenhuma das dissertações de mestrado desenvolvidas nestes mestrados se havia inscrito neste tipo de projetos, assim como nenhum dos participantes referiu alguma vez ter tido acesso a financiamento para investigação. Por sua vez, no que concerne aos coordenadores de pós-graduações, nenhum dos respondentes havia participado em projetos colaboracionais e multicêntricos a nível nacional ou internacional ou havia acedido a financiamento para investigação. Quanto aos coordenadores de equipas de cuidados paliativos, 7 dos 16 participantes neste estudo manifestou ter integrado projetos colaborativos de caráter nacional, e 3 a nível internacional. A propósito deste subgrupo de participantes, importa referir que 3 indicaram ter colaborado em projetos enquanto participantes, nomeadamente em estudos de mestrado e doutoramento, entendo esta participação como uma colaboração inter-institucional com as instituições de ensino superior nas quais estes se integravam. Também no caso dos coordenadores de equipas, a experiência de acesso a financiamento era inexistente. Não obstante, todos os coordenadores de mestrado e pós-graduações, assim como 15 dos 16 coordenadores de equipas manifestaram considerar os projetos de investigação colaboracional e multi- 38 cêntrica relevantes, assim como a sua disponibilidade para colaborar neste tipo de iniciativas. Estes resultados ilustram a parca experiência em termos de investigação colaboracional e multicêntrica dos profissionais que têm dedicado o seu exercício profissional aos cuidados paliativos, em Portugal. Com efeito, denota-se que, pese embora algumas iniciativas pontuais, não existe tradição na implementação de projetos colaborativos entre instituições de ensino superior que promovem a formação em cuidados paliativos. Estes aspetos convergem com a escassez de publicações portuguesas na literatura internacional em cuidados paliativos,18 já que a concretização de projetos colaboracionais não só potencia a possibilidade de disseminação científica, como a produção de evidência científica e publicações aumenta a viabilidade de obter financiamento.19 Um dos resultados obtidos neste domínio e que importa aprofundar refere-se à perspetiva de alguns coordenadores de equipas que consideram ter participado em projetos de cariz colaboracional e multicêntrico ao serem participantes em trabalhos de mestrado e doutoramento. Embora não possamos extrapolar os resultados obtidos, pensamos poder afirmar que esta perspetiva converge com algumas recomendações recentes adotadas em outros países de incluir os participantes no próprio desenho e implementação dos projetos de investigação.20 Em nosso entender, este reconhecimento, por parte dos participantes do nosso estudo de que, por serem participantes são parte integrante do processo e, como tal, participaram em projetos colaborativos é ilustrativo do potencial existente para uma maior promoção deste tipo de projetos, em Portugal. Esta perceção é reforçada pela disponibilidade manifestada por praticamente todos os respondentes. cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 Quadro 1 Relevância dos projetos de investigação de cariz colaboracional e multicêntrico para o desenvolvimento dos cuidados paliativos na perspetiva dos participantes Unidades de registo Categorias Número Transcrição (exemplos) 16 “A evidência obtida será fundamental no planeamento de eventuais alterações ou na implementação de novas estratégias” (Coordenador de Pós-Graduação, CPG4) “Os projetos de investigação são uma forma de aprofundamento de conhecimentos, que se traduzem numa melhoria da prestação de cuidados” (Coordenador de Equipa, CE12) 6 “Devido às limitações metodológicas da investigação em Cuidados Paliativos, esta será a forma necessária para maior evidência dos resultados da investigação” (Coordenador de Mestrado, CM3) “Generalização de resultados pela representatividade da amostra” (CE14) 22 “Favorecer a identificação e a articulação com outros grupos e instituições que têm interesses comuns de estudo” (CM1) “Considero importante pela oportunidade de troca de experiências dos vários profissionais nesta área, pela possibilidade de aprendizagem com outras instituições do género (…)” (CPG2) “A partilha de conhecimentos e experiencias é fundamental (…)” (CE1) Necessidade de desenvolver prática baseada na evidência Limitações metodológicas da investigação em cuidados paliativos Aumento e partilha de conhecimento e experiências Vantagens da investigação colaboracional e multicêntrica em Cuidados Paliativos na ótica dos profissionais que exercem funções nesta área de cuidados No sentido de compreender as vantagens atribuídas pelos profissionais que exercem a sua atividade profissional em cuidados paliativos à implementação de projetos de cariz colaboracional e multicêntrica, procedemos à análise de conteúdo das respostas dadas, pelos próprios, a uma das questões abertas que constava do questionário. Desta análise de conteúdo, emergiram as seguintes categorias: necessidade de desenvolver uma prática baseada na evidência; limitações metodológicas da investigação em cuidados paliativos; e possibilidade que os projetos colaborativos encerram em termos de aumento e partilha de conhecimento e experiências (Quadro 1). Estes resultados são ilustrativos do conhecimento que os participantes têm acerca das vantagens de implementar projetos de investigação alicerçados no estabelecimento de colaborações e parcerias. Com efeito, uma das formas de colmatar os constrangimentos inerentes à perda de participantes ao longo de um projeto de investigação e ensaio clínico passa, precisamente, pela realização de projetos multicêntricos.13; 17 Um outro aspeto que estes resultados realçam prende-se com a evidente preocupação dos participantes em que a prática de cuidados e, consequentemente, o desenvolvimento dos cuidados paliativos assente na evidência científica.5-8 Na realidade, uma melhoria da qualidade dos cuidados paliativos requer uma expansão da capacidade investigativa neste domínio.21 Dada a natureza e abordagem interdisciplinar em cuidados paliativos, importa notar a expressividade da categoria “aumento e partilha de conhecimentos e experiências”. Com efeito, denota-se que a maior vantagem apontada pelos participantes à realização de projetos de in- cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 39 vestigação colaborativos residiu, precisamente, na possibilidade que esta encerra de otimizar o trabalho em equipa. Perspetivas dos profissionais sobre como fomentar este tipo de investigação em Portugal No âmbito do presente estudo, uma das questões colocadas aos participantes, foi acerca do modo como estes consideravam ser possível promover o desenvolvimento de projetos de investigação colaboracional e multicêntrica em cuidados paliativos, em Portugal. Esta questão foi efetuada em formato aberto, sendo que, da análise de conteúdo realizada, emergiram as seguintes categorias: investigação em rede (networking); realização de seminários de investigação; estabelecimento de consórcios/protocolos bilaterais de cooperação; envolvimento de profissionais da área da prestação de cuidados em projetos de investigação; desenvolvimento de projetos focalizados na prática clínica; integração de investigadores nas equipas de cuidados paliativos. A categoria “acesso a financiamento” também emergiu na análise efetuada (Quadro 2). A propósito desta análise convém referir que é possível agrupá-las considerando o perfil dos respondentes. Enquanto a sugestão da investigação em rede (networking), realização de seminários de investigação e estabelecimento de consórcios/protocolos bilaterais de cooperação emergiram a partir das respostas dadas por todos os tipos de coordenadores (mestrado, pós-graduação, equipa), a integração de profissionais da área da prestação de cuidados emergiu somente a partir dos questionários preenchidos por coordenadores de pós-graduação e equipas; por último, sugestões relativas à focalização dos projetos na prática clínica e de integração de investigadores nas equipas de cuidados paliativos foram somente dadas por coordenadores de equipas. Em nosso entender, estes con- 40 sensos e diferenças prendem-se, por um lado, com a maior experiência e tradição académica de produção científica e, por outro lado, com a dimensão mais prática dos cursos de pós-graduação e equipas. Além disso, a sobrecarga de trabalho das equipas é dificultadora da consecução de projetos de investigação, pelo que a inclusão de um investigador nas equipas pode, efetivamente ser facilitadora da concretização de projetos mais amplos. Curiosamente, embora somente um dos participantes se tenha referido explicitamente ao acesso a financiamento como promotor do desenvolvimento de investigação em cuidados paliativos, denota-se que praticamente todos as estratégias sugeridas pelos demais respondentes têm implícita esta necessidade de aceder a verbas. Além disso, houve respondentes que se referiram a bolsas e prémios pontuais. Estes, embora relevantes, não foram considerados como acesso a financiamento na medida em que assumem caraterísticas distintas que nem sempre garantem a sustentabilidade dum projeto de investigação na sua completude. A relevância da acessibilidade a financiamento para investigação está também patente na literatura internacional sobre o tema, em que uma das recomendações enunciadas se prende, precisamente, com a necessidade de acesso a fundos que sustentem a investigação no domínio dos cuidados paliativos.13-13; 15; 19 Pese embora os resultados aqui expostos e discutidos, importa considerar algumas limitações inerentes à realização deste estudo, nomeadamente no modo como os participantes foram selecionados. Com efeito, o facto de esta seleção ter incidido nos coordenadores de mestrado, pósgraduação e equipas especializadas de cuidados paliativos (com menção explícita a esta área científica), é de supor que terão ficado excluídas pessoas ou instituições que, não assumindo este tipo de cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 Quadro 2 Perspetivas dos profissionais sobre como fomentar a investigação colaboracional e multicêntrica em Portugal Unidades de registo Categorias Transcrição (exemplos) Número Investigação em rede (networking) 6 “Investigação em rede” (CM2) “(…) criar redes de trabalho (…)” (CPG3) “(…) que as diferentes equipas (…) se articulem (…)” (CE1) Seminários de investigação 4 “Seminários de investigação (…)” (CM3) “(…)encontro de investigação (…)” (CPG2) “(…) encontros presenciais (…) (CE3) Consórcios/protocolos bilaterais de cooperação 7 “Associar projetos centros de investigação” (CM3) “Criação de um consórcio de instituições parceiras incluindo instituições de ensino e prática de cuidados paliativos” (CPG1) “(…) desenvolver parcerias (…)” (CE5) Envolvimento de profissionais da área da prestação de cuidados em projetos de investigação 3 “Integrar na investigação colegas da prática clínica” (CPG3) “(…) participação ativa das equipas (…)” (CE3) Projetos focalizados na prática clínica 7 “(…) realizar uma investigação baseada na evidência (…)” (CE5) Integração de investigadores nas equipas de cuidados paliativos 4 “(…) um apoio externo à equipa é seguramente bem-vindo” (CE12) Acesso a financiamento 1 “Acesso a financiamento para investigação” (CPG1) atividade, poderão ter estado envolvidos em projetos de investigação colaboracional e multicêntrica. A título de exemplo, destacamos a participação lusa no projeto europeu PRISMA,22-23 através do Centro de Estudos e Investigação em Saúde da Universidade de Coimbra. Não obstante, importa referir que este estudo encerra a mais-valia de ser, tanto quanto conhecemos, o único do género e que retrata o “estado-de-arte” da investigação colaboracional e multicêntrica em cuidados paliativos, em Portugal. Conclusão A investigação colaboracional e multicêntrica em cuidados Paliativos, em Portugal, carateriza-se, essencialmente, pela sua escassez. Acresce ainda a falta de tradição e experiência, quer na disseminação de resultados de investigação em revistas científicas de âmbito internacional, quer no acesso a financiamento nacional e internacional que viabilizem a implementação de estudos desta natureza. Não obstante, os resultados obtidos através deste estudo apontam para um elevado interesse e vontade dos profissionais desta área científica e de cuidados em participar e contribuir para a melhoria desta situação. Com efeito, além duma expressiva manifestação de disponibilidade, os participantes neste estudo apontaram sugestões criativas e exequíveis nesse sentido. Face ao exposto, é possível concluir que, pese embora a parca experiência na realização de investigação colaboracional e multicêntrica em cuidados paliativos em Portugal, o presente estudo evidencia o interesse, viabilidade e potencialidade de iniciativas promotoras deste tipo de projetos neste país. l cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 41 Bibliografia 1. Pereira SM. Investigação colaboracional e multicêntrica em cuidados paliativos: como promover e melhorar. 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Tomás Salgueiro do Campo Sandra Batista Licenciada em Enfermagem, Mestranda em Cuidados Paliativos (Escola Superior de Saúde Dr. Lopes Dias); Professora Assistente Convidada na Escola Superior de Saúde Dr. Lopes Dias, Castelo Branco; Serviço de Ortopedia da ULS Castelo Branco Paula Sapeta Professora Coordenadora na Escola Superior de Saúde Dr. Lopes Dias, Castelo Branco; Enfermeira especialista em Enf. Médico-Cirúrgica; Mestre em Sociologia; Pós-graduada em Cuidados Paliativos; Doutor em Enfermagem Resumo O presente artigo tem como objetivos descrever os fatores que interferem no processo de diagnóstico clínico do doente nos últimos dias ou horas de vida num hospital de agudos, bem como, a forma como estes influenciam e configuram todo o processo. Procurando ainda identificar as repercussões da ausência do diagnóstico no bem-estar de todos os envolvidos. Para a realização deste estudo de investigação recorreu-se à revisão sistemática da literatura. Foram incluídos 11 artigos dos quais 7 de natureza qualitativa, 3 revisões sistemáticas da literatura e 1 estudo misto, publicados no período temporal de janeiro de 2008 a setembro de 2013, pesquisados a partir de bases de dados de texto integral e de referência. Antecipar o diagnóstico de últimos dias ou horas de vida em contexto hospitalar é possível, embora na maioria das vezes este continue a ser feito de forma tardia, sendo mesmo inexistente em alguns casos. Com este estudo é enfatizado o papel do doente, da família, do profissional de saúde, do contexto sociocultural e da instituição prestadora de cuidados enquanto fatores passíveis de influenciar o diagnóstico clínico. A formação, o trabalho de equipa, a otimização da comunicação e a integração nos hospitais de protocolos de cuidados integrados e de equipas de cuidados paliativos devem constituir estratégias a implementar no sentido de colmatar as dificuldades sentidas. Apenas com um diagnóstico definido é possível reajustar o plano de cuidados e definir como objetivos principais o controlo de sintomas, as medidas de conforto, a suspensão de intervenções inadequadas e o apoio à família. Palavras-chave Fatores; processo de diagnóstico clínico; últimos dias ou horas de vida; hospital de agudos. Key words Factors; clinical diagnostic process; last days or hours of life; acute care hospital. Palabras-llave Palabras llave: factores; Proceso de diagnóstico clínico; últimos días u horas de vida; hospital de agudos. cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 43 Abstract The current article aims to describe the factors that interfere with the clinical diagnosis process of the patient in the last days or hours of life in an acute care hospital, as well, how they influence and shape the entire process. Trying further to identify the impact of absence of the well-being diagnose of all involved. To carry out this research study was used a systematic literature review. It were included 11 articles, 7 of which of qualitative nature, 3 systematic literature reviews and 1 joint study published in the time period between January 2008 and September 2013, surveyed from full-text and reference databases. It is possible to anticipate the diagnosis of last days or hours of life in hospital context, however in most cases it continues to be done in tardy way, being non-existent in some cases. This study emphasizes the role of the patient, family, health professional, socio-cultural context and providing care institution as factors that might influence the clinical diagnosis. Training, teamwork, optimization of communication and integration of integrated care protocols and palliative care teams in the hospitals should be regarded as strategies to implement in a way to bridge the observed difficulties. Only with a definite diagnosis is possible to adjust the care plan and set as main objectives the symptoms control, the comfort measures, the suspension of inappropriate interventions and the family support. Resúmen El artículo tiene como objetivo describir los factores que interfieren en el diagnóstico clínico del paciente en los últimos días u horas de vida en un hospital de agudos, así cómo influyen y dan forma a todo el proceso. Buscando identificar aún más el impacto de la falta de diagnosticar el bienestar de todos los involucrados. Para la realización deste estudio de investigación se recurrió a la revisión sistemática de la literatura. Se incluyeron 11 artículos, 7 de la naturaleza cualitativa, 3 revisiones sistemáticas y 1 estudio mixto publicados en el período de tiempo enero de 2008 hasta septiembre de 2013. La encuesta se llevó a cabo a partir de bases de datos y referencia de texto completo. Anticipar el diagnóstico de los últimos días u horas de vida en el ámbito hospitalario es posible, aunque a menudo continúa a ser hecho más tarde, siendo inexistente en algunos casos. Con este estudio se acentúa/hace hincapié en el papel del paciente, de la familia, de lo profesional de la salud, del contexto sociocultural y de lo contexto de cuidados como factores susceptibles de influir en el diagnóstico clínico. La formación, lo trabajo en equipo, la optimización de la comunicación y la integración de los protocolos de cuidados integrales y los equipos de cuidados paliativos en los hospitales, deberían estar implementando estrategias para superar las dificultades. Sólo con un diagnóstico definitivo es posible ajustar el plan de cuidados y establecer como principales objetivos el control de los síntomas, medidas de confort, interrupción de las intervenciones inapropiadas y el apoyo familiar. Introdução Embora os manuais de boas práticas enfatizem a necessidade e a possibilidade de um diagnóstico precoce de “últimos dias ou horas de vida”, na prática clínica este continua a ser feito de forma tardia, sendo mesmo inexistente em alguns casos.1,2,3,4,5,6 44 Sendo os últimos dias ou horas de vida uma fase especialmente intensiva e delicada pelo impacto que causa tanto no doente, como na família e na equipa de cuidados, é premente que os profissionais de saúde adquiram competências pessoais e profissionais que lhes permitam es- cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 tar preparados para identificar o doente nesta etapa da vida, sentindo-se simultaneamente seguros, perante o processo de gestão dos cuidados em fim de vida.2,7,8,9,10 Considerando que, a maioria dos doentes crónicos continua a morrer em hospitais de agudos e que este tipo de contexto reúne um conjunto de aspetos passíveis de influenciar todo o processo de diagnóstico do doente nos últimos dias ou horas de vida, importa perceber quais os fatores que aqui interferem, como é que no seu conjunto influenciam e configuram o processo de diagnóstico clínico e como é que a ausência deste diagnóstico se repercute no bem-estar de todos os envolvidos (doente, família e profissionais). Pretende-se, através do aprofundar de conhecimentos, proporcionar àqueles que asseguram a gestão dos cuidados numa fase da vida tão delicada, uma auto-reflexão, não apenas profissional, já que esta tornar-se-ia demasiado redutivista, mas enquanto seres complexos em interação com pessoas em situação de particular vulnerabilidade. Permitindo, um aglutinar de competências, onde sejam geridas estratégias e atitudes capazes de ajudar o doente e a família e simultaneamente, estratégias de enfrentamento pessoal perante a exigência emocional patente neste processo de interação. Pressupõe-se que após este “crescimento pessoal e profissional” o profissional possa assegurar que a morte mais do que um momento de despedida, seja um momento de encontro, de crescimento e uma ponte entre o antes, o agora e o sempre. Quadro Teórico Os avanços na ciência e na tecnologia alcançados nas últimas décadas conduziram ao aumento da esperança média de vida, o que resultou num maior envelhecimento e numa maior prevalência de doenças crónicas.1,11,12 Contudo, se por um lado assistimos a profundas mudan- ças, por outro persiste um dos mais temerosos tabus sociais – A morte. Apesar do conhecimento universal e inexorável da sociedade acerca da finitude da vida, a morte continua a ser mitigada, banida da vida social – dessocializada.12,13 A par destes fenómenos as alterações socioeconómicas a que assistimos introduziram importantes modificações estruturais, quer a nível social quer na saúde, o que contribuiu para aumentar a procura de profissionais14,15 e o número de internamentos a nível hospitalar. A maioria dos doentes quando chega às instituições de saúde apresenta quadros de pluripatologia, doenças avançadas, progressivas e incuráveis e elevado grau de dependência.16 Dada a sua debilidade orgânica acabam por desenvolver complicações que agravam o estado de saúde e culminam com a morte. Segundo as estimativas de alguns autores cerca de 60% dos doentes falecidos necessitaram de cuidados paliativos.17 Capelas (2009), utilizando as fórmulas preconizadas por Gómez-Batiste et al., Herrera et al. e Ferris et al., e através de dados demográficos do Instituto Nacional de Estatística referentes ao ano de 2007, calculou que em Portugal nesse ano cerca de 62.000 doentes necessitaram de cuidados paliativos.18 Atualmente, embora se preconize que a morte do doente deva ocorrer num ambiente familiar e significativo para o próprio, em grande parte dos casos estes doentes continuam a morrer em hospitais destinados a doentes agudos. Segundo Gibbins et al. (2013) este é um fenómeno bastante vinculado em países desenvolvidos, como o Reino Unido, onde cerca de 60% da população morre em hospitais.19 A nível nacional um estudo de Gomes et al. (2010) revelou uma discrepância entre preferências da população e os locais de óbito. Segundo este, o hospital sendo o lugar apontado como o menos dese- cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 45 Quadro 1 Protocolo de investigação PICOD P Participantes Quem foi estudado? • Enfermeiros e Médicos; • Doentes nos últimos dias ou horas de vida; • Hospital de Agudos. I Intervenções O que foi feito? • Diagnóstico de últimos dias ou horas de vida; • Fatores que influenciam o processo de diagnóstico do doente nos últimos dias ou horas de vida. C Comparações Podem existir ou não. • Encontrar eventuais comparações por caraterísticas de profissionais (enfermeiro/ médico) ou serviços. O Outcomes Resultados, efeitos ou consequências • Diagnóstico de últimos dias ou horas de vida: fatores que influenciam, positivamente ou negativamente o processo de diagnóstico clínico; Palavras chave: factors; obstacle; barrier; diagnose; process of diagnosis; last hours or days of life; end-of-life care; terminal care; endof-life; palliative care; care of the dying; acute hospital ; acute hospital wards; acutely unit. • Efeitos do não diagnóstico no doente, na família e nos profissionais de saúde. D Desenho do Estudo Como é que a evidência foi recolhida? Qualitativa: estudos fenomenológicos; grounded theory, entrevista narrativa, focus group; entre outros. jado para morrer continua a ser o principal local de morte, assistindo-se em 2010 a uma percentagem de óbitos a rondar os 62%.20 Contudo, se por um lado assistimos a uma elevada taxa de mortalidade em contexto hospitalar, o que deveria familiarizar os profissionais com este tipo de procedimento, por outro esta conceção “hospitalocêntrica” cria ainda grande relutância nestes. Nestas instituições os défices de comunicação entre os membros das equipas multidisciplinares, os cuidados não personalizados, o modelo biomédico e a obstinação terapêutica, vocacionados sobretudo para o tratamento ativo da doença, dificultam a tomada de decisões em fim de vida e um adequado controlo de sintomas.8,19,21,22,23 Ellershaw (2003) refere ainda como barreiras à realização do diagnóstico de morte iminente: a esperança que o 46 doente melhore; a ausência de diagnóstico definitivo; a dificuldade em reconhecer sinais/sintomas chave; a dificuldade em comunicar com o doente/família, e as barreiras espirituais, culturais e médico-legais.8 Todos estes fatores tem contribuído para que alguns estudos levados a cabo em contexto hospitalar revelem um assincronismo entre os ideais preconizados e a real tipologia de cuidados prestados ao doente em fim de vida.1 Metodologia No sentido de sistematizar o estado do conhecimento sobre o objeto em análise a pesquisa foi direcionada de modo a responder a uma questão central: Quais os fatores que interferem no diagnóstico clínico do doente nos últimos dias ou horas de vida, num contexto hospitalar destinado a doentes agudos? cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 Figura 1 Algoritmo de selecção de artigos Com o objetivo de operacionalizar a questão de partida associámos questões orientadoras: Quais os fatores que facilitam e/ou dificultam o processo de diagnóstico do doente nos últimos dias ou horas de vida? Qual o impacto das características pessoais, profissionais, sociais, culturais e do contexto de prestação de cuidados, no processo de diagnóstico do doente nos últimos dias ou horas de vida? Delineara-se como critérios de inclusão: estudos de natureza qualitativa, realizados entre Janeiro de 2008 e Setembro de 2013, no âmbito do contexto hospitalar e que incluíssem apenas doentes adultos em fim de vida. Foram excluídos estudos cuja abordagem da problemática ocorre-se unicamente em contexto comunitário ou em unidades de cuidados paliativos. Definiram-se diversas combinações de palavras-chave, recorrendo aos idiomas português, francês, inglês e espanhol. Os parâmetros considerados indispensáveis para a leitura, análise e resumo dos artigos definiram-se segundo o protocolo PICOD (Quadro 1). Para reunir a literatura científica relevante para a investigação foram consultadas bases de dados de referência e de texto integral. Concomitantemente, de forma a refinar a pesquisa foram ainda consultadas publicações de referência em cuidados paliativos. Da pesquisa realizada obtiveram-se 101 referências bibliográficas, das quais após leitura do abstract foram selecionadas 69. Numa última fase de seleção, em que foi realizada a leitura integral de todos os artigos e aplicados todos os critérios de inclusão e exclusão anteriormente referidos, o corpus de análise ficou constituído por 11 artigos (ver quadro 2), dos quais 7 de natureza qualitativa, 3 revisões sistemáticas da literatura e 1 estudo misto (Figura 1). cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 47 Figura 2 Distribuição por ano publicação Resultados A maioria dos artigos foi publicada no ano de 2013 (Figura 2). Foi interessante verificar que após filtragem dos critérios de inclusão definidos não foram encontrados artigos relevantes para a temática com origem na literatura científica portuguesa, ocorrendo a maioria das publicações em países de origem anglo-saxónica e na Austrália (Figura 3). Torna-se assim interessante referir um estudo realizado por Baxter et al. em 2010 onde foram avaliados 40 países, os quais são precisamente o Reino Unido, a Austrália e os EUA que lideram o ranking de locais considerados com melhor qualidade de cuidados em fim de vida.24 A predominância de estudos nestes países pode associar-se a um maior número de infraestruturas especializadas na área dos cuidados paliativos, à existência de guidelines e planos estratégicos norteadores de cuidados de excelência no final de vida24 e consequentemente ao maior desenvolvimento que a área dos Cuidados Paliativos assume nestes países. A estreita relação entre a publicação de artigos no âmbito do diagnóstico de últimos dias ou horas de vida e o Reino Unido pode ainda ser explicada pelo facto de este ser um país intimamente relacionado com o desenvolvimento de protocolos de cuidados integrados para o fim de 48 vida, em particular o Protocolo de Liverpool. Em termos de participantes dos estudos, encontra-se sobretudo uma perspetiva direcionada para dois grupos profissionais, enfermeiros e médicos o que em si constitui uma limitação dos mesmos. Importará no futuro avaliar fatores relacionados com outros elementos da equipa, já que estes terão certamente um papel fulcral quer no diagnóstico, quer no colmatar de alguns dos obstáculos apresentados. Por outro lado, um menor número de estudos direcionados para a família, pode estar relacionado com dificuldades éticas em avaliar este grupo em momentos de grande stress emocional como são os últimos dias ou horas de vida. Ao nível de serviços em estudo, importa realçar a elevada predominância de unidades de cuidados intensivos, factor que pode ser interpretado como um indicador de qualidade pela crescente atenção e preocupação dedicada a este grupo de doentes. Fatores que interferem no processo de diagnóstico do doente nos últimos dias ou horas de vida De acordo com os pressupostos teóricos de referência analisados e de forma a facilitar a análise deste artigo, organizaramse os fatores que interferem no processo de diagnóstico em cinco categorias: doente, família, contexto social e cultural, profissional de saúde e contexto de prestação de cuidados (figura 4). Fatores relacionados com o doente Apesar desta revisão se focar no estudo do doente adulto em fim de vida, importa ressaltar o fator idade. Perante uma etapa do ciclo de vida onde não é espectável cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 Figura 3 Distribuição por país de origem a ocorrência da morte, como é o caso de crianças, adolescentes e jovens adultos o seu reconhecimento e aceitação constitui um processo difícil para os indivíduos, repleto de incerteza e emoção.2 O diagnóstico de base influencia também a acuidade do diagnóstico de últimas dias ou horas de vida. Doenças crónicas não oncológicas ou degenerativas e situações de pluripatologia são as que maiores dificuldades trazem aos profissionais, existindo um maior à vontade em identificar doentes com doenças oncológicas onde é clara a delimitação entre a fase curativa e fase paliativa.2,25 Por outro lado a forma como decorre a trajetória da doença configura também o processo. Situações de insuficiências de órgão em que o doente passa por repetidos episódios de agudização severa, antes mesmo da sua morte, muitas vezes inesperada,26 dificultam a previsão de morte iminente e provocam na equipa e na família a crença na recuperação.27 No que respeita às doenças degenerativas o declínio progressivo e prolongado ao longo de vários anos, oculta os sinais e sintomas de proximidade de morte, dificultando a transição para os cuidados adequados nesta fase da vida.4,26,27 O estado clínico do doente - o estado de consciência, a agitação ou confusão mental, a instabilidade clínica e a necessidade de sedação - reflete-se na sua capacidade de comunicação e participação na tomada de decisões influenciando substancialmente a sua autonomia e configurando a expressão dos sinais e sintomas de proximidade de morte.27,28 As experiências prévias, as atitudes dos familiares e a relação terapêutica desenvolvida com a equipa profissional, influenciam o processo de adaptação à doença e a interação com as equipas de saúde.28,29,30 Fatores relacionados com a família Ao estar inevitavelmente envolvida no processo de doença, a família adquire de forma quase inata um duplo papel. Por um lado, é influenciada por todo o processo de doença, por outro constitui em si mesma um fator capaz de transformar a cascata de acontecimentos que conduz ao diagnóstico do doente nos últimos dias ou horas de vida. É de salutar importância a inclusão da família nos cuidados para que ela própria constitua um aliado durante o processo de diagnóstico e de tomada de decisões relativas ao fim de vida. Nos estudos analisados verificou-se que o facto de existirem défices na capacidade de comunicar com a família, conduziu ao seu não envolvimento no processo, o que funcionou como barreira para a própria equipa de cuidados.1,25,28,29 As divergências entre família e doente quanto à trajetória dos cuidados, as expectativas irrealistas e a conspiração do silêncio constituem ainda fatores com elevado impacto nas atitudes da equipa e na possibilidade de discussão aberta acerca do verdadeiro prognóstico do doente.2,625,28 cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 49 Figura 4 Fatores que Interferem no processo de diagnóstico cínico do doente nos últimos dias ou horas de vida, num contexto de hospital de agudos Fatores relacionados com o contexto social e cultural Apesar, de todas as mudanças socioculturais verificadas nas últimas décadas, a morte permaneceu como um assunto tabú intemporal e transcultural, provocando uma frenética procura pela imortalidade.2,27 A medicina tecnologicamente avançada tornou-se o foco das sociedades modernas onde o morrer é visto como um fracasso. O ênfase colocado na cura conduziu à perda da perceção das verdadeiras necessidades e desejos do doente e sua família,28 e provocou nos profissionais uma considerável ansiedade na comunicação do prognóstico e na discussão do plano de cuidados para o fim de vida.27 A nível hospitalar a negação social da morte deixa a sua impressão, traduzindo-se num conjunto de atividades frenéticas curativas nos instantes que antecedem a morte do doente ou na distribuição destes por quartos de isolamento, para que a morte de um doente não sufoque os restantes indivíduos.1 Por último a transculturalidade - práticas culturais e re50 ligiosas, valores e crenças de cada doente - constitui também um fator a ter em conta no diagnóstico, não só pela influência que pode dar a todo o processo, mas também pela necessidade de cuidados culturalmente sensíveis.29 Fatores relacionados com os profissionais de saúde Uma abordagem a este grupo unicamente centrada no foro profissional ou nas suas competências técnicas tornar-se-ia demasiado redutivista. Importa entender estes profissionais enquanto seres complexos que estabelecem uma relação dinâmica com o meio que os rodeia e que interagem com pessoas em situação de particular vulnerabilidade. De forma genérica a componente pessoal, a formação, a prática profissional e os sentimentos vivenciados configuram a atuação do profissional durante o processo. As experiências prévias, as crenças, os valores e as opiniões de cada profissional, conduzem à divergência de pareceres no seio da equipa.3,6 A idade e um menor cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 tempo de experiência profissional com doentes em fim de vida, são apontados como fatores dificultadores ao diagnóstico, o que se traduz numa menor capacidade em avaliar sinais subjetivos de proximidade de morte.4 Por outro lado, profissionais com maior tempo de experiência com este subgrupo de doentes são associados a uma maior capacidade na gestão de conflitos e em lidar com situações de maior carga emocional.1,3 A negação social da morte torna-se transversal ao profissional e conduz à renitência em falar da morte, a sentimentos de medo quanto à própria finitude bem como à possibilidade da revivência de lutos anteriores não resolvidos.2,6 Quando estes elementos são geridos de forma ineficaz surgem movimentos de fuga, com prejuízo na capacidade do profissional estar atento a pormenores sugestivos de morte iminente.1 Contrariamente, habilidades pessoais como a empatia, a capacidade relacional e a inteligência emocional são apontadas como facilitadores ao diagnóstico.1 A formação é transversal à maioria dos estudos analisados, sendo os autores unânimes ao concluir que a persistência de défices na área tem complicado a tarefa dos profissionais no diagnóstico de últimos dias ou horas de vida.1,2,6,25,27,28,29 São apontados como fatores desencadeantes, a organização curricular dos cursos base, onde disciplinas de cuidados paliativos são muitas vezes opcionais ou com reduzida carga horária bem como a falta de formação pós-graduada.28,29 Bloomer et al. (2011) introduz ainda um tópico de salutar importância neste domínio, a necessidade de estender a educação ao doente, à família e à sociedade para que estes possam compreender melhor a transição dos cuidados no final da vida e aceitar o diagnóstico de últimos dias ou horas de vida.2 O tipo de especialidade clínica do pro- fissional e os seus conhecimentos base sobre doença aguda e/ou crónica são também elementos que influenciam a interpretação de dados, a definição de objetivos e o estabelecimento de prioridades para o doente.3 Tendo em conta que nenhum dos artigos do corpus de análise era português é possível constatar que a necessidade de formação e o impacto da sua ausência são uma realidade transversal a vários países. A comunicação surge como elo de ligação dentro da equipa interdisciplinar, entre as diferentes equipas hospitalares e claramente entre a equipa, o doente e a família.1,3,6,27 É também através deste veículo que se torna possível estabelecer uma ponte entre os serviços onde são prestados os cuidados e as administrações hospitalares, permitindo a disponibilização de recursos ou a persuasão para a introdução de protocolos integrados de cuidados.6 A dificuldade em lidar com a incerteza de um diagnóstico, associada a défices na capacidade de comunicação, impede a equipa de discutir abertamente sobre o estado do doente, de procurar consenso quanto ao diagnóstico e de redirecionar o plano de cuidados. O que dificulta a transmissão de informação à família acerca do real estado de saúde do doente.1,29 Um estudo de Seal em 2007, referido por Holland (2013) salienta o papel dos enfermeiros na iniciação de diálogos, quer dentro da equipa, quer entre a equipa e a família, tendo ainda comprovado que são estes, quando devidamente bem formados, quem se sente mais confortável em iniciar a gestão do diálogo acerca do diagnóstico de últimos dias ou horas de vida. 28 No âmbito da prática profissional o diagnóstico pressupõe uma avaliação interdisciplinar e consenso na equipa.3 O défice de critérios claros e universais cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 51 é apontado como agente dificultador,25 impondo ao processo um caráter subjetivo. A dificuldade de prever exatamente o momento da morte, a não solicitação de segunda opinião a outros profissionais, a dificuldade na gestão de dilemas e prognósticos demasiado positivos, sobrestimando o tempo de vida, são também motivos ao não diagnóstico.1,27,29 Toda esta ambiguidade é percetível nos registos dos profissionais onde expressões como “para cuidados de suporte”, “apenas cuidados de conforto” ou “para não reanimação” substituem o diagnóstico claro de “últimos dias ou horas de vida”.4,25 A morte interiorizada como algo contornável gera sentimentos de angústia pessoal, esperança que o doente melhore e frustração pessoal e profissional, que condicionam a capacidade de tomar decisões e incutem no diagnóstico um pressuposto de condenação e um deixar de lutar pelo doente. Sendo estes acompanhados da manutenção de medidas invasivas e da supressão de cuidados ativos de conforto até aos últimos instantes de vida.1,4,25,27,28 Fatores relacionados com o contexto de prestação de cuidados “hospital de agudos” A cultura que se faz sentir ao nível dos hospitais espelha o frenesim das sociedades modernas onde está impressa a negação da morte. Estas instituições, vistas como locais de esperança e nunca de morte4,27,29 reforçam a dificuldade em realizar um diagnóstico de últimos dias ou horas de vida. Aliado a este fator surge o foco de cuidados hospitalares centrado na investigação, na cura e no prolongamento da vida, em detrimento do conforto.2,4,29 Concomitantemente a não integração de práticas e princípios dos cuidados paliativos está também relacionada com uma menor sensibilização dos profissionais, o que aporta maior número de lacunas ao nível do diagnóstico.30 Aspetos organizacionais como a eleva52 da carga de trabalho, a pressão exercida sobre quem aqui trabalha, o rácio de doente por profissional, a coexistência de cuidados a doentes agudos e a sobrevalorização destes cuidados são também apontados como fatores que influenciam o diagnóstico, já que contribuem para centrar a atenção do profissional para tarefas de rotina e questões técnicas.1,6,30 Concorre ainda para este facto o ambiente impessoal, sem privacidade e não preparado para o cuidar no final de vida.27 De forma expectável, a maioria dos estudos referiu o trabalho de equipa como um dos fatores com maior impacto ao nível do diagnóstico. É interessante observar uma contínua referência à necessidade de uma visão holística nos cuidados, que no entanto é descurada quando está em causa a visão da equipa como um “todo”. Sistematicamente, os profissionais apontam o trabalho de equipa como fator dificultador e raramente como facilitador.2,4,6 São referidos como obstáculos ao diagnóstico: a renitência na partilha de informações, a falta de consenso quanto ao diagnóstico e às intervenções a implementar, a não continuidade dos cuidados que permita uma avaliação contínua e holística, a frustração de alguns profissionais em torno de práticas, desigualdades e sistemas de protagonismo enraizados na cultura hospitalar e na sociedade, as divergências muitas vezes ligadas à subordinação historicamente associada a enfermeiros em relação às equipas médicas, os constrangimentos, sobretudo referidos por enfermeiros, em não participar ativamente na realização do diagnóstico e coexistência de diversas especialidades médicas.1,2,3,6,29,30 Não obstante, a manutenção de padrões de comunicação eficazes, a redução de erros no diagnóstico, o acompanhamento interdisciplinar do doente e da família, a rentabilização dos conhecimentos de cada profissional e a satisfação de cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 Quadro 2 Artigos considerados na Revisão Sistemática da Literatura Título do Artigo Autores Referência Ano / País Participantes Desenho do Estudo 1. Diagnosing dying in the acute hospital setting – are we too late? Gibbins, J. et al. Clinical Medicine 9 (2). Royal College of Physicians; p. 116119 2009 / Reino Unido 100 Doentes Qualitativo/ Retrospetivo, com recurso a análise de registos clínicos e de Enfermagem 2. Challenges in transition from intervention to end of life care in intensive care: A qualitative study Coombs, M. et al. International Journal of Nursing Studies 49; p. 519-527 2012 / Inglaterra 13 Enfermeiros e 13 Médicos Qualitativo/ Entrevista semiestruturada/ Análise de conteúdo 3. The “dis-ease” of dying: Bloomer, M. et al. Challenges in nursing care of the dying in the acute hospital setting. A qualitative observational study Palliative Medicine 27 (8); p. 757-764 2013 / Austrália 25 Enfermeiros Qualitativo/ Focus Group/ Entrevista semiestruturada individual 4. End-of-life Care in an Acute Care Hospital: Linking Policy and Practice Sorensen, R. & Iedema, R Death Studies 35:6; p. 481-503 2011 / Austrália Médicos e Enfermeiros Qualitativo/ Estudo Etnográfico/ Focus Group/ Entrevista 5. End-of-life care in acute hospitals: an integrative literature review Bloomer, M. et al. Journal of Nursing and Healthcare of Chronic Illness 3(3); p. 165-173 2011 / Austrália Chronic illness, End-of-life, Hospital, Literature review Revisão Sistemática da Literatura 6. Dying in an acute hospital Al-Qurainy, R. et al. setting: the challenges and solutions The International Journal of Clinical Practice 63 (3); p. 508-515 2009 / Reino Unido Dying; Acute hospital; Challenges; Solutions Revisão Sistemática da Literatura 7. Influencia de las emoGarcía-Caro, M. ciones en el juicio clínico de et al. los profesionales de la salud a propósito del diagnóstico de enfermedad terminal International Journal of Clinical and Health Psychology 10(1); p. 57-73 2010 / Espanha 21 Enfermeiros e 21 Médicos Qualitativo/ Fenomenológico/ Grounded Theory/ Entrevistas 8. Strategies to help initiate and maintain the end-of-life discussion with patients and family members Clabots, S MEDSURG Nursing 21 (4); p. 197-203 2012 / EUA 1 Doente Estudo de Caso 9. How do GPs identify a need for palliative care in their patients? An interview study Claessen, S. et al. BMC Family Practice 14 (42); p.1-7 2013 / EUA Médicos Qualitativo/ Entrevistas 10. Quality Palliative Care Holland, N University of Wisconsin La Crosse WI; p. 435-439 2013 / EUA Palliative Care; Nursing; End-of-life care Revisão Sistemática da Literatura Journal of Palliative Medicine 14 (5); p. 623-630 2011 / Nova Zelândia Enfermeiros, Médicos, Assistentes sociais, Terapeutas ocupacionais, Fisioterapeutas, Capelão Qualitativo/ Quantitativo/ Entrevistas (Escala de Likert) 11. Staff Perceptions of End- Sheward, K. et al. of-Life Care in the acute care setting: A New Zealand perspective cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 53 todos os envolvidos são vantagens que se sobrepõem irrefutavelmente às dificuldades sentidas por estes profissionais.1,3,6 Apenas com a uniformização de práticas é possível providenciar cuidados holísticos ao doente, evitar a sua fragmentação pelas diversas especialidades hospitalares e promover a equidade no acesso aos cuidados6, articulando a filosofia e a evidência dos cuidados paliativos com as práticas dos restantes profissionais.31 Efeitos do não diagnóstico Perante a inexistência de um diagnóstico de “últimos dias ou horas de vida” a postura passiva que é assumida pelos profissionais gera sentimentos de auto culpabilização que persistem mesmo após a morte do doente. Simultaneamente, a inexistência de consenso promove situações de conflito dentro da equipa, com o doente e a família; dificuldade em comunicar com os envolvidos; transmissão de informações contraditórias e fomento de esperança irrealista. Todos estes efeitos conduzem ao desrespeito pela autonomia do doente, ao descontrolo sintomático e à manutenção de medidas invasivas até aos últimos momentos de vida.1,2,3,6,29,30 Contribuindo sinergicamente para que se gere um ambiente onde a morte não tem lugar e o morrer ao contrário de um momento de despedida, partilha e crescimento, se torne no último e derradeiro muro que separa a equipa e a família do doente. Um fim de vida com dignidade é a exigência que se impõe aos profissionais e às organizações de saúde. Aprofundar conhecimentos e utilizar instrumentos de planeamento relacionados com o fim de vida, são a resposta que se pretende das instituições. Conclusões Durante a realização desta revisão observou-se um aumento de artigos publicados nos últimos anos, cuja abordagem foca- 54 va a relação entre o ambiente hospitalar e o doente em fim de vida, demonstrando tratar-se de um tema emergente na literatura. Esta situação constitui em si um fator positivo já que revela uma crescente preocupação dos profissionais e dos investigadores com a qualidade dos cuidados prestados. De extremo interesse, foi constatar que as questões relacionados com a morte e o morrer são transculturais, e que países como - Austrália, Reino Unido, USA, Espanha, Nova Zelândia e Holanda – reúnem similares dificuldades às vivenciadas em Portugal. A coexistência de fatores que fomentam a extensão da vida e a negação da morte, dificultam a realização de um diagnóstico de últimos dias ou horas de vida e a tomada de decisões em contexto hospitalar. A concorrer para esta realidade persiste uma cultura onde a existência de equipas de cuidados paliativos continua a ser vista como não prioritária e onde as questões da organização do trabalho se focam na produtividade e no tratamento de doentes agudos. A somar ao papel do contexto onde são prestados os cuidados associam-se o papel do doente, da família, do profissional de saúde e do contexto sociocultural. No doente, para além de aspetos pessoais surge o processo de adaptação à doença, como fator determinante na interação com a equipa de saúde. Esta é também influenciada pela forma como a família vivencia o processo de doença, é envolvida e participa nos cuidados. Nos profissionais, a dificuldade em lidar com a incerteza de um diagnóstico, associada a défices na formação, na capacidade de comunicação e no trabalho em equipa, impede a discussão sobre o estado do doente, a procura de consenso quanto ao diagnóstico e a redefinição do plano de cuidados. Implícito, a todos estes fatores, persiste o frenesim das sociedades modernas onde está impressa a negação da morte. cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 Entende-se que as dificuldades encontradas ao longo deste estudo devem constituir, per si, oportunidades a explorar de forma a procurar sistematicamente processos de melhoria de competências, e assim ultrapassar obstáculos complexos e há muito enraizados nas práticas profissionais e sociais relativas ao cuidar neste grupo de doentes. Neste domínio, um diagnóstico definido de “últimos dias ou horas de vida” torna-se imperativo por permitir reavaliar intervenções terapêuticas, reajustar o plano de cuidados e definir como objetivos principais o controlo de sintomas, as medidas de conforto, a suspensão de medidas inapropriadas e o apoio à família. l Bibliografia 1. Bloomer M, Endacott R, O`Connor M, Cross W. The “dis-ease” of dying: Challenges in nursing care of the dying in the acute hospital setting. 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Nos censos de 2011, existiam no país 2.010.064 habitantes com mais de 65 anos, representando 19% da população (comparativamente a 16.4% em 2001). Paralelamente, estima-se que 153.600 pessoas venham a falecer em Portugal em 2016, comparativamente com 104.434 em 2009.1 Ante este envelhecimento demográfico, a disponibilidade de Serviços de Cuidados Paliativos (CP) em Portugal permanece baixa.2 Apesar da urgência de implementação e desenvolvimento destes serviços no país, a sua concretização é escassa, particularmente devido à persistência de uma cultura de negação perante a morte, á falta de capacidade de investigação na área e á escassa atenção na abordagem física, psicológica, social e espiritual aos doentes em fim de vida nos internamentos de agudos das unidades hospitalares do Sistema Nacional de Saúde (SNS). Ao mesmo tempo que o investimento em CP tem sido heterogéneo, o número de serviços para doentes agudos tem crescido 56 exponencialmente, o que parece paradoxal atendendo aos dados demográficos e aos problemas clínicos mais típicos na população mais idosa.3 Particularmente, existe pouca evidência sobre como os serviços de agudos abordam doentes que são clínica e socialmente complexos, como promovem a continuidade de cuidados e previnem admissões desnecessárias.4, 5 O distrito de Bragança é o 5º maior distrito do país, com 12 concelhos e uma população de 136.232 habitantes, constituída por uma população idosa (> 65 anos) mais prevalente (21% a 38.8%) do que a média nacional (19%).1 Além da EIHSCP (Bragança, Macedo de Cavaleiros e Mirandela), prestam, em 2014, cuidados paliativos especializados no distrito outras duas entidades: Unidade de Cuidados Paliativos situada em Macedo de Cavaleiros (internamento, com oito camas) e uma equipa domiciliária de Cuidados Paliativos, a prestar assistência em três concelhos - Mogadouro, Vimioso e Miranda do Douro (UDCP-PM). Com o objectivo de melhorar e uniformizar a abordagem a esta população específica nos hospitais de agudos, em 2011 e 2014 o Ministério da Saúde regula o enquadramento das Equipas Intra Hospitalares de Suporte em Cuidados Paliati- cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 vos (EIHSCP), tornando obrigatória a existência de uma equipa em cada unidade hospitalar do SNS.6, 7 Pelo seu carácter holístico na abordagem deste tipo de doentes, a Medicina Interna torna-se elemento fundamental tanto na prestação directa de cuidados como na íntima colaboração com as EIHSCP. A EIHSCP da Unidade Local de Saúde do Nordeste (ULSNE) é composta por quatro médicos, quatro enfermeiros, três assistentes sociais e uma psicóloga. Nenhum destes elementos possui horário exclusivo para o desempenho destas funções. A EIHSCP presta cuidados desde o dia 1 de Dezembro de 2013, nas unidades hospitalares de Bragança (BRG), Macedo de Cavaleiros (MAC) e Mirandela (MIR), compostas respectivamente por 251, 99 e 114 camas de internamento. Entendemos assim relevante apresentar a actividade desta equipa, assim como abordar criticamente o seu funcionamento, tendo particular atenção aos seus outputs nos serviços de internamento onde actua. Acreditamos ser este trabalho útil para outros profissionais que desempenhem (agora ou no futuro) funções em EIHSCP ou que prestem cuidados a doentes em fim de vida, nomeadamente aquelas que actuam ou pretendem actuar no interior do país. Objectivos O objectivo principal deste estudo/artigo é descrever os primeiros nove meses de actividade da EIHSCP da ULSNE, dando também a conhecer as características da população-alvo. Os objectivos secundários são abordar criticamente os resultados, considerando os obstáculos que enfrentam este tipo de equipa na prestação de cuidados assim como os resultados que poderão ter nos cuidados prestados na população alvo. Métodos Descrição da casuística da actividade clí- nica assistencial, mediante consulta retrospectiva dos registos clínicos informáticos dos pacientes observados pela EIHSCP de 01/12/2013 a 31/08/2014 (primeiros nove meses de actividade). O autor principal foi o responsável por recolher toda a informação. Os dados recolhidos consistiram em: género; idade; unidade hospitalar; serviço de internamento; data de admissão; data de alta; data de referenciação à EIHSCP; diagnóstico principal; sintomas reconhecidos à data da primeira avaliação pela EIHSCP; conhecimento de diagnóstico à data da primeira avaliação da EIHSCP; número de avaliações médicas; número de avaliações de enfermagem; intervenção de assistente social, nutricionista, psicólogo, fisioterapeuta e capelão; destino; estado funcional (mediante ECOG – Eastern Cooperative Oncology Group – medida global de desempenho funcional do doente, com cinco estadíos, em que “0” significa totalmente assintomático e “5” morte); indicação sobre a ocorrência de reunião familiar, em que pelo menos um dos elementos da EIHSCP esteve presente; indicação sobre a ocorrência de morte e respectiva data; consulta de luto; uso de opióides; termos em diário clínico que sugerissem descalamento de terapêutica, como “medidas de conforto”, “descalamento de medidas”, “descalamento de terapêutica” e “controlo sintomatológico” (por “descalamento de terapêutica”, entendeu-se, para o efeito do presente estudo, abandono de terapêutica instituída com índole curativa); e informação administrativa sobre episódios de urgência após a alta. Foi feita uma análise descritiva das diversas variáveis e os resultados são criticamente discutidos. Resultados Entre 01/12/2013 e 31/08/2014 (274 dias de actividade) a EIHSCP da ULSNE prestou directamente cuidados a 101 doentes, num total de 104 admissões (BRG- 69; cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 57 Figura 1 Dispersão de idades Figura 2 Número de referenciações por mês MAC- 19; MIR- 16), sendo 51 pacientes (50.5%) do género feminino e 50 (49.5%) masculino, com média de idades 75 anos (mediana 78, desvio padrão 12). O doente mais novo tinha 39 anos e o mais velho 100 anos (Figura 1). O mês com maior actividade foi Julho (21 referenciações, 20%) e o mês com menos episódios foi Janeiro (6 referenciações, 5,7%), numa média de 12 referenciações mensais (mediana 11) (Figura 2). O tempo médio decorrido desde a admissão até à referenciação à EIHSCP foi de 5 dias (máximo 27 dias, mínimo no próprio dia). Os serviços com maior número de referenciações foram a Medicina Interna, n=78 (75%) (BRG = 55; MAC = 18; MIR = 5), seguin- 58 do-se Cirurgia Geral, n= 19 (18.2%) (BRG = 9; MAC – sem internamento; MIR = 10), Ortopedia (n=4), Urologia (n=1), Otorrinolaringologia (n=1) e Unidade de Cuidados Intensivos (n=1). Dos 101 pacientes observados, 82 (81%) tinham como diagnóstico principal patologia do foro oncológico, sendo mais prevalentes as neoplasias do foro gastrointestinal (n= 18, nos quais se incluem cólon (n=7) e estômago (n=6) como mais frequentes), hepato-biliar (n=15), mama (n= 13) e pâncreas (n=11) como se observa no Figura 3. Apenas 19 (18.8%) doentes tinham como diagnóstico principal patologias não oncológicas, destacandose a insuficiência cardíaca terminal (n=6), demência (n=5) e doença pulmonar obstrutiva crónica (n=3) como mais frequentes. Dos 101 doentes ou famílias abordadas, 45 tinham conhecimento de diagnóstico e do prognóstico no momento da primeira avaliação pela equipa, 34 tinham conhecimento apenas do diagnóstico e 22 não tinham conhecimento nem do diagnóstico nem do prognóstico. À data da primeira avaliação da EIHSCP, cerca de metade dos doentes (n=54) apresentaram-se totalmente acamados, com um ECOG= 4; 31 apresentaram-se sintomáticos passando mais de 50% do tempo acordados na cama ou cadeira (ECOG = 3). No que diz respeito aos sintomas no momento da primeira avaliação, a dor (n= 86) foi o sintoma mais prevalente, seguida cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 ximo de 55 dias. Faleceram no internamento hospitalar 41 pacientes e 32 foram admitidos em unidade de internamento de cuidados paliativos, tendo 20 dos mesmos terminado por falecer naquele serviço. Em relação aos doentes que faleceram em internamento hospitalar, estes dados resultam num tempo médio desde a referenciação à EIHSCP até à morte de 7.5 dias (mediana 6, desvio padrão 10, sendo o mínimo no próprio dia (foram referenciados doentes à EIHSCP no próprio dia do falecimento em 4 casos) e o máximo 56 dias). No pós-morte, 43 famílias receberam consulta de luto (intervenção específica realizada pela psicóloga clínica, 20 doentes em regime de internamento da UCP e 23 em regime de internamento hospitalar). Tiveram alta para o domicílio 21 doentes, 9 com apoio de Equipa de Cuidados Continuados Integrados (ECCI) e 6 com apoio de Unidade Domiciliária de Cuidados Paliativos do Planalto Mirandês (UDCP-PM). Em 3 casos este apoio foi conjunto pelas duas equipas, em doentes pertencentes à área de influência da UDCP-PM. Sete doentes foram reencaminhados para unidades de longa duração. Nos restantes 6 casos não foi possível organizar qualquer tipo de apoio domiciliário através do hospital ou da rede nacional de cuidados continuados integrados. Dos 60 doentes que tiveram alta, 17 recorreram novamente ao Serviço de Urgência, num total de 21 episódios. Figura 3 Patologias oncológicas como diagnóstico principal de dispneia (n=46), astenia (n=29), anorexia (n=27), obstipação (n=21), agitação (n=16) e linfedema (n=11). 82 doentes tiveram acesso a opióides (89% dos que apresentavam dor na primeira avaliação). A totalidade das primeiras avaliações foi realizada por um dos médicos da EIHSCP, sendo responsabilidade do mesmo propor a orientação para as reavaliações necessárias pelos restantes elementos da equipa. As 105 referenciações originaram um total de 271 avaliações médicas (média 2.6, mediana 3.2) e 436 avaliações de enfermagem (média 4.2, mediana 5.7). 73 doentes receberam apoio psicológico (doente ou família), 63 contactaram pelo menos uma vez com um assistente social pertencente à equipa, 48 receberam apoio espiritual, 35 contactaram com nutricionista e 18 iniciaram ou mantiveram programas de reabilitação motora / terapia ocupacional. Na grande maioria dos casos (86 episódios) foi realizada reunião familiar, em que pelo menos um dos elementos da EIHSCP esteve presente. Em 68 casos foi identificada informação nos diários clínicos sugestiva de descalamento de terapêutica (ver métodos). Os tempos de permanência nos respectivos serviços de internamento caracterizam-se por uma média de 13 dias de internamento (mediana 21), com um mínimo de 1 dia (alta contra parecer médico) e má- Discussão A auditoria clínica aqui apresentada é, segundo temos conhecimento, das primeira a revelar dados sobre a actividade de uma Equipa Intra Hospitalar de Suporte cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 59 em Cuidados Paliativos no SNS. Para além disto, esta revela a realidade de doentes em fim de vida admitidos em hospitais do interior, numa região com particularidades em termos demográficos e de dificuldade em acesso aos serviços, especialmente no final da vida. Entendemos que, no seu global, os resultados apresentados são positivos. Nomeadamente, a EIHSCP proporcionou uma prestação de cuidados holística, nas vertentes psicológica, física, social e espiritual. Tal é demonstrado pelo número de intervenções efectuadas pelos elementos dos distintos grupos profissionais. Tendo em consideração a evidência que sugere que a dor é insuficientemente reconhecida e tratada sobretudo na população idosa8, consideramos importante realçar que em 82% das referenciações a dor foi reconhecida como sintoma activo na primeira avaliação da equipa e em 78% dos mesmos foram utilizados opióides. Tais dados sugerem que a EIHSCP proporcionou um maior reconhecimento e abordagem de sintomas prevalentes no final da vida, muitas vezes ignorados na mesma população sem apoio da equipa. Para além do descrito, o baixo número de doentes que utilizaram o serviço de urgência após a alta sugerem um impacto relevante das EIHSCP na reutilização de serviços de doentes agudos após o contacto com a equipa. Estes dados poderão reflectir um maior seguimento dos pacientes e cuidadores, preparando-os para lidar com situações de difícil abordagem, mas também uma melhor adequação dos serviços de saúde à fase avançada da doença. Contudo, estes dados devem ser interpretados com cautela, uma vez que o estudo não teve como objectivo principal avaliar este indicador nem comparou com um grupo de controlo, e carece de poder estatístico para o efeito. Por outro lado, a data desta auditoria revelase muito precoce em relação à alta de 60 uma proporção significativa dos doentes. Um novo estudo direccionado a entender que recursos de saúde são efectivamente utilizados por esta população após a alta e qual o impacto em termos de custos poderá ser útil. Realçamos que o número de doentes não oncológicos referenciados à EIHSCP é baixo (N=19). Embora esta situação seja comum no nosso país ainda que superior a dados de outras equipas de CP9, consideramos ser possível no futuro a referenciação de mais doentes não-oncológicos ás EIHSCP. Tal poderá ser atingido com melhor conhecimento da evolução das doenças crónicas e incuráveis.10 A referenciação dos pacientes à EIHSCP é tardia, sendo que mais de 80% dos pacientes tinham um estado funcional baixo (ECOG= 3 ou 4) e, dos doentes que terminaram por falecer no internamento, 28.8% foram referenciados nos últimos 5 dias de vida, possivelmente devido a uma cultura de negação da morte, à insegurança dos profissionais na hora de abordar o prognóstico junto do doente e/ou dos familiares bem como o desconhecimento do impacto que os cuidados paliativos poderão ter em fases mais precoces da doença. Por este motivo, o número de doentes que iniciaram ou mantiveram programas de reabilitação dirigida á promoção da autonomia e qualidade de vida na terminalidade é relativamente baixo.11 Tal resultado também poderá indiciar a necessidade de diversificar a oferta de cuidados paliativos que incluam terapêuticas não farmacológicas direccionadas e actividades de reabilitação ocupacional. Finalmente, chamamos a atenção para o facto de uma proporção relevante dos pacientes e/ou famílias não ter, na primeira abordagem pela equipa, conhecimento do diagnóstico e prognóstico (22%). Uma percentagem ainda maior (34%) tinha conhecimento do diagnóstico mas não do prognóstico. Pensamos, contudo, cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 que o elevado número de reuniões familiares (82% dos episódios) poderá ter contribuído para uma maior disponibilização da informação pertinente na fase avançada da doença. Conclusão Durante os primeiros nove meses de actividade, a EIHSCP da ULSNE teve resultados positivos na população alvo, demonstrando a abordagem física, psicológica, social e espiritual que promove. Um maior conhecimento da informação clínica, melhor controlo sintomatológico e maior acompanhamento dos doentes bem como dos familiares durante e após a alta hospitalar, poderão ser vistos como úteis nos serviços onde actua. Contudo, serão necessários mais estudos para entender o impacto real nos custos, no tempo de internamento, na utilização de recursos de saúde após a alta e na facilitação de referenciação atempada e adequada para os locais de cuidados terminais / locais de morte da preferência dos doentes.12 Como maiores obstáculos, identificamos a referenciação tardia dos doentes e a baixa referenciação de doentes de foro não oncológico. Entre outros aspectos a melhorar no futuro, incluímos também o apoio espiritual e apoio de fisioterapia / terapia ocupacional. A presença de profissionais exclusivamente dedicados á equipa poderá beneficiar o acompanhamento dos doentes, a interacção com os profissionais dos serviços de internamento e de ambulatório bem como um maior apoio aos cuidadores. Sílvia Aleixo e Maria Silva; Médicos Teresa Ramos, Liseta Gonçalves e Ângela Silva. l Bibliografia 1. Instituto Nacional de Estatística. Censos 2011. In: Estatística INd, editor. Instituto Nacional de Estatística web page: Instituto Nacional de Estatística,; 2011. 2. Gomes B, Higginson IJ. Evidence on home palliative care: Charting past, present, and future at the cicely saunders institute - WHO collaborating centre for palliative care, policy and rehabilitation. Progress in Palliative Care. 2013 September;21(4):204-13. PubMed PMID: 2013516447. 3. Instituto Nacional de Emergência Médica. A emergência médica www.inem. pt2013 [cited 2013 05/09/2013]. 4. Carew HT, Zhang W, Rea TD. Chronic health conditions and survival after out-of-hospital ventricular fibrillation cardiac arrest. Heart.93(6):728-31. PubMed PMID: 17309904. 5. Kim C, Becker L, Eisenberg MS. Out-of-hospital cardiac arrest in octogenarians and nonagenarians. Archives of Internal Medicine. 2000;160 (22). Pubmed Central PMCID: 11112237. 6. Ministério da Saúde. Despacho nº 7968/2011. In: Ministério da Saúde, editor. Diário da República, 2ª série, nº 107: Ministério da Saúde,; 2011. 7. Ministério da Saúde. Despacho n.º 10429/2014,. Diário da República, 2ª serie, nº152, : Ministério da Saúde,; 2014. 8. Breivik H, Collett B, Ventafridda V, Cohen R, Gallacher D. Survey of chronic pain in Europe: Prevalence, impact on daily life, and treatment. European Journal of Pain. 2006 May;10(4):287-333. PubMed PMID: 2006146341. 9. Ferraz Goncalves JA, Almeida A, Antunes C, Cardoso M, Carvalho M, Claro M, et al. A cross-sectional survey of the activity palliative care teams in Portugal. Palliative Medicine. 2012 June;26 (4):623-4. PubMed PMID: 71176713. 10. Murray SA, Kendall M, Boyd K, Sheikh A. Illness trajectories and palliative care. BMJ (Clinical research ed). 2005 30 Apr;330(7498):1007-11. PubMed PMID: 15860828. 11. Howell D. Shifting dying trajectories: Integrating self-management and palliative care. International Journal of Palliative Nursing. 2012 October;18(10):471. PubMed PMID: 23123948. 12. Gomes B, Higginson IJ, Calanzani N, Cohen J, Deliens L, Daveson BA, et al. Preferences for place of death if faced with advanced cancer: a population survey in England, Flanders, Germany, Italy, the Netherlands, Portugal and Spain. Annals of Oncology. 2012 Aug;23(8):2006-15. PubMed PMID: WOS:000306924400014. Agradecimentos Os autores agradecem o contributo à EIHSCP e demais colaboradores que directa ou indirectamente tenham contribuído para este estudo, nomeadamente: Enfermeiros Ana Gonçalves, Rui Liberal, Lígia Carvalho e Andrea Azevedo; Psicóloga Sara Costa; Assistentes Sociais Patrick Pires, cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 61 Artigo original Cuidados Paliativos: Identificação da necessidade em doentes de Medicina Interna Natália Loureiro Mestre em Cuidados Paliativos e Assistente Hospitalar de Medicina Interna no Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa João Manuel da Costa Amado Professor Associado com agregação do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa Rosa Maria de Faria Fragoso Chefe de Serviço do Serviço de Oncologia Médica do IPO Porto Resumo O prognóstico é uma importante ferramenta para a decisão clínica, permitindo o adequado planeamento e distribuição dos recursos de saúde e evitando a futilidade terapêutica e diagnóstica, principalmente em um hospital de agudos onde predomina o conceito da cura. O objetivo deste estudo foi avaliar a identificação da necessidade de Cuidados Paliativos anteriores à admissão ou nas primeiras 24 horas após a admissão, realizada pelos médicos internistas em doentes falecidos no Serviço de Medicina Interna de um Hospital de Agudos. A metodologia utilizada partiu da análise dos processos clínicos dos doentes admitidos no hospital no período de Janeiro a Março de 2012. Observou-se um total de 125 óbitos, sendo que 49,6% já apresentavam na admissão ou nas primeiras 24 horas de admissão necessidade de cuidados paliativos. A patologia cardiovascular foi a principal definidora de critérios de cuidados paliativos. Apenas 1/3 dos doentes tiveram prognóstico explicito na admissão ao mesmo tempo que 25% nunca tiveram qualquer menção em relação ao prognóstico. O estudo mostrou que existe ausência de preocupação acerca do controlo sintomático e que a comunicação do prognóstico não foi uma preocupação pertinente. Predominou uma atitude voltada para a futilidade terapêutica ou diagnóstica. Pudemos concluir que o atraso na decisão acerca do prognóstico indicia, principalmente, falta de reconhecimento do papel dos cuidados paliativos em um hospital de agudos e por isso a integração dos cuidados paliativos pode ajudar na transição dos objetivos de prolongar a vida para um conceito de melhorar a qualidade e o final de vida. Abstract The prognosis is an important tool for clinical decision, allowing proper planning and allocation of health resources and avoiding diagnostic and therapeutic futility, especially in the acute hospital where the whole concept of healing. The aim of this study was the Palavras-chave Prognóstico; cuidados paliativos; medicina interna. Key words Prognosis; palliative care; internal medicine. Palabras-llave Pronóstico; los cuidados paliativos; medicina interna. 62 cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 identification of the need for palliative care prior to admission or within the first 24 hours after admission, performed by internal medicine in deceased patients in the Internal Medicine Service of an Acute Hospital. The methodology used came from the analysis of the clinical records of patients admitted to hospital during the period January to March 2012. There was a total of 125 deaths, of which 49.6% have had at admission or within the first 24 hours of admission need of palliative care. Cardiovascular disease was the main defining criteria for palliative care. Only 1/3 of the patients had at admission explicit prediction while 25% had never any mention about the prognosis. The study showed that there is no concern about symptomatic control and communication of prognosis was not a relevant concern. The predominant attitude toward the therapeutic or diagnostic futility. We concluded that the delay in deciding the prognosis indicates mainly the lack of recognition of the role of palliative care in a hospital in acute and therefore the integration of palliative care can assist in the transition of the goals of prolonging life for a concept to improve the quality and the end of life. Resumen El pronóstico es una herramienta importante para la toma de decisiones clínicas, lo que permite la planificación y asignación de recursos de salud adecuada y evitar la futilidad de diagnóstico y terapéutica, especialmente en el hospital de agudos, donde todo el concepto de curación. El objetivo de este estudio fue la identificación de la necesidad de cuidados paliativos antes de la admisión o dentro de las primeras 24 horas después del ingreso, realizado por la medicina interna en pacientes fallecidos en el Servicio de Medicina Interna de un hospital de agudos. La metodología utilizada provino del análisis de las historias clínicas de los pacientes ingresados en el hospital durante el período de enero a marzo de 2012. Hubo un total de 125 muertes, de las cuales el 49,6% han tenido al ingreso o en las primeras 24 horas de necesidad admisión de los cuidados paliativos. Las enfermedades cardiovasculares fueron los principales criterios que definen para los cuidados paliativos. Sólo un tercio de los pacientes tenían al ingreso predicción explícita mientras que el 25% nunca había ninguna mención sobre el pronóstico. El estudio mostró que no hay preocupación por el control sintomático y comunicación de pronóstico no era una preocupación relevante. La actitud predominante hacia la futilidad terapéutica o de diagnóstico. Llegamos a la conclusión de que el retraso en la decisión el pronóstico indica principalmente la falta de reconocimiento del papel de los cuidados paliativos en un hospital de agudos y, por tanto, la integración de cuidados paliativos puede ayudar en la transición de los objetivos de prolongar la vida de un concepto para mejorar la calidad y el final de la vida. Introdução Diagnosticar, tratar e prognosticar são, segundo Kellett (2008), as três principais funções de um médico.1 O prognóstico traduz a previsão dos resultados prováveis relativos ao curso previsível de uma determinada doença ou do seu tratamento e tem um papel importante na tomada de decisão clínica inicial, como, por exemplo, na determinação do plano terapêutico para um doente na admissão a um serviço de internamento, permitindo selecionar e adequar tratamentos que visem manter e/ou melhorar a qualidade de vida, proporcionando o adequado planeamento e distribuição dos recursos de saúde. Na ótica assistencial de hospitais de agudos a prescrição de cuidados inadequados tem sido muito superior ao desejável, e a explicação apresentada assenta no não enquadramento dos cuidados propostos às reais necessidades dos doentes.2; 3 cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 63 Quadro 1 Principais causas de internamentos Causas Nº doentes % INFECIOSAS 45 Pneumonia adquirida na comunidade 22 37,1 Pneumonia associada a cuidados de saúde 13 21,7 Pneumonia de aspiração 5 8,4 Úlceras de pressão infetadas 2 3,3 Gastroenterite aguda 1 1,6 Traqueobronquite associada a cuidados de saúde 1 1,6 Infeção urinária com critérios de sépsis 1 1,6 CARDIOVASCULARES 8 Acidente vascular cerebral isquémico 3 5 Acidente vascular cerebral hemorrágico 3 5 Insuficiência cardíaca 2 3,3 NEOPLÁSICAS 4 Neoplasia primária desconhecida 3 5 Metastização cerebral (neoplasia renal primária) com encefalopatia 1 1,6 METABÓLICAS 1 Encefalopatia hepática 1 NEUROLÓGICAS 1 Estado de Mal 1 RENAIS 1 Doença Renal Crónica 1 1,6 1,6 1,6 60 E por isso, muitos dos doentes internados em hospitais de agudos, por estarem em fase avançada/terminal da doença, deveriam ter um prognóstico definido para que fosse iniciado atempadamente um plano de cuidados sintomáticos com objetivo de conforto e qualidade de vida, evitando tratamentos agressivos, não benéficos, e que aumentam grandemente os custos associados à prestação de cuidados.4; 5 Quadro teórico Existe um número cada vez maior de idosos que apresentam doenças crónicas, sujeitos a períodos de exacerbações agudas da doença de base. A necessidade de hospitalização é justificada pelo agravamento clínico de per si ou pelo fato da 64 família não se sentir preparada para cuidar destes doentes.6; 7; 8 Um estudo realizado na Bélgica8 revelou que um em cada dez doentes hospitalizados apresentava critérios de cuidados paliativos após 48 horas de internamento; já um estudo francês9 mostrou uma prevalência de 13% destes doentes no internamento médico hospitalar. Resultados sobreponíveis foram encontrados em estudos realizados na Inglaterra10 e nos Estados Unidos.11 O estudo SUPPORT mostrou não só o problema do cuidar em fim de vida nos hospitais de agudos mas também as dificuldades em estabelecer esta prática neste ambiente hospitalar.12; 13 Estudos retrospetivos em hospitais de agudos mostraram que, mesmo em doentes nos quais já esta- cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 Figura 1 Registos de prognósticos dos doentes observados ADMISSÃO DURANTE O INTERNAMENTO REGISTO Do not resuscitate 14 doentes SEM REGISTO "situação de mau prognóstico/ prognóstico reservado" ou Do not resuscitate 31 doentes REGISTO "Situação de mau prognóstico/prognóstico reservado" mas NÃO de Do not resuscitate 2 doentes TOTAL 60 doentes REGISTO "situação de mau prognóstico/ prognóstico reservado" E Do not resuscitate 20 doentes REGISTO "situação de mau prognóstico/ prognóstico reservado" mas NÃO de Do not resuscitate 6 doentes NUNCA foram considerados “situação de mau prognóstico/ prognóstico reservado” ou Do not resuscitate 15 doentes REGISTO de Do not resuscitate 6 doentes REGISTO "Do not resuscitate" mas NÃO de "situação de mau prognóstico/ prognóstico reservado" 3 doentes va definido o prognóstico e estavam iden tificados como em fase terminal, terapêu4; ticas e exames invasivos eram mantidos. Esta cultura é baseada no conceito da cura, onde a morte é percebida neste ambiente como uma falha, pelos doentes e médicos.2 13; 14; 15 É reconhecido que, do ponto de vista ético, a continuidade de uma terapêutica fútil que prolongue o processo de morte (e que não altera o evento final), não é uma prática apropriada. Daí que o conhecimento sobre o prognóstico de doentes com critérios de cuidados paliativos pode alterar a prática clínica.16 A avaliação do prognóstico deverá ter em consideração, entre mais, a idade, o diagnóstico primário, o estado geral de saúde, a capacidade funcional antes e depois do início da doença e o número de comorbilidades que o doente apresenta.17 São dois os aspetos fundamentais cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 65 Quadro 2 Sintomas mais prevalentes Sintomas % Dispneia 66,3 Febre 12,8 Dor 9,5 Confusão 3,5 Agonia 3,5 Icterícia 1,1 Oclusão intestinal 1,1 Sufocação 1,1 Vómito 1,1 em relação ao ato de prognosticar: o primeiro é a formulação do prognóstico e o segundo é a comunicação desse prognóstico ao doente. Existem dificuldades tanto para a sua formulação como para a sua comunicação. Tanto a formulação do prognóstico em doenças crónicas não oncológicas como o reconhecimento da hora da morte podem ser mais complicados do que em as doenças oncológicas.18; 19 De salientar que, por não haver formação pré-graduada nesta área de competência médica, os médicos acabam por desenvolver uma série de técnicas de coping: a negação, o otimismo e a imprecisão são algumas das formas de enfrentar estas dificuldades.20 Num estudo prospetivo, envolvendo 343 médicos e 468 hospitais, apenas 20% dos prognósticos foram precisos; os médicos sobrestimaram a sobrevida em aproximadamente 5 vezes.21 Este dado está relacionado com o conceito negativo, no sentido de falência, que grande número de médicos atribui à morte. E esse otimismo em relação ao prognóstico é percetível pelos doentes e pode acarretar realização de exames 66 complementares e terapêuticas que não seriam propostos se um prognóstico preciso e realista fosse formulado e claramente comunicado. O prognóstico, ao contrário do diagnóstico, necessita de ser reformulado a intervalos regulares, de ser repetido em múltiplas ocasiões, adequando a informação ao entendimento pelo doente e, se o doente autorizar, aos seus familiares.22 No entanto, a transição de cuidados curativos num hospital de agudos para uma abordagem paliativa é problemática; e a prática de cuidados paliativos tem sido aplicada tardiamente em doentes que estão internados em fase terminal com sintomas não controlados. Não há razões para não prognosticar, pois o prognóstico neste contexto não tem por objetivo prever a recuperação clinica mas sim proporcionar aos doentes e seus familiares a informação necessária a fim de fazerem escolhas sobre o tratamento e cuidados em fim de vida, garantindo não só o correto entendimento acerca da situação clínica do doente e a correta gestão de expectativas como o início de cuidados sintomáticos de forma atempada.22; 21; 23 Considerando a situação existente, o objetivo principal deste estudo foi avaliar a identificação da necessidade de Cuidados Paliativos pelos médicos internistas de um serviço de Medicina Interna e de que forma esta identificação alterou a práxis as atitudes em internamento. Metodologia Optou-se por um estudo observacional em que os dados foram colhidos a partir dos processos clínicos de doentes falecidos e que obedeciam aos seguintes critérios: todas e consecutivas ocorrências de mortes no Serviço de Medicina Interna do Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa (Unidade Padre Américo) nos meses de Janeiro, Fevereiro e Março de 2012, com cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 Gráfico 1 Terapêuticas fúteis critérios para Cuidados Paliativos anteriores à admissão ou nas 24 horas seguintes de acordo com o guia proposto pelo The Gold Standards Framework – Royal College of General Practitioners24 e pelo The National Hospice Organization medical guidelines for non-cancer disease and local medical review policy: hospice access for patients with diseases other than cancer.25 Por ausência de dados registados nos processos clínicos, não foi possível definir o estado funcional na admissão através de um índice, tal como pela escala de Barthel.26 Assim, optou-se por classificar o doente como acamado, parcialmente dependente nas AVD´s (atividades de vida diária) e autónomo, por serem termos utilizados na prática médica e que, de alguma forma, traduzem a capacidade funcional do indivíduo. Atribuiu-se como definidor do prognóstico de um doente as seguintes afirmações exaradas nos processos clínicos: “situação de mau prognóstico/prognóstico reservado” ou “Do not resuscitate” tanto na admissão hospitalar como durante o internamento, já que de nenhuma outra forma foi realizada a menção ao prognóstico de um doente. Foram consideradas neste estudo as seguintes terapêuticas fúteis: anti-agregante plaquetário, ferro ou outros suplementos, antagonista seletivo dos recetores adrenérgicos (tansulosina), estatina, inibidor da bomba de protões e heparina de baixo peso molecular. Como meios de diagnóstico considerados fúteis foram considerados: ventilação não invasiva, gasometria arterial, entubação orotraqueal, análises e tomografia computadorizada. Foram asseguradas a confidencialidade e anonimato dos dados clínicos colhidos/ analisados e dos profissionais envolvidos. Ficou garantida a não existência de prejuízos morais ou éticos para os doentes e suas famílias ou para os profissionais. O estudo foi autorizado pela Comissão de Ética local e não acarretou despesas financeiras para a instituição hospitalar. Também não beneficiou de qualquer apoio financeiro. Resultados No período em análise registaram-se 125 cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 67 Gráfico 2 Meios de diagnósticos fúteis óbitos. Destes, 62 (49,6%) apresentavam, na admissão ou nas 24 horas subsequentes, necessidade de cuidados paliativos de acordo com os critérios estabelecidos neste estudo. No entanto, por questões administrativas, em somente 60 processos foi possível colheita e registo de dados. Registou-se um predomínio do sexo masculino (35 doentes – 58%). A idade média dos doentes foi de 77,2±11,9 anos (idades compreendidas entre 41 e 99 anos). A demora média no internamento foi de 7,9 dias, variando de um período inferior a 24 horas até 65 dias. Observou-se que 30 doentes estiveram internados por um período inferior a 72 horas. Dos 60 doentes, observou-se que a maioria já apresentava critérios de cuidados paliativos prévios ao internamento (54 doentes). A estes, o grupo nosológico mais frequentemente atribuído foi o das doenças cardiovasculares (26 doentes), no qual se enquadram o “acidente vascular cerebral isquémico” (21 casos), “insuficiência cardíaca” (3 casos) e “acidente vascular hemorrágico” (2 casos). Seguiram-se-lhe os grupos das doenças neuropsiquiátricas (15 casos), neoplasias (7 casos), patologias respiratórias (5 casos) e cirrose hepática de etiologia alcoólica – estadio Child-Pulgh C (1 caso). Apenas 6 doentes foram considerados com critérios de cuidados paliativos nas 68 primeiras 24 horas de admissão: 3 por acidente vascular isquémico e 3 por acidente vascular hemorrágico, todos de grande extensão. As causas de internamento estão sumarizadas na Quadro 1. Aquela que mais vezes justificou o internamento foi a infeciosa (n=45), quer a adquirida na comunidade, quer a associada a cuidados de saúde. No grupo de doentes em análise, observou-se que 49 doentes foram descritos como acamados, 6 doentes como parcialmente dependentes nas AVD´s e 5 doentes autónomos, na admissão hospitalar. Dentre os 49 doentes acamados, 32 não apresentavam vida de relação conforme registado em diário clínico. Aquando da admissão hospitalar, em 31 dos 60 doentes não havia qualquer registo referente a prognóstico (Figura 1); em 20 casos constava prognóstico explícito de “situação de mau prognóstico/prognóstico reservado” ou “Do not resuscitate”, em 6 “situação de mau prognóstico/ prognóstico reservado” ou “Do not resuscitate” e, em 3, registo de “Do not resuscitate”. Em 6 casos , apesar de ter sido registada a situação de mau prognóstico, não se explicitou a ordem de não reanimar na admissão, só ocorrendo esta decisão durante o internamento. Dos 31 doentes (51,6%) em que não se apresentava registo em relação ao prog- cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 nóstico (“situação de mau prognóstico/ prognóstico reservado” ou “Do not resuscitate”), 14 foram, em algum momento durante o internamento, considerados “Do not resuscitate” (desde menos de 24 horas até 14 dias), 2 tiveram registo de “situação de mau prognostico/prognóstico reservado” mas não de “Do not resuscitate”; em 15 doentes (25%) nunca houve em diário clinico, ou folha terapêutica, qualquer menção em relação ao prognóstico ou ordem para não reanimar. Dos 20 doentes que tiveram por escrito a ordem “Do not resuscitate” durante o internamento verificou-se que a maioria foi atribuída pelo próprio médico assistente, durante a visita da manhã na enfermaria. No entanto, em 3 doentes, 3 médicos que não o médico assistente, tomaram a decisão de não reanimar; esta decisão ocorreu durante a noite/madrugada; porém, nestes processos clínicos, não existe qualquer registo relativo ao prognóstico (sem referência a “situação de mau prognóstico/prognóstico reservado). Foi explicitado (Quadro 2) que a dispneia foi o sintoma mais citado pelos médicos (em 57 doentes), seguido da febre que causava desconforto (11 doentes) e da dor (registada em somente 8 casos). Observou-se que dos 45 doentes que tiveram de alguma maneira o prognóstico definido (na admissão e/ou internamento), ocorreu comunicação com família em 27 casos (60%). Verificou-se um elevado número de esquemas antibióticos (em 54 doentes), superior ao número de internamentos por causa infeciosa (45 doentes) em função dos casos de pneumonia nosocomial e de aspiração durante o internamento. A associação de um beta-lactâmico com inibidor de beta-lactamase e uma quinolona foi a mais frequente, e foi prescrita mesmo em doentes internados por pneumonias adquiridas na comunidade. Em relação à manutenção de antibiote- rapia, dos 45 doentes com prognóstico definido em algum momento (seja na admissão seja no internamento), 30 doentes permaneceram sob esta terapêutica até a morte. Verificou-se que, quanto à terapêutica fútil, a quase totalidade dos doentes estava medicada com heparina de baixo peso molecular na dose profilática e com inibidor da bomba de protões (54 e 57 casos, respetivamente), como mostra o gráfico 1. Verificou-se que os principais meios de diagnóstico considerados fúteis (gráfico 2) foram, em grande parte dos doentes, a gasometria arterial (41 doentes) e as análises periódicas (40 doentes) em internamento. No total, observou-se que em 59 doentes foi realizada terapêutica endovenosa; o doente que a não fez não tinha via periférica acessível, pelo que se optou pela via subcutânea, segundo o diário clínico. Observou-se que em 12 doentes foi colocado cateter endovenoso, quando estes doentes apresentavam via oral disponível. Em 38 doentes foi colocada sonda nasogástrica pelo fato do doente estar pouco reativo e com disfagia ao longo do internamento, segundo o registo clinico. Foram admitidos 39 doentes sob fluidoterapia, mantida até a morte em 27 casos mesmo quando a expectativa de vida era extremamente reduzida. Dos 45 doentes que em algum momento foram considerados “situação de mau prognóstico/prognóstico reservado” e/ou “Do not resuscitate”, apenas 10 apresentavam explicitamente escrita a expressão “medidas de conforto”. Destes, 8 estavam medicados com opioide major (2 deles já anteriormente com opióide minor sem resposta). Em um doente foi prescrita a perfusão de morfina e midazolam ao mesmo tempo e em um outro morfina sob perfusão. Quando prescrita morfina, verificou-se que, na maioria das situações, cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 69 estava em esquema SOS e foi iniciada 1, 2 ou 3 dias antes do óbito. Discussão Observou-se que ocorreu um predomínio de doentes na faixa etária dos 81 aos 90 anos, o que pode ser justificado pelo aumento da esperança média de vida e consequente envelhecimento da população com a concentração da morbilidade (nomeadamente dependências físicas e emocionais) no curso final da vida, levando a um aumento considerável taxa de ocupação, nas enfermarias de Medicina Interna por estes doentes idosos. As doenças cardiovasculares foram causa de grande número de internamentos num serviço de Medicina Interna. É reconhecido o potencial destas patologias no condicionamento da qualidade de vida dos doentes, especialmente na sua fase final, sendo pautadas por múltiplas (e frequentemente não previsíveis) agudizações, pela perda progressiva de capacidades funcionais e pela necessidade crescente de supervisão médica.18 A maior parte dos doentes apresentou um período de internamento reduzido (inferior a 72 horas) o que reforça tratar-se de doentes com critérios de cuidados paliativos prévios à admissão. A decisão de não reanimar por um médico de urgência, que não o médico assistente, torna-se uma tarefa complicada quando não existe a mínima informação no processo clínico acerca do prognóstico estabelecido para aquele doente, principalmente durante o período da noite/madrugada, como aconteceu em 3 casos neste estudo. No entanto, verificouse, de fato, uma escassez de informação acerca da sintomalogia, do prognóstico e do grau de discussão da questão da qualidade de vida em cuidados paliativos, o que explica tais situações. As infeções como causa de internamento ainda são prevalentes nas enfermarias 70 de Medicina Interna, como aliás foi observado no grupo em estudo. O uso de antibioterapia de largo espectro, como a da associação de um beta-lactâmico com inibidor de beta-lactamase e uma quinolona, está relacionado com o fato dos doentes apresentarem infeções associadas a cuidados de saúde por internamentos prévios, ou por residirem em lares/unidades de cuidados continuados27 o que, por estas condições, se torna recomendado ao internista a prescrição de uma cobertura antibiótica a espécies multirresistentes. As infeções nosocomiais também contribuem para este tipo de atitude. A administração de heparina de baixo peso molecular, de inibidores da bomba de protões, de anti agregação plaquetária, colheitas de sangue para gasometrias arteriais e análises seriadas, em doentes com prognóstico reservado, como observado neste estudo, permite levantar questões relacionadas com o uso racional de terapêuticas e a reflexão tanto sobre as atitudes médicas de diagnóstico adequadas, como sobre os custos em saúde. No estudo em questão verificou-se que as práticas de entubação gástrica, hidratação endovenosa e punções venosas em doentes terminais foram de rotina no serviço de Medicina Interna, traduzindo assim uma atitude médica orientada mais para a cura do que para as necessidades sentidas pelo doente em fim de vida. Estes resultados estão em concordância com a literatura (28; 29). É preciso não só reconhecer o estado terminal do doente com a simples expressão“Do not resuscitate”, como também, uma vez identificados estes doentes, iniciar imediatamente um plano de cuidados de conforto. Existem diversas lacunas no conhecimento e aplicação dos princípios de avaliação e tratamento de sintomas tais como a dor e a dispneia. Apesar de estar claramente definido em 20 doentes o prognóstico na admis- cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 são como “situação de mau prognóstico e/ou prognóstico reservado” bem como ordem de não reanimação, apenas em 3 doentes estava escrito “para medidas de conforto”. Somente 5 doentes tinham na prescrição um opióide major como a morfina (4 doentes em SOS e um doente sob perfusão) apesar da dor e a dispneia serem os sintomas mais frequentes neste grupo de doentes. A dor normalmente é subvalorizada pelos médicos pelo receio na prescrição de opióides em virtude dos possíveis efeitos colaterais. No entanto, na fase final de vida, os opióides, bem como o suporte por oxigénio podem ser considerados como primeira linha para o alívio da dispneia, sintoma este muito prevalente em doentes com doença pulmonar obstrutiva crónica, insuficiência cardíaca e neoplasias como a pulmonar30, tal como é claramente estabelecido pela American Thoracic Society que apresenta uma proposta para a sua titulação.31 A ausência de um processo de decisão sobre o fim de vida pode levar a experiências desastrosas para doentes e famílias, que desejam no final de vida que haja alívio de sintomas (tais como a dor e a dispneia), e querem ter a oportunidade de comunicar com o médicos e outros profissionais de saúde sobre a morte e o percurso do fim de vida.32 A continuidade de um tratamento que prolonga a vida pode atrasar o entendimento do doente e familiares sobre o curso natural da sua doença terminal.4; 8 O não reconhecimento precoce da necessidade de cuidados paliativos poderá estar mais diretamente ligado ao predomínio da cultura voltada para a cura e, também, não menos importante, à ausência de uma equipa multiprofissional de cuidados paliativos num hospital de agudos, impossibilitando assim a transição de cuidados de caráter agudo para uma visão paliativa.33 Conclusões Uma importante limitação do estudo é o fato de se tratar de um estudo retrospetivo, baseado na consulta dos processos clínicos, verificando-se, por muitas vezes, escassez de informações, nomeadamente da descrição, de forma clara, da sintomatologia principal do doente. Este estudo incluiu maioritariamente doentes com necessidade de cuidados paliativos por doenças não oncológicas. Quase metade dos óbitos avaliados já apresentava na admissão ou nas primeiras 24 horas após admissão necessidade de cuidados paliativos. A abordagem da terapêutica nos doentes estudados no Serviço de Medicina Interna apresentou características típicas do modelo de atuação para um doente agudo, não sendo significativamente diferente entre doentes oncológicos e não oncológicos, o que demonstra que o tipo de estratégia adotada depende mais dos profissionais da instituição do que do tipo de patologia do doente. Verificou-se que existem basicamente duas barreiras que impedem uma transição estruturada de uma vertente voltada para a cura em direção a medidas de conforto: a) o fato do prognóstico não ser uma prática corrente entre internistas e b) a falta de comunicação entre a própria equipa médica sobre as necessidades não só do doente como do doente na e para com a sua família.34 A falta de conhecimento em prognosticar, os internamentos prolongados e o elevado número de doentes em que é difícil tomar decisões clínicas pode contribuir para a continuidade de terapias que prolonguem a vida, prorrogando assim o início do controlo sintomático e dos cuidados paliativos.14 Torna-se, assim, fundamental antecipar o mais precocemente possível, a identificação das necessidades de cuidados paliativos, através do conhecimento e entendimento das diferentes cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 71 trajetórias das doenças na fase terminal19, evitando tratamentos agressivos e melhorando, assim, a prestação de cuidados.8 O princípio ético da não-maleficência “primum non nocere” (“em primeiro lugar, não fazer mal”)35 já por Hipócrates (cerca de 430 aC) era assumido na sua obra “Epidemia”: “Pratique duas coisas ao lidar com as doenças; auxilie ou não prejudique o paciente”.36 É nesta base que o encarar o prognóstico se torna fundamental para que os médicos, em particular médicos internistas evitem a prática da futilidade diagnóstica e terapêutica, assumindo princípios de justiça, beneficência e contenção de custos que também irão contribuir para diminuir o sofrimento de doentes e famílias. Deste estudo emerge a constatação da falta de reconhecimento ou da sua assunção do prognóstico de um doente, principalmente no não oncológico, com a consequente não atribuição dos critérios de cuidados paliativos, por parte dos médicos. Nas situações em que existiu o reconhecimento da necessidade de medidas de conforto, as atitudes médicas não foram as adequadas à situação; prevaleceu a futilidade diagnóstica e/ou terapêutica, trazendo sofrimento aos doentes e suas famílias, e elevados custos de saúde. Resultados semelhantes também foram encontrados em outros estudos.4; 13;14; 15 Somente em raros casos, por incerteza do prognóstico dos doentes em fase terminal, se verificou uma prática mista de uso de estratégias envolvendo o prolongamento da vida e medidas paliativas, como se observou em outros estudos.4; 8 Ao mesmo tempo, a comunicação com a família ou cuidadores não foi uma preocupação marcada, estando presente em 60% dos casos daqueles doentes em que, de alguma forma, foi estabelecido o prognóstico. É importante compartilhar com a família a preocupação acerca da sobrevida do doente, pois desta forma garan- 72 timos um menor impacto no processo da morte e a prevenção de lutos patológicos. A concomitância da abordagem paliativa com o tratamento curativo é perfeitamente viável. À medida que a doença progride e o tratamento curativo perde o poder de oferecer controlo razoável, os cuidados paliativos crescem em significado, surgindo como necessidade absoluta.37 Melhorar a acuidade de um prognóstico não é suficiente. A capacidade de distinguir a hora da morte requer uma mudança de foco da doença para o indivíduo em si; quando a avaliação clínica é realizada com base na doença, esta torna-se intrinsecamente relacionada com o conceito de sucesso e falha, ao passo que quando centrada no doente, o objetivo se volta mais para a sua qualidade de vida.19 A formação específica no controlo de sintomas e continuidade de cuidados são fundamentais para a prática de uma medicina centrada no doente.38; 39; 40 Os autores sugerem como propostas para uma mudança de atitudes, a aplicação de um método padronizado de preenchimento do processo clínico de cada doente admitido no internamento, inserindo, de forma bem visível, as indicações/sugestões DNR, prognóstico reservado, apenas medidas de conforto ou outros, contribuindo assim para uma identificação daqueles doentes com prognóstico desfavorável na admissão. Posteriormente, uma vez identificado o doente com critérios de cuidados paliativos, torna-se importante acompanhar ao longo do internamento a trajetória deste doente com o maior número de informações possíveis acerca da sintomatologia e solicitar a observação por uma equipa intra-hospitalar de cuidados paliativos. Essa equipa ajudará no seguimento, explicando como lidar com este tipo de doentes e com as famílias, contribuindo assim para uma mudança de atitudes através cuidados paliativos, vol. 1, nº 2 - outubro 2014 de uma redefinição dos objetivos terapêuticos: a simplificação terapêutica, a adequação da via de administração dos fármacos e a atitude preventiva de forma a antecipar possíveis complicações que possam vir a ocorrer. Também esta equipa poderá através de ações de formação intra-hospitalar, divulgar informações sobre o que são cuidados paliativos, como identificar e tratar. O principal objetivo visará, então, focar a atenção no doente e não na doença evitando o encarniçamento e obstinação terapêuticos e preparando devidamente a família para o momento da morte. l Bibliografia 1. Kellett J. Prognostication - The lost skill of medicine. European Journal of Internal Medicine. 2008;19(3):155-64. 2. Miller FG, Fins JJ. A proposal to restructure hospital care for dying patients. New England Journal of Medicine. 1996; 334(26):1740-2. 3. Morrison RS, Siu AL, Leipzig RM, Cassel CK, Meier DE. The hard task of improving the quality of care at the end-of-life. Archives of Internal Medicine. 2000;160(6):743-7. 4. Fins JJ, Miller FG, Acres CA, Bacchetta MD, Huzzard LL, Rapkin BD. End-of-life decision making in the hospital: current practice and future prospects. Journal of Pain and Symptom Management. 1999;17(1):6-15. 5. Gott CM, Ahmedzai SH, Wood C. How many inpatients at an acute hospital have palliative care needs? 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