R E V I S T A
DEMOCRACIA E
PARTICIPAÇÃO
volume 1 | número 1 | abril-jun 2014
“Quem deu esse nó, não pode dar, esse nó tá dado, eu desato já!”:
Movimentos populares organizados em torno de direitos territoriais
em meio a conflitos socioambientais no Ceará
Martha Priscylla Monteiro Joca Martins
Luciana Nogueira Nóbrega
Jacqueline Alves Soares
Gestão Pública e Democracia: os conselhos gestores de
saúde da Região Metropolitana de Natal-RN
Lindijane de Souza Bento Almeida
Formação de agenda na política de assistência social:
o papel das conferências como um sistema integrado de participação e deliberação
Cláudia Feres Faria
Eleonora Schettini M. Cunha
Movimentos sociais, engajamento institucional e seus efeitos:
estudo de casos comparados no Espírito Santo
Euzeneia Carlos
A pluralidade de sociedades civis na segurança pública:
deliberação e concepções de representação política no Conasp
Gabriela Ribeiro Cardoso
Fábio de Sá e Silva
Julian Borba
© Secretaria Geral da Presidência da República 2014.
A Secretaria-Geral da Presidência da República tem como principal atribuição assessorar diretamente o governo federal e
a presidenta da República no relacionamento e articulação com os movimentos sociais, entidades patronais e de trabalhadores, o que inclui a criação e implementação de canais que assegurem a consulta e a participação popular na discussão
e definição da agenda prioritária do país.
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA
Dilma Rousseff
Presidenta da República
Michel Temer
Vice-Presidente da República
SECRETARIA-GERAL DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA
Gilberto Carvalho
Ministro de Estado Chefe
Diogo de Sant´Ana
Secretário-Executivo
Brisa Lopes de Mello Ferrão
Editora da Revista Democracia e Participação
COMITÊ EDITORIAL DA SECRETARIA-GERAL DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA
Sérgio de Carvalho Alli
Coordenação
Membros
André Calixtre
Brisa Lopes de Mello Ferrão
Efraim Batista de Souza Neto
Evanio Antonio de Araujo Junior
Herbert Borges Paes de Barros
Janaína Cordeiro de Morais Santos
Luiz Alberto Vieira
Manoel Messias de Souza Ribeiro
Maria Theresa Nichele Reginatto
Maria Victoria Hernandez
Mariana Bizinoto
Renato Rodrigues das Graças
Silvio Carvalho Trida
Revista Democracia e Participação da Secretaria-Geral da Presidência da República.
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4.0 Internacional.
Brasil. Presidência da República. Secretaria-Geral.
Revista Democracia e Participação / Secretaria Geral. – v. 1, n. 1 (abril-jun.2014). Edição Especial– Brasília :
SG, 2014-v. : il. – Trimestral.
ISSN 2318-9681
1. Democracia. 2. Política. I. Título
As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista da Secretaria Geral da Presidência da República ou de sua Secretaria-Executiva.
É permitida a reprodução dos textos desse volume e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. Reproduções para
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R E V I S T A
DEMOCRACIA E
PARTICIPAÇÃO
volume 1 | número 1 | abril-jun 2014
Edição Especial
CONSOLIDAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO COMO MÉTODO DE GOVERNO
Os últimos anos têm sido marcados por relevantes avanços para a democracia brasileira.
O país vem adotando uma nova forma de governar baseada no diálogo permanente e
qualificado com os diversos segmentos da sociedade, fazendo da participação social,
cada vez mais, um método de governo. Decisões estruturais e conjunturais passaram
a ser objeto de interlocução com a sociedade civil e movimentos sociais. Em 2013,
mobilizações populares também ganharam destaque, fortalecendo o debate sobre questões fundamentais como mobilidade urbana, combate à corrupção, reforma política, e
melhoria da qualidade dos serviços públicos, entre outros temas.
O que fica evidente neste momento histórico é que sem a intensa participação da
sociedade, suas propostas e sua vigorosa mobilização não teria sido possível promover
as importantes transformações políticas, econômicas e sociais pelas quais passou o país
nos últimos anos.
A participação do povo brasileiro na definição das prioridades do país conferiu
qualidade e viabilizou um projeto de desenvolvimento de longo prazo. Quarenta milhões de pessoas saíram da pobreza e adquiriram cidadania. Além de conquistas fundamentais quanto à garantia de direitos sociais – emprego, renda, proteção social, educação e saúde – a incorporação das propostas da sociedade nas políticas públicas federais
gerou avanços relevantes às pautas emancipatórias da sociedade como a promoção da
igualdade racial e de gênero, o respeito à diversidade sexual e o reconhecimento das
demandas da juventude, dos idosos e das pessoas com deficiência.
Consolidar a participação como método de governo é, portanto, fundamental para
a construção de sólidos mecanismos de participação social. Para além da criação, institucionalização e consolidação dos espaços de participação – Conferências, Conselhos,
Ouvidorias, Mesas de Diálogo, Fóruns e Audiências Públicas, entre outros – o desafio
maior é aperfeiçoar esses espaços e as formas de interlocução com a sociedade por meio
do debate qualificado sobre o tema.
Nesse contexto, a Secretaria-Geral da Presidência da República tem a honra de lançar a Revista Democracia e Participação, que visa a incentivar a reflexão e a produção de
conhecimento sobre os atores, a estrutura e os mecanismos definidores da democracia
participativa no Brasil e no mundo.
A revista pretende divulgar trabalhos clássicos sobre teorias democráticas e instrumentos de participação e artigos empíricos que exploram o desenvolvimento de
novas formas e mecanismos de participação nas diversas regiões do Brasil. Também
serão publicados estudos comparados e artigos sobre experiências de participação
em âmbito internacional. No processo de seleção dos artigos, além do tema, serão
consideradas a diversidade regional das experiências de participação e o equilíbrio de
gênero entre seus autores.
Além de promover a reflexão e a produção de conhecimento sobre participação, a
revista tem como objetivo contribuir para o aperfeiçoamento das ações da SecretariaGeral na consolidação e no fortalecimento da Política e do Sistema Nacional de Participação Social. Assim, os artigos selecionados são também subsídios para as discussões
internas de governo na elaboração e desenvolvimento de suas ações.
Ao não refletir, necessariamente, o posicionamento institucional do governo, a revista é um locus de avaliação, crítica e inovação sobre democracia participativa que pode
auxiliar a condução, pela Secretaria-Geral, do aprimoramento dos processos de interlocução entre Estado e sociedade para cogestão da coisa pública. Trata-se de mais uma
iniciativa do governo federal com vistas à consolidação dessa nova fase da democracia
brasileira, na qual a participação se tornou o principal método de governar.
Gilberto Carvalho
Ministro de Estado Chefe da
Secretaria-Geral da Presidência da República
PREFÁCIO
Em comemoração ao lançamento da Política Nacional de Participação Social pelo governo federal, o primeiro volume da revista Democracia e Participação, edição especial, privilegiou a publicação de artigos empíricos que analisam experiências de participação social
no Brasil. Neste volume, os trabalhos versam sobre mecanismos e espaços institucionais
de participação e sobre a atuação de movimentos sociais e organizações da sociedade civil
em estados de diferentes regiões do país – Espírito Santo, Ceará, Minas Gerais e Rio
Grande do Norte. A temática de cada artigo selecionado está diretamente relacionada
a assuntos prioritários da atual agenda da Secretaria-Geral da Presidência da República.
Os Povos e Comunidades Tradicionais
O primeiro artigo da revista traz uma análise comparativa entre a pluralidade de sentidos atribuídos aos direitos territoriais pelos povos indígenas, ribeirinhos e comunidades
tradicionais e o conceito jurídico de direito territorial vigente na legislação brasileira.
A partir dos relatos e entrevistas realizadas com essas comunidades, as autoras captam e exploram, sob perspectiva pluriétnica e multicultural, as diversas dimensões do
que esses atores demandam como direitos territoriais. A compreensão dessas dimensões
permite identificar como e por que os mecanismos jurídicos tradicionais se tornam
impermeáveis às noções de normatividade dessas culturas.
A restrição do conceito de direito territorial à dimensão patrimonial faz com que
o ordenamento jurídico brasileiro, indiretamente, crie mecanismos jurídicos que dificultam o reconhecimento do dinamismo natural da identidade dos povos indígenas e
comunidades tradicionais e que impedem o processo de desenvolvimento natural dessas
culturas, interferindo artificialmente na evolução e manutenção de seus traços identitários. Condicionar a capacidade de ser sujeito de direitos territoriais à imutabilidade da
cultura é, em última análise, um requisito que viola justamente o valor que o ordenamento jurídico visa proteger, i.e., a identidade e a cultura desses atores.
Ao ressaltar e demonstrar a necessidade de pensar a propriedade e a territorialidade
a partir do local, as autoras fornecem uma ferramenta para a construção de mecanismos
jurídicos que efetivamente incorporem as noções de normatividade construídas por
essas culturas a partir de um conceito de território que se constitui como expressão de
suas identidades, e não como um direito de propriedade tradicional.
Os Movimentos Sociais e os Mecanismos Institucionais de Participação
A atividade por excelência da Secretaria-Geral é realizar a interlocução entre Estado e sociedade civil, estabelecendo arenas plurais e abertas de diálogo que garantam a autonomia
dos atores sociais em relação ao Estado. Nesse sentido, o desenho institucional dos canais
de participação social deve priorizar a garantia da pluralidade e o fortalecimento da sociedade civil, elementos fundamentais para o aprofundamento da democracia. Em vista a essa
preocupação, são especialmente relevantes as pesquisas que abordam o funcionamento das
diversas instâncias e mecanismos de participação existentes no Brasil e em outros países.
Assim, o segundo artigo da publicação traz uma análise dos efeitos do engajamento institucional das organizações da sociedade civil e dos movimentos sociais em
instituições participativas sobre seus padrões de ação coletiva, além de expor a complexidade do processo de conflito e cooperação inerente à relação entre poder público
e atores da sociedade civil.
A partir do estudo sobre os padrões de ação coletiva de quatro movimentos sociais
do estado do Espírito Santo que utilizaram canais institucionais de participação para a
defesa de suas demandas, a autora demonstra que a relação entre os movimentos sociais
e as instituições políticas deve ser compreendida como um processo dinâmico, em que
o Estado e a sociedade se influenciam mutuamente, de forma contínua e circunstancial.
A identificação dos elementos que caracterizam a mudança ou a manutenção do
padrão de ação coletiva desses movimentos em situação de engajamento institucional,
fornece instrumentos de análise que podem servir para monitorar como a interação entre sociedade e Estado pode contribuir para o aperfeiçoamento do desenho institucional
dos variados espaços de participação. Ademais, esses instrumentos também permitem
aferir se os movimentos sociais estão expostos ao risco de desarticulação e perda de sua
função social no sistema democrático por meio da interação institucional com o Estado, e se o Estado é de fato permeável às demandas da sociedade.
Ao não adotar como pressuposto analítico a ideia de separação entre sociedade civil
e Estado, sem desconsiderar, contudo, a especificidade da função social de cada ator
para a democracia, o estudo explora com maior amplitude a diversidade de conexões
entre movimentos sociais e sistema político, e considera certos tipos de relações entre
atores coletivos e Estado que seriam ignorados sob a perspectiva de algumas teorias
dos movimentos sociais. Pensar o Estado e a sociedade como resultado de um processo
dinâmico e contingente de mútua constituição, amplia o leque de oportunidades de
construir mecanismos de participação que podem servir para o aperfeiçoamento do
Sistema Nacional de Participação Social.
As Conferências Nacionais
Outro tema caro à Secretaria-Geral é o processo de discussão das políticas públicas por
meio da realização de conferências,. Ao longo dos últimos 12 anos, o governo federal
realizou mais 97 conferências nacionais sobre temas de extrema relevância para o desenvolvimento do país, como saúde, educação, assistência social, direitos humanos, cultura
e comunicação. Entre as instâncias de participação social, as conferências ocupam papel
de destaque. Hoje, elas são os espaços institucionais de participação que permitem a
atuação do maior e mais diverso número de atores na construção de agendas de políticas
públicas nacionais. Até 2014, mais de sete milhões de pessoas participaram de conferências em todos os níveis de governo.
Por constituírem a etapa final de um processo de participação e deliberação
que é iniciado nas esferas municipais e estaduais, as conferências nacionais permitem que questões regionais e locais, que merecem atenção diferenciada do governo
federal, integrem o conjunto de prioridades das agendas temáticas nacionais, podendo contribuir para a redução das desigualdades regionais como nenhum outro
espaço de participação.
Em função da importância das conferências para a construção das políticas de
governo, a Secretaria-Geral da Presidência da República dá especial atenção ao aperfeiçoamento do desenho institucional dessas instâncias. Dentro dessa lógica, o terceiro artigo faz uma análise das conferências como sistema integrado de participação e
deliberação. A descrição minuciosa das etapas das Conferências de Assistência Social
- pré-conferências, conferência municipal, estadual e nacional - realizadas nos três
níveis de governo e da relação de múltipla vinculação entre elas permite estabelecer
comparações entre o desenho institucional de cada etapa e o impacto de seus diferentes
formatos para o sistema.
A principal função das conferências, de deliberar sobre um conjunto de diretrizes
que deverão pautar as ações dos três níveis de governo, de forma articulada e integrada,
as torna um espaço adequado para o estudo da centralidade da interação discursiva
entre diferentes atores na conformação das agendas de política públicas.
Para compreender a dinâmica de funcionamento das conferências como sistema
integrado de participação, as autoras destacam a importância do perfil dos atores que
fazem parte desses espaços, seus padrões de ação e o processo discursivo pelo qual definem as agendas de políticas públicas.
Nas Conferências de Assistência Social, as autoras aferiram que, em cada nível federativo, as conferências locais e regionais se relacionam de forma integrada e vertical e
suas deliberações servem de subsídios para as etapas posteriores. Ao gerar agendas múltiplas, em que são definidas diretrizes para o próprio nível de governo e para os níveis
ascendentes, as conferências assumem uma dinâmica que permite articular as especificidades do federalismo brasileiro e aferir seu impacto na formulação e implementação de
políticas públicas nos três níveis de governo.
Quanto à mobilização e participação dos atores nesse sistema, ressalta-se a importância da participação de cidadãos sem vínculo representativo, como ocorre nas
pré-conferências e na conferência nacional. Essa maior abertura à participação de todo
e qualquer cidadão demonstra o potencial inclusivo das conferências.
Ao comparar os padrões de interação discursiva nas diversas etapas do sistema de
conferências, as autoras observam que nas pré-conferências, na conferência municipal
e estadual houve pouco debate e divergência sobre as propostas. Somente na conferência nacional esse padrão é alterado: a maior divergência em torno do conteúdo e
dos procedimentos representativos resultou no aumento dos debates em grupos de
trabalho e na plenária final.
A partir da constatação de que os fluxos de problemas e soluções que vão se conformando, desde as etapas subnacionais até a etapa nacional das conferências, não são
caracterizados por uma dinâmica discursiva em que o debate pode ocasionar mudanças
nas posições dos atores e o aperfeiçoamento das proposições que irão constituir as diretrizes das agendas públicas, podemos concluir pela necessidade de maior reflexão sobre
o desenho institucional das diferentes etapas do sistema de conferências.
A hipótese explicativa para essa constatação é que o dinamismo do padrão de
interação discursiva da conferência nacional pode decorrer do encontro de diferentes
expectativas dos atores das 27 unidades da Federação, ausente nas etapas subnacionais.
Como o padrão de interação discursiva pode indicar o grau de legitimidade e de apoio
de uma determinada agenda e seu potencial de implementação, a ausência ou o déficit
de interação discursiva em qualquer etapa de processos ou instâncias de participação
merece grande atenção, pois podem ser um indicador de que as demandas dos atores
sociais dos estados e municípios não integraram efetivamente as propostas apresentadas em nível nacional, comprometendo, assim, os resultados obtidos por meio do
sistema de conferências.
Os Conselhos Gestores
Para que o a participação social seja ampliada, as instâncias de participação, em
todos os níveis da federação, devem operar de forma a garantir que os atores sociais
sejam cogestores da coisa pública. Assim, o bom funcionamento de espaços institucionais de participação dos estados e municípios é essencial para a construção e
consolidação da democracia participativa no país. Por essa razão, além das conferências, outros canais de participação institucional devem ter uma dinâmica sistêmica
de funcionamento. Nos estados e municípios, o desenho da maioria das políticas
públicas inclui a constituição de conselhos como espaços institucionais de gestão
participativa de recursos públicos.
Devido ao importante papel dos conselhos gestores, a Secretaria-Geral, em conjunto com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), conduz diversas pesquisas que visam compreender os fatores determinantes para o desenvolvimento do
potencial dos conselhos como espaços de participação e deliberação.
Assim, o quarto artigo apresenta reflexão sobre a necessidade de articulação entre
os conselhos de saúde dos municípios da região metropolitana de Natal para a cons-
trução de um modelo de gestão compartilhada que ultrapasse os limites municipais e
enfrente os problemas da região metropolitana em termos regionais e não apenas locais.
Ao fazer um estudo de caso comparando o desenho institucional e a atuação dos dez
conselhos gestores de saúde dos municípios que compõe a região metropolitana de Natal,
a autora demonstra que o mero fato de passar a integrar a região metropolitana não é
suficiente para alterar a atuação dos conselhos gestores do âmbito local para o âmbito regional ou metropolitano. Portanto, a ausência de uma identidade metropolitana limitaria
a possibilidade de implantação de um modelo de gestão compartilhada para solucionar os
problemas de caráter metropolitano que afetam os municípios individualmente.
Duas ordens de problemas são apontadas como responsáveis por esse fato. A primeira está relacionada à estrutura dos conselhos municipais e a segunda à dificuldade de
articulação entre eles.
A partir da comparação do desenho e da dinâmica de funcionamento de dez conselhos de saúde, a autora constata que embora eles estejam formalmente instituídos e
sua estrutura tenha sido estabelecida em conformidade com a legislação, seu potencial de funcionamento, como instância deliberativa e de controle, é reduzido. Como
aponta a autora, a inoperância dos conselhos como espaços de participação resultaria
da precariedade de sua estrutura física e administrativa, da ausência de uma cultura de
participação na sociedade, do centralismo do poder executivo municipal, da crença na
superioridade do conhecimento técnico dos representantes do poder público e da desigualdade no acesso à informação entre os membros do conselho.
Já a dificuldade de articulação entre os conselhos estaria relacionada aos embates políticos, à falta de recursos próprios para solucionar problemas metropolitanos e à percepção
de que o governo do estado é o responsável pelos problemas regionais e não os municípios.
Ao demonstrar que a atuação dos conselhos gestores municipais de saúde não deve
se restringir ao âmbito local, mas considerar a abrangência territorial do problema a ser
enfrentado, a autora ressalta a importância da construção de um sistema integrado de
democracia participativa.
Na construção desse sistema, o desenho institucional dos conselhos deve ser dinâmico e responder aos padrões da ação dos atores que o integram de modo a garantir que
esse locus de participação funcione efetivamente como instância deliberativa e de controle. Ademais, ele deve ser capaz de permitir a articulação entre os conselhos nos três
níveis de governo e entre o mesmo nível para viabilizar o enfrentamento de problemas
que ultrapassam seus limites territoriais, mas que os afetam mutuamente.
Assim como no caso dos mecanismos de participação, o entendimento das
concepções de representação e dos padrões de deliberação dos diversos atores
nos espaços institucionais de participação é essencial para o desenvolvimento da
democracia participativa.
Uma Sociedade Civil Plural
A interlocução e mediação da relação Estado e sociedade requer amplo conhecimento
sobre o perfil dos atores sociais, o conteúdo de suas demandas e suas formas de atuação.
O quinto artigo da revista vai ao encontro dessa necessidade da Secretaria-Geral, ao
tentar compreender as diversas concepções de representação dos atores da sociedade
civil a partir de suas atuações no Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp).
Para identificar quem são os atores que representam a sociedade civil no conselho, é utilizado o histórico de constituição e atuação temática das entidades que o
compõem. O perfil desses representantes é analisado a partir do padrão de renda, escolaridade, cor, tempo de experiência do representante como conselheiro e sua atuação
anterior em outros conselhos.
Na aferição da visão dos conselheiros sobre o exercício do seu papel de representantes, são oferecidos dois tipos excludentes de respostas aos atores: quem ou o que eles
representam quando atuam no conselho. Alguns declaram representar a própria entidade ou seu setor e segmento e outros afirmam representar uma causa, tema específico ou
o bem comum. Os atores que deram outras respostas apontaram a impossibilidade de
optar por apenas uma das categorias sugeridas pelos autores, ressaltando a necessidade
de compatibilizar o ideal de bem comum com demandas específicas.
Quanto aos mecanismos que autorizam e legitimam o ofício de representante
desses atores nos conselhos, foram apontados o pertencimento e vivência em relação ao setor e/ou à entidade, o fato de terem sido eleitos, a capacidade de argumentar e influenciar decisões, a qualificação profissional na área, e a identificação
com o tema, entre outros. Os resultados obtidos na pesquisa levaram os autores a
concluir que os conselhos são compostos por uma pluralidade de atores, com trajetórias e repertórios de ação distintos, que possuem diferentes demandas e graus
de articulação com o Estado. Assim, a definição da sociedade civil como um ator
monolítico é incompatível com a diversidade de concepções de representação dos
diversos atores que a compõem. Por essa razão defende-se a ideia de um conceito
plural de sociedade civil.
A exposição da complexidade inerente ao desafio de construir um conceito de
sociedade civil a partir de concepções distintas e complementares de representação
aponta o imenso conjunto de fatores que devem ser considerados na relação entre
Estado e sociedade. As mudanças de composição dos conselhos podem indicar avanços ou retrocessos nos padrões de atuação dos atores sociais e o nível de abertura
do sistema de democracia participativa à efetiva implementação de um modelo de
cogestão da coisa pública.
Um Espaço de Reflexão e Diálogo
O debate qualificado presente nos artigos da edição comemorativa de lançamento
da revista Democracia e Participação expõe a extensão do desafio e da complexidade
de se coordenar as medidas de avanço na participação social. A reflexão crítica e a
formulação de soluções para problemas que possam afetar direta ou indiretamente
a participação da sociedade na formulação de políticas de governo tornam-se ainda
mais relevantes nesse momento, com a criação da Política e do Sistema Nacional de
Participação Social.
Em termos gerais, os temas abordados pelos artigos indicam que para aprimorar
a participação como método de governo é fundamental reinterpretar a relação Estadosociedade como um processo dinâmico e de mútua cooperação, em que todos os atores
procuram obter os melhores resultados para si e para a coletividade. É necessário, também, tornar os sistemas político e jurídico permeáveis às noções de normatividade dos
diferentes grupos que compõe o povo brasileiro, além de considerar as especificidades
da estrutura federativa na criação e no aperfeiçoamento dos mecanismos e espaços de
participação que integram o Sistema Nacional de Participação Social.
Ser um espaço de reflexão e diálogo qualificado sobre essas e outras questões essenciais para a democracia participativa é o principal objetivo da revista Democracia e
Participação da Secretaria-Geral da Presidência da República.
Equipe da Revista Democracia e Participação
Secretaria-Geral da Presidência da República
SUMÁRIO
“QUEM DEU ESSE NÓ, NÃO PODE DAR, ESSE NÓ TÁ DADO, EU DESATO JÁ!”:
MOVIMENTOS POPULARES ORGANIZADOS EM TORNO DE DIREITOS
TERRITORIAIS EM MEIO A CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS NO CEARÁ
15
Martha Priscylla Monteiro Joca Martins
Luciana Nogueira Nóbrega
Jacqueline Alves Soares
GESTÃO PÚBLICA E DEMOCRACIA: OS CONSELHOS GESTORES
DE SAÚDE DA REGIÃO METROPOLITANA DE NATAL-RN
45
FORMAÇÃO DE AGENDA NA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL:
O PAPEL DAS CONFERÊNCIAS COMO UM SISTEMA INTEGRADO DE
PARTICIPAÇÃO E DELIBERAÇÃO
73
MOVIMENTOS SOCIAIS, ENGAJAMENTO INSTITUCIONAL E SEUS EFEITOS:
ESTUDO DE CASOS COMPARADOS NO ESPÍRITO SANTO
97
Lindijane de Souza Bento Almeida
Cláudia Feres Faria
Eleonora Schettini M. Cunha
Euzeneia Carlos
A PLURALIDADE DE SOCIEDADES CIVIS NA SEGURANÇA PÚBLICA:
DELIBERAÇÃO E CONCEPÇÕES DE REPRESENTAÇÃO POLÍTICA
NO CONASP
Gabriela Ribeiro Cardoso
Fábio de Sá e Silva
Julian Borba
133
“QUEM DEU ESSE NÓ, NÃO PODE DAR, ESSE NÓ TÁ DADO, EU DESATO
JÁ!”1: MOVIMENTOS POPULARES ORGANIZADOS EM TORNO DE DIREITOS
TERRITORIAIS EM MEIO A CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS NO CEARÁ
Martha Priscylla Monteiro Joca Martins2
Luciana Nogueira Nóbrega3
Jacqueline Alves Soares4
Resumo:
Abstract:
A presente pesquisa objetivou investigar, em
perspectivas pluriétnicas e multiculturais, sentidos de
direitos territoriais que emergem e são visibilizados
em meio a conflitos socioambientais, construídos
por distintos movimentos populares, no meio rural
e urbano do Ceará, buscando compreender o
que esses movimentos demandam como direitos
territoriais, utilizando-se de pesquisa bibliográfica,
documental e de campo. Resultados apontam que
esses movimentos requerem interpretações contrahegemônicas ao direito estatal em perspectiva
crítica e intercultural e resistem em torno de direitos
anteriormente constituídos diante do direito estatal
ou em comunidades e povos, significando os direitos
territoriais como inerentes a um meio ambiente
saudável, equilibrado e equitativamente justo, os quais
podem constituir-se como um campo jurídico mais
fértil à construção de equidade territorial e ambiental.
This study investigated, in multiethnic and
multicultural perspectives, meanings of territorial
rights that emerge and are visualized in the midst
of socioenvironmental conflicts, built by distinct
movements in rural and urban areas of Ceará State,
seeking to understand what these movements
require as territorial rights, using bibliographical,
documental and field researches. Results indicate
that these movements require counter hegemonic
interpretations to the state law in a critical and
intercultural perspective and resist around rights
previously established before the state law or
in communities and peoples, giving meanings
to territorial rights as inherent to a healthy
environment, balanced and equally fair, which may
form as a legal field more fertile to the construction
of territorial and environmental equities.
Palavras-chave: Direitos territoriais. Conflitos
socioambientais. Movimentos Populares. Rural.
Urbano.
Keywords: Territorial Rights. Socioenvironmental
conflicts. Popular Movements. Rural. Urban.
1. “Quem deu esse nó não pode dá/ Quem deu esse nó não pode dá/ Esse nó tá dado eu desato já/ Esse nó tá dado
eu desato já/ Ô desenrola essa corrente deixa os índios trabalhar/ Ô desenrola essa corrente deixa os índios trabalhar”.
A música, entoada em diversas ocasiões por Povos Indígenas no Ceará, é cantada hoje por causa de uma decisão
judicial considerada pelo Movimento dos Povos Indígenas no Ceará como exemplo de decisão contrária ao direito ao
território Indígena. Veja o Povo Tapeba entoando a canção na expressão do Toré, disponível em: <http://www.youtube.
com/watch?v=GbwIiAdqh7M&feature=related>. Acesso em: 30 mai. 2011.
2. Professora de Direito da Faculdade Christus (Fortaleza – Ceará). Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará.
3. Indigenista especializada da Funai. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará.
4. Integrante do Movimento dos Conselhos Populares (MCP). Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente (Prodema) e
graduada em Direito, ambos pela Universidade Federal do Ceará.
Martha Priscylla Monteiro Joca Martins | Luciana Nogueira Nóbrega | Jacqueline Alves Soares
1 INTRODUÇÃO
“Vivemos em Curral Velho, mas não queremos viver encurralados”; “de quem é essa
terra? nossa!”; “quem deu esse nó não pode dar, esse nó tá dado eu desato já!”. As falas,
vindas de movimentos populares, não homogêneos em suas crenças, valores e práticas,
traduzem lutas contra-hegemônicas tecidas em torno de seus direitos territoriais.
Em diversos ecossistemas, grupos humanos estabelecem relações mais harmônicas
ou mais predatórias com o meio ambiente (compreendido como ambiente natural e cultural), (re)construindo-o. No Ceará, assim como em outros locais do Brasil e da América
Latina, essas populações e grupos sociais têm cada vez mais tensionado pelo acesso e utilização das fontes naturais, disputando por sentidos de desenvolvimento, os quais expressam distintas relações com o meio ambiente, gerando conflitos socioambientais.
Tais conflitos se manifestam quando os poderes públicos ou iniciativas privadas
agem no sentido de expropriar, expulsar e privar essas diversas populações da ambiência
em que vivem, empobrecendo-as e instaurando modelos de desenvolvimento que causam graves impactos e desequilíbrios ao meio ambiente.
Entretanto, as populações afetadas resistem e reivindicam, organizadas em movimentos populares, fazendo emergir demandas que, por vezes, contrapõem-se ao pensamento jurídico hegemônico, provocando novas significações no campo do Direito.
Compreender as violações de direitos humanos presentes nos conflitos socioambientais e refletir acerca dessas demandas emergentes é importante a fim de se constituir
justiça e equidade ambiental, integrando as lutas sociais e ambientais e concretizando
diversos direitos humanos.
Ocorre que, dentre estes, os direitos territoriais são centrais, pois, além de se constituírem como meios de vivência de outros direitos, como o direito à liberdade, à alimentação e ao meio ambiente saudável e equilibrado, em meio a conflitos socioambientais,
emergem e se insurgem contra modos de ocupação territorial que identificam a terra
como propriedade exclusivista e cartorária, vivenciada em perspectiva mercadorizada,
como meio de produção do sistema do capital, abrigando modos de existência humana
que estabelecem relações predatórias e destrutivas com o meio ambiente.
A presente pesquisa objetivou investigar, em perspectivas pluriétnicas e multiculturais, sentidos de direito à terra e ao território, que emergem e são visibilizados em
meio a conflitos socioambientais, construídos por distintos movimentos populares, no
meio rural e urbano do Ceará, buscando compreender o que esses movimentos demandam como direitos territoriais.
Utilizando-se de pesquisa bibliográfica, documental e de campo, buscou-se
identificar as resistências e reivindicações desses movimentos em torno de seus direitos territoriais, aplicando metodologia qualitativa, como recurso à observação
16
Revista Democracia e Participação
“Quem deu esse nó, não pode dar, esse nó tá dado, eu desato já!”: Movimentos populares
organizados em torno de direitos territoriais em meio a conflitos socioambientais no Ceará
participante, grupos focais e entrevistas semiestruturadas junto a lideranças do
Povo Indígena Anacé, moradores(as) do Serviluz (em Fortaleza) e moradores(as) da
Comunidade de Curral Velho (de pescadores), todos situados no Ceará. Além disso, visibilizando a metanarrativa sobre a luta desses povos pela terra, analisaram-se
histórias, canções e frases entoadas por esses movimentos.
2 COMUNIDADES DE CURRAL VELHO, SERVILUZ E ANACÉ:
POVOS E POPULAÇÕES EM BUSCA DO DIREITO AO TERRITÓRIO
Este capítulo foi tecido buscando dialogar com os resultados obtidos na pesquisa de
campo, com normas do ordenamento jurídico estatal ligadas aos direitos territoriais e
com análises realizadas por autores diversos acerca do tema em discussão, com o fito
de expressar distintas compreensões e experiências acerca dos sentidos construídos em
torno dos direitos territoriais.
Iniciando-se pela comunidade de pescadores de Curral Velho, nos dois itens seguintes passa-se a discorrer acerca da comunidade urbana do Serviluz, e, após, sobre o
povo indígena Anacé.
2.1 Histórias, falas e canções de Curral Velho que traduzem as lutas em
defesa do território e do ecossistema Manguezal
Curral Velho, localizada na Praia de Arpoeiras, no Município de Acaraú, no Ceará, é
uma das comunidades litorâneas que subsiste, principalmente, da catação de mariscos,
da pesca artesanal e da agricultura familiar, atividades que vêm sendo impactadas com
o cultivo de camarão em cativeiro.5
A criação de camarão em cativeiro começou a se estabelecer em Curral Velho no
final dos anos de 1990 e início dos anos 2000, quando se observou um crescimento
mais intenso dessa atividade no Brasil. A instalação das fazendas e viveiros de camarão
em cativeiro seguiu os moldes do que havia ocorrido em outros locais no Brasil: sem um
ordenamento adequado, com base legal insuficiente para regular a atividade, contando
com incentivos governamentais e ocasionando impactos ambientais e sociais graves,
em especial por considerar as áreas de instalação vazios inabitados.
Nas narrativas de Curral Velho, os impactos da carcinicultura ocupam páginas
e páginas da memória coletiva. Suas histórias e canções revelam como a chegada da
5. Além da carcinicultura, há outros empreendimentos igualmente degradadores do ecossistema manguezal e
desestruturadores do modo de produção e de vida da comunidade de Curral Velho. Alguns(mas) moradores(as) apontam,
entre outras ameaças possíveis, a instalação da energia eólica de modo insustentável ambientalmente e a pesca
predatória. Para conhecer mais a história de Curral Velho na fala de jovens da comunidade, ver o vídeo disponível em:
<http://www.portaldomar.org.br/blog/portaldomar-blog/categoria/tv-povos-do-mar/encante-do-mangue>. Acesso em:
10 jun. 2011. Ver também: <http://curralvelho.blogspot.com/>. Acesso em: 11 maio 2011; e o vídeo “O Outro Lado de
Curral Velho”, disponível em: <http://vimeo.com/30245055>. Acesso em: 05 maio 2012.
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carcinicultura interferiu, de modo destrutivo, na vida da comunidade, e de como esta
provocou o desequilíbrio no ecossistema manguezal.
Ante tal compreensão partilhada, a comunidade de Curral Velho mobilizou-se desde
a chegada da carcinicultura, organizando ações que expressam o sentimento de defesa de
seu território e do ambiente que lhes provê a vida. Os(as) moradores(as) de Curral Velho
passaram a defender os direitos que consideram como sendo seus: direito à terra, ao território e de acesso aos recursos naturais do mangue, motivados pelo sentimento de defesa do
ecossistema manguezal e do seu modo de vida e produção inter-relacional com o mangue.
A fim de compreendermos melhor essa relação e os significados que os moradores
de Curral Velho atribuem ao direito à terra e ao meio ambiente, é preciso conhecer um
pouco mais de sua história.6
Na história oral partilhada pelos membros da comunidade, não há referências expressas sobre quando surgiu a comunidade de Curral Velho. Muitas pessoas com as quais
conversamos tinham um discurso comum, ao dizer que seus avôs/avós contavam que os
avôs/avós deles(as) já tinham nascido ali. O que se sabe é apenas que o grupo vive no local
há muito tempo, sendo netos(as), bisnetos(as) dos(as) primeiros(as) moradores(as).
Embora não se tenha gravado na memória a origem do grupo, um fato foi apontado durante as entrevistas realizadas como marco inaugural da comunidade:
A nossa comunidade, ela surgiu com o nome que ela recebeu, Curral Velho,
segundo a nossa pesquisa dentro da comunidade com os mais antigos [...].
Nós tínhamos um senhor chamado Chico Salomão, que já morreu com 92
anos, e esse senhor falou que Curral Velho teve esse nome por causa dos
currais de pesca, um tipo de material que se usa na área da pesca. [...] esses
currais tem uma época que eles ficam velhos, ele cai, o mar derruba, né, aí os
pescadores tiram ele de dentro d’água, põe no seco e vão reformar novamente
o material velho e vão utilizar outros novos. [...] então quando nós viemos ao
mundo, já viemos sabendo que já existia esse nome, que a nossa comunidade
já era Curral Velho.
Interessante é perceber que, para a comunidade, o batismo com o nome de Curral
Velho constitui-se no fato identificado como inaugural para o grupo. Isso é revelador,
pois o nome tem estreita relação com as atividades exercidas pela maioria dos moradores
de Curral Velho: a pesca artesanal e a mariscagem. Nesse sentido, o marco criador da
comunidade (momento em que ela recebeu um nome) é também um reforço a uma
identidade do grupo, ligada à atividade tradicional que desenvolvem.
6. Os poemas, cordéis, músicas e paródias produzidos por alguns membros da comunidade são importantes registros da
história oral de Curral Velho.
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“Quem deu esse nó, não pode dar, esse nó tá dado, eu desato já!”: Movimentos populares
organizados em torno de direitos territoriais em meio a conflitos socioambientais no Ceará
Paralelamente à atividade da pesca, a comunidade vive da catação de mariscos
(caranguejos, siris, ostras, búzios) e da agricultura de subsistência. A batata, o milho e o
feijão são os principais produtos cultivados pelo grupo. As atividades não são excludentes, sendo possível que um(a) pescador(a) também seja agricultor(a).
No que tange especificamente à relação entre o espaço em que vivem e o direito
de propriedade estatal, as narrativas indicam que não havia uma preocupação prévia
dos(as) moradores(as) em ser proprietários das terras que ocupavam e utilizavam para
suas atividades tradicionais. Não havia o intuito de titularizar as terras. De modo a
compreender melhor essa relação com o território, a questão da propriedade e da
titularidade da terra foi retomada em um grupo focal realizado, no qual emergiu o
diálogo seguinte:
[Pesquisadora] - Vamos supor que amanhã chegasse uma pessoa aqui com
um papel na mão, [...] dizendo que isso aqui tudinho é dela porque ela
descobriu que herdou de um antepassado [...]. Que é que vocês diriam pra
essa pessoa?
[...].
- Pronto. A gente teve um dos ataques que a gente fez lá na [fazenda de
carcinicultura], e, e se num me engano era o dono da empresa que tava
com um documento de posse... porque disse que tava se apossando: Táqui
o documento, táqui, táqui. Deixa nóis vê aqui esse documento, puxamo da
mão dele e rasgamo. [risos de todos]
[Pesquisadora] - Mas mesmo que fosse verdadeiro?
- Mermo que fosse verdadeiro...
[...].
- O dono da terra mora aqui há muito tempo...
- ... num sabe nem se ela existia, vem tumar uma terrinha que é nossa há
muito tempo...
- [...] eu acho que mais importante do que o papel é você acreditar e saber que
tem certeza que você realmente é que tem direito porque o direito dá direito,
né? Se, se o direito deu direito pra ele, que num era nem da comunidade,
porque que num dá direito a comunidade que era dali. Então, é direito pelo
direito tá entendendo? E, o papel nessa hora num vale mais do que o direito,
é, é como nós moradores, porque realmente a gente somos espelhos e somos,
somos exemplo, e somos mais do que um papel, tá entendendo?
Para a comunidade de Curral Velho, não é o papel que confirma o título de propriedade. São outros elementos que não estão escritos dos quais surgem o direito à terra,
tais como as relações de pertença que a comunidade detém com o território e uma
absoluta consciência de que o Direito lhes dá direitos.
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Mesmo com a instalação das fazendas de criação de camarão em cativeiro, o sentimento dos(as) moradores(as) de Curral Velho com relação ao território não mudou.
Foi, antes, reforçado. E, embora haja um sentimento de que a área de manguezal pertence à comunidade, esse sentimento não tem correlação com a ideia de propriedade
como se encontra definida na dogmática jurídica. Para esta, a propriedade é um direito
exclusivo do titular de usar, gozar e dispor da coisa. Para a comunidade de Curral Velho,
no entanto, não há relação de exclusividade com o território, bem como o uso do território, para eles(as), pressupõe uma obrigação de cuidado com a natureza.
Conhecer essa comunidade desperta indagações sobre quais instrumentos normativos estatais podem se relacionar à conservação da vida socioambiental e da diversidade
biológica presentes em Curral Velho e à defesa e proteção do território em que vive essa
comunidade há gerações.
2.2 As disputas pela “Esquina da Cidade” e a luta pelo território no
Serviluz (Fortaleza)
As áreas litorâneas de Fortaleza (Ceará), zona de intensa valorização econômica, foram
historicamente ocupadas por comunidades de pescadores, e em um segundo momento,
com o incremento da migração,7 deu-se o processo de inchamento e favelização desses
antigos vilarejos. Tal formação se justifica na impossibilidade de se morar na cidade construída para as classes médias e ricas de Fortaleza, o que conduziu à ocupação dessas áreas.
Souza (2009b) observa que, sobretudo na década de 1950, as favelas mais populosas estavam localizadas em área litorânea, em terrenos de marinha, além das localizadas
ao longo dos trilhos da Rede Ferroviária na parte leste da cidade. Realidade que vem
se modificando com a remoção de favelas a partir dos programas de desfavelamentos
que vêm sendo praticados pela Prefeitura Municipal desde 1972, tendo em vista a implantação de projetos de urbanização e de expansão do sistema viário, dando espaço ao
mercado imobiliário formal. Apesar de todo o processo de expulsão dessas comunidades
(Mucuripe, Barra do Ceará e Pirambu) pelo processo de valorização dessas praias para o
veraneio (década de 1940) e habitação das classes médias e alta e para o turismo (década
de 1980), ainda são significativas as resistências na região costeira.
A área conhecida como Serviluz é uma delas, lugar que não é reconhecido como
bairro oficial, inserido oficialmente dentro do bairro Cais do Porto, situada na porção
leste do litoral de Fortaleza. Para se entender o Serviluz, é necessário fazer uma breve
digressão e descer às suas raízes mucuripenses.
O Mucuripe tinha como primeiros habitantes os índios e, posteriormente, os pescadores. Essa paisagem “era marcada inicialmente por jangadas, coqueiros e casas de
7. Em Fortaleza, a origem da ampla maioria dos moradores da periferia se deu, mormente, no período de 1930-1950,
onde ocorreu grande afluxo de migrantes do interior do Estado devido às secas periódicas e à estrutura agrária excludente.
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pescadores, os quais viviam uma vida tranquila longe dos adensamentos urbanos e livres
da intensa competição pela terra” (RAMOS, 2003).
Tendo recebido grande contingente de migrantes em épocas diversas, é, sobretudo,
a partir da década de 1930 que esses trabalhadores que moravam na antiga Rua da Frente, hoje avenida Beira-mar (GIRÃO, 1998) vão sendo removidos para outras áreas da
cidade, dentre as quais para o lugar conhecido como Serviluz. É a partir de 1940, com o
início das obras para a construção do Porto do Mucuripe, só concluídas em 1952, que o
Serviluz vai ter um forte crescimento populacional devido à oferta de emprego no porto
e, posteriormente, nas indústrias que se instalaram na região. O Serviluz passa, então, a
ser refúgio de pescadores artesanais, de prostitutas expulsas da Beira-mar e, em seguida,
passa a abrigar também os trabalhadores portuários e das indústrias, especialmente da
pesca de lagosta.
O lugar é resultado da contradição inerente à dinâmica urbana, fruto da segregação
e da resistência de seus habitantes que ainda possuem um espaço reservado à Beira-mar:
um lugar privilegiado de se viver pela beleza paisagística, pelas várias possibilidades de
sustentação dada pelo mar e também um lugar de precariedade urbana, riscos de desastres, de incêndios e soterramento pelas areias. Todos esses elementos, fogo, vento, terra
e mar estão presentes no lugar (NOGUEIRA, 2006).
Estudos importantes relatam a presença de índios urbanos (Tremembés de Almofala) no Serviluz e em Mucuripe (NASCIMENTO, 2009) e sobre a migração dos
quilombolas de Aquiraz (Comunidades da Lagoa do Ramo e Goiabeiras), moradores
da Rua da Senzala (RATTS, 2006), que nos dão uma mostra da diversidade cultural de
seus habitantes que se reflete em suas relações sociais, festas, trabalho, religiosidade, hábitos alimentares, dentre outros costumes que remetem a modos de vida não urbanos.
O trabalho da pesca é realizado com variadas técnicas. Os trabalhadores muitas
vezes se dividem entre a pesca industrial e a artesanal. Com a, praticamente, extinção
da lagosta pela pesca industrial, dezenas de frigoríficos que empregavam os moradores
foram fechados, o que agravou as condições de vida dos moradores do bairro. A pesca
artesanal ainda é uma atividade fundamental para a sobrevivência de inúmeras famílias,
notadamente as mais pobres, que vivem dela diretamente ou indiretamente, como fonte
alimentar fácil, barata e rica em nutrientes. De acordo com informações concedidas por
entrevista realizada com moradora do bairro, existem, ainda, por volta de 800 pescadores artesanais no Serviluz.
Já os trabalhadores industriais e portuários estão em número cada vez mais reduzido, primeiro pelo processo de mecanização que afetou a empregabilidade de mão de
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obra nos Moinhos,8 que já era diminuta, e, mais recentemente, com o início de transferência de algumas atividades do Porto do Mucuripe para o Porto do Pecém. A situação
dos trabalhadores portuários encontra-se cada vez mais precarizada com mudanças nas
relações de trabalho da categoria. Outros trabalhadores obtêm seus rendimentos por
meio do trabalho nas barracas de praia, bares e restaurantes (na Beira-mar e na Praia do
Futuro) ou sobrevive do comércio ambulante de artesanatos, alimentos e outros produtos. A zona de meretrício estabelecida no entorno do Farol Velho entrou em decadência.
Praticamente sem demanda, os “puteiros” viraram cortiços. Neles vivem dezenas de
famílias em situação de coabitação, em quartos diminutos alugados. Já as novas gerações de jovens nascidas no Serviluz dedicam-se a projetos sociais de artes, informática e
esportes, sobretudo o surf 9 e o futebol.
Trata-se de uma área objeto de grande interesse econômico por ser vizinha à zona
portuária e estar literalmente na “esquina” de Fortaleza, entre os bairros Meireles e Praia
do Futuro, valorizados pelo setor turístico-imobiliário para empreendimentos residenciais e comerciais.
Nessa fração da cidade, vários projetos têm sido anunciados seguidamente em
nome do desenvolvimento econômico, da geração de emprego e da “requalificação urbana”, evidenciando o acirramento da disputa entre duas lógicas distintas: a do espaço
vivido e a do espaço enquanto mercadoria, em que se disputa a quem os modelos de
desenvolvimento urbano irão/deveriam beneficiar.
No ano de 2009, o governo do estado anunciou o projeto chamado Estaleiro PORMAR, que consistia numa parceira de um pool de empresas com apoio do estado do Ceará, que visava instalar na Praia do Titanzinho (Serviluz) um estaleiro de grande porte para
atender à demanda de navios da Transpetro (empresa subsidiária da Petrobras).
Houve imediata reação da população por meio de organizações comunitárias
que se uniram para empreender a resistência contra o projeto que significaria a destruição da Praia do Titanzinho, com aterramento de mais de 1.000 km2 de mar. A
luta durou até o final de 2010, quando expirou o prazo imposto pela empresa para
que o município concedesse a licença de instalação, o que não podia acontecer sem
alteração do Plano Diretor de Fortaleza, uma vez que este determina a área da comunidade como Zona Especial de Interesse Social e a faixa de praia como Zona de
Proteção Integral, ou seja, não edificável. Além disso, o empreendimento naquele
8. Moinhos são indústrias de produção de farinha de trigo. O Grande Moinho Cearense de propriedade do grupo
empresarial M. Dias Branco e o Moinho J. Macedo são pertencentes a dois grandes grupos empresariais do Brasil e da
América Latina, que são também proprietários de inúmeras glebas de terra na região da Praia do Futuro. Sob esses grupos
pesa a acusação de que estes mantêm uma milícia chefiada por um coronel da reserva da polícia militar que “guarda”
os terrenos contra possíveis “invasores”.
9. Praia do Titanzinho no Serviluz é conhecida mundialmente como “pico” de surf.
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organizados em torno de direitos territoriais em meio a conflitos socioambientais no Ceará
local ia de encontro ao Projeto Orla,10 que foi elaborado com ampla participação
das organizações locais.
A empresa e governo estadual alegavam que o estaleiro deveria ser instalado no
Titanzinho, pois os custos seriam menores do que em qualquer outra área do estado.
Para isso, porém, teria que atentar contra todo o planejamento urbano e ambiental
desenvolvido em Fortaleza para aquela área litorânea da cidade. Além da comunidade,
que expressou sua rejeição em audiências públicas e manifestações, outros setores sociais
da cidade se opuseram ao projeto, fazendo com que os seus executores o transferissem
para outro estado (Pernambuco), que ofereceu melhores vantagens locacionais e menor
resistência da população para sua instalação.
Dando seguimento à estratégia de transformar Fortaleza numa “cidade empresarial” por meio da atração de megaeventos, como a Copa do Mundo de 2014, estão
previstas inúmeras intervenções urbanas que afetarão os usos tradicionais de algumas
regiões da cidade. Dentre essas intervenções, a que diz respeito diretamente ao Serviluz
refere-se aos espaços de lazer e recepção de turistas que se pretende construir na Praia
Mansa,11 localizada entre o Serviluz e o Porto do Mucuripe.
Segundo matéria de jornal local,12 o governo do estado pretende fazer um “complexo de entretenimento” com vista para o mar e uma estação de passageiros para receber até três grandes navios de cruzeiro durante a Copa do Mundo de 2014. Também
seria instalada uma estação do novo Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) que daria acesso
direto da região da orla para o estádio de futebol Governador Plácido Aderaldo Castelo,
conhecido como Castelão. Tudo isso causando flexibilizações de legislações existentes,
invalidando o planejamento urbano local, gerando insegurança na posse de tradicionais
moradores do entorno, fazendo abrir uma nova frente para atuação do mercado imobiliário com o apoio do estado, que garante infraestrutura necessária aos investimentos.
A Prefeitura de Fortaleza, por sua vez, apresentou o projeto chamado Aldeia da
Praia, cujo investimento não atende às prioridades da comunidade, ao contrário, visa
atender aos interesses econômicos para área, beneficiando, sobretudo, os mercados imobiliário e turístico. Apresentado oficialmente pela Prefeitura em audiências públicas
desde 2010, o projeto consiste basicamente em um apanhado de velhos projetos de
10. O Projeto de Gestão Integrada da Orla Marítima (Projeto Orla) é uma ação conjunta entre o Ministério do Meio
Ambiente e o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, no âmbito da sua Secretaria do Patrimônio da União
(SPU). Suas ações buscam o ordenamento dos espaços litorâneos sob domínio da União, aproximando as políticas
ambiental e patrimonial, por meio da articulação entre as três esferas de governo e a sociedade.
11. A Praia Mansa é uma ilha que se criou artificialmente a partir da construção de espigões de pedra, o aterramento
de parte da orla para a ampliação do complexo portuário do Mucuripe. A partir da década de 1970, esse área foi sendo
habitada por famílias pescadores até serem expulsos pela Companhia Docas do Ceará e pela Capitania dos Portos alguns
anos depois.
12. Disponível em: <http://www.opovo.com.br/app/opovo/economia/2013/03/01/noticiasjornaleconomia,3014466/r-12mi-para-elaboracao-do-projeto-na-praia-mansa.shtml>. Acesso em: 02 set. 2013.
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abertura de avenidas largas para facilitar o fluxo expresso entre Beira-mar e Praia do
Futuro. Pretende, assim, criar uma via paisagística à beira da praia, margeada hoje por
moradias, comércios, igrejas e equipamentos públicos que serão afetados ou removidos.
Somado a isso, haverá uma intervenção “paisagística”, chamada “Jardim da Praia”, que
removerá mais de mil famílias do entorno do Farol do Mucuripe (Farol Velho), além de
área no mar que seria aterrada para serem construídas praças e quadras, sendo plantadas
gramas e palmeiras, desconstituindo o ambiente natural e socialmente construído para
substituí-lo por um ambiente artificial, homogêneo e “globalizado”.
Decorrentes dos anúncios de projetos de investimentos, os conflitos com a especulação imobiliária têm sido constantes, como o que está acontecendo em torno da
disputa pela posse do terreno conhecido como Campo do Paulista, protagonizada pelo
suposto proprietário do imóvel e a Liga Esportiva do Serviluz, mantenedora do terreno
de mais de um hectare de área, organizando escolinhas e torneios de futebol.13
Diante de tantas tentativas de expropriação e segregação, próprias do modelo da
cidade excludente, essa população também vem resistindo, reconstituindo laços de identidade e ocupando novos espaços. O Movimento dos Conselhos Populares (MCP),14 movimento social que se organiza na área, dedica-se a formas de resistência tendo como base
a apropriação do espaço urbano, revelando não somente as tradicionais bandeiras do movimento social urbano, como a de luta por moradia e por equipamentos e infraestrutura
pública, mas também tentando também constituir formas de sociabilidade, produção e
cultura insurgentes por meio de organização por territórios que lutam por autonomia.
O expoente dessa experiência foi a ocupação de um terreno anexo ao Serviluz
pertencente à tradicional família proprietária de terras que atua no ramo da construção civil e do comércio. A ocupação foi realizada por oitenta famílias sem-teto que
tinham suas origens no Serviluz e no grande Mucuripe e que resistiram a processos
de segregação para conjuntos habitacionais na periferia, sugeridos pelo poder público
como solução para o déficit habitacional. Reivindicando suas raízes no local e seu
direito de permanência e resistência (CASTILHO, 2011), as famílias estão a três anos
lutando pela consolidação da posse da terra e construção de moradias com qualidade
habitacional digna.
Além dessa experiência, o MCP tem lutado por conquistas de novos direitos que reflitam ganhos de autonomia, como através do processo de participação popular na elaboração
13. O primeiro time organizado no bairro foi o “Paulista Esporte Clube”, que acabou batizando o campo. O mais
antigo em atividade é “Londrina”, que existe desde 1974. A Liga de Futebol do Serviluz foi fundada em 1990 e conta
atualmente com 16 equipes. A disputa pela posse do campo foi judicializada em ação de reintegração de posse, tendo
sido expedida liminar em favor do proprietário contra a comunidade. Disponível em: <http://www.opovo.com.br/app/
opovo/fortaleza/2012/04/24/noticiasjornalfortaleza,2826665/prefeitura-promete-avaliacao-de-terreno.shtml>. Acesso
em: 02 jun. 2012.
14. O Movimento dos Conselhos Populares foi fundado em 2004 e se organiza por meio de conselhos populares de bairro
e assembleias da cidade em torno da construção do poder popular a partir de sua organização por territórios.
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organizados em torno de direitos territoriais em meio a conflitos socioambientais no Ceará
do Plano Diretor Participativo de Fortaleza (PDP) com a aprovação da Zona Especial de
Interesse Social (Zeis) do Serviluz. O instituto das Zeis, criado pelo Estatuto da Cidade
(Lei Federal nº 10.257/2001) e introduzido em Fortaleza pelo Plano Diretor Participativo
(2009), visa harmonizar o desenvolvimento da cidade e a realidade dessas comunidades.15
O Serviluz foi uma das comunidades que mais mobilizou pessoas para o processo
participativo de construção do Plano Diretor, tanto no âmbito do Executivo quanto do
Legislativo. Depois de aprovado o PDP, foram necessários dois anos de luta, com várias manifestações, para que, em junho de 2011, a prefeita assinasse decreto municipal
instituindo o Conselho Gestor da Zeis-Serviluz. De acordo com o decreto, o referido
conselho deveria ter sido instalado até o final de setembro de 2011. Porém, a Prefeitura
inviabilizou16 a eleição do Conselho Gestor ao qual o projeto deveria ser submetido,
desrespeitando o decreto (Decreto n° 12.830/2011, de 14 de junho de 2011) assinado
pela própria Chefe do Poder Executivo Municipal, por não aceitar a ingerência da comunidade no projeto Aldeia da Praia.17
Assim, moradores de diversas áreas do “bairro” decidiram dar continuidade ao
processo, contra o poder público local, e continuam organizados no conselho popular
discutindo o que querem e o que não querem para a “comunidade”, e forjam alternativas não institucionais de planejamento e gestão do seu território.
2.3 Povo indígena Anacé
Nos últimos anos, as comunidades que vivem em São Gonçalo do Amarante e Caucaia,
municípios da região metropolitana de Fortaleza, Ceará, vêm sendo impactadas pela
construção de uma série de empreendimentos na área de infraestrutura e indústrias
primárias, como siderúrgicas, termelétricas e refinaria, integrantes de um projeto denominado Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP) (Isso porque as áreas
destinadas a esses empreendimentos já era ocupada por inúmeras famílias, e começaram
a ser desapropriadas a partir de 1995).
15. As Zeis trazem três elementos fundamentais: 1. Definição de normas urbanísticas especiais a partir da realidade da
comunidade e não impostas contra estas; 2. Segurança jurídica da posse da comunidade sobre sua área, garantindo a
regularização fundiária e proibindo a expulsão/remoção; 3. Direito de os moradores participarem do planejamento e
gestão das intervenções necessárias na área, por meio de um Conselho Gestor com representantes da Prefeitura e da
comunidade eleitos por esta, evitando o autoritarismo estatal guiado por interesses econômicos, bem como o clientelismo
dos agentes políticos que escolhem como “representantes” da comunidade pessoas ligadas ao seu projeto de poder,
sendo que na maioria das vezes tais “lideranças” escolhidas não possuem legitimidade nenhuma junto à população local,
impondo a vontade governamental pela manipulação ao acesso a direitos universais.
16. A representante da prefeitura se retirou da comissão eleitoral e informou aos seus membros que não daria continuidade
ao processo de eleição do comitê gestor da Zeis.
17. Em maio de 2012, a Prefeitura de Fortaleza aprovou na Câmara de Vereadores projeto de lei complementar que
alterou o Plano Diretor de Fortaleza, passando a permitir que os proprietários solicitem a retirada dos terrenos vazios da
abrangência da Zeis de ocupação (Zeis-1). Fonte: Jornal O Povo, 25/05/2012. Disponível em: <http://www.opovo.com.br/
app/opovo/politica/2012/05/25/noticiasjornalpolitica,2845784/camara-altera-zeis.shtml>. Acesso em: 14 jul. 2012. Na
visão dos movimentos sociais, vide: <http://raizesdapraia.blogspot.com.br/search?updated-max=2012-07-11T10:19:0007:00&max-results=3>. Acesso em: 28 ago. 2012.
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A primeira onda das desapropriações, entre os anos de 1995 e 1999, teve como
saldo centenas de famílias expulsas da terra, sendo algumas alojadas nos assentamentos
de Novo Torém, Forquilha e Monguba, que se situam em outros municípios cearenses,
como Paracuru.
Esse processo, entretanto, não se deu sem resistência. Um grupo em especial, durante esse período de articulação e mobilização dos(as) moradores(as) de São Gonçalo
do Amarante e Caucaia, para permanecer nos território de seus pais e avós, passou a se
reconhecer como povo indígena Anacé,18 fazendo reviver histórias dos encantados, das
danças, dos rituais, das curas, dos massacres.
Logo após a instalação dos primeiros empreendimentos, houve uma suspensão na
onda de desapropriações nessa região. Impasses políticos e pressões de outros estados do
Nordeste para receber as indústrias acabaram “atrasando” a conclusão do CIPP.
Entretanto, em janeiro de 2007, o Governo Federal instituiu, por meio do Decreto
nº 6.025, de 22 de janeiro de 2007, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC),
o qual, segundo o artigo 1° do Decreto, constituía-se de medidas de estímulo ao investimento privado, ampliação dos investimentos públicos em infraestrutura e voltadas à
melhoria da qualidade do gasto público e ao controle da expansão dos gastos correntes
no âmbito da Administração Pública Federal.19
Com o apoio intensivo do Governo Federal, por meio dos recursos do PAC, o
projeto do Complexo Industrial e Portuário do Pecém foi retomado. Assim, de modo
a liberar a área para a implantação das indústrias, o governador do estado do Ceará
publicou, no Diário Oficial de 19 de setembro de 2007, o Decreto n° 28.883, o qual
declarou de utilidade pública para fins de desapropriação uma poligonal equivalente a
335 km2, entre os municípios de São Gonçalo do Amarante e Caucaia, área superior ao
projeto inicial do Complexo Industrial e Portuário.
18. Interessante destacar que, nesse mesmo período, moradores(as) de outras comunidades que não eram diretamente
impactadas com os projetos do Complexo Industrial e Portuário do Pecém passaram a reivindicar também como indígenas
da etnia Anacé. Essas comunidades, em articulação com a população Anacé, impactada pelo CIPP, passaram a lutar pelo
reconhecimento de um território contínuo que integra as aldeias de Japuara, Santa Rosa, Matões, Bolso e outras.
19. Conforme consta no endereço eletrônico oficial do Programa de Aceleração do Crescimento: “está em curso no Brasil
um modelo de desenvolvimento econômico e social, que combina crescimento da economia com distribuição de renda e
proporciona a diminuição da pobreza e a inclusão de milhões de brasileiros e brasileiras no mercado formal de trabalho.
A economia nacional reúne indicadores macroeconômicos e sociais positivos que apontam – como poucas vezes em
sua história – para a possibilidade de aceleração do crescimento econômico, mantendo a inflação em níveis baixos. A
política econômica do Governo Federal conseguiu estabilizar a economia, criar um ambiente favorável para investimentos,
manter o princípio da responsabilidade fiscal, reduzir a dependência de financiamento externo, ampliar substancialmente
a participação do Brasil no comércio internacional e obter superávits recordes na balança comercial. Agora é possível
caminhar em direção a um crescimento mais acelerado e de forma sustentável, uma vez que a economia brasileira tem
grande potencial de expansão. E tal desenvolvimento econômico deve beneficiar a todos os brasileiros e brasileiras
e respeitar o meio ambiente. O desafio da política econômica do Governo Federal é aproveitar o momento histórico
favorável do país e estimular o crescimento do PIB e do emprego, intensificando ainda mais a inclusão social e a melhora
na distribuição de renda. Para tanto, o Governo Federal criou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que tem
como um dos pilares, a desoneração de tributos para incentivar mais investimentos no Brasil”. Disponível em: <http://
www.brasil.gov.br/pac/medidas-institucionais-e-economicas/>. Acesso em: 12 ago. 2010.
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Revista Democracia e Participação
“Quem deu esse nó, não pode dar, esse nó tá dado, eu desato já!”: Movimentos populares
organizados em torno de direitos territoriais em meio a conflitos socioambientais no Ceará
Diante disso, iniciou-se uma nova fase de desapropriações na região de São Gonçalo do Amarante e Caucaia. Embora essa fase tenha sido levada a cabo pelos órgãos
estaduais de forma semelhante à ocorrida nos anos de 1996 a 1999, ou seja, sem
garantir o direito à informação às populações impactadas, diferenciou-se desta pela
resistência dos moradores, principalmente, daqueles que já se identificavam como
povo indígena Anacé.
Nesse sentido, diversas estratégias passaram a ser usadas pelo grupo étnico, tais como:
a) articulação com o movimento indígena estadual e nacional;20 b) articulação com outros
grupos e movimentos sociais impactados por projetos de desenvolvimento;21 c) pedidos
de realização de audiência pública perante a Assembleia Legislativa do Estado do Ceará;22
d) articulação com a Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares no Ceará
(Renap-CE), que passou a acompanhar as demandas do povo Anacé;23 e) articulações
com grupos de pesquisa e extensão das Universidades Estadual e Federal do Ceará (Grupo Grãos – UECE; Núcleo Trabalho, Meio Ambiente e Saúde para a Sustentabilidade
– Tramas e o Projeto de Extensão Centro de Assessoria Jurídica Universitária – Caju –
ambos da UFC); f ) formulação de representações junto ao Ministério Público Federal
(MPF) no Ceará, que passou a acompanhar, por meio do analista pericial em Antropologia, os conflitos e as demandas do povo Anacé, com mais proximidade;24 g) ouvir
20. Nesse sentido, em 22 de setembro de 2007 ocorreu a I Assembleia do Povo Indígena Anacé, a qual reuniu os povos
Tapeba, Pitaguary, Potiguara, Tabajara, Tremembé, Xucuru Kariri e Anacé para discutir o tema “Terra e impacto ambiental”,
oportunidade em que foram analisados os inúmeros empreendimentos que estão instalados em terras indígenas, em
especial, construção de estradas, usinas siderúrgicas, transposição do Rio São Francisco, entre outras.
21. Mencionamos, exemplificativamente, o II Seminário Brasileiro contra o Racismo Ambiental, realizado em 23 a 25 de
março de 2009, em Fortaleza/CE. Na oportunidade, os(as) pesquisadores(as) e movimentos sociais articulados em torno
da Rede Brasileira de Justiça Ambiental se dirigiram a São Gonçalo do Amarante e Caucaia para conhecer a dimensão
dos impactos socioambientais do CIPP e se solidarizarem com a luta Anacé. O caso do Povo Anacé aqui retratado
está mapeado no Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, disponível em: <http://www.conflitoambiental.icict.
fiocruz.br/index.php?pag=selecao&cod=45>; acesso em: 15 set. 2010. “Este Mapa de conflitos envolvendo injustiça
ambiental e Saúde no Brasil é resultado de um projeto desenvolvido em conjunto pela Fiocruz e pela Fase, com o apoio
do Departamento de Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde. Seu objetivo maior é, a partir de
um mapeamento inicial, apoiar a luta de inúmeras populações e grupos atingidos(as) em seus territórios por projetos e
políticas baseadas numa visão de desenvolvimento considerada insustentável e prejudicial à saúde por tais populações,
bem como movimentos sociais e ambientalistas parceiros”. Informação disponível em: <http://www.conflitoambiental.
icict.fiocruz.br/index.php>; acesso em: 15 set. 2010.
22. Cita-se, nesse sentido, a audiência pública realizada na Assembleia Legislativa, em 9 de março de 2009, que contou
com a presença dos índios Anacé, do chefe do Núcleo de Apoio Local da Funai, do Presidente da Comissão de Direitos
Humanos da Assembleia Legislativa e de Procuradores da República no Ceará.
23. Por meio da Rede Nacional de Advogados(as) Populares (Renap), Luciana Nóbrega, que compunha a Rede, passou
a acompanhar as demandas do povo indígena Anacé, a partir de setembro de 2008, quando ocorreu a II Assembleia
do Povo Indígena Anacé. O trabalho desempenhado em conjunto com o grupo étnico consistia em uma assessoria ao
movimento indígena, englobando a solicitação de audiências públicas, o acompanhamento de processos administrativos
perante o Ministério Público Federal no Ceará, participação de reuniões, assembleias e outros momentos de articulação
do movimento. Esse contato anterior de uma das pesquisadoras com os Anacé permitiu-nos ter acesso às informações
necessárias para compreender a dimensão do conflito envolvendo o povo indígena e o Complexo Industrial e Portuário.
24. Ilustrando a afirmação, dos anos de 2003 a 2009 foram apresentadas pelos índios Anacé 13 representações,
denúncias e solicitações perante o Ministério Público Federal no Ceará, originando 13 processos administrativos que
tramitam perante o Parquet federal. Dados disponíveis em: <http://www2.prce.mpf.gov.br/prce/pr/pesquisaprocessual/
pesquisa-processual/>, utilizando a palavra-chave “anacé”. Acesso em: 20 ago. 2010.
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Martha Priscylla Monteiro Joca Martins | Luciana Nogueira Nóbrega | Jacqueline Alves Soares
os mais velhos e reescrever sua própria história, retomando práticas e memórias que
haviam sido encobertas pelo medo da discriminação;25 h) incorporação das reflexões
socioambientais, passando a demonstrar outras formas de desenvolvimento possíveis,
levadas a cabo pela produção de hortaliças, pelo manejo sustentável de folhas, raízes e
sementes para a produção de remédios caseiros; i) pela construção da Escola Diferenciada Direito de Aprender do Povo Anacé; entre outras.
Tendo em vista a pressão para a continuidade das obras do CIPP e a iminência
de novas desapropriações, o Ministério Público Federal no Ceará ajuizou, em 10 de
dezembro de 2009, a Ação Civil Pública n° 0016918-38.2009.4.05.8100, perante a
10ª Vara Federal no Ceará, questionando as irregularidades na implantação do CIPP,
requerendo tutela jurisdicional no sentido de determinar ao Estado do Ceará que: a) se
abstenha de realizar qualquer ato desapropriatório na área reivindicada pelos Anacé; b)
se abstenha de proceder à remoção de indivíduos; c) não se executem quaisquer obras
na área decorrentes de licenças prévias ou de licenças de instalação, como medida de
resguardo do território Anacé frente à implementação dos projetos do CIPP; d) que seja
assegurada a continuidade dos trabalhos de identificação, delimitação e demarcação da
Terra Indígena Anacé.
Ao analisar a petição inicial ajuizada pelo MPF, o juiz federal entendeu pela necessidade de ouvir diversos entes. Dentre eles, a Companhia Siderúrgica do Pecém ressaltou a importância do CIPP, aduzindo tratar-se do “maior projeto de desenvolvimento
do estado do Ceará”. Com base nesses argumentos, em janeiro de 2010, proferiu-se
decisão no sentido de indeferir o pedido liminar formulado pelo Ministério Público Federal, entendendo o juiz federal que haveria, no caso, dano maior à economia do estado, pois “a suspensão da implantação dos empreendimentos já licenciados implicaria o
retardamento da alavancagem do desenvolvimento do estado, traduzido no adiamento/
impedimento da elevação da produção industrial”. (JUSTIÇA FEDERAL. Processo nº
0016918-38.2009.4.05.8100, 2010).
Pelo que foi colhido durante o trabalho de campo e reforçado pelas petições
do Ministério Público Federal, a relação dos Anacé com o território habitado tradicionalmente contrapõe-se ao Complexo Industrial e Portuário do Pecém, como
território portuário regional e industrial metropolitano, atendendo à lógica de reprodução ampliada do capital mundial. O que está em jogo nesse conflito não é
só o domínio sobre o território, seja ele identificado como propriedade ou como
posse, mas, principalmente, um projeto que define o uso desse território e os seus
elementos socioambientais. Em outras palavras, os conflitos que envolvem a cons-
25. Dentre essas práticas que foram retomadas, uma em especial merece atenção. Trata-se da retomada da dança de
São Gonçalo, que havia ficado 19 anos sem ser feita. Em 2007, o grupo de dança Anacé recebeu o prêmio Culturas
Indígenas, edição Xicão Xucuru, outorgado pelo Ministério da Cultura, por meio da Secretaria da Identidade e da
Diversidade Cultural.
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organizados em torno de direitos territoriais em meio a conflitos socioambientais no Ceará
trução do CIPP e os Anacé se situam, sobretudo, no campo do simbólico, da definição de modelos de desenvolvimento que se traduzem nas formas de produzir e
gerir os recursos naturais.
Um dos principais exemplos disso diz respeito à água. Como relatado nos documentos que instruem a ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal, as
ações previstas no Plano Diretor do CIPP mostram-se danosas ao meio ambiente e às
atividades de usufruto da etnia Anacé. Como a quase totalidade dos empreendimentos
industriais encontra-se inserida na área de maior diversidade de ecossistemas e pressupõe a degradação de dunas, isso tende a prejudicar a drenagem superficial da área
ocupada pelos índios, bem como a qualidade e disponibilidade do lençol freático da
região, com reflexos diretos na utilização da água para consumo, irrigação e atividade
pesqueira, essencial à sobrevivência do povo indígena Anacé (MEIRELES; BRISSAC;
SCHETTINO, 2009).
Para os Anacé, não sendo apenas utilizada para atividades produtivas (irrigação,
atividade pesqueira), a “fartura de água, água doce, água boa” no território por eles
reivindicado é considerada uma das suas principais riquezas. Riqueza em um estado
carente desse recurso natural. Mas não só. Os corpos d’água (lagoas, lagos, riachos) para
os Anacé não são apenas “recursos”, coisas à nossa disposição. São seres e/ou morada de
entes ou “morada dos encantados”, tão conhecidos nas histórias e na memória dos Anacé, seja no massacre na Lagoa do Banana, seja no chamado por eles de “Pai Lagamar”,26
seja nas histórias de “mães d’água”, ou nos espaços de lazer e socialização. Essas lagoas,
riachos, lagos estão agora ameaçados por um projeto de desenvolvimento incompatível
com essas histórias e memórias, alicerces da identidade Anacé.
3 “TERRITORIALIDADES CONVERGENTES”: UM DIÁLOGO POSSÍVEL ENTRE
ESSAS EXPERIÊNCIAS DE RELAÇÕES TERRITORIAIS
O que esses três casos têm em comum? Curral Velho, comunidade do Serviluz e povo
Anacé trazem em suas histórias expressões do conflito entre modelos distintos de pensar as relações com o território. Nas três breves narrativas, restou claro que, mesmo
oriundas de espaços sociais distintos, essas expressões de territorialidades se convergem
quando contrapostas ao modelo hegemônico de uso e apropriação dos espaços: um modelo socioambientalmente excludente e que busca a exaustão dos recursos. Um modelo
pensado e proposto como o único possível.
Quando esses movimentos, entretanto, colocam na arena da disputa e do debate
outras possibilidades de gestão dos territórios, de relação com os recursos, eles trazem à
26. Pai Lagamar” corresponde a uma área de preservação ambiental, composta por lagoas que se encontram com o mar,
repleto de carnaubeiras.
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tona uma fissura na lógica moderna ocidental, deixando claro que há outras possibilidades e que elas estão sendo gestadas à luz do dia.
Sobretudo a partir da década de 1980 e 1990, diversos movimentos e grupos sociais
emergiram na esfera pública reivindicando direitos ao território e o reconhecimento de
suas identidades coletivas. Autores, sobretudo do campo da Antropologia (ALMEIDA,
2008; LITTLE, 2002; OLIVEIRA, 1998), tratam desse processo de emergência política de sujeitos que tinham suas diferenças culturais negadas e sufocadas pelo processo de
colonização, pelas sucessivas frentes de expansão econômica do capital sob a ideologia
do desenvolvimento do país e pela própria ideia de nação construída à fina força pelo
Estado brasileiro.
O processo de modernização do Brasil trouxe também consigo valores e conceitos
de uma ordem político-jurídico-filosófica, produto das revoluções liberais na Europa
como a noção de “Estado-nação” que vai ser determinante na tentativa de consolidação
da ideia de um território e cultura homogêneos, causa e resultado da hodierna injustiça
e exclusão socioterritorial existente no país. A ideia de Estado-nação – simploriamente
traduzida como organização social e política de um povo (unidade biológica e cultural), dotada de um território (área geográfica delimitada) e de soberania (poder que se
dá para unificar o povo no interior desse território e afastar ameaças do que lhe fosse
“exterior”) nada mais é do que uma “invenção”, um “artefato” histórico e recente que
“toma culturas preexistentes e as transforma em nações, algumas vezes as inventa e frequentemente oblitera as culturas preexistentes” (HOBSBAWN, 1990 apud DUPRAT,
2007, p. 12-13).
Assim, mesmo que a ideologia do Estado-nação tenha conseguido sua implantação no Brasil e na América Latina, apoiada em teorias e práticas que negavam/
exterminavam as diferenças socioculturais, resistências de grupos sociais específicos
como índios e negros demonstraram ao longo da história e dos sucessivos processos
de territorialização (OLIVEIRA, 1998) uma rica diversidade sociocultural não reconhecida pelo Estado brasileiro.
Resultado das contradições do próprio desenvolvimento do capitalismo antes de
se remeter a resquícios de formações sociais pré-capitalistas (ALMEIDA, 2008, p. 98),
esses diversos processos de expansão de fronteiras desde o Período Colonial, passando
pelo Império e República, produziram e levaram à constituição de grupos sociais, que,
sobretudo, lutam pela defesa e controle de suas áreas e suas formas próprias de existir,
contra os avanços da acumulação capitalista que buscam a apropriação de suas terras e
dos sistemas ambientais presentes em seus territórios.
Os territórios desses grupos sociais, como os pescadores, seringueiros, quilombolas, faixinaleses, fundos de pasto, entre tantos outros, que compartilham de algumas
características semelhantes (e também diversas) como as práticas comunitárias e uso
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organizados em torno de direitos territoriais em meio a conflitos socioambientais no Ceará
comum dos recursos, têm existência efetiva e constituem realidades bem diferentes dentro do território nacional que historicamente foram tornadas invisíveis pelas pretensões
oficiais de homogeneidade político-cultural.
Esses grupos sociais que surgiram no passado contrapondo-se ao modelo agrário
exportador, à escravidão, ao monopólio da terra, em nossa história recente e hodiernamente, continuam emergindo diante das sucessivas investidas de espoliação.
O economista Henri Acselrad (2008) comenta que, sobretudo depois do pós-guerra,
grandes projetos de apropriação do espaço implementados pelo Estado desenvolvimentista articularam-se com a implantação de uma complexa estrutura industrial espacialmente
concentrada. Tal modelo implicou uma importante ampliação dos espaços integrados à
dinâmica do desenvolvimento capitalista (grandes obras de infraestrutura, grandes barragens, projetos de mineração e irrigação para agroindustialização), em um processo de
crescimento que se apoiou na concentração da renda e no esforço exportador.
Ainda segundo o mesmo autor, a concentração da posse sobre os elementos da
base material da sociedade por meio de grandes projetos de apropriação do espaço e
do meio ambiente material produziu grandes impactos e efeitos de desestruturação de
ecossistemas, ao mesmo tempo em que os pequenos produtores, populações ribeirinhas
e deslocados compulsórios foram concentrados em áreas exíguas, com terras menos
férteis, intensificando ritmos da exploração de suas áreas, ocasionando, por ambos os
processos conjugados, perda de biodiversidade, comprometimento de disponibilidade
de água, da fertilidade dos solos etc.
Nos anos de 1990, transformações socioterritoriais associadas ao processo de inserção subordinada do Brasil na dinâmica modernizadora e globalizante foram caracterizadas por uma dinâmica constante de destruição e reconstrução de territórios que
gerou/gera inúmeros conflitos que apontam para mudanças nos modos dominantes de
apropriação do meio biofísico, com a acentuação dos padrões de desigualdade de poder
sobre os recursos ambientais.
Oprimidos e despossuídos passaram a denunciar e a reivindicar no espaço público
maior acesso aos recursos como água, terra fértil, estoques pesqueiros etc., denunciando o comprometimento de suas atividades pela queda da produtividade dos sistemas
biofísicos de que dependiam e pelo aumento do risco de perda de durabilidade da base
material necessária à sua reprodução sociocultural, constituindo movimentos sociais e
se (re)territorializando por meio das estratégias de resistência.
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Resultados dos processos de territorialização27, o(s) território(s) garantido(s) por
esses grupos, ora definido(s) como “territórios sociais” (LITTLE, 2002), ora como “territorialidades específicas” (ALMEIDA, 2008), é produto, em resumo, da espacialização
das relações de poder28, dos conflitos, “apresentando delimitações mais definitivas ou
contingenciais, dependendo da correlação de força em cada situação social de antagonismo” (p.51) sendo verdadeiros territórios dissidentes enquanto expressões de práticas
espaciais insurgentes29 (SOUZA, 2009a, p. 67).
A disputa pelo espaço, que não se reduz à reivindicação por terra, justifica-se no
fato de que um projeto transformador de sociedade deve abranger a dimensão espacial,
pois se entende que esta não é só produto social, mas também é condicionante da própria produção e reprodução social. Construir outras geografias também é ter possibilidade de instituir formas alternativas aos fundamentos ecológicos, espaciais e culturais do
capitalismo ou, como definiu David Harvey defendendo sua ideia de espaços utópicos
ou “de esperança”, “transcender ou reverter às formas socioecológicas impostas pela
acumulação descontrolada do capital, pelos privilégios de classe e pelas amplas desigualdades de poder político-econômico” (HARVEY, 2006, p. 262).
A reivindicação pelo direito ao território por parte desses grupos sociais faz parte
de uma luta política democrática que visa ao reconhecimento de suas formas de organização como fonte de poder (inclusive normativo), diante de relações sociais desiguais
e opressoras em que o Estado é, na visão hegemônica, a única fonte de direitos.30
27. Segundo Alfredo Wagner: “o processo de territorialização é resultante de uma conjunção de fatores, que envolvem a
capacidade mobilizatória, em torno de uma política de identidade, e um certo jogo de forças em que os agentes sociais,
através de suas expressões organizadas, travam lutas e reivindicam direitos face ao Estado. As relações comunitárias
neste processo também se encontram em transformação, descrevendo a passagem de uma unidade afetiva para uma
unidade política de mobilização ou de uma existência atomizada para uma existência coletiva. A chamada “comunidade
tradicional” se constitui nesta passagem. O significado de “tradicional” mostra-se, deste modo, dinâmico e como um
fato do presente, rompendo com a visão essencialista e de fixidez de um território, explicado principalmente por fatores
históricos ou pelo quadro natural, como se a cada bioma correspondesse necessariamente a uma certa identidade. A
construção política de uma identidade coletiva, coadunada com a percepção dos agentes sociais de que é possível
assegurar de maneira estável o acesso a recursos básicos, resulta, deste modo, numa territorialidade específica que é
produto de reivindicações e de lutas. Tal territorialidade consiste numa forma de interlocução com antagonistas e com o
poder do Estado” (ALMEIDA, 2008, p. 119).
28. Segundo os ensinamentos do geógrafo Marcelo Lopes de Souza (2009a), o que define o território é, em primeiro
lugar, o poder. Isso não quer dizer, todavia, que a cultura (o simbolismo, as identidades), a economia (trabalho,
produção e circulação de bens), ou a geoecologia (os recursos naturais que contém determinada área) não sejam
relevantes. Esses aspectos, inclusive, são de fundamental importância para a gênese de um território ou do interesse
por tomá-lo ou mantê-lo, mas o verdadeiro motivo condutor do território é o exercício de poder: “quem domina ou
influencia e como domina ou influencia esse espaço?”. Ainda segundo este autor, isso ficaria evidente, por exemplo,
que um processo de territorialização/ desterritorialização mesmo tendo a ver com desenraizamento cultural ou na
privação e acesso a recursos e riquezas, mas é sempre, um processo que envolve o exercício das relações de poder e
a projeção dessas relações no espaço.
29. Vale destacar que os territórios dissidentes não são resultados diretos de “identidades específicas” ou de questões
decorrentes da etnicidade apenas, mas de processos políticos definidos por meio de ações coletivas que podem envolver
também grupos urbanos como sem-tetos, movimento hip-hop, piqueteiros etc. (o que não quer dizer também que esses
grupos não se mobilizem contra etnocentrismos).
30. Essa luta, todavia, não descarta as possibilidades de ganhos institucionais no interior da sociedade burguesa-modernaocidental, inscrevendo novos direitos na lei, disputando o poder simbólico do direito de dizer o direito (BOURDIEU, 2010).
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organizados em torno de direitos territoriais em meio a conflitos socioambientais no Ceará
Enfatizar a dimensão política do território é buscar inverter as relações assimétricas de
poder que são impostas à vida de cima para baixo. O direito ao território visa, mais que
o direito à “terra” (substrato material apropriável enquanto mercadoria representado
juridicamente pelo instituto da propriedade) e aos recursos naturais nele inseridos, a
autonomia enquanto capacidade do grupo de autogerir-se, ou “dar a si a própria lei”
(SOUZA, 2009a, p. 68).
Nesses territórios, o controle do uso de seus recursos se dá por meio de normas
específicas que são compartilhadas entre os participantes em condições de igualdade.
Segundo o antropólogo Alfredo Wagner:
Tal controle se dá através de normas específicas, combinando uso comum
de recursos e apropriação privada de bens, que são acatadas, de maneira
consensual, nos meandros das relações sociais estabelecidas entre vários
grupos familiares, que compõem uma unidade social. Tanto podem expressar
um acesso estável à terra, como ocorre em áreas de colonização antiga,
quando evidenciam formas relativamente transitórias características das
regiões de ocupação recente. Tanto podem se voltar prioritariamente para
a agricultura, quanto para o extrativismo, a pesca ou o pastoreio realizados
de maneira autônoma, sob a forma de cooperação simples e com base no
trabalho familiar. As práticas de ajuda mútua, incidindo sobre recursos
naturais renováveis, revelam um conhecimento aprofundado e peculiar
dos ecossistemas de referência. A atualização dessas normas ocorre, assim,
em territórios próprios, cujas delimitações são socialmente reconhecidas,
inclusive pelos circundantes (ALMEIDA, 2008, p. 29).
Em condições de liberdade, todos estão submetidos ao poder que emana da coletividade, que vem sendo repassado de gerações em gerações através dos costumes, e todos
são obrigados moralmente a respeitar as regras de cuja construção ele também fez parte.
Essas relações mudam quando esse grupo é colocado numa posição de total heteronomia, ou seja, desigualdade de poder diante de outros sujeitos como quando verificado
numa presença concreta do Estado e dos seus projetos de “desenvolvimento”.
O direito ao território visa garantir que os próprios sujeitos decidam de forma
autônoma que modelos e sentidos de desenvolvimento querem para si coletivamente,
abertos a possibilidades inclusive de o elegeram segundo visões antimodernas e anticapitalistas. Os direitos territoriais, assim como Souza tratou em relação ao desenvolvimento subordinado ao princípio da autonomia, reclama notoriamente uma espacialização.
O espaço social (resultado, em sua dimensão tangível, da transformação da
natureza, ou do espaço natural, pelo trabalho, dimensão essa a qual devem ser
acrescentadas as leituras subjetivas e intersubjetivas) não é um epifenômeno.
O espaço, produto social, é um suporte para a vida em sociedade e, ao
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mesmo tempo, um condicionador dos projetos humanos; um referencial
simbólico, afetivo e, também, para a organização política; uma arena de
luta; uma fonte de recursos (sendo a própria localização geográfica, que é
algo essencialmente relacional, um recurso a ser aproveitado). A autonomia
de uma coletividade traz subentendida uma territorialidade autônoma, ou
seja, a gestão autônoma, por parte da coletividade em questão, dos recursos
contidos em seus territórios, que é o espaço por ela controlado e influenciado
(SOUZA, 1996, p. 11).
Isso não quer dizer, por sua vez, que haja a completa separação, independência e
isolamento diante do mundo, hoje global, mas, como horizonte político-jurídico possível, a autonomia garantida pela concretização de direitos territoriais31 é a melhor via
para gerir democraticamente os conflitos entre distintas territorializações por meio do
seguinte princípio ético-político: “a autonomia de uma coletividade cessa de ser legítima a partir do momento em que se constrói às custas da autonomia de outra coletividade” (SOUZA, 1996, p. 10).
4 A LUTA PELO TERRITÓRIO NA COMPREENSÃO DOS MOVIMENTOS:
APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS COM O DIREITO ESTATAL
Ponto central nas discussões travadas neste artigo diz respeito aos instrumentos de luta
de que essas populações se valem para se manter no território, para fazer frente a um
modelo de desenvolvimento. Um desses instrumentos destacados aqui é o que chamamos de direitos territoriais. Mas como a legislação estatal o alberga?
No Brasil, há múltiplos instrumentos legais já consolidados no que se refere à posse
e à propriedade de uma determinada gleba. No que se refere a essas territorialidades
convergentes ou dissidentes, ainda estamos tateando no escuro.
Há uma dificuldade de encaixar plenamente as propostas trazidas pelos movimentos que ora se aproximam de uma propriedade coletiva, ora se distanciam, quando, por
exemplo, apenas reivindicam usufruto de determinado recurso (aqui nos referimos à
demanda de alguns movimentos de quebradeiras de coco babaçu ou de castanheiros).
Algumas dessas territorialidades já estão mais bem consolidadas, como é o caso do direito à terra tradicionalmente ocupada para os povos indígenas. Mas o fato de existirem 14
etnias no estado do Ceará e mais de 13 mil indígenas e apenas uma terra demarcada até
31. Refletimos sobre a possibilidade de nos referirmos ao direito ao território ou a direitos territoriais. Reconhecendo não
só a multiplicidade de significados dados aos territórios, mas também a direitos plurais, caleidoscópicos e interconectados
que se ligam à defesa, garantia e proteção do território, como o uso e acesso às fontes naturais, à mobilidade, à
alimentação, à cultura, à religião, à autonomia ligada às escolhas de modos de existência e sentidos do que se cunhou
de desenvolvimento, dentre outros, preferimos, aqui, como resultado de nossos diálogos na feitura deste artigo, utilizar a
expressão direitos territoriais.
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Revista Democracia e Participação
“Quem deu esse nó, não pode dar, esse nó tá dado, eu desato já!”: Movimentos populares
organizados em torno de direitos territoriais em meio a conflitos socioambientais no Ceará
os dias atuais deixa claro que esse tema ainda não é bem resolvido, embora haja previsão
dessa garantia de reserva às terras indígenas desde 1680.32
No que se refere às populações tradicionais, no Brasil, não há ainda um marco
jurídico definindo o direito à terra e ao território dessas populações. Embora defendamos que elas também são sujeitos dos direitos assegurados pela Convenção nº 169 da
OIT, que assegura em seus dispositivos o direito à terra, inexiste uma regulamentação
específica para o reconhecimento dos territórios das populações tradicionais, diferindo,
portanto, do que ocorre com indígenas e quilombolas. Assim, acaba-se recorrendo à lei
que cria o sistema nacional de unidades de conservação, como forma de assegurar os
seus territórios. O acesso à terra e o reconhecimento do direito ao território passa a ser
assegurado, desse modo, como medida de conservação.
A Lei n° 9.985, de 18 de julho de 2000, que instituiu o Sistema Nacional de
Unidades de Conservação (SNUC), combinada com o Decreto n° 6.040, de 7 de
fevereiro de 2007, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável
dos Povos e Comunidades Tradicionais, entretanto, exige a afirmação de que essas
populações sejam “tradicionais” para merecer guarida legal. Dizer quais são as populações “verdadeiramente tradicionais”, garantindo a estas uma proteção jurídica
específica, faz pensar sobre a racionalidade que nega à maioria da população brasileira
de baixa renda do meio rural e urbano o reconhecimento de uma cultura distinta e as
associações possíveis entre essa racionalidade e a “autorização” de expulsar e deslocar
essas comunidades, ou inviabilizar seus modos de vida por questões ambientais, a fim
de promover a reprodução do capital e/ou o desenvolvimento nacional, assim como
as interconexões existentes entre esse não reconhecimento e lógicas subjacentes à permanência da estrutura fundiária brasileira.33
Investigar essas plurirrealidades é importante para vários ramos do conhecimento,
não para definir as populações e grupos como indígenas, quilombolas, tradicionais ou
32. Aqui nos referimos ao Alvará Régio de 1680 que estabelecia o instituto do indigenato, que assegurava a reserva de
terras aos indígenas, “naturais e senhores delas”.
33. O conceito de população tradicional era estabelecido no artigo 2°, XV, do Projeto de Lei do SNUC como “Grupos
humanos culturalmente diferenciados, vivendo há, no mínimo, três gerações em um determinado ecossistema, historicamente
reproduzindo seu modo de vida, em estreita dependência do meio natural para sua subsistência e utilizando os recursos
naturais de forma sustentável”. O dispositivo, contudo, foi vetado. Na Mensagem n° 967, de 18 de julho de 2000, enviada
pelo Presidente da República ao Congresso Nacional, restaram consignadas as razões do veto, no seguinte sentido: “o
conteúdo da disposição é tão abrangente que nela, com pouco esforço de imaginação, caberia toda a população do Brasil”.
A mensagem também enuncia que: “De fato, determinados grupos humanos, apenas por habitarem continuadamente em um
mesmo ecossistema, não podem ser definidos como população tradicional, para os fins do Sistema Nacional de Unidades de
Conservação da Natureza. O conceito de ecossistema não se presta para delimitar espaços para a concessão de benefícios,
assim como o número de gerações não deve ser considerado para definir se a população é tradicional ou não, haja vista
não trazer consigo, necessariamente, a noção de tempo de permanência em determinado local, caso contrário, o conceito
de populações tradicionais se ampliaria de tal forma que alcançaria, praticamente, toda a população rural de baixa renda,
impossibilitando a proteção especial que se pretende dar às populações verdadeiramente tradicionais”. (Mensagem n° 967 de
18 de julho de 2000. In: CONSELHO NACIONAL DA RESERVA DA BIOSFERA DA MATA ATLÂNTICA. SNUC Sistema Nacional de
Unidades de conservação: texto da Lei 9.985, de 18 de julho de 2000, e vetos da Presidência da República ao PL aprovado pelo
Congresso Nacional. 2. ed. São Paulo: Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, 2000. Cadernos, n. 18).
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de outro tipo, mas sim para criar uma ambiência favorável para que essas populações e
grupos possam expressar suas identidades. Nesse sentido, há de se buscar elaborar essas
definições em conjunto com essas populações.
O artigo 1º, VIII, do Decreto n° 6.040/2007 determina que as ações e atividades
voltadas para o alcance dos objetivos da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPTC) deverão observar o reconhecimento e a consolidação dos direitos dos povos e comunidades tradicionais; e o art. 3°
e incisos I e V do Decreto exprimem como objetivos específicos da PNPCT garantir
aos povos e comunidades tradicionais seus territórios e o acesso aos recursos naturais
que tradicionalmente utilizam para sua reprodução física, cultural e econômica (I); e
garantir os direitos dos povos e das comunidades tradicionais afetados direta ou indiretamente por projetos, obras e empreendimentos (V).
A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, adotada pelo Brasil
pelo Decreto 5.051, de 19 de abril de 2004, traz dois dispositivos importantes para
compreensão dos direitos enunciados aqui. Trata-se do artigo 15
1. Os direitos dos povos interessados aos recursos naturais existentes nas suas
terras deverão ser especialmente protegidos. Esses direitos abrangem o direito
desses povos a participarem da utilização, administração e conservação dos
recursos mencionados.
e do artigo 13
1. Ao aplicarem as disposições desta parte da Convenção, os governos deverão
respeitar a importância especial que para as culturas e valores espirituais dos
povos interessados possui a sua relação com as terras ou territórios, ou com
ambos, segundo os casos, que eles ocupam ou utilizam de alguma maneira e,
particularmente, os aspectos coletivos dessa relação.
Ademais, há de se atentar também para aspectos que devem ser problematizados
da Lei do SNUC. Esta determina que, em sendo necessário, sejam desapropriadas áreas
particulares incluídas nos limites dos tipos de unidades (art. 18, § 1°; art. 20, § 2°). O
artigo 18, § 1º, declara que a reserva extrativista é de domínio público, e o artigo 23 da
Lei do SNUC institui que a posse e o uso das áreas ocupadas pelas populações tradicionais nas reservas extrativistas e reservas de desenvolvimento sustentável serão regulados
por contrato. Ademais, o art. 18, § 2º da referida Lei determina que a
Reserva Extrativista será gerida por um Conselho Deliberativo, presidido pelo
órgão responsável por sua administração e constituído por representantes
de órgãos públicos, de organizações da sociedade civil e das populações
tradicionais residentes na área [...].
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Revista Democracia e Participação
“Quem deu esse nó, não pode dar, esse nó tá dado, eu desato já!”: Movimentos populares
organizados em torno de direitos territoriais em meio a conflitos socioambientais no Ceará
Assim, as desapropriações que fossem necessárias de pequenas propriedades, o
contrato e a existência do Conselho Deliberativo, as possíveis interferências nas relações
de posses individuais e familiares porventura existentes, dentre outras questões, trariam
uma dinâmica que provocaria mudanças na relação da comunidade com o território.
Conforme se percebeu, a instituição de uma unidade de conservação é um caminho, uma possibilidade, para ver assegurado o direito ao território das comunidades
tradicionais. Mas esse reconhecimento não se dá sem restrições ou condicionantes
àquilo que eles vivenciam. Normatizar essa realidade é uma tarefa que pode trazer
implicações sérias às múltiplas relações tecidas com o território, principalmente se
essa normatização representa uma generalização de um dado localismo (de um movimento específico), podendo ainda ensejar, com a instituição do conselho da unidade
de conservação e o plano de manejo, modos de controle externo sob as formas de
representação comunitária.
Os artigos 215 e 216 da Constituição Federal de 1988 trazem importantes normatizações em relação ao direito à cultura e podem também servir de esteio para interpretações sobre a proteção jurídica devida pelo Estado às expressões culturais, saberes e
fazeres tradicionais vivenciados por essas comunidades, promovendo, assim, a proteção
à sociodiversidade brasileira.
Do ponto de vista da proteção do território de comunidades urbanas, apesar de
vasta legislação que prevê o direito à moradia e à cidade dessas populações (Art. 5° da
Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Cidade, Lei Federal n° 10. 257/2001)
a possibilidade de regularização fundiária, quando esta ocorre,34 traz uma perspectiva
politicamente limitada, pois visa inserir os territórios considerados ilegais/irregulares
na cidade formal, numa espécie de subsunção à norma (e à cidade) dominante. Alguns
estudos, inclusive, têm questionado certa visão de mercado que tem influenciado as
práticas de regularização fundiária enquanto capitalização de uma camada social que ao
adquirir a “propriedade” passa a ser consumidora em potencial, a exemplo das políticas
incentivadas por instituições como o Banco Mundial. Mesmo que tais instrumentos
se tornem, por vezes, estratégicos para garantir a permanência desses territórios quando ameaçados de deslocamentos compulsórios, a ideia de regularização e segurança
da posse não escapa à hegemonia do conceito de propriedade do direito estatal e suas
possibilidades ficam reduzidas, grosso modo, ao usucapião (se propriedade privada) e a
concessão de uso (se propriedade do Estado).
As ZEIS parecem ampliar essa perspectiva rumo à autonomia, pois prevê que, por
meio do conselho gestor, a comunidade decida sobre a gestão do seu território (tamanho
34. Normalmente, o processo de regularização fundiária trava devido à burocracia das instituições do Estado. Quando
ocorre, dificilmente chega ao fim e contempla todas as dimensões: social, jurídica, urbanística e ambiental. Há pelo menos
oito anos, o Serviluz aguarda a prometida regularização fundiária. Mesmo sendo a área de propriedade da União Federal,
o que se supõe menos conflitos de interesses e mais agilidade, a burocracia travou completamente o processo.
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Martha Priscylla Monteiro Joca Martins | Luciana Nogueira Nóbrega | Jacqueline Alves Soares
nas unidades habitacionais, proibição de venda dos imóveis), além de forçar a redução
do preço da terra, afastando a especulação imobiliária. No entanto, esse instrumento
tem enfrentado fortes resistências para sua efetivação, como visto no caso do Serviluz.
Encontrando dificuldades de lançar mão dos instrumentos legais existentes para
garantir a permanência desses territórios, movimentos populares locais organizam processos de reterritorialização, conquistando novos espaços por meio de ocupações urbanas, questionando o direito de propriedade e as políticas habitacionais oficiais, instituindo outras fontes de direitos.
A percepção da relação desses povos e populações com o território que ocupam
faz emergir, também, reflexões acerca da compreensão do espaço sob a perspectiva da
propriedade. Esta é marcada pela historicidade. Seus sentidos podem advir tanto de interpretações à Constituição quanto do seio de populações organizadas em movimentos
populares, como proponentes de Direito Insurgente e fonte de produção jurídica em
um pluralismo jurídico, sobre o qual Boaventura de Sousa Santos delineia importantes
pistas investigativas:
Em primer lugar, trato de demostrar que el campo del derecho em las
sociedades contemporâneas y em el sistema mundo em su totalidade es um
terreno mucho más complejo y rico de lo que se há assumido por la teoria
política liberal. Em segundo lugar me proponho demostrar que un campo
jurídico así es uma constelación de diversas legalidades (e ilegalidades) que
peran em escalas locales, nacionales y globales [...].La supremacia de la escala
del Estado-nación em el análisis sociojurídico no solo contribuyó a estrechar
el concepto de derecho al vincularlo com la autoridade del Estado, sino que
también impregnó ciertas concepciones del pluralismo jurídico com uma
ideologia del derecho europeo. Este derecho, em cuanto orden estatal, no era
ni empírica ni historicamente el único vigente em los territórios coloniales.
Sin embargo, el pluralismo jurídico utilizado como técnica de governo
permitió el ejercicio de la soberania colonial sobre los diferentes grupos
(étnicos, religiosos, nacionales, geográficos, etc.), reconociendo los derechos
precoloniales para manipularlos, subordinallos e ponerlos al serviocio del
proyecto colonial. El reconocimiento de los derecho stradicionales por parte
del derecho colonial europeo implica uma noción del derecho que, em última
instancia, está sustentada em uma única fuente de validez que determina com
exclusividade lo que debe ser considerado como derecho. Em esse sentido,
también el pluralismo jurídico puede ser uma de las formas mediante las
cuales se maniesta la ideologia del centralismo jurídico. Esa concepción
del pluralismo jurídico es, hoy em día, uno de los principales legados que
la expansión europea dejó a los sistema jurídicos nacionales no europeos.
De esta forma, el processo de construcción nacional em las cociedades que
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Revista Democracia e Participação
“Quem deu esse nó, não pode dar, esse nó tá dado, eu desato já!”: Movimentos populares
organizados em torno de direitos territoriais em meio a conflitos socioambientais no Ceará
de liberaron del colonialismo está también forjado por la ideologia de la
centralidade y la unicidade del Estado-nación, esto es, la creencia de que la
construcción del Estado moderno exige la homogeneización de las diferencias
sociales y territoriales (SANTOS, 2009, p. 53-54).
Resta claro, portanto, que nessa trilha das múltiplas formas de resguardo e proteção das territorialidades expressadas por povos e populações indígenas, tradicionais, de
ribeirinhos, comunidades urbanas, há um flanco aberto de possibilidades, inexistindo
resposta pronta ou definição legal já completamente estabelecida, uma vez que toda e
qualquer normatização acaba sendo redutora da realidade. É preciso, em diálogo com
as comunidades, construir mecanismos que sejam permeáveis às suas dinâmicas de permanência e mudança, sendo porosos para permitir que o ainda-não, o que estar por vir,
possa aflorar quando as condições sócio-históricas se tornem mais favoráveis.
Nesse sentido, é preciso perceber o que podemos aprender com os Anacé, com
a comunidade de Curral Velho e com a população no Serviluz. Como buscamos visibilizar, há diversas lógicas de compreensão sobre os territórios e sobre os modelos de
desenvolvimento neles incidentes. Muitos desses modelos, focados nas comunidades
ribeirinhas, de pescadores artesanais, indígenas e quilombolas, diferem do pensamento
hegemônico que se impõe sobre esses grupos, modificando os seus modos de ser e fazer
e estabelecendo novas ordens a pretexto de trazer “desenvolvimento”. Essas comunidades, contudo, têm seus próprios processos de desenvolvimento. Elas não ficam estanques nas paredes de museus, atrasadas em um tempo histórico longínquo pelo qual a
sociedade ocidental já passou. Elas trazem outras relações com o território, com o meio
ambiente e com os demais, indicando para nós uma necessidade de se aprender com o
“saber local” (GEERTZ, 2009, p. 249-356).
À semelhança do que ocorreu com os povos e populações aqui estudados, Andréa
Zhouri e Raquel Oliveira mencionam que
[...] os grupos sociais sujeitados à desterritorialização não são vítimas passivas
e expressam outras formas de existência nos lugares. Reivindicam direito à
memória e a sua reprodução social. E são eles que dizem que nem tudo é
fadado a virar espaço de apropriação abstrata pelo capital [...].
A defesa do lugar, do enraizamento e da memória destaca a procura por
autodeterminação, a fuga da sujeição dos movimentos hegemônicos do
capital e a reapropriação da capacidade de definir seu próprio destino.
A direção desses movimentos [...] insiste em nomear os lugares, em definirlhes seus usos legítimos, vinculando a sua existência à trajetória desses grupos.
Não é uma luta pela fixidez dos lugares, mas sim pelo poder de definir a
direção da sua mudança. (ZHOURI; OLIVEIRA, 2010, p. 445).
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Nesse sentido, a grande contribuição que os casos de Curral Velho, dos Anacé e
da comunidade do Serviluz podem nos dar é fazer-nos refletir sobre a diversidade de
modos de pensar o mundo e nele projetar o futuro. A discussão que se apresenta está
no campo da própria definição dos projetos de desenvolvimento e dos territórios em
que esses projetos encontram expressão. É preciso pensar esses conceitos, não tomando
como base reflexões coloniais de um só desenvolvimento possível, o ocidental capitalista. É preciso pensar desenvolvimento, pensar meio ambiente, pensar propriedade e
territorialidades a partir do local.35
Compreender os conflitos que envolvem essas territorialidades convergentes ou
dissidentes exige-nos um esforço no sentido de estranhar os conceitos hegemônicos de
meio ambiente como recurso natural a ser explorado, de território como cenário da intervenção a ser promovida pelos projetos de desenvolvimento e de um desenvolvimento
como caminho único na direção capitalista de acumulação e pilhagem de recursos sem
distribuição. A resistência desses povos e populações, centrada no território, este considerado como uma construção ao mesmo tempo simbólica, social e material, suporte
do seu ser coletivo no mundo, é também uma proposição por novas formas de compreender a realidade.
Nesse sentido, os significados de território e de desenvolvimento proposto pelo povo
Anacé e pelas comunidades de Curral Velho e do Serviluz acentuam um caráter histórico
e simbólico. Mais do que o cenário, o lugar onde se vive, se produz e se reconstrói é o
território onde ocorrem as dinâmicas sociais que conectam o passado ao presente, esferas
de pertencimento que tornam possíveis a construção de identidades no tempo contemporâneo. É nesse território que se dá a retomada de controle sobre o próprio destino, sendo
o suporte do presente e a referência que orienta projetos coletivos de futuro.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As histórias, falas e canções vindas de movimentos populares organizados em torno de
seus direitos territoriais traduzem lutas reivindicativas e de resistência tecidas na busca
pela construção de justiça e de equidade no acesso à terra no Brasil. Tais movimentos,
em suas diversidades, indicam confluir alguns pontos essenciais: o questionamento da
propriedade como direito absoluto e exclusivo advindo de um título cartorário; a reivindicação do direito à terra e em outras dimensões para além do espaço geográfico
utilizado como simples produtor e como mercadoria; a busca por sentidos de desenvolvimento vivenciados no território em que permeiam os quais estabeleçam relações não
conflituosas com o ambiente natural.
35. Acerca das relações entre local e global, Andréa Zhouri e Raquel Oliveira mencionam que “a crítica ao global – como
força que oprime e explora – só pode ser efetuada a partir do local, onde o conhecimento é possível e as trincheiras da
resistência estão em curso” (ZHOURI; OLIVEIRA, 2010, p. 443).
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organizados em torno de direitos territoriais em meio a conflitos socioambientais no Ceará
Os resultados apontam que esses movimentos demandam interpretações contra-hegemônicas ao direito estatal em perspectiva crítica e intercultural, fazendo emergir
direitos insurgentes não contemplados no ordenamento jurídico estatal brasileiro e resistindo em torno de direitos já anteriormente constituídos em comunidades e povos.
Como consequência, as lutas expressadas pelos movimentos estudados levam ao reconhecimento de novos direitos ou do pluralismo jurídico, bem como da necessidade
de se constituir culturas jurídicas que tornem possíveis a visibilização, compreensão
e concretização dessas demandas e de outras normatividades, gestadas em resistências
e reivindicações por direitos territoriais, compreendidos como inerentes a um meio
ambiente saudável, equilibrado e equitativamente justo, os quais podem constituir-se
como um campo jurídico mais fértil à construção de equidade territorial e ambiental.
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GESTÃO PÚBLICA E DEMOCRACIA: OS CONSELHOS GESTORES
DE SAÚDE DA REGIÃO METROPOLITANA DE NATAL-RN
Lindijane de Souza Bento Almeida1
Resumo:
Abstract:
A Constituição de 1988 instituiu um novo modelo de
gestão da saúde, com a organização de um sistema
descentralizado, de base municipal, mas articulado de
maneira a configurar um sistema único de abrangência
nacional. Além da municipalização, esse sistema traz,
de inovador, a participação da comunidade como
um dos princípios norteadores. Como instâncias de
participação popular, são instituídos os Conselhos
de Saúde, nas três esferas de governo. Dentro dessa
perspectiva, este artigo busca compreender até que
ponto os conselhos gestores de saúde dos municípios
da Região Metropolitana de Natal-RN têm sido
capazes de articular ações cooperativas com vistas
ao enfrentamento de problemas comuns da região
metropolitana. A expectativa, portanto, é contribuir
para o debate da governança metropolitana a
partir da sistematização e recorte de uma literatura
atualizada associada pesquisa empírica. Os dados
foram coletados por meio de fontes primárias
(entrevistas com os atores qualificados) e fontes
secundárias. Entre as secundárias, destacam-se a
pesquisa bibliográfica sobre democracia deliberativa
e governança metropolitana e a pesquisa documental
nos municípios da Região Metropolitana de Natal,
além da análise de documentos oficiais (leis,
regimentos e resoluções 2010-2011) e dos dados
socioeconômicos, políticos, culturais e institucionais
dos municípios.
The Constitution of 1988 established a new model
of public health care management, the organization
of a decentralized system – city-based – but
articulated in order to configure a unique free
system nationwide. Beyond municipalization, this
system brings innovative community participation
as one of the guiding principles. Health councils
are institutionalized for popular participation in all
three spheres of government. Thus, the question
that has been investigated is the extent to which
health management councils of the metropolitan
region of Natal/RN – with all the different
municipalities – have been able to articulate
cooperative actions to face of common problems?
The goal, therefore, is to contribute to the debate on
metropolitan governance by the systematization of
the current literature and empirical research. Data
were collected through primary sources –interviews
with qualified actors – and secondary sources that
include literature review on deliberative democracy
and metropolitan governance, documentary
research in the Metropolitan Region of Natal,
analysis of official documents – laws, regulations
and resolutions from 2010 to 2011– and
socioeconomic, political, cultural and institutional
data from all municipalities. Keywords: Public Management. Public Policies.
Social Participation. Democracy.
Palavras-chave: Gestão Pública. Políticas Públicas.
Participação Social. Democracia.
1. A autora é Professora Adjunta do Departamento de Políticas Públicas (Curso de Graduação em Gestão de Políticas
Públicas e Programa de Pós-Graduação em Estudos Urbanos e Regionais) da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN). Doutora em Ciências Sociais pela (UFRN).
Lindijane de Souza Bento Almeida
1 INTRODUÇÃO
No Brasil, a ampliação da democracia para além dos mecanismos eleitorais teve maior
ênfase com o início da redemocratização a partir de fins da década de 1970, quando se
assiste a um intenso e complexo processo de revitalização da sociedade civil, de valorização da cidadania e de fortalecimento das instâncias públicas. Tal processo foi incentivado, sobretudo, pela pressão dos movimentos sociais junto ao Estado e desdobrou-se na
implementação de políticas públicas descentralizadoras e na criação de instituições, tais
como os inúmeros conselhos instituídos por meio de legislação nacional e que abarcam
diferentes formas e atores sociais.
Os Conselhos Gestores de Políticas Públicas são inovações institucionais que se
estruturam de modo a incorporar representantes da sociedade civil e do Estado, inclusive aquelas categorias e grupos sociais que antes estavam excluídos do espaço público
institucional e do debate com os representantes do Estado. Arretche (2000) e Côrtes
(2005) problematizam a visão de que estes espaços teriam uma relação direta com o
aprofundamento da democracia, tentando mostrar que a concretização dos ideais democráticos depende muito mais da natureza das instituições que processam as decisões
do que do nível de governo encarregado da gestão das políticas. É sob essa ótica que o
presente trabalho transita, tendo como tema central a questão do processo deliberativo
nos conselhos e sua relação com o desenho institucional e político.
Entendemos que os diferentes arranjos institucionais influenciam o formato da
participação social nos Conselhos e sinalizam alguns elementos importantes para analisar o processo deliberativo. As leis de criação dos Conselhos estipulam regras definindo
quem pode participar e o tipo de relação entre o conselho e o poder público, criando
constrangimentos ou abrindo possibilidades de participação na arena pública. Trata-se
de um processo de mediação entre sociedade e Estado para a representação e participação do interesse coletivo. Nesse sentido, torna-se importante conhecer os Conselhos de
Saúde no âmbito de sua institucionalização, tornando-se necessário trazer informações
acerca de suas atribuições e de sua composição. Para tanto, pretende-se realizar uma
análise da dinâmica assumida pelos Conselhos de Saúde, uma vez que a partir dos anos
1990 se consubstanciou a transferência de responsabilidades para os governos (municipais e estaduais) em conjunto com a sociedade, buscando maior fiscalização e controle
dos gastos públicos com vista uma ação governamental democrática e eficiente.
A Constituição de 1988 instituiu um novo modelo de gestão da saúde, com a organização de um sistema descentralizado, de base municipal, mas articulado de maneira
a configurar um sistema único de abrangência nacional. Além da municipalização, esse
sistema traz de inovador a participação da comunidade como um dos princípios norteadores. Assim, a questão que levantamos para investigação é até que ponto os conselhos
gestores de saúde dos municípios da Região Metropolitana de Natal (RMN) têm sido
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Revista Democracia e Participação
Gestão Pública e Democracia: os conselhos gestores de saúde da Região Metropolitana de Natal-RN
capazes de articular ações de cooperação e de coordenação com vistas ao enfrentamento
de problemas comuns da região metropolitana? O presente artigo tem por objetivo analisar comparativamente a articulação dos Conselhos de Saúde dos municípios da RMN2
com vistas ao enfrentamento de problemas comuns da região metropolitana, tentando
compreender os limites e as possibilidades de uma gestão compartilhada.
A discussão em torno da democratização do Estado e da sociedade levou os estudiosos a revisitar a teoria da democracia representativa, no que diz respeito ao papel e ao
significado atribuído à participação popular e à importância de se abrir o espaço público
à criação de mecanismos participativos. Do ponto de vista conceitual, será utilizado o
conceito de democracia deliberativa. Esse conceito servirá como apoio para observar
como, após a Constituição de 1988 e no início dos anos 1990, a semelhança no que
diz respeito ao grau de organização da sociedade e o nível de interesse dos gestores municipais em realizar gestões participativas levou os Conselhos Municipais de Saúde da
RMN a trajetórias semelhantes.
A categoria de pesquisa selecionada foi o estudo comparativo de casos, que segue os passos do método comparativo, descrevendo, explicando e comparando os
fenômenos por justaposição e comparação propriamente dita (TRIVIÑOS, 1995).
A opção por uma análise comparativa justifica-se como tentativa de superar uma das
principais limitações de grande parte dos estudos sobre representação e/ou participação já realizados no país, que tendem a restringir-se ao estudo de casos particulares.
Em vista disso, o alcance de seus resultados é limitado, na medida em que dificulta
possibilidades de generalização.
Os dados foram coletados por meio de fontes primárias3 (entrevistas com os atores
qualificados) e fontes secundárias. Entre as secundárias, destacam-se a pesquisa bibliográfica sobre democracia deliberativa e governança metropolitana, e a pesquisa documental nos municípios da RMN: a análise de documentos oficiais (leis, regimentos e
resoluções 2010-2011) e dos dados socioeconômicos, políticos, culturais e institucionais dos municípios.
Nosso trabalho apresenta formulações de caráter preliminar que são expostas
com o intuito de suscitar debate e na expectativa de que ajudem a elucidar as indagações sobre a atuação de Conselhos Municipais de Saúde pertencentes a uma região
2. Este artigo resulta da pesquisa denominada “Gestão Pública, Democracia e Participação Social: os conselhos gestores
de saúde da Região Metropolitana de Natal-RN”, que é desenvolvida no Núcleo Natal do INCT – Observatório das
Metrópoles. Esta pesquisa, em particular, é realizada em conjunto pelo Núcleo Avançado de Políticas Públicas NAPP/
UFRN e por integrantes do Grupo de Pesquisa Estado e Políticas Públicas da UFRN, sendo financiada pelo CNPq
(Processo nº 401464/2010-5). Ademais, esta pesquisa foi apresentada no 36º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS – Grupo
de Trabalho Políticas Públicas (GT 29) – realizado em Águas de Lindóia/São Paulo, de 21 a 25 de outubro de 2012.
3. Nos dez Conselhos Municipais de Saúde da Região Metropolitana de Natal, foram realizadas entrevistas. O primeiro
contato foi feito junto às Secretárias Executivas, caso esta não existisse ou participasse a pouco tempo do Conselho,
outras pessoas foram entrevistadas. A maioria das entrevistas, até o presente momento, foi com os presidentes dos
conselhos e com os representantes da sociedade civil.
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metropolitana, no caso a RMN. O artigo está dividido em quatro seções, contando-se
com esta introdução. Na seção “A Região Metropolitana de Natal”, nosso objetivo
foi dar uma noção do processo de criação dessa região e a sua importância para o
desenvolvimento do estado do Rio Grande do Norte. Em seguida, demonstramos
um histórico da construção dos Conselhos no que tange ao período de sua criação,
à composição dos Conselhos no que se refere à natureza das instituições representadas – governamentais ou da sociedade civil –, a estrutura de apoio ou condições de
funcionamento do conselho, e uma análise das resoluções de 2010 a 2011, cujo objetivo foi verificar se a atuação dos Conselhos Municipais pertencentes a uma região
metropolitana se diferencia dos demais Conselhos nas suas deliberações. A seção final
faz um balanço das experiências, considerando que a inexistência de uma identidade
metropolitana condiciona o modo de funcionamento dos Conselhos Municipais de
Saúde dos municípios da RMN a realidade municipal e não a realidade regional. Eles
atuam tendo como referência o seu local de moradia, e não o contexto regional. Desse
modo, os atores sociais e políticos presentes na arena decisória quando decidem não
deliberam sobre problemas que ultrapassam suas fronteiras.
2 A REGIÃO METROPOLITANA DE NATAL
A Região Metropolitana de Natal (RMN) foi instituída pela Lei Complementar n° 152,
de 16 de janeiro de 1997, mediante iniciativa parlamentar da então deputada estadual
Fátima Bezerra (PT), e promulgada pelo presidente da Assembleia Legislativa do Rio
Grande do Norte, deputado Leonardo Arruda, na mesma época em que outras o foram
em diversos estados. A RMN nasceu, em 1997, com seis municípios: Ceará-Mirim,
Extremoz, São Gonçalo do Amarante, Natal, Parnamirim e Macaíba. Cinco anos depois, em 2002, acrescentou mais dois: São José de Mipibu e Nísia Floresta. Em 2005,
foi agregada a RMN o município de Monte Alegre, e em 2010 foi o município de Vera
Cruz que passou a fazer parte da RMN.
A Região Metropolitana de Natal abrigava, em 2010, cerca de 1.351.004 mil pessoas nos dez municípios que a constitui, dos quais mais de 803 mil pessoas, ou seja,
mais de 50% da população residiam em Natal, de acordo com o Censo 2010 (IBGE).
No quadro abaixo podemos verificar o crescimento da população dos municípios da
Região Metropolitana de Natal, a partir do Censo 1991.
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Gestão Pública e Democracia: os conselhos gestores de saúde da Região Metropolitana de Natal-RN
QUADRO 1
População Total da Região Metropolitana de Natal
Municípios
1991
2000
2010
Ceará-Mirim
52.157
62.424
68.141
Extremoz
14.941
19.572
24.569
Macaíba
43.450
54.883
69.467
Monte Alegre
15.871
18.874
20.685
Natal
606.887
712.317
803.739
Nísia Floresta
13.934
19.040
23.784
Parnamirim
63.312
124.690
202.456
São Gonçalo do Amarante
45.461
69.435
87.668
São José de Mipibu
28.151
34.912
39.776
Vera Cruz
7.970
8.522
10.719
Total
892.134
1.124.669
1.351.004
Fonte: IBGE (Censos).
FIGURA 1
Região Metropolitana de Natal – Percentual de População Urbana e Rural
Fonte: Censo 2010 (IBGE), elaborado pelo Observatório das Metrópoles, abril/2012.
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A RMN vem passando por significativas transformações nas últimas décadas, com
uma presença marcante, da perspectiva econômica e demográfica, no estado e no Nordeste, e desenvolvendo um processo de transbordamento de Natal na direção de municípios que integram a região metropolitana oficial. Apresentar a estrutura dessa região,
seu dinamismo econômico e social, seus problemas e potencialidades não constituem
em objetivos desse trabalho.4 A nossa ideia é apresentar um breve perfil da RMN, buscando chamar a atenção para os desafios que devem ser enfrentados para uma “governança colaborativa” com vistas às soluções de problemas comuns.
O quadro social da metrópole natalense não é muito diferente do que se observa nas
grandes metrópoles do país, embora se possa afirmar que ele vem tendendo a melhorar
nos anos recentes. Os dados do IFDM-2009 revelam que houve uma melhora considerável nos indicadores sociais do Brasil nas últimas décadas, indicando também que,
em 2009, o estado do Rio Grande do Norte apresentava um índice de desenvolvimento
municipal de 0,6647, e a sua capital um índice de desenvolvimento municipal de 0,8012.
FIGURA 2
Índice Firjan de Desenvolvimento Municipal (IFDM-2009) - Municípios da Região
Metropolitana de Natal
Fonte: FIRJAN (2009), elaborado pelo Observatório das Metrópoles, abril/ 2012.
4. No entanto, faz-se necessário dizer que, segundo o Plano Estratégico para o Desenvolvimento Sustentável da Região
Metropolitana de Natal (2006), o que caracteriza a economia da RMN é o grande peso que na sua estrutura produtiva têm
as atividades terciarias, constituídas pelo comércio (varejista e atacadista) e pelas atividades dos serviços, compreendidas
tanto pelos serviços públicos quanto pelos privados. Outra parte relevante está constituída pelas atividades industriais,
formadas pelos importantes segmentos da extrativa mineral, da indústria de transformação, da construção civil e dos
serviços industriais de utilidade pública. O restante da economia está constituída pelas atividades agropecuárias, que
englobam a agricultura, a pecuária e a atividade extrativa vegetal.
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Gestão Pública e Democracia: os conselhos gestores de saúde da Região Metropolitana de Natal-RN
A rigor, são incipientes as iniciativas de governança metropolitana pautada na cooperação entre os diferentes municípios que integram a RMN. O que existe é uma legislação que apresenta uma situação política reveladora das dificuldades de sua implementação. A RMN ostenta problemas de inconsistência em sua estrutura organizacional e
nos instrumentos forjados para solucionar as questões que emergem na busca de integração dos entes públicos e privados. Mais grave ainda são os problemas de articulação
política entre os municípios, dada a diversidade de interesses que permeia o mundo das
relações políticas e administrativas no Brasil.
No âmbito dos Consórcios Intermunicipais, os municípios da RMN não apresentam nenhum nível de participação. Em 2009, segundo o IBGE, na área da saúde
não existia nenhum tipo de consórcio público, o que atesta a frágil articulação entre os
municípios para o encaminhamento de questões comuns.
Um ponto que merece destaque na legislação é a criação do Conselho de Desenvolvimento Metropolitano de Natal, vinculado à Secretaria de Planejamento Estadual.
O CDMN é de caráter consultivo e deliberativo, é composto do presidente, o Secretário de Planejamento Estadual, os prefeitos dos municípios da RMN e uma cadeira
ocupada pelo Parlamento Comum da RMN, além de contar com a abertura regimental
à participação de entidades da sociedade civil organizada na contribuição de elaboração
de atividades como projetos, programas e estudos, cabendo à Assembleia Legislativa do
Estado e às câmaras dos municípios e de Natal a convocação destas.
A criação do CDMN revestiu-se da maior importância haja vista ser de sua
competência a gestão metropolitana, dada a sua condição de conselho deliberativo.
Contudo, até o presente as ações do Conselho foram limitadas a debates que somente reconhecem a necessidade conjunta das ações referentes aos problemas da RMN
debitando ao governo estadual as dificuldades para o avanço das ações cooperadas.
Apesar de surgir como uma forma positiva de gestão metropolitana, o Conselho teve
até hoje uma atuação muito limitada e reduzida, na medida em que falta uma visão
mais ampla e compartilhada para solução dos problemas metropolitanos, tanto por
parte dos governos municipais quanto do governo estadual. A ausência de operacionalização de mecanismos institucionais com visão metropolitana, de articulação política
com interesses metropolitanos, faz com que a chamada RMN não exista realmente no
que tange ao aspecto da gestão de políticas públicas, as quais passam a ser elaboradas
olhando a realidade municipal e não regional.
Permanece uma grande lacuna no que se refere às experiências de gestão compartilhada dos problemas de interesse comum. Não existe uma implementação efetiva da legislação de modo a proporcionar a RMN uma gestão metropolitana aos
moldes de outras existentes no Nordeste, ampliando as possibilidades de resolução
de problemas, otimizando recursos e realizando um planejamento compatível com as
necessidades da área em questão.
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Entre as dificuldades enfrentadas na implementação da RMN, observa-se, de
início, a inexistência de uma identidade metropolitana entre os dez municípios que
dela fazem parte. Prevalece ainda no governo estadual e entre os prefeitos uma visão
tradicional, de municipalismo autárquico, essencialmente local, que dificulta ou se
opõe à visão regional, podemos citar como exemplo a ideia do Parlamento Comum
que, no início, revelou-se uma instância muito dinâmica na solução dos problemas
metropolitanos em Natal, mas que não avançou, uma vez que o seu papel era tão somente organizar o debate e a discussão de uma agenda metropolitana que seria encaminhada às instâncias competentes para encaminhamento e solução. A sua importância consiste no seu relevante papel político na construção de um pacto territorial. Nos
últimos anos, esse espaço de debate deixou de atuar e as relações intergovernamentais
com vistas à realização de ações cooperativas não é algo aceito com facilidades pelos
governos municipais.
A cooperação entre entes políticos integrantes da Federação tornou-se uma exigência constitucional institucionalizada no Brasil. Fortaleceu-se o federalismo cooperativo, impondo-se uma articulação permanente entre União, estados e municípios,
nem sempre praticada. No nível municipal, o que se observa é a ocorrência de uma
“autonomia dependente” das instâncias superiores. Logo, no Brasil, a integração dos
níveis de governo far-se-á por meio de negociação política. No nível metropolitano,
essa negociação política pode gerar cooperação, uma vez que problemas comuns devem ser resolvidos no plano da política, dada a ausência de uma esfera de governo
metropolitana. Dessa forma, a existência de um continuado aprendizado político, atenuando a competição entre municípios e fortalecendo a visão regional, aparece como
extremamente necessário.
A globalização do mundo e a crise socioeconômica vêm induzindo novas modalidades de ação política, com vistas a melhorar as condições de vida da população,
uma vez que hoje a pobreza, o aumento do desemprego, a precarização do trabalho,
a criminalidade, a violência etc. estão presentes de uma forma ainda mais ampla
e preocupante nas sociedades. Diante dessa realidade, iniciou-se um processo de
mudanças, tanto na esfera cultural quanto na esfera política, por meio da possibilidade de representação e de negociação entre os vários segmentos do Estado e da
sociedade. Hoje, vivemos uma expansão da exigência democrática, com o estímulo
à participação e ao debate explícito.
3 DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO SOCIAL
No século XX, a consolidação da democracia foi o fenômeno político mais marcante,
tendo essa forma de governo se tornado a questão central na teoria política contemporânea. O debate em torno da democracia tem se modificado com o tempo, e foi com
Alexis de Tocqueville, na primeira metade do século XIX, que uma nova avaliação em
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Gestão Pública e Democracia: os conselhos gestores de saúde da Região Metropolitana de Natal-RN
relação à democracia passou a vigorar no debate político nas sociedades capitalistas.
Nesse período, a democracia já estava a ponto de tornar-se a forma hegemônica de
organização política, tanto na Europa como nos Estados Unidos, mas foi só no século
XX que ocorreu, de fato, uma expansão global da democracia como forma de governo.
No entanto ocorreram mudanças de fundamental importância no significado e na
prática da democracia e houve um forte estreitamento do conceito de “soberania popular”, para a existência de um consenso crescente, que avaliava positivamente formas não
participativas de gestão, assim como uma rejeição dos modelos participativos, devido
ao seu impacto não institucional. A concepção de Jean-Jacques Rousseau sobre a ideia
de soberania popular não se tornou a forma hegemônica de entendimento da soberania
durante o século XX, o que tem sido justificado pela emergência de formas complexas
de administração estatal, que possibilitaram a consolidação de burocracias especializadas, assim como hierárquicas, no interior do Estado moderno.
A teoria da “democracia competitiva” de Schumpeter foi amplamente dominante
até os anos 1960, disseminando-se no senso comum, assim como influenciando vários
teóricos. Entre aqueles que foram influenciados e passaram a defender as suas teses,
mesmo que lhes acrescentando algumas mudanças, destacam-se Giovanni Sartori, Robert Dahl, Anthony Downs e Sammuel Huntington. A partir da contribuição desses
autores, nas sociedades capitalistas contemporâneas, mais especificamente nos países
centrais, consolidou-se a concepção de democracia que se tornou dominante, a da democracia representativa-liberal. Com esse modelo de democracia, procurou-se estabilizar a tensão entre democracia e capitalismo.
A prioridade conferida à acumulação de capital e à limitação da participação cidadã (individual e coletiva), pensada com o propósito de não “sobrecarregar” demais o
Estado democrático, com demandas sociais que poderiam gerar uma crise de governabilidade, constituíram-se nos principais traços da teoria da democracia representativa.
Nesse modelo, a participação no processo de tomada de decisão está restrita à “elite”
eleita pela população no processo eleitoral, a qual tem por função dirigir o processo
político, uma vez que aos cidadãos eleitores cabe apenas o ato de votar periodicamente
naqueles que se apresentam no mercado político, entre os competidores, como os mais
qualificados para governar. Essa concepção, além de limitar a democracia ao processo
eleitoral, exalta a apatia política como uma demonstração da satisfação do cidadão com
a democracia. Além disso, a apatia política é considerada um fator importante tanto
para impedir o acirramento das diferenças dentro da sociedade quanto para diminuir
as pressões sobre o Estado, uma vez que o excesso de participação aumenta os conflitos
sociais e pode gerar um excesso de demandas, a que o Estado não seria capaz de responder. Havia uma tendência, dos anos 1940 até a década de 1970, a considerar as crises de
governabilidade como efeitos diretos do excesso de demandas, via participação política
dos cidadãos, diretamente voltadas para o Estado.
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Dahl (1956), em sua teoria da democracia como poliarquia, “o governo das múltiplas minorias”, e Sartori (1962), embora tenham dado uma ênfase maior à estabilidade
do sistema democrático, partem do ataque que Schumpeter fez à teoria “clássica” da
democracia e da sua tese de que a participação limitada e a apatia política têm um papel
positivo num sistema de governo democrático, na medida em que ajudam a manter a
governabilidade do sistema. Daí por que a teoria da democracia representativa não é
suficiente para explicar os apelos por uma maior participação da sociedade no processo
de tomada de decisões públicas ora vigentes em nossa realidade nem para explicar os
bons resultados alcançados pelas novas formas de participação da sociedade que, nos
últimos anos, vêm se consolidando.
Partimos do princípio de que as teorias que têm uma forte influência das teses
schumpeterianas não conseguem explicar as novas condições de organização dos Estados democráticos na atual conjuntura, no que tange à coexistência das formas de representação e participação. A partir da segunda metade do século XX, foi o debate acerca
dos limites desse tipo de democracia que se tornou dominante. O debate em relação à
democracia, nesse período, mudou os termos do debate democrático que se configurou
no final das duas guerras mundiais, uma vez que a democracia, ao se expandir pelo
mundo inteiro, começando no sul da Europa nos anos 1970 e chegando à América
Latina nos anos 1980, e ao realizar novas experiências de gestão democrática, tornou
ultrapassadas as análises até então existentes.
Os processos de redemocratização, ao inserir novos atores na cena política, ao
aumentar a participação da sociedade — o que se revelou, principalmente, por meio
da participação dos movimentos sociais —, instaurou uma disputa pelo significado
da democracia e pela constituição de uma nova forma de fazer política. A partir dessa
realidade, recolocou-se na agenda do debate democrático a questão da relação entre
procedimento e participação da sociedade civil no interior do processo decisório.
Uma rápida incursão na literatura é capaz de demonstrar que a ideia de compatibilizar a democracia representativa e a participativa surge como uma alternativa para a crise
que, nas últimas décadas, vem sofrendo a democracia. Os anos 1990 trouxeram à tona o
apelo à participação como recurso fundante de um novo modelo de democracia, como
mecanismo capaz de complementar a democracia liberal-representativa, uma vez que
estabeleceria um novo padrão de relação Estado-sociedade, o qual seria capaz de apontar
possíveis soluções para a profunda crise vivida pelo Estado capitalista contemporâneo.
A ideia é que a democracia participativa não substitui a democracia do governo representativo, mas serve como acessório para a manutenção do Estado democrático.
Os teóricos do modelo de democracia participativa, o qual ressurge na Europa
durante os anos 1960, advogam a tese de que uma maior participação da sociedade
na definição das políticas governamentais é de extrema importância, na medida em
que possibilita maior responsabilidade do Estado perante os eleitores. Esses teóricos
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Gestão Pública e Democracia: os conselhos gestores de saúde da Região Metropolitana de Natal-RN
defendem a necessidade da participação cidadã no processo de tomada de decisões das
políticas públicas, assim como a criação de canais de controle da sociedade sobre o Estado para além das instituições centrais da democracia liberal, como partidos políticos,
representantes políticos e eleições periódicas.
Pateman (1992), em seu livro Participação e teoria democrática, chama a atenção
para o fato de que a participação gera atitudes de cooperação, integração e comprometimento com as decisões. Destaca o sentido educativo da participação, a qual, como
prática educativa, forma cidadãos voltados para os interesses coletivos e para as questões
da política. Os defensores da democracia participativa inovam com sua ênfase na ampliação dos espaços de atuação dos indivíduos para além da escolha dos governantes e
ao destacar o caráter pedagógico da participação.
Nessa teoria, a participação constitui, de um lado, uma forma de proteger os interesses privados e de assegurar um bom desempenho governamental, como na teoria
da democracia contemporânea; de outro, ela tem uma função educativa, na medida em
que, ao participar do processo decisório, os cidadãos aprendem a distinguir entre seus
próprios interesses privados e o interesse público. Na teoria da Democracia Participativa, além da função educativa, a participação tem duas outras funções: permitir que as
decisões coletivas sejam aceitas mais facilmente pelos cidadãos, e promover a integração
do cidadão à sua comunidade.
Os teóricos da democracia participativa defendem a tese de que há uma inter-relação entre os indivíduos e as instituições, uma vez que a participação tem uma função
educativa e os indivíduos são afetados psicologicamente ao participarem do processo
de tomada de decisão, o que só é possível a partir do momento em que eles passam a
tomar parte nos assuntos públicos e a levar em consideração o interesse público. Enfim,
essa teoria assinala a importância da experiência nos processos participativos. A ideia é
que a participação tende a aumentar na medida em que o indivíduo participa, porque
ela se constitui num processo de socialização, que faz com que quanto mais as pessoas
participem, mais tendam a participar.
Em outras palavras, é participando que o indivíduo se habilita à participação, no
sentido pleno da palavra, que inclui o fato de tomar parte e ter parte no contexto onde
estão inseridos. Ou seja: “quanto mais os indivíduos participam, melhor capacitados
eles se tornam para fazê-lo” (PATEMAN, 1992, p. 61).
Na democracia participativa há, portanto, uma exigência da participação dos cidadãos
no processo de tomada de decisão em uma sociedade democrática, porque ela tem um caráter pedagógico no aprendizado das relações democráticas, contribuindo para a politização
dos cidadãos, o que é importante para eles exercerem um controle sobre os governantes.
A democracia participativa se opõe às ideias defendidas pela teoria elitista da
democracia, que concebe essa forma de governo como um mecanismo de escolha dos
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representantes políticos, equipara a dinâmica política ao jogo do mercado, reduz a
participação dos cidadãos ao ato de votar em eleições periódicas e livres, e considera a participação social um risco à estabilidade de qualquer governo democrático.
No entanto foi essa forma de democracia, a liberal-representativa, que se expandiu
globalmente, impondo a supervalorização dos mecanismos de representação sobre os
mecanismos de participação da sociedade. Em contraposição, a democracia participativa é um modelo de democracia que incorpora e defende a participação da sociedade
civil no interior dos Estados democráticos, que busca restabelecer o vínculo entre democracia e cidadania ativa.
Questionando os limites da democracia representativa, os teóricos da democracia
participativa demonstram que a participação dos indivíduos nos diversos movimentos
sociais, em várias partes do mundo, vem chamando a atenção para o fato de que a
ação política dos cidadãos pode, de fato, contribuir para a democratização da cultura
política bem como para a reinvenção dos padrões de relação Estado-sociedade. Daí por
que inúmeros estudiosos da política, no Brasil e no mundo, ressaltam a necessidade de
compatibilizar a democracia representativa e a participativa.
Nas últimas décadas, em nível mundial, presenciaram-se esforços notáveis de
construção de novos modelos de democracia, mais republicanos e igualitários, que colocaram em xeque o modelo reduzido de democracia representativa. Vários estudiosos
do tema procuram defender uma forma de democracia mais autêntica e participativa
— ou seja, um novo modelo, que tenha um conteúdo novo em termos de governo e
que seja ancorado na solidariedade, na cooperação, na confiança —, embora encontrem inúmeras dificuldades.
Nesse contexto, abriu-se um campo vasto de análises sobre o papel que a sociedade
deveria ter no processo de consolidação da democracia. Nos últimos anos, especialmente nos Estados Unidos, a visão participativa da democracia, que emergiu nos anos 1960
vem sendo atualizada pelas teorias da democracia deliberativa (deliberative democracy) e
da democracia associativa (associative democracy), que se fundamentam principalmente
nas contribuições mais recentes de Habermas (1999), Cohen (1999), Bohman (1999),
Cohen e Rogers (1995) e Hirst (1994), entre outros. Aqui, faz-se necessário chamar a
atenção para o fato de que o que há em comum a todos esses estudos é a ideia da incorporação do cidadão à política.
A teoria da democracia deliberativa tem como base de sustentação a ideia de
que a legitimidade das decisões e ações políticas deriva da deliberação pública de
coletividades de cidadãos livres e iguais. Um ponto central nesse modelo diz respeito
à questão de tornar mais substantiva a democracia, no sentido de que esta signifique
a abertura de espaços reais de poder de decisão para a sociedade. Dessa forma, o
conteúdo desse tipo de democracia seria uma ampliação do espaço público, com a
possibilidade de discussão aberta acerca das políticas públicas, e a democratização
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Gestão Pública e Democracia: os conselhos gestores de saúde da Região Metropolitana de Natal-RN
do processo decisório. A democracia deliberativa caracteriza-se, assim, como um
processo público e coletivo de deliberação política ancorado na efetiva participação
dos cidadãos nas definições relativas a assuntos de interesse público. Ela parte do
princípio de que as decisões devem ser fruto de um debate público, de discussões
coletivas pautadas no bem comum, as quais se devem realizar em instituições sociais
e políticas criadas para o exercício efetivo dessa autoridade coletiva.
Essa vertente mais contemporânea da teoria democrática tem defendido a relevância do componente argumentativo, discursivo, no interior do processo deliberativo, uma vez que considera a ampliação do espaço público, para a participação dos
setores organizados da sociedade, um elemento de fundamental importância para a
estabilidade da democracia. A democracia deliberativa, da forma como a entendemos,
ultrapassa a dimensão do voto e se transfere para o campo do debate político aberto
entre cidadãos livres e iguais.
Em linhas gerais, a democracia deliberativa, como construção de processos decisórios alternativos à configuração dos mecanismos tradicionais de decisão política,
está ancorada na ideia de que a participação efetiva, tanto da sociedade civil quanto do
Estado, é a condição fundamental para se realizarem mudanças que possibilitem, na
prática, a realização de um processo deliberativo que tenha como base de sustentação
a ampliação e a qualificação da participação. Os teóricos desse modelo de democracia
ressaltam a necessidade de se construir um conjunto de mecanismos organizativos que
possibilitem a efetivação desse ideal democrático. A democracia deliberativa exige a
formação de instituições adequadas à participação social, que, além de garantirem a
abertura da participação, atuem no sentido da redução e/ou eliminação dos obstáculos
a uma participação ampla, efetiva e legítima da sociedade civil nos processos decisórios.
Como frisa Lüchmann (2002, p. 65),
a democracia deliberativa configura-se, portanto, como um processo de
discussão e decisão pública que articula Estado e sociedade através de um
formato institucional que, por sua vez, torna esta deliberação possível. Requer,
portanto, uma institucionalidade que, feita e refeita através do diálogo
incessante entre o público deliberante, seja um antídoto aos constantes
riscos dos processos participativos, tais como a manipulação, a cooptação e o
controle político e administrativo (LÜCHMANN, 2002, p. 65).
Desse modo, as instituições exercem um papel fundamental, uma vez que têm
como função criar e garantir as condições de igualdade, liberdade, autonomia e formação do interesse comum. De acordo com Cohen (1999, p. 79),
ao elaborar o procedimento deliberativo ideal nas instituições, procuramos,
entre outras coisas, escolher instituições que focalizem o debate político
no bem-comum, que formem a identidade e os interesses dos cidadãos de
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Lindijane de Souza Bento Almeida
forma a contribuir para uma consciência de bem-comum e prover condições
favoráveis para o exercício de poderes deliberativos necessários para se ter
autonomia” (COHEN, 1999, p. 79, tradução nossa).5
Partimos do princípio de que a democracia deliberativa, uma vez que é um modelo
de exercício do poder político ancorado no debate público e coletivo entre cidadãos
livres e iguais, constitui-se num ideal democrático que, ao contrário da democracia
liberal-representativa, defende a tese de que a legitimidade das decisões políticas advém
de processos de discussão aberta, que, orientados pelos princípios da inclusão, do pluralismo, da igualdade participativa, da autonomia e do bem-comum, podem realizar
mudanças significativas na lógica do poder tradicional.
Portanto os teóricos da democracia deliberativa advogam a tese de que uma participação ampla deve ser considerada como um requisito necessário a qualquer Estado
democrático e que deve ser incorporada como uma participação que tem como aspecto
central a questão da partilha do poder de governar, uma vez que melhora os resultados
das políticas e questiona a incompatibilidade entre participação e eficiência, presente no
modelo de democracia liberal-representativa. Uma das principais inovações dessa forma
de democracia é recuperar a relação positiva entre participação e eficiência, as quais são
tomadas como elementos de significativa importância para a consolidação da democracia.
Isso porque, ao abrir o espaço de tomada de decisão, ao ampliar a participação, os
cidadãos levam para as instâncias decisórias informações de fundamental importância
para a definição dos problemas, na medida em que eles possuem um conhecimento
mais íntimo da realidade local. Isso não significa dizer que toda e qualquer experiência
participativa será capaz de produzir, como resultados, políticas públicas mais eficazes e
justas, mas sim apenas aquela experiência que promova e resulte de uma participação
de fato pública e democrática.
No Brasil, a partir da Constituição Federal de 1988, as propostas de descentralização
das ações governamentais começaram a efetivar-se, ressaltando a significativa importância
da revalorização do papel dos governos municipais e as potencialidades da participação da
sociedade em nível local, no que diz respeito à formulação e implementação das políticas
públicas, e, principalmente, no que tange à fiscalização do uso dos recursos públicos.
A promulgação da Constituição brasileira insere-se em uma conjuntura social e política favorável à mobilização e à participação popular e, nesse contexto, a esfera local de governo é revalorizada politicamente e colocada como o espaço onde a dimensão educativa da participação deve realizar-se. Os municípios
5. “in seeking to embody the ideal deliberative procedure in institutions, we seek, inter alia, to design institutions that
focus political debate on the common good, that shape the identity and interests of citizens in ways that contribute to an
attachment to the common good, and that provide the favorable conditions for the exercise of deliberative powers that
are required for autonomy” (COHEN, 1999, p. 79).
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Gestão Pública e Democracia: os conselhos gestores de saúde da Região Metropolitana de Natal-RN
brasileiros foram fortalecidos do ponto de vista das relações intergovernamentais.
Ampliou-se a sua participação no jogo político bem como a sua capacidade financeira, ainda que tenham aumentado as suas competências. No entanto, o novo desenho
constitucional não levou em consideração a heterogeneidade dos municípios brasileiros.
A realidade da maioria dos governos municipais era a fraca capacidade de arrecadação, a
falta de organização da sociedade e a inexistência de uma base institucional que favorecesse o novo desenho. As mudanças constitucionais, ao outorgarem maior poder e responsabilidade aos municípios, passam a exigir dessa esfera de governo maior capacidade para
efetuá-las, mas faltam iniciativas para dotar as administrações municipais da possibilidade
efetiva para desempenhar a contento o seu papel.
Como ressalta Rofman (1990, p. 17), a descentralização é um processo muito
amplo, que “implica reconhecer a outros organismos existentes, ou a serem criados,
atribuições totais para desempenhar funções antes reservadas ao nível central, com plena autonomia jurídica, funcional e financeira”. A descentralização deve, além de dotar
de capacidade plena de gestão o município, incluir a ampliação da base do sistema de
tomada de decisão e aproximar a função pública dos cidadãos, uma vez que não se
constitui na simples transferência de competências, mas supõe, também, a distribuição
do poder decisório entre o governo municipal e a sociedade.
O objetivo dos teóricos das democracias deliberativa e associativa é superar os
limites do modelo de democracia liberal, enfatizando, entre outros pontos: a importância de se resgatar a ideia de soberania popular, no sentido de um reconhecimento de
que cabe aos cidadãos decidir acerca das questões de interesse coletivo; a relevância do
caráter dialógico dos espaços públicos como formadores do interesse público; o reconhecimento do pluralismo cultural, das desigualdades sociais e da complexidade social;
o papel do Estado e dos partidos políticos na criação de esferas públicas deliberativas;
e a implementação das decisões advindas de processos deliberativos, enfatizando-se a
importância do formato e da dinâmica institucional para a consolidação desse tipo de
democracia. Para isso, os defensores dessas teorias incorporam elementos do modelo de
democracia participativa, ancorados no princípio da ampliação da política para além
dos limites impostos pela regra do sufrágio universal.
Os teóricos que formulam a concepção de democracia associativa chamam a atenção para o papel das associações, ou melhor, para a sua função educativa num governo
democrático. Mesmo apresentando os perigos que as associações podem representar
para o desenvolvimento de uma ordem democrática, tais como privilegiar os interesses
específicos de seus membros, essa forma de democracia
focaliza um ideal igualitário de sociedade. A ideia central desse ideal é que
os membros de uma sociedade devem ser tratados como iguais ao fixarem
os termos básicos de cooperação social — incluindo as formas nas quais
decisões coletivas autoritárias são tomadas, as formas como os recursos são
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Lindijane de Souza Bento Almeida
produzidos e distribuídos e as formas como a vida social é mais amplamente
organizada. Os principais compromissos desse ideal dizem respeito a
condições justas para participação dos cidadãos no debate político e público,
em uma equilibrada distribuição de recursos, e à proteção da escolha
individual (COHEN; ROGER, 1995, p. 34, tradução nossa).6
Os teóricos da democracia associativa partem do princípio de que as associações ou
grupos contribuem para o desenvolvimento da democracia na medida em que exercem
quatro funções, a saber:
uma informação, uma representação igualitária, uma educação cidadã e um
governo alternativo. [...] a participação em tais associações pode ajudar os
cidadãos a desenvolverem competência, autoconfiança e uma gama maior
de interesses que poderão ser adquiridos em uma sociedade política mais
fragmentada (COHEN; ROGER, 1995, p. 43, tradução nossa).7
Portanto a ideia principal defendida pela teoria da democracia associativa é que
as associações são de significativa importância para um governo democrático, porque
elas são espaços de participação que, ao serem direcionados para o bem comum,
contribuem para o desenvolvimento da democracia, uma vez que exercem um poder
educativo sobre os cidadãos que delas participam, os quais passam a adquirir uma
consciência cívica.
A incorporação desse referencial que recupera a dimensão da participação cidadã
como elemento necessário ao processo de tomada de decisão, mesmo em se tratando de
uma realidade marcada pela complexidade, pluralidade, e pelas desigualdades sociais,
completa aqui a perspectiva de uma análise da democracia que pretende ressaltar a importância de tratar-se a democracia não como regime político, mas como um modelo de
tomada de decisão, de entender-se como as decisões são tomadas no processo decisório,
de quem decide os rumos e destinos das políticas públicas e de qual a democracia que
queremos ter hoje consolidada em nosso país.
O processo de redemocratização vem levantando, nas últimas décadas, um questionamento em relação à posição das elites, as quais atuam dentro de uma versão
bastante ultrapassada de democracia. Por outro lado, com o crescimento das cidades,
6. Draws on an egalitarian ideal of social association. The core of that ideal is that the members of a society ought to
be treated as equals in fixing the basic terms of social cooperation — including the ways that authoritative collective
decisions are made, the ways that resources are produced and distributed, and the ways that social life more broadly is
organized. The substantive commitments of the ideal include concerns about fair conditions for citizen participation in
politics and robust public debate, an equitable distribution of resources and the protection of individual choice (COHEN;
ROGERS, 1995, p. 34)
7. A information, a equalizing representation, a citizen education e a alternative governance. [...] “participation in them
can help citizens develop competence, self-confidence and a broader set of interests than they would acquire in a more
fragmented political society” (COHEN; ROGERS, 1995, p. 43).
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Revista Democracia e Participação
Gestão Pública e Democracia: os conselhos gestores de saúde da Região Metropolitana de Natal-RN
surgiram projetos alternativos de gestão, os quais enfatizam a necessidade da participação da sociedade no interior do Estado, por causa dos vários problemas que se tinham
avolumado ao longo dos anos.
Santos (2002) chama a atenção, em seu estudo, para as experiências de democracia
participativa desenvolvidas nos últimos anos em países de economia periférica, ressaltando o fato de que não há, no mundo como um todo, um só modelo de democracia,
da mesma forma que não há uma só globalização, a neoliberal, como se pensava durante
a maior parte do século XX.
Do ponto de vista da gestão democrática, esse autor adverte para o fato de que está
surgindo uma nova forma de fazer política, na periferia desse sistema — na América
Latina, na África do Sul, na Índia —, como resultado da insatisfação da sociedade com
o funcionamento do modelo hegemônico de democracia liberal, em que as decisões
acerca das políticas públicas, por exemplo, tomadas pela burocracia não estavam correspondendo às expectativas dos cidadãos, não estavam sendo eficazes, no sentido de resolverem os problemas da sociedade, o que tem por explicação a distância dos burocratas
dos problemas que afetam a sociedade. Daí a defesa da incorporação da comunidade no
processo de tomada de decisões, porque esta conhece os problemas de uma forma mais
ampla e pode tornar mais democráticas e eficazes as políticas públicas.
O cerne da nossa discussão diz respeito, justamente, às mudanças nas formas
de gestão pública, mudanças essas que enfatizam a necessidade da participação da
sociedade para além dos processos eleitorais e têm como consequência o abandono
da ideia de que participação social e representação são incompatíveis. Nos últimos
anos, a busca da compatibilização entre democracia representativa e democracia participativa, como um meio de enfrentar a crise do Estado e da democracia, é um fato
ressaltado por muitos estudiosos da política, e várias experiências de gestão participativa têm esse objetivo.
Como compatibilizar o método democrático com uma maior participação social
nas decisões políticas é a questão central neste início de século, já que a teoria da democracia representativa não é suficiente para explicar as inovações introduzidas na gestão
pública, no sentido da ampliação dos espaços públicos, nem os seus apelos de ampliação da participação da sociedade civil no interior dos processos deliberativos e as novas
condições de organização dos Estados democráticos, no que se refere à coexistência das
formas de representação e participação.
As análises recentes sobre a democracia vêm alterando os seus enfoques, na medida
em que fazem uma releitura do papel e das funções da participação social, enfatizando
as questões da descentralização, do papel da comunidade e, acima de tudo, da importância de mecanismos de gestão de políticas públicas de caráter democrático, participativo, para um bom desempenho governamental.
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Lindijane de Souza Bento Almeida
4 OS CONSELHOS GESTORES DE POLÍTICAS PÚBLICAS
No Brasil, a Constituição, promulgada em 1988, definiu em termos legais um
novo modelo de gestão, que supõe a abertura do processo decisório à sociedade organizada para tornar mais eficiente a prestação dos serviços públicos, assim como dá respostas eficazes ao quadro de carências locais. Para tanto, implantam-se novos procedimentos de formulação/implementação de políticas públicas de natureza social. A partir dos
anos 1990, o desenho de todas as políticas sociais inclui a constituição de Conselhos
Gestores, os quais significam o estabelecimento de novas relações entre governo e sociedade, o que supõe a distribuição do poder de decisão entre ambos. Isso, porque ocorre
uma ampliação da base do sistema de tomada de decisões, que passa a incorporar a
sociedade organizada, com a criação dos mecanismos de participação.
A descentralização favoreceu a consolidação dos Conselhos Municipais como instâncias responsáveis pela decisão sobre os recursos transferidos da esfera federal para a municipal. No Brasil, com a implementação de políticas descentralizadoras, os municípios têm
participado crescentemente de decisões sobre políticas públicas e os Conselhos Municipais,
vinculados à gestão, passam a se envolver no processo de tomada de decisão; não estamos
dizendo em que medida ou de que modo que eles participam das decisões, uma vez que
sabemos que existe uma variação no nível de envolvimento dos diferentes representantes.
Os Conselhos Municipais e estaduais são definidos como “órgãos montados num
sistema paritário de representação governo/sociedade, que teriam o papel de articular e
processar os diferentes interesses e transformá-los em propostas de programas a serem
incluídos na agenda local” (ANDRADE, 2009, p. 8). Isso significa dizer que esses mecanismos de participação na gestão pública devem funcionar como “instituições mistas, formadas em parte por representantes do Estado, em parte por representantes da sociedade
civil, com poderes consultivos e/ou deliberativos, que reúnem, a um só tempo, elementos
de democracia representativa e da democracia direta” (AVRITZER, 2000, p. 18).
No Brasil, a implantação dos conselhos gestores foi iniciada na área da saúde a
partir da promulgação da lei que regulamentou a Reforma Sanitária em 1990, e gradualmente se estendeu para as outras políticas sociais. É possível considerar que não há
mais dúvidas quanto à importância de instalação de Conselhos Municipais de Saúde
como fórum participativo no nível municipal de governo. Apesar disso, seu potencial
como espaço de participação e deliberação dos cidadãos nas decisões relacionadas com
as políticas públicas da área de saúde é utilizado de forma incipiente na maioria dos pequenos municípios, principalmente no que se refere aos representantes dos segmentos
de usuários e trabalhadores da área.
No contexto de uma região metropolitana, a existência de uma identidade metropolitana pode otimizar os recursos existentes para o aprimoramento de ações efetivas
de participação e controle social. Verificamos a partir de uma análise dos Conselhos de
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Revista Democracia e Participação
Gestão Pública e Democracia: os conselhos gestores de saúde da Região Metropolitana de Natal-RN
Saúde da RMN as limitações que devem ser superadas, inclusive a falta de conhecimento acerca da inclusão do município na Região Metropolitana. A ausência de uma identidade metropolitana por parte dos gestores municipais e dos cidadãos marca a falta de
debate e definições sobre o tema da governança metropolitana nos Conselhos de Saúde
dessa região, o que dá visibilidade a pouca importância que é dada a criação da RMN,
expondo suas fragilidades e limitações que devem ser superadas para que problemas
comuns sejam superados e a população possa ser a grande beneficiada.
No estado do RN, a tradição autoritária e centralizadora do exercício do poder
permanece dificultando a adoção de medidas mais democráticas por parte do Executivo
municipal, e a ausência de uma identidade metropolitana e de uma cultura política democrática dificulta a realização de ações cooperativas com vistas à solução de problemas
comuns. No Brasil contemporâneo, para atender as exigências constitucionais a gestão
pública precisa contar com cidadãos capazes de produzir novas atitudes políticas, ou
seja, com uma sociedade civil organizada, que apresente um bom estoque de capital
social. Todos os Conselhos de Saúde da RMN não implicaram a cessão de um espaço
decisório, por parte do Estado, em favor de uma forma ampliada e pública de participação, elemento fundamental na concepção de democracia deliberativa.
Os depoimentos dos representantes da sociedade civil no Conselho Municipal de
Saúde chamaram a atenção para o fato de que esses Conselhos foram criados para atender a uma exigência presente na Constituição federal, uma vez que são partes integrantes
do arcabouço jurídico-institucional do setor saúde em todas as esferas e níveis. Constatamos, em primeiro lugar, que a criação dos fóruns foi diretamente estimulada pelas leis
e normas federais que estabeleceram as regras gerais de composição e tipo de função no
contexto dos respectivos sistemas de administração pública em que se inseriam.
Na área de saúde, essas normas legais e administrativas remontam a 1990 – Lei
nº 8.142 (BRASIL, 1990) – e 1993 – Normas Operacionais Básicas do Ministério
da Saúde de 1993 e 1996 (BRASIL, 1993; 1996). Essas normas vieram a estimular a
municipalização da gestão dos serviços de saúde financiados com recursos públicos.
A partir de então, os municípios poderiam passar a gerir a atenção básica – municipalização plena da atenção básica – ou todos os serviços de saúde financiados com recursos
públicos – municipalização plena do sistema de saúde. Independentemente do tipo de
enquadramento, praticamente todos os municípios do país aderiam a algum dos tipos
de municipalização e neles foram criados Conselhos Municipais de Saúde.8 Essa rigidez
na montagem do arcabouço institucional muitas vezes dificulta a realização do ideal
democrático de ampliação da esfera pública, propiciada pela participação.
8. “O Conselho de Saúde, em caráter permanente e deliberativo, órgão colegiado composto por representantes do governo,
prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários, atua na formulação de estratégias e no controle da execução
da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, cujas decisões serão
homologadas pelo chefe do poder legalmente constituído em cada esfera do governo” (BRASIL, 1990, art. 1).
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Lindijane de Souza Bento Almeida
No que se refere à ordem cronológica de criação dos Conselhos, a pesquisa em andamento verificou que os Conselhos foram criados a partir dos anos 1990, com exceção
do CMS de Natal (1986), quando se passa a exigir legalmente a sua existência para a
execução das políticas sociais. A criação dos Conselhos de Saúde da RMN concentra-se
no período imediatamente posterior à normatização legal ou administrativa que vincula a constituição de conselho à execução de novas funções e transferência de recursos
financeiros para a esfera municipal da administração pública.
No que diz respeito à composição dos Conselhos de Saúde da RMN, verificamos
fenômeno similar. A Lei nº 8.142 estabelece que os Conselhos de Saúde devem ter o
número de usuários paritário em relação ao conjunto dos demais segmentos sociais representados – gestores, prestadores e trabalhadores e profissionais de saúde. De acordo
com as normas legais, os Conselhos devem deliberar sobre a política de saúde no nível
correspondente da administração pública e metade de sua composição é formada por
representantes de usuários, enquanto a outra metade é composta por representantes do
governo, prestadores de serviço e profissionais de saúde. Os Conselhos Municipais da
RMN foram formados respeitando, em grande parte, as diretrizes legais. O arcabouço
institucional da área da Saúde está influindo na conformação do conselho municipal de
saúde. Isso foi observado tanto no que tange ao período de criação dos fóruns, quanto
no que se refere a sua composição.
Portanto, a análise dos Conselhos da RMN demonstra que os CMS são criados
quase imediatamente após a legislação ou quando as normas administrativas assim o
estabelecerem, e que a proporção de conselheiros governamentais e da sociedade civil
obedeceu, em linhas gerais, às normas de cada área. Assim, mesmo reconhecendo que
outros fatores e que os atores sociais podem ser igualmente, ou, em certos casos, até
mais importantes que o arcabouço histórico-institucional, não há dúvida de que ele
vem sendo seguido e condicionando as linhas gerais de atuação dos Conselhos Municipais De Saúde na RMN. Os Conselhos possuem números diferentes em termos de
membros, porém, distribuem seus assentos entre os representantes de modo parecido,
respeitando a paridade constitucional. A representação dos usuários possui uma proporção de assentos semelhantes (50%), da mesma forma a representação do governo e
dos prestadores de serviço (25%) e profissionais de saúde e trabalhadores têm a mesma
proporção de representação (25%).
É importante chamar a atenção para o fato de que, na maioria dos municípios
estudados, verificamos que os Conselhos de Saúde não se apresentam como espaços de
tomada de decisões que contam com a participação efetiva dos diferentes segmentos da
sociedade civil organizada. Em Natal, por exemplo, hoje o CMS conta com 16 conselheiros titulares, mas segundo seu regimento interno deveria ser um total de 20 conselheiros.
A falta de conhecimento técnico, de acesso à informação e de infraestrutura são alguns dos
problemas enfrentados pelos conselheiros para exercerem a contento o seu papel.
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Revista Democracia e Participação
Gestão Pública e Democracia: os conselhos gestores de saúde da Região Metropolitana de Natal-RN
Nessas arenas deliberativas, embora formalmente se definam como paritárias, na
prática, existem dificuldades de se estabelecer o princípio de igualdade de participação
entre os representantes do governo e os representantes da sociedade. De um lado, há o
descontentamento dos governantes em relação à paridade, dada a crença em uma pseudossuperioridade do saber técnico. Por outro lado, existe a tradicional postura antiestado
presente na tradição dos movimentos sociais, dificultando o relacionamento e originando
conflitos. A partir das entrevistas realizadas constatamos que, na maioria dos Conselhos,
é visível o conflito de interesses e a disputa de posições na arena decisória, dificultando o
entendimento, elemento de significativa importância nos processos deliberativos.
É importante ressaltar que, dos dez municípios da RMN, apenas em Extremoz que
a presidência do conselho não é escolhida de modo igual, isto é, por meio de eleição
entre os membros em reunião plenária. Outro aspecto analisado foram as condições de
funcionamento dos Conselhos. Desde os anos de 1990, nos dez municípios da RMN
foram criados os Conselhos de Saúde, e em 2010-2011 todos estavam funcionando.
A estrutura e o funcionamento dos Conselhos são semelhantes em ambos os casos: os
Conselhos são compostos de plenário, mesa diretora, secretaria executiva e comissões
técnicas ou temáticas. Pesquisou-se sobre a existência de sala exclusiva para o conselho e
sobre a existência de funcionários trabalhando exclusivamente no apoio às atividades do
conselho. De acordo com os presidentes dos Conselhos entrevistados a disponibilidade
de recursos e elementos materiais (equipamentos), considerados básicos para o funcionamento dos Conselhos de Saúde precisa melhorar, uma vez que possuem computador,
mas muitos deles não possuem sede ou sala própria, linha telefônica e acesso à internet.
A falta de condições de funcionamento ressalta os desafios dos CMS para exercer
de modo eficiente o seu papel de formulador e controlador das políticas de saúde.
O papel social dos Conselhos é a promoção de justiça social e a melhoria do nível e situação de saúde da população representada nestes espaços. Eles têm seu funcionamento
limitado e condicionado pela realidade concreta das instituições e da cultura política
dos municípios brasileiros. Como afirma Côrtes (2002, p. 42), “a dinâmica de funcionamento dos fóruns está ligada à forma de coordenação do fórum e à postura do gestor
em relação à participação”.
Como na Reforma Sanitária muita ênfase foi dada à necessidade de controle por
parte da sociedade, os Conselhos Municipais, Estaduais e Nacional de saúde assumem
a função de fiscalizar os recursos destinados à área. A noção de controle social está
diretamente vinculada à ideia de constituição de uma esfera pública democrática que
possa viabilizar o controle dos governantes por parte da sociedade (accountability). Isso
supõe a institucionalização de mecanismos de controle do setor público pela sociedade, garantindo, no caso da saúde, a fiscalização não somente da parte do orçamento
destinado ao setor, mas também da definição de prioridades e estratégias de ação, da
localização de serviços etc.
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Lindijane de Souza Bento Almeida
De acordo com os dados obtidos, o exercício de controle social sobre instituições
públicas é o maior desafio enfrentado pelos fóruns de deliberação. Para que o controle
realmente ocorra são necessárias mudanças profundas no aparato institucional dos governos, assim como uma mudança radical no padrão da relação Estado-sociedade. As
experiências analisadas têm vivenciado muitas dificuldades e a maioria das explicações
para a questão tem feito referência à tradição centralizadora e autoritária dos prefeitos,
a falta de cultura política participativa e aos problemas de acesso e difusão de informações. Um indicador que chamou atenção nos resultados obtidos foi o “Plano Municipal
de Saúde”, apenas os Conselhos de Saúde de São José de Mipibu e São Gonçalo do
Amarante tinha cópia do referido plano e a maioria dos conselheiros entrevistados não
tinham conhecimento da existência do Plano. Em linhas gerais, constatamos que a
maioria dos conselheiros apenas referendam os Planos Municipais de Saúde, elaborados
pela administração municipal, e que não há uma efetiva participação, interferência e
controle dos Conselheiros na definição de prioridades do referido plano e, consequentemente, na política de saúde dos seus respectivos municípios.
A importância da informação nos arranjos deliberativos é inconteste, uma vez que
só existe participação efetiva quando todos os atores estão em pé de igualdade, as informações são partilhadas e discutidas. É necessário que os participantes dessas experiências tenham todas as informações relevantes para uma deliberação de governo. No
entanto, no modelo de democracia vigente em nosso país, a burocracia detém, senão a
totalidade, pelo menos a maior parte das informações necessárias ao processo decisório
e esse é um fator bloqueador da participação efetiva, que inclui não somente o fato de
tomar parte, mas também de ter parte no contexto onde estão inseridos.
A deliberação dos atores sociais e políticos nas arenas decisórias pressupõe a necessidade de garantir as informações necessárias ao debate democrático em torno da composição da agenda pública, mas no Estado brasileiro ainda prevalece uma concepção
burocrática de gestão baseada na superioridade do saber técnico que sustenta uma elite
tecnoburocrática que realimenta todo o sistema político. No interior dos Conselhos de
Saúde da RMN é notória a reprodução dessa situação, uma vez que há a predominância do saber técnico, o que inibe a participação do usuário ou se sobrepõe, em termos
de importância às demais posições. Os secretários têm um poder de agenda superior
aos demais participantes e o resultado da experiência acaba sendo o fechamento de
qualquer possibilidade de deliberação democrática.
Em todos os Conselhos estudados foi atribuído um destaque à herança autoritária
da estrutura de dominação patrimonialista, que marcou a formação do Estado brasileiro. Segundo as entrevistas realizadas com representantes dos usuários, essa herança se
manifesta, ainda hoje, na manutenção de práticas oligárquicas e clientelistas nas estruturas de governo, o que se justifica pelo hiato profundo entre normas e práticas, pela
forma que se realizou a nossa revolução burguesa (NOGUEIRA, 1998). A superação
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Revista Democracia e Participação
Gestão Pública e Democracia: os conselhos gestores de saúde da Região Metropolitana de Natal-RN
desse hiato depende da vontade política dos governantes, da sua adesão a um modelo
de gestão pública que amplie o espaço público para a participação dos atores políticos e
sociais, inclusive como um mecanismo de controle das ações de governo.
As experiências por nós estudadas têm demonstrado, portanto, que os avanços em
direção à institucionalização da participação, no contexto da gestão pública no Brasil
Contemporâneo, estão relacionados, em grande medida, a iniciativa e ao apoio dos
governantes (CÔRTES, 1996), iniciativa que vai depender do perfil ideológico das coalizões governistas e/ou do compromisso dos governantes com o processo de mudanças
institucionais no sentido da democratização dos mecanismos de governo e de adoção de
um modelo de governança democrática (DEMO, 1991).
O segundo elemento apontado pelos conselheiros como responsável pela falta de
controle social por parte dos conselhos gestores foi a ausência de uma cultura política,
ou, segundo Putnam (1996), de uma comunidade cívica, que implica a presença de
capital social, o qual é para esse autor consequência de um longo processo histórico.
Putnam (1996, p. 30-31) enfatiza que as comunidades cívicas “se caracterizam por
cidadãos atuantes e imbuídos de espírito público, por relações políticas igualitárias, por
uma estrutura social firmada na confiança e na colaboração”. Uma análise preliminar
sobre os Conselhos Municipais de Saúde da RMN apontou para os seguintes problemas
relativos à questão da participação nesses fóruns de deliberação democrática: a falta de
organização da sociedade e a interferência de interesses político-partidários no interior
desses fóruns de participação.
No que diz respeito à ausência de uma sociedade civil organizada e demandante
de participação podemos dizer que este é um dos principais problemas que esses fóruns
enfrentam para a sua realização. Nos dez municípios que compõem a RMN, contando
inclusive com a capital, observamos a fragilidade da base social, uma vez que os partidos de esquerda não conseguiram atuar no fortalecimento dos movimentos sociais e
romper a estrutura política conservadora da região. O que aconteceu, e ainda acontece,
na realidade dos movimentos sociais urbanos dessa cidade é a utilização de tais movimentos como elementos de fortalecimento de políticos individuais e de estruturas
partidárias conservadoras.
As experiências estudadas têm demonstrado que a população da RMN não está
suficientemente organizada, tampouco mobilizada, para se incorporar aos mecanismos
institucionais de participação com uma identidade metropolitana em busca de uma
ação coletiva, e isso representa um sério problema para uma governança colaborativa.
Segundo Souza (2009), “a marca do passado” pautada na dependência dos recursos e
das decisões federais e na centralização, tem dificultado mudanças no desenho institucional das regiões metropolitanas e na rota das políticas públicas. A inexistência de uma
sociedade organizada e de mobilização da mesma na direção da resolução dos problemas comuns dificulta a construção de saídas de natureza coletiva.
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Lindijane de Souza Bento Almeida
O que estamos presenciando na maioria dos Conselhos de Saúde da RMN é um
cenário político que se caracteriza pela forte atuação dos representantes do governo
e a fraca atuação dos representantes da sociedade civil. Nos municípios estudados, a
possibilidade de a participação social influenciar o desenho e os encaminhamentos das
políticas de saúde ainda está longe de corresponder a realidade, uma vez que a atuação
da maioria dos atores sociais deixa a desejar no que diz respeito a participação social
enquanto um elemento da ‘boa’ governança.9 Na realidade estudada, a identificação dos
atores envolvidos nos Conselhos Municipais de Saúde da RMN e a análise do modo
como atuam, demonstram que a maioria desses mecanismos de participação legitimam
decisões já tomadas. Em alguns casos, verificamos que o Executivo Municipal primeiro
encaminha a prestação de contas à Câmara Municipal e só depois para o Conselho.
Considerando que só há participação quando o envolvido toma parte no processo de
decisão política questionamos: o que dizer quando os conselheiros referendam as decisões já tomadas? O que dizer quando os conselheiros não têm capacidade de influenciar
as decisões políticas que dizem respeito à sociedade em que vivem?
Como o objetivo desse trabalho é verificar até que ponto os conselhos gestores de
saúde dos municípios da Região Metropolitana de Natal (RMN) têm sido capazes de
articular ações de cooperação e de coordenação com vistas ao enfrentamento de problemas comuns da região metropolitana, realizamos uma análise das resoluções aprovadas
em 2010 e 2011, que demonstrou a ausência de deliberações sobre problemas comuns
aos municípios da RMN. A totalidade das ações deliberadas nas resoluções foi sobre a
gestão da saúde no município. É interessante ressaltar que todas as deliberações tinham
o município e não a região como referência.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A inexistência de uma identidade metropolitana, aliada a uma cultura cívica que empurre os cidadãos para a participação, tem dificultado a mobilização social na RMN,
o que se justifica pela referência que os movimentos organizados ainda têm com a
participação focalizada no imediatismo do espaço de moradia. As ações de natureza
coletivas são expressões do espaço municipal, a interação quando ocorre é com as instituições municipais de governo e não ultrapassam as fronteiras (do ponto de vista
político) das unidades territoriais formais na direção de uma atuação mais ampla. Para
uma governança colaborativa faz-se necessário estabelecer relações intergovernamentais
de um novo tipo, pautadas no capital social. Como vimos, a ausência de arranjos institucionais em nível estadual dificulta atitudes de cooperação entre os municípios; os
9. Concordamos com Côrtes (2002, p. 43), quando a autora ressalta que “a consolidação dos conselhos e das
conferências de saúde, como espaços para os quais foram canalizadas as demandas dos movimentos popular e
sindical, teve sucesso onde formou-se uma ‘policy community’ composta por uma elite de reformadores do sistema
brasileiro de saúde em aliança com lideranças dos movimentos popular e sindical”.
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Gestão Pública e Democracia: os conselhos gestores de saúde da Região Metropolitana de Natal-RN
conflitos partidários funcionam como obstáculos poderosos a integração das ações, e o
aprofundamento das relações intergovernamentais tende a ocorrer quando a sociedade,
por meio de suas organizações, assume o papel de cimento dessas relações.
Por outro lado, as incertezas acerca do financiamento das ações de âmbito metropolitano, que pode gerar ou não um aumento do gasto público e da burocracia, e da
perda de autonomia dos municípios vêm sendo os principais constrangimentos para a
realização de ações compartilhadas. A ausência de estrutura de planejamento e de mecanismos permanentes de financiamento dos problemas comuns, na grande maioria das
RM, impõe limites e desafios para uma gestão compartilhada. Constatamos, portanto,
que o fato de um Conselho Gestor pertencer a uma região metropolitana não garante
deliberações visando à solução de problemas comuns aos municípios que a compõem.
Na sociedade brasileira, experiências de cooperações federativas, ou melhor, de governança colaborativa por construção institucional (intermunicipais) são heterogêneas
e incipientes, e com a promulgação da Lei dos Consórcios Públicos, em 2005, verificamos retrocessos em experiências consolidadas. As variações na realidade dos municípios
brasileiros, em termos de recursos financeiros, técnico e político para responder as suas
responsabilidades impõem dificuldades para se estabelecer relações de cooperação, de
partilha e de participação entre os diferentes atores. Não há dúvidas, também, acerca
da importância que a existência os Conselhos Municipais têm tido para o aprendizado
da democracia, não somente por parte dos setores da sociedade civil, mas, também, por
parte dos que representam o Estado. A convivência com a diferença e com o conflito
propiciam um aprendizado no sentido da busca de soluções que se produzem na discussão e na argumentação, elementos vitais para a deliberação democrática.
A disseminação de Conselhos em praticamente todos os municípios brasileiros
não significa que em todas as localidades a representação dos usuários e beneficiários de
bens e serviços sociais tem sido autônoma e consistente. Alguns podem ter participação
intensa de representantes do movimento popular e sindical, mas a maioria existe apenas
formalmente, criados para responder à exigência legal e, desse modo, viabilizar o recebimento de recursos financeiros. Apesar de não garantir, por si só, a participação plena e
efetiva, inicialmente idealizada pelo movimento da Reforma Sanitária, a definição legal
da participação social via conselhos gestores representa uma conquista na construção da
cidadania. Os CMS da RMN apresentam semelhanças no que diz respeito à ausência
de uma elite política voltada a questões relacionadas à participação, ao controle social
e à governança colaborativa como plataforma política. Os governos municipais não
estimularam a institucionalização e organização dos Conselhos no sentido de torná-los
mais autônomos e independentes do executivo municipal.
A participação, que é a base da democracia deliberativa, para existir, de fato, precisa estar ancorada no debate público e coletivo entre cidadãos livres e iguais, no qual
a legitimidade das decisões políticas deve emergir de processos de discussão abertos,
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Lindijane de Souza Bento Almeida
que, orientados pelos princípios da inclusão, do pluralismo, da igualdade participativa,
da autonomia e do bem-comum, possam realizar mudanças significativas na lógica do
poder tradicional. A consolidação de fóruns participativos pode auxiliar para a democratização das instituições brasileiras, desde que a participação da sociedade no processo
decisório tenha como base de sustentação a exposição das diferenças para a construção
do interesse público, partindo do princípio de que este não está dado previamente,
mas sua construção advém do debate e da disputa democrática de interesses, ou seja, o
interesse público se constrói na arena das disputas políticas. A politização do processo
de tomada de decisão ocorre quando há, de fato, uma articulação entre o Estado e a
sociedade, baseada na busca do bem comum.
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Gestão Pública e Democracia: os conselhos gestores de saúde da Região Metropolitana de Natal-RN
REFERÊNCIAS
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Paulo: Fapesp: Revan, 2000.
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72
Revista Democracia e Participação
FORMAÇÃO DE AGENDA NA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL:
O PAPEL DAS CONFERÊNCIAS COMO UM SISTEMA
INTEGRADO DE PARTICIPAÇÃO E DELIBERAÇÃO1
Cláudia Feres Faria2
Eleonora Schettini M. Cunha3
Resumo:
Abstract:
Este artigo objetiva analisar as conferências de
assistência social como parte de um Sistema
Integrado de Participação e Deliberação que tem
como objetivo incluir diferentes vozes no processo
de formação da agenda dessa política em diferentes
níveis territoriais, do local ao nacional.
This article aims to analyze the Social Welfare
Conferences as an Integrated System of Participation
and Deliberation which aims to include different
voices in the agenda setting process in different
territorial levels, from local to national.
Palavras-chave: Sistema integrado de participação
e deliberação. Política de assistência social.
Conferências de políticas públicas. Agenda política.
Keywords: Integrated system of participation and
deliberation. Social welfare policy. Public policy
conference. Agenda setting.
1. Parte dos dados apresentados neste artigo são oriundos da pesquisa Da constituição do interesse público à busca por
justiça social: uma análise das dinâmicas participativa e deliberativa nas Conferências Municipais, Estaduais e Nacionais
de Políticas Públicas, coordenada por Cláudia F. Faria e financiada pela Fundação de Apoio à Pesquisa de Minas Gerais
(Fapemig) à qual as autoras agradecem o apoio.
2. Professora adjunta do Departamento de Ciência Política, da Universidade Federal de Minas Gerais.
3. Professora adjunta do Departamento de Ciência Política, da Universidade Federal de Minas Gerais.
Cláudia Feres Faria | Eleonora Schettini M. Cunha
1 INTRODUÇÃO
A análise de políticas públicas constitui um campo de pesquisa em permanente desenvolvimento, no qual o debate entre diferentes abordagens evidencia a complexidade
e a multiplicidade de aspectos e elementos que se apresentam como relevantes para a
melhor compreensão dos processos que as constituem. Não bastassem as especificidades
dos processos de formulação, implementação, avaliação e mudança que ocorrem nas
diferentes áreas de políticas públicas, gerando grande interesse dos estudiosos da área, as
preocupações com a democratização desses processos impõem novos desafios analíticos.
A evidência de que diferentes atores buscam influenciar a formação da agenda de
política por diferentes meios, envolvendo desde a tematização dos problemas públicos
até a apresentação de soluções alternativas para esses problemas, é acompanhada da
ampliação de esferas onde estes processos podem ocorrer. Múltiplos espaços, institucionais ou não, que envolvem padrões plurais de ação na formulação das diretrizes de uma
determinada política pública propiciam a possibilidade da ampliação da participação
desses atores, incluindo os usuários da política.
Tais espaços não constituem uma novidade no Brasil do novo século, onde
diferentes áreas de políticas públicas os utilizam para articular uma pluralidade de
atores nos três níveis da Federação. Um exemplo paradigmático é a área da assistência social, que tem enfrentado um duplo desafio: (1) firmar-se como uma política
pública que assegura direitos de proteção social, organizada em um sistema nacional,
com atribuições claras para cada ente federado, articulados entre si; e (2) a construção democrática e deliberativa da própria política, o que inclui a efetivação de um
sistema integrado vertical e horizontalmente de participação e deliberação4 em torno
da formulação de suas diretrizes.
Este artigo pretende avaliar parte desse sistema – as conferências de políticas públicas – por meio de uma lente analítica singular: as contribuições dos estudiosos do campo
discursivo para a literatura sobre políticas públicas. Consideramos que algumas das proposições desse campo são de grande valia para a análise da formação e mudança da agenda
de políticas públicas ao introduzir a importância da dinâmica deliberativa nesse processo.
A análise do diálogo entre parte dos autores que conformam esse campo de estudo será
objeto da primeira seção. As contribuições da teoria deliberativa estarão ancoradas na
ideia de sistema integrado de participação e deliberação, objeto da segunda seção, que defende a articulação de formas distintas de ação em espaços diferenciados como produtoras
de agendas de políticas mais inclusivas e legítimas.
4. A aplicação da ideia de sistema integrado de participação e deliberação para análise das instituições e espaços
participativos no Brasil encontra-se em Cunha (2009); Faria et al. (2012); Almeida; Cunha (2012). A ideia de sistema
integrado de participação e deliberação vertical e horizontal para o mesmo tema encontra-se em Faria (2012).
74
Revista Democracia e Participação
Formação de agenda na política de assistência social:
o papel das conferências como um sistema integrado de participação e deliberação
Essa ideia constituirá a base para a análise das conferências de assistência social
que ocorrem em todo o território nacional, do nível local até o nacional. A análise das
dinâmicas participativa, representativa e deliberativa nessas conferências será objeto
da quarta seção. O potencial dessas dinâmicas para ampliar o escopo da democratização do processo de formação da agenda na política da assistência social será objeto
da quinta seção, conclusiva.
2 POLÍTICAS PÚBLICAS, FORMAÇÃO DE AGENDA E DELIBERAÇÃO
Estudiosos de políticas públicas têm buscado compreender o processo de formação de
agenda dos governos, observando diferentes dimensões e elementos que vão se revelando
essenciais para essa compreensão. Dentre eles, há um conjunto de autores que enfatizam
as dinâmicas interativas que incluem uma ampla gama de atores sociais e políticos nos
processos de formulação e mudanças de políticas públicas. As ideias desenvolvidas por
Heclo (1978 apud STILLMAN, 2000), talvez de forma seminal, não só evidenciam a importância da interação entre diferentes atores nos processos de formulação e de mudanças
nas políticas públicas, mas também questionam as análises que focavam em apenas um
grupo estável de atores, poderosos e facilmente identificáveis: o chamado “triângulo de
ferro”, que envolve o Executivo, os Comitês do Congresso e os grupos de interesse.
Heclo (1978 apud STILLMAN, 2000) propõe incorporar às análises uma vasta
rede de pessoas que interagem com o governo e que buscam influenciar e guiar suas
atividades. Assim, ele introduz a perspectiva de “redes temáticas”, chamando a atenção dos analistas para o papel que ideias compartilhadas podem adquirir tanto para a
formatação e compreensão de determinados problemas públicos quanto para as suas
possíveis soluções. Concernente com a intensificação do ativismo político que marcou
a década de 1970 em diferentes países e que visava influenciar, de alguma forma, a
formulação das políticas públicas, ele destaca o papel desses novos atores sociais no
processo de formulação destas.
Uma “rede temática” (issue network) compreende, segundo Heclo (1978 apud
STILLMAN, 2000), um número muito amplo de participantes articulados entre si,
movidos por um compromisso intelectual e/ou moral com alguma questão, com graus
variados de comprometimento e de dependência uns dos outros. Não é possível determinar os limites da rede, mas é possível identificar uma movimentação constante dos
participantes fora e dentro dela. Para Heclo, as redes operam em muitos níveis e as
pessoas, mais que peritos técnicos, são ativistas políticos que conhecem como cada um
percebe a questão que os aproxima, estando determinadas a moldar a política pública
em questão. Ele também destaca a possibilidade de que essas redes gerem líderes, denominados de policy politicians.
volume 1 | número 1 | abril-jun 2014
75
Cláudia Feres Faria | Eleonora Schettini M. Cunha
Na esteira de sua proposição, novas abordagens foram construídas, levando em
conta a participação de grupos e indivíduos nos processos que geram e alteram políticas
públicas. Uma das mais influentes, desenvolvida por John Kingdon (2003), busca explicar o processo de definição da agenda governamental, considerado o primeiro estágio
da política, por meio de um modelo interativo que destaca sua natureza dinâmica. Esta
se caracteriza pela existência de três fluxos de processos – o de problemas, o de alternativas e o político – que eventualmente se conectam.5
Um primeiro fluxo, o de problemas, é o processo pelo qual um determinado
problema é reconhecido como crítico e passa a ocupar a atenção de tomadores de
decisão. Nesse fluxo, grupos de interesse buscam, por meio de diferentes estratégias,
chamar a atenção pública para a questão, no intuito de inseri-la na agenda governamental.6 Um segundo fluxo, o de alternativas, gera opções de solução para o problema em questão, tendo papel relevante os pesquisadores, analistas e acadêmicos.
Esses atores constituem o que Kingdon denomina de comunidade de políticas (2003,
p.117), constituída por atores internos e externos ao governo que têm em comum
o interesse por um problema de política e a interação contínua e consistente, ao
ponto de conhecerem as ideias, as propostas e as atividades uns dos outros. Dentre
eles, destacam-se os empreendedores de política,7 que investem energia e tempo em
processos de sensibilização dos atores governamentais para a questão, apresentando
e defendendo publicamente as ideias da comunidade, visando mobilizar e formar
opiniões e influenciar instituições.
Um terceiro é o fluxo político, que corresponde ao processo político em si, que
tem dinâmica e regras próprias, gerando eventos que são potenciais definidores de
agenda, como eleições, comoção nacional ou a posse de um novo governo. Os três
fluxos têm vida própria e, em momentos específicos e críticos – as chamadas janelas
de políticas – eles se conectam, e problemas, soluções e oportunidade política levam
a questão para a agenda política e, quiçá, para a agenda decisória. Algumas janelas são previsíveis e até mesmo institucionais, como a revisão de legislação; outras
são imprevisíveis, como quando ocorre um desastre climático ou resultado eleitoral
(KINGDON, 2003, p. 229). De todo modo, janelas são pequenas e escassas, não
ficam abertas por longo tempo.
5. Baseia-se no modelo de comportamento organizacional da Lata de Lixo, de Cohen; March; Olsen (1972), que explica
o processo de tomada de decisão em anarquias organizadas a partir de quatro fluxos: (1) o fluxo de problemas, (2) o de
escolhas, (3) o fluxo de energia dos participantes e (4) o nível de fluxo de soluções.
6. Kingdon (2003) aponta também como determinante para a constituição da agenda a vontade política dos atores
políticos que querem se reeleger; a vontade dos burocratas que propõem iniciativas para promovê-los em seus cargos e
os altos custos políticos, sociais e orçamentários para solucioná-lo.
7. Kingdon (2003) identifica dois tipos de empreendedores de política: os visíveis, que são aqueles que recebem
considerável atenção da imprensa e do público, e os invisíveis, que formam as comunidades nas quais as ideias são
geradas. Como atores visíveis, o autor sugere o chefe do Executivo, os ministros, os atores do Legislativo, a mídia, os
grupos de interesse e os partidos políticos. Como invisíveis, o autor identifica os burocratas, os analistas e os acadêmicos.
76
Revista Democracia e Participação
Formação de agenda na política de assistência social:
o papel das conferências como um sistema integrado de participação e deliberação
Kingdon (2003) destaca a importância das ideias quando combinadas com as janelas de políticas, bem como o papel dos empreendedores na sua apresentação e discussão,
em diferentes espaços e por diversos meios. A interação entre esses atores favorece adaptações e mudanças, correspondentes à fluidez dos processos, desenvolvendo o seu senso
de oportunidade e de antecipação de mudanças.
Essa interação, em contexto federativo, não passa despercebida do autor, que entende o federalismo como mais um elemento a complexificar a análise da definição de
agenda, ao envolver agendas múltiplas para a mesma questão num dado momento. Não
obstante, pode também possibilitar a inovação e a ação diversificada dos empreendedores quando encontram obstáculos em algum dos níveis (KINGDON, 2003, p. 230).
A busca por explicação das mudanças nas políticas públicas levou Sabatier e
Jenkins-Smith (1999) a também focarem nas relações que se estabelecem entre diferentes atores de certa área ou setor, gerando o modelo de coalizão de política. Para os
autores, uma coalizão de defesa é uma aliança de grupos políticos (que abarca diferentes
atores), num subsistema de política pública, que compartilham interesses e ideias, em
contraponto a outras coalisões. Estas competem entre si e pressionam para que suas
crenças se tornem propostas de políticas públicas e entrem na agenda governamental,
o que dependerá da capacidade financeira, intelectual (expertise), política (como o número de apoiadores e a capacidade de mobilização) e institucional (como a autoridade
legal) que as coalizões dispuserem. As alterações na agenda de políticas públicas resultarão de mudanças nos padrões de interação entre coalizões no interior de subsistemas de
política, gerados, em maior medida, por eventos externos ao subsistema e, em menor,
por mudanças em parâmetros relativamente estáveis.
A literatura aqui brevemente descrita tem o importante mérito de oferecer aos
analistas de políticas públicas elementos teóricos e empíricos que destacam o papel de
um amplo conjunto de atores na determinação da agenda pública e no seu processo
de mudança. Ao enfatizar alianças de diferentes grupos que compartilham interesses,
ideias, valores e crenças, bem como as possíveis interações entre eles, tais abordagens
ampliam, de fato, o número de participantes no processo de construção da agenda,
uma vez que inclui novos atores, além dos tradicionalmente considerados – governo,
burocratas, legisladores e técnicos.
Ainda assim, autores filiados ao campo discursivo de análise de políticas públicas
(HAJER; WAGENAAR, 2003; FISCHER, 2003; GOODIN, 2008) ressentem da ausência de explicações acerca dos processos em que ocorre a dinâmica interativa por meio
da qual são estruturados os problemas, formadas as coalizões e mudadas as agendas, especialmente aqueles que se organizam de forma participativa e deliberativa.
Para suprir essa possível lacuna, os autores deste campo enfatizam o papel da argumentação na formulação de políticas. Partindo das formas de comunicação entre os
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77
Cláudia Feres Faria | Eleonora Schettini M. Cunha
participantes, eles analisam os processos pelos quais se definem problemas e se constroem estratégias de ação para solucioná-los. Aceitando o modelo dos fluxos, proposto
por Kingdon, os estudiosos destacam o papel dos argumentos não só para justificar e
sustentar a definição do problema, mas também para delinear alternativas e recomendações, num processo discursivo que desenvolve e refina as ideias, constrói e reconstrói os
problemas de políticas e suas possíveis soluções (FISCHER, 2003, p.183), possibilitando o que Kingdon (2003) define como “amaciamento”. Nessa direção, assumem que os
argumentos envolvem relações de poder e o próprio exercício do poder, apontando para
importância de se observar a inclusão (e exclusão) de alguns conteúdos, a distribuição
de responsabilidades e o emprego de estratégias políticas específicas.
Não obstante, reconhecem que nesse processo discursivo constroem-se histórias
normativas e prescritivas, as quais apontam uma situação problemática que demanda
política pública e cursos de ação que podem resolvê-la. Os empreendedores de política
desenvolvem e refinam os “quadros de políticas”, entendidos como princípios de organização que governam os significados subjetivos atribuídos aos eventos sociais, construindo metáforas geradoras que ligam os problemas a propostas de ação.
A abordagem discursiva entende que diferentes pessoas constroem diferentes argumentos em uma mesma narrativa (ou política pública) e que essas perspectivas múltiplas geram controvérsias, que são inerentes às considerações. Nesse sentido, o foco do
analista pode ser tanto o conteúdo da deliberação quanto os processos pelos quais as
pessoas buscam solucionar os conflitos, em que ocorrem discursos reflexivos que possibilitam aos participantes refletirem sobre a política pública, a mudança do quadro de
definição de problemas ao longo do tempo e como os atores apreendem e respondem às
mudanças nas situações nas quais eles mesmos se encontram (FISCHER, 2003).
O processo discursivo e reflexivo ocorre em contextos específicos, muitas vezes contextos aninhados, em que se compõem diferentes agendas ao mesmo tempo,
como as econômicas e ambientais, o que faz com que Fischer (2003) reforce a importância de se levar em conta o contexto no qual as redes temáticas, comunidades de
políticas ou coalizões de defesa são formadas, bem como as formas nas quais elas se
estruturam. Além de crenças, afirma o autor, narrativas, discursos e histórias contadas
também constituem meios de interação que impactam o processo de descoberta e
formatação dos problemas, bem como de orientação das coalizões a serem formadas.
A deliberação constitui-se, portanto, como um componente importante da interação na medida em que ela pode promover contextos de “descobertas públicas” por
meio de um processo de troca de argumentos e de aprendizado social sobre como estruturar os problemas e as possibilidades públicas de resolvê-los. Ademais, adverte Fischer (2003), as coalisões políticas são reproduzidas e transformadas via um conjunto
amplo de atores que não necessariamente se encontram face a face, mas que, por meio
de suas atividades discursivas, constroem e reforçam narrativas em um determinado
78
Revista Democracia e Participação
Formação de agenda na política de assistência social:
o papel das conferências como um sistema integrado de participação e deliberação
campo político (p. 106). Tais narrativas podem ser representadas pelas ideias, crenças e
discursos construídos pelos atores em diferentes espaços, não demandando a presença
de todos em todos os lugares.
A abordagem discursiva contribui para a análise ora desenvolvida ao chamar a atenção para o papel da “participação discursiva” de um conjunto amplo de atores nos processos de formulação e mudança de políticas, podendo influenciar a direção da agenda.
Pensar a construção da agenda de políticas públicas como uma prática participativa e argumentativa requer compreender o processo por meio do qual a participação discursiva
ocorre, o que é particularmente relevante em algumas áreas de políticas públicas, como
no caso da assistência social, tendo em conta a complexidade de espaços hoje existentes
para a interação de diferentes atores. Exatamente por que estamos lidando com múltiplos atores que interagem por meio de espaços diferenciados, que se conectam tanto
de forma vertical quanto horizontalmente, faremos uso de outra contribuição da teoria
discursiva para a análise da formação e mudança da agenda pública: a ideia de sistema
integrado de participação e deliberação.8
3 O SISTEMA INTEGRADO DE PARTICIPAÇÃO E DELIBERAÇÃO
A construção de uma abordagem discursiva para a análise de políticas públicas compõe um cenário mais amplo que marca o debate no seio da teoria democrática acerca
da deliberação. Se, num primeiro momento, as reflexões organizaram-se em torno da
forma como a deliberação informa a ação dos cidadãos e de seus representantes e a
sua incidência sobre a qualidade das suas escolhas políticas, logo em seguida surgiram
experimentos, práticas e instituições políticas que, de alguma forma, operacionalizam
as proposições teóricas, provocando novas reflexões e formulações. Nesse processo, a
deliberação tem sido entendida como “um entre diversos momentos do processo político”, que ocorre tanto dentro quanto fora dos espaços institucionais e que se combina
com outras formas de ação. A noção abrangente de democracia deliberativa vem sendo,
portanto, substituída pela ideia de deliberação democrática (MANSBRIDGE, 2007).
No que diz respeito às formas de ação, sabe-se que participação e deliberação operam por meios diferentes. Enquanto a primeira pressupõe um envolvimento direto, amplo e sustentado dos cidadãos nas questões públicas, a segunda demanda uma reflexão
qualificada sobre as preferências e escolhas políticas dos atores (PAPADOPOULOS;
WARIN, 2007; COHEN; FUNG, 2004; FISHKIN, 1991). Ambas não podem ser
pensadas somente no nível local, mas demandam espaços mais amplos que, por sua vez,
requerem mediações entre os diferentes níveis, o que traz para o debate a questão da
8. A ideia de sistema se difere da ideia de redes pelo fato de permitir diferenciar analiticamente espaços, ações e públicos.
Ver em Dryzek (2010) as consequências de tal distinção.
volume 1 | número 1 | abril-jun 2014
79
Cláudia Feres Faria | Eleonora Schettini M. Cunha
escala e da representação. Compor um modelo analítico, portanto, necessariamente
deve considerar tanto o problema da escala quanto a diferenciação de formas de ação,
uma vez que se reconhece que as democracias requerem não só instituições, mas também participação e contestação, não só processos locais, mas também regionais, nacionais e transnacionais. O grande desafio passa a ser como coordenar essas diferentes
práticas em diferentes espaços.
Para dar conta dessa complexidade e, ao mesmo tempo, produzir um julgamento
político mais crítico e informado, propõe-se um processo analítico que considere tanto a
resistência e o conflito quanto o diálogo e a cooperação em diferentes espaços da sociedade. A abordagem sistêmica possibilita compatibilizar diferentes formas de ação e comunicação que cumprem funções diversificadas no sistema em espaços diferentes que podem
servir como inputs uns para os outros, possibilitando a formação, de baixo para cima, de
um julgamento público acerca das políticas públicas em questão (FARIA, 2012).
Uma primeira formulação da ideia de sistema deliberativo coube a Mansbridge
(1999), que destacou as diferentes arenas – formais e informais – onde a deliberação
ocorre e a possibilidade de que os processos deliberativos atravessem múltiplas esferas
discursivas e públicas, todas com a mesma relevância política, ainda que não a mesma capacidade decisória. Ao retomar a ideia, Hendriks (2006) propõe um modelo de sistema
deliberativo integrado, que distingue as esferas discursivas conforme a sua composição
e formalidade,9 admitindo que algumas sejam mais públicas, inclusivas e estruturadas
do que outras, podendo ser constituídas pelo Estado ou pela sociedade civil. A autora
entende que essas esferas estão conectadas entre si, umas podendo influenciar as outras,
bem como considera que o sistema também conecta cidadãos que não estão engajados
em nenhum desses espaços, assegurando que todos os discursos estejam presentes na
deliberação, não necessariamente de forma harmônica entre si.
De um modo geral, os proponentes da ideia de sistema deliberativo integrado10
definem-no como
um conjunto de partes diferenciadas, mas interdependentes, com funções
distribuídas e conectadas de forma a construir um todo complexo. Ele
requer diferenciação e integração entre as partes, alguma divisão funcional
de trabalho bem como alguma interdependência funcional de forma que
a mudança em um componente redundará em mudanças em outros.
Ele envolve conflito e solução de problemas políticos baseado na fala.
9. Esferas macro discursivas, informais, constituídas por movimentos sociais, redes, ONGs, grupos de interesse,
corporações, mídia, formadores de opinião; esferas micro discursivas, formais, integradas por parlamentares, funcionários
governamentais, especialistas, juízes; esferas discursivas mistas ou híbridas, espaços formais e informais nos quais
participam um misto de cidadãos, representantes de grupos de interesse, ativistas, especialistas, a mídia, funcionários do
governo, parlamentares, dentre outros.
10. Especialmente Mansbridge; Parkinson (2012) e Dryzek (2010).
80
Revista Democracia e Participação
Formação de agenda na política de assistência social:
o papel das conferências como um sistema integrado de participação e deliberação
A fala é uma forma de comunicação menos exigente que pode envolver
desde a demonstração, a expressão e a persuasão até o próprio debate
(MANSBRIDGE; PARKINSON, 2012, p. 7).
O sistema envolve tanto arenas formais de tomada de decisão quanto informais de
formulação de temas e problemas concernentes ao interesse público. De forma geral,
a ele são imputadas três funções principais: epistêmica, ética e democrática. A função
epistêmica corresponde à produção de opiniões, preferências e decisões com base nos
fatos e na lógica argumentativa, o que ocorre por meio da troca de razões acerca de
questões de interesse comum. A função ética sustenta-se na produção do respeito mútuo, do tratamento igualitário entre os participantes, de modo que não predomine a
dominação por qualquer meio. A função democrática implica a inclusão de múltiplas
vozes, interesses e pretensões em bases mais igualitárias, sendo que o sistema não deve
excluir nenhum cidadão, discurso ou forma de ação sem uma justificação que possa ser
razoavelmente aceita por todos.
Para responder aos possíveis conflitos derivados da realização simultânea dessas
três funções, sugere-se uma “ecologia deliberativa”, por meio da qual se analise o
sistema como um todo, e não pelas suas partes. Decisões democráticas legítimas
serão alcançadas sempre que elas foram dialogicamente gestadas em um contexto
de respeito mútuo entre os cidadãos e por intermédio de um processo inclusivo
de escolha coletiva. Esse tipo de legitimidade pode facilitar a cooperação que, por
sua vez, promove a deliberação. No entanto, toda vez que esse círculo virtuoso se
quebrar, formas não dialógicas de ação, como o protesto, podem contribuir para
restaurar essa dinâmica ao denunciarem a falta de publicidade ou a fraqueza da
deliberação em cumprir suas promessas (MANSBRIDGE; PARKINSON, 2012,
p. 31-32). A proposta, portanto, considera uma dinâmica sobreposta, em que essas
formas podem operar, e frequentemente o fazem, concomitantemente. A ideia é
que uma pluralidade de espaços, com diferentes padrões de ações, pode contribuir
para a formação das capacidades deliberativas em diferentes graus.
Essa ideia de sistema possibilita ainda apreender a natureza dinâmica e a multidimensionalidade da deliberação democrática (BÄCHTIGER et al., 2009), uma vez
que admite que a articulação entre arenas e atores diversos e dispersos no tempo e no
espaço traz diferentes contribuições à deliberação. A legitimidade dessas arenas reside
na capacidade de realizar processos deliberativos públicos e inclusivos, alimentando os
debates mais amplos (PARKINSON, 2006; WARREN, 2007; MENDONÇA, 2008).
Publicidade, reciprocidade, inclusividade e controle são os princípios que devem
balizar as trocas no interior do sistema. No entanto, se nem todas as suas práticas
conseguem alcançar tais princípios, elas precisam ser justificadas tendo tais condições
como padrão crítico. É nesse sentido que se defende que, mesmo quando as partes não
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Cláudia Feres Faria | Eleonora Schettini M. Cunha
alcançam as condições deliberativas requeridas, o todo será mais legítimo quanto mais
se aproximar dessas mesmas condições.
Pensar a participação e a deliberação numa perspectiva sistemicamente integrada
tem como pressuposto que os diferentes espaços de deliberação oferecem contribuições
importantes para a política pública e a conexão que estabelecem entre si permite a construção de um discurso público que circula nas diferentes arenas. A legitimidade das decisões tomadas nessas arenas, portanto, decorre das trocas que ocorrem por meio de processos deliberativos que se cruzam devido às interações sociais. Interessante observar que
essa troca de discursos não é, necessariamente, um diálogo, podendo haver conflito entre
as arenas, conforme lembram Hendriks (2006) e Thompson (2008). A legitimidade das
decisões, portanto, ocorre de forma diferida e difusa e decorre do processo contínuo de
interação entre as diferentes arenas, onde estão presentes vários tipos de representantes,
ativados por diferentes grupos de representados (PARKINSON, 2006), o que permite
pensar em termos de escala.
A ideia de sistema integrado de participação e deliberação aplica-se às conferências
de políticas públicas realizadas no Brasil, uma vez que elas envolvem uma gama diferenciada de atores sociais e políticos que visam construir coletivamente uma agenda
de política pública. Essa dinâmica ocorre por meio de diferentes padrões de ação que
envolvem, simultaneamente, a participação, a deliberação e a representação no interior
de contextos específicos, caracterizados por múltiplas esferas, mas cujo objetivo final
é a produção de uma agenda pública que sensibilize o poder público acerca de suas
necessidades, gerando uma agenda governamental e, de modo mais incisivo, decisória.
4 A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL
Pode-se afirmar que o processo constituinte que gerou a Constituição Federal de 1988
foi a mais importante janela de política para a área da assistência social, uma vez que
possibilitou que as consequências da questão social fossem percebidas como um grave
problema público, a ser resolvido pelo Estado brasileiro por meio de ações públicas de
proteção social sem a exigência de contribuição prévia.11 A comunidade de política dessa
área dispunha de propostas e alternativas de ação que incluíam desde a mudança do paradigma da atenção – assistência social como direito de todos os cidadãos e não benesses
e filantropia – até a forma de construção e fiscalização da política – que incluía a ideia de
participação da sociedade.
A Lei Orgânica da Assistência Social (Loas), promulgada em 1993, prevê que
a política se organize na forma de um sistema nacional, tanto para a prestação de
11. A íntegra dos argumentos relativos à formação histórica da política de assistência social encontra-se em Cunha (2009) e
da sua especificidade pós 1988 encontra-se em Sátyro; Cunha (2011).
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Revista Democracia e Participação
Formação de agenda na política de assistência social:
o papel das conferências como um sistema integrado de participação e deliberação
serviços quanto para a concretização da participação, estabelecendo conselhos e
conferências, ambos nos três níveis de governo, como os espaços de sua viabilização.
No entanto, somente em 2003, a IV Conferência Nacional deliberou pela efetivação do Sistema Único de Assistência Social (Suas), o que foi regulado pela Política
Nacional de Assistência Social (PNAS), em 2004, e pela Norma Operacional Básica
do Suas (NOB-Suas), em 2005.
Essas regulações especificam as funções da assistência social, instituem padrões de
referência para as atividades, definem o papel dos níveis de governo, organizam a prestação de serviços pela rede (que inclui as organizações privadas), estabelecem critérios
de financiamento, instituem sistemas de monitoramento e avaliação da política e, o
que é mais específico para a análise que nos propomos, reforçam a existência e o funcionamento de instâncias de articulação (Fóruns), de pactuação (Comissões Intergestores Tripartite/CIT e Bipartite/CIB) e de deliberação (Conselhos e Conferências). Esses
diferentes espaços de participação e deliberação devem operar de forma concomitante
e interdependente, constituindo um sistema integrado. Além desses, podem-se identificar outros espaços não descritos nas normas, como fóruns específicos da sociedade
civil, grupos de trabalho eventuais e Casas Legislativas, denotando a complexidade das
interações e da dinâmica discursiva. As possibilidades de participação e deliberação
nesse sistema também são complexas: uma primeira está relacionada à própria esfera
discursiva; uma segunda ocorre no mesmo nível de governo, envolvendo diferentes
esferas discursivas (por exemplo, conselho, conferência, fórum, Poder Legislativo no
nível municipal); uma terceira acontece entre os níveis, articulando um mesmo tipo de
arena envolvendo dois ou três níveis de governo, como é o caso das CIB e CIT ou os
colegiados que reúnem gestores municipais e gestores estaduais, conselheiros municipais e estaduais e mesmo as conferências, que são organizadas de forma articulada entre
si (ALMEIDA; CUNHA, 2012; CUNHA, 2012).
Essa emaranhada malha participativa e deliberativa também indica que os fluxos
deliberativos podem ocorrer em diferentes direções, a depender da articulação entre
os diversos espaços (ALMEIDA; CUNHA, 2012). Analisar o processo de formação
de agenda num sistema intricado como esse requer um esforço analítico que incorpore novos elementos, para além daqueles desenvolvidos até então. É preciso entender
o potencial de processos democráticos de decisão, que incorporam diferentes atores
que deliberam entre si, para serem geradores de fluxos – de problemas, de alternativas
e políticos – que venham a intervir na formação de agendas governamentais. O estudo das conferências de assistência social constitui um primeiro passo nessa direção,
reforçando a proposição apresentada inicialmente de que não é possível formular
agendas de políticas públicas legítimas olhando apenas para um conjunto restrito de
atores políticos e sociais.
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Cláudia Feres Faria | Eleonora Schettini M. Cunha
5 AS CONFERÊNCIAS DE ASSISTÊNCIA SOCIAL
As conferências nacionais de assistência social constam no artigo 18 da Loas, que prevê
sua realização, a cada quatro anos, por convocação ordinária do conselho nacional, com a
atribuição de avaliar a situação da política e propor diretrizes que venham a aperfeiçoá-la,
objetivo que é também o das conferências dos níveis estadual e municipal. A primeira conferência realizada após a promulgação da Loas ocorreu em 1995 e, desde então,
ocorreram oito delas, a última em 2011, o que indica a ocorrência regular de momentos
de revisão da política, janelas previsíveis, nos termos de Kingdon (2003), bem como a
existência de eventos realizados extraordinariamente, para além do prazo previsto em lei.
A Conferência Nacional é precedida de conferências estaduais e estas, por sua vez, são
precedidas de conferências municipais e/ou regionais. Essa dinâmica tem se mantido
desde a primeira conferência, assim como a escolha de uma temática que orienta as deliberações, embora as regras e os procedimentos deliberativos tenham mudado ao longo
desse tempo como decorrência do processo de aprendizado ensejado por esta dinâmica.
A análise das conferências de assistência social como sistema integrado de participação e deliberação (FARIA, 2012) focará parte do processo deliberativo, que ocorreu
no município de Belo Horizonte e no estado de Minas Gerais e que culminou com a
realização da VIII Conferência Nacional de Assistência Social, convocada extraordinariamente para realizar-se no mês de dezembro de 2011, em Brasília, cujo tema foi
“Consolidar o Suas e valorizar seus trabalhadores”.
5.1 A participação nas conferências de assistência de social
Participaram das conferências de assistência social cidadãos sem vínculo representativo, cidadãos com vínculo representativo (cidadãos-delegados), observadores e convidados (autoridades governamentais, acadêmicas e culturais, bem como acompanhantes de pessoas com deficiência). Nas chamadas pré-conferências, realizadas no âmbito
municipal e de amplitude distrital, é mais comum a participação do cidadão sem
vínculo representativo, ao passo que nas etapas posteriores participam prioritariamente cidadãos-delegados, com direito a voz e a voto. Convidados e observadores só têm
direito a voz. Cidadãos-delegados são paritariamente divididos entre representantes da
sociedade civil (50%) e do governo (50%), sendo que a sociedade civil envolve usuários, membros de entidades prestadoras de serviços e trabalhadores da área, e o governo
é representado pelos gestores públicos.
Entre os delegados, existem os eleitos e os natos. Os primeiros não necessariamente
precisam apresentar uma trajetória na área, basta estarem presentes no processo e se candidatarem. Já os natos, necessariamente, possuem um vínculo com instituições da área
(geralmente o conselho do nível de governo), ou seja, membros de movimentos sociais,
entidades, associações e autoridades governamentais, vinculadas à política em questão.
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Revista Democracia e Participação
Formação de agenda na política de assistência social:
o papel das conferências como um sistema integrado de participação e deliberação
5.2 Os processos deliberativos das conferências: do local ao nacional
A partir das orientações gerais, emanadas pelo Conselho Nacional quando da convocação da Conferência Nacional, estados e municípios organizam suas próprias conferências, estabelecendo cronogramas e processos diversificados para realizar as deliberações.
Esse processo prevê um fluxo deliberativo e representativo em que os resultados de cada
etapa são encaminhados em forma de propostas e de cidadãos-delegados para a etapa
seguinte, subsidiando as discussões e as decisões a serem tomadas pelos participantes nas
etapas subsequentes (FARIA et al., 2012).
5.2.1 As pré-conferências de assistência social de Belo Horizonte
As pré-conferências do município de Belo Horizonte (BH)12 foram realizadas em espaços
que ofertam serviços da política de Assistência Social, como os Centros de Referência
de Assistência Social (Cras), Centros de Referência Especializada de Assistência Social
(Creas) e Espaço BH Cidadania. Elas tiveram a duração de um dia e envolveram um
total de 2.039 pessoas, sendo 79% da sociedade civil, 6% do governo municipal, 7%
de observadores e 9% de outros. A dinâmica das pré-conferências iniciava-se com o
credenciamento dos participantes, que receberam crachás de identificação e material informativo para subsidiar sua participação, nele incluídas as deliberações da conferência
anterior, realizada em 2009. Em seguida era instalada a plenária, coordenada por uma
Mesa Diretora, e realizada uma apresentação cultural, em que o tema e a importância do
processo conferencista e do controle social foram reforçados de maneira lúdica, atendendo a uma demanda da conferência anterior.
A seguir foi proferida uma palestra sobre o tema e os subtemas13 da conferência e
um balanço das deliberações aprovadas na Conferência de 2009, bem como das atividades já realizadas no município. Esse balanço constitui uma peça importante do processo
deliberativo, na medida em que permite a aferição daquilo que foi deliberado nos anos
anteriores e do que foi efetivamente cumprido, conectando tempos e espaços e servindo
de norte para a construção de novas proposições.
A atividade seguinte ocorreu nos Grupos de Trabalho (GT), formados aleatoriamente por 30 a 48 participantes, um coordenador e um relator, este indicado pela Gerência de Políticas Sociais, órgão municipal responsável pela condução das pré-conferências. Foram organizados, pelo menos, quatro GTs, correspondentes às quatro diretrizes a
12. As pré-conferências, em Belo Horizonte, são denominadas de Conferência Distrital de Assistência Social (CDAS). Foram
realizadas nove CDAS, uma em cada Região administrativa da cidade, sendo que para o estudo foram observadas as do
Barreiro, Noroeste, Leste, Oeste, Pampulha e Venda Nova, o que corresponde a 70% das realizada.
13. O tema e os subtemas das conferências são definidos pelo Conselho Nacional de Assistência Social e divulgados na
convocação e no regulamento da Conferência Nacional. A partir deles são deliberadas as diretrizes de cada conferência
para o seu nível de governo e para os níveis subsequentes.
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Cláudia Feres Faria | Eleonora Schettini M. Cunha
serem discutidas. Em todos os grupos ocorreram dois processos: a elaboração e aprovação
de três propostas (conforme o subtema em debate) e a eleição dos delegados para a Conferência Municipal.
De um modo geral, o processo deliberativo envolveu a apresentação de propostas e
pedidos de destaques (que visavam rejeitar ou alterar uma proposta), seguidos de justificação pública sobre a posição assumida, e, por fim, a decisão, que geralmente ocorria
por meio de votação, possibilitando que a aferição ocorresse por meio de contagem ou
contraste de crachás. De modo geral, os Grupos elaboraram e aprovaram suas propostas
por meio de (1) discussão seguida de aceitação da maioria, (2) aceitação sem discussão,
(3) rejeição pela maioria e (4) discussão seguida de reformulação. Os GTs constituíram
o primeiro momento de efetiva deliberação14 entre os participantes dado que todos os
presentes tiveram que discutir, justificar e decidir sobre um conjunto de propostas relativas às diretrizes previamente estabelecidas. Neste sentido, o número de participantes,
bem como a presença de coordenadores e regras para estruturarem o processo deliberativo impactou positivamente a qualidade do debate.
Quanto à eleição de delegados, o único pré-requisito era ser morador da regional
onde ocorria a pré-conferência, o que evidencia claramente a possibilidade de ampliação da comunidade de atores que participam da definição das diretrizes dessa política.
A regra previa que para cada três participantes seria eleito um delegado. O procedimento de escolha variou entre as pré-conferências analisadas. Os mecanismos mais
usuais foram: (1) os participantes manifestavam o interesse em ser representante da
regional na Conferência Municipal; (2) se o número de inscritos não ultrapassasse
as vagas disponíveis, os candidatos eram considerados delegados (3) se o número de
candidatos fosse superior ao número de vagas, havia votação.
Findos os trabalhos dos GTs, era instalada a plenária final, para a apreciação e
aprovação das propostas, oriundas dos grupos, bem como a apresentação dos delegados
eleitos para a Conferência Municipal. Nesse momento, os participantes tinham mais
uma chance de destacar as propostas aprovadas nos grupos, oferecer publicamente justificativas para suas posições e convencer os demais sobre a validade de suas posições
com base tanto em argumentos racionais quanto em apelos emocionais, o que poderia
gerar mudanças de preferências baseadas na fala. Não obstante, em nenhuma das préconferências acompanhadas foi pedido destaque e realizada qualquer modificação nas
propostas, sendo todas aprovadas na íntegra como vieram dos GTs.
Encerrada a Pré-Conferência, ocorria a eleição dos conselheiros do Conselho Regional
de Assistência Social (Coras) e a apresentação dos candidatos a representantes de usuários
14. Estamos definindo deliberação aqui nos termos de Mansbridge et al. (2012, p. 7), ou seja, como um processo que
envolve conflito e solução de problemas políticos baseado na fala enquanto uma forma de comunicação menos exigente
que pode envolver desde a demonstração, a expressão e a persuasão até o próprio debate.
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Revista Democracia e Participação
Formação de agenda na política de assistência social:
o papel das conferências como um sistema integrado de participação e deliberação
no Conselho Municipal de Assistência Social. Esse processo evidencia como as interações
entre as múltiplas arenas que compõem esta política ocorrem, uma vez que participantes
de conferências podem passar a integrar conselhos regional ou municipal, possibilitando a
extensão da deliberação das conferências para outros espaços.
5.2.2 A IX Conferência Municipal de Assistência Social de Belo Horizonte
A IX Conferência Municipal de Assistência Social de Belo Horizonte15 ocorreu durante
dois dias. Prevista para receber 1.000 pessoas, contou com a participação de 1.146
pessoas entre delegados eleitos nas pré-conferências, convidados e autoridades públicas
representantes do Executivo e do Legislativo. Os participantes foram credenciados e
identificados por crachá e, nesse momento, receberam material de apoio à deliberação, como a programação da conferência, resoluções do Conselho Municipal, a Matriz
Consolidada dos Relatórios das nove pré-conferências, organizada conforme as quatro
diretrizes discutidas, e o crachá. Em seguida, os participantes puderam assistir, à sua
escolha, a uma das quatro palestras proferidas, referentes aos subtemas da conferência.
Logo após foi instalada a plenária inicial e realizada a solenidade de abertura, com
a presença de várias autoridades públicas, inclusive o prefeito do município. A atividade
seguinte foi a votação do Regimento Interno (RI) cujas regras balizam todo o processo da
Conferência. Esperava-se que a leitura desse documento gerasse um conjunto de polêmicas a serem resolvidas mediante os pedidos de destaque, os debates públicos, bem como de
votação. No entanto, a aprovação do RI ocorreu sem nenhum debate e foi seguida de uma
palestra, proferida por representante do Ministério do Desenvolvimento Social.
A atividade seguinte foi a realização de quatro plenárias temáticas (PTs), cada uma
composta, em média, por 170 participantes. A dinâmica contou com uma palestra
inicial, proferida por convidados, membros do Executivo, Legislativo e de conselhos,
seguida de debates coordenados por representantes do governo que, junto com os palestrantes, respondiam às perguntas. Em seguida houve a eleição de um relator, que teve
como tarefa registrar a discussão e os destaques das propostas a serem encaminhadas
à plenária final, num total de cinco para cada nível de governo e atinente a uma das
diretrizes da conferência. Cada plenária contou com um coordenador, que, a seu critério, organizou a leitura das propostas contidas no consolidado das pré-conferências de
assistência social, bem como a apresentação de destaques das mesmas.
Em geral, os debates das plenárias temáticas foram resolvidos por meio de discussão, apesar do número de participantes. Isso foi possível porque aqueles que discordavam de alguma proposta, após o destaque, reuniam-se em pequenos grupos e debatiam
15. Belo Horizonte realizou uma conferência a mais do que o nível nacional, no início dos anos 1990, como uma estratégia
de mobilização dos diferentes atores para a organização da política de assistência social no município.
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uns com os outros até chegarem a uma proposta que atendesse a maior parte deles. Após
esta dinâmica de negociações deliberativas,16 as propostas eram votadas em plenária. Em
apenas uma PT todas as propostas foram destacadas e alteradas, e, como não houve
negociação, elas foram votadas, sendo encaminhadas para a plenária as que obtiveram
mais votos até completar a quota permitida.
Na plenária final, conduzida pela mesa de coordenação, as propostas produzidas
nas plenárias temáticas foram transmitidas em telão, lidas publicamente e votadas em
blocos, por diretriz. Foram permitidos apenas dois destaques para cada proposta à medida que elas iam sendo lidas, com tempo determinado para suas justificativas. Essa
dinâmica foi justificada com base tanto na argumentação de que as propostas já tinham
sido debatidas e negociadas nas Plenárias Temáticas quanto no constrangimento temporal. Resultaram do processo vinte propostas, cinco de cada subtema, referentes aos
três níveis da Federação.
As eleições de delegados para a Conferência Estadual e para as duas vagas de conselheiros titulares, representantes dos usuários no Conselho Estadual de Assistência Social
(Ceas-MG), marcaram o último momento da plenária final. O processo de seleção dos
delegados da sociedade civil foi realizado em auditórios separados por segmento – usuários, trabalhadores e entidades – uma vez que os seis representantes do Governo foram
eleitos antes da conferência, em uma reunião destinada para este fim. As duas vagas para
conselheiros titulares do segmento representante dos usuários foram pleiteadas por trinta participantes. A dinâmica dessa eleição envolveu apresentação e justificativa pública
dos candidatos seguida de votação em cada um.
5.2.3 A IX Conferência Estadual de Assistência Social
A IX Conferência Estadual de Assistência Social foi precedida por 766 conferências
municipais (89,8% dos 853 municípios mineiros) e Encontros Regionalizados que congregaram vários municípios. Realizada durante dois dias, em Belo Horizonte, contou
com a participação de 280 municípios, representados por 895 pessoas das 1.200 previstas. Dessas, 36% representavam a sociedade civil, 41% eram do governo (estadual e
municipais) e 23% eram convidados / observadores / outros.
Primeiramente os participantes foram credenciados e identificados por crachás e
receberam material de apoio, que consistia em uma cartilha sobre a Conferência com
programação, proposta de regimento interno, resoluções e balanço sobre as ações realizadas desde a conferência anterior. Os participantes também foram previamente designados, de forma aleatória, para GTs e oficinas.
16. As negociações deliberativas, diferentes das formas de negociações democráticas, são baseadas preponderantemente
na justificação mútua e não na ameaça e demais formas de poder (MANSBRIDGE, 2007).
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Formação de agenda na política de assistência social:
o papel das conferências como um sistema integrado de participação e deliberação
A plenária inicial contou com uma solenidade de abertura, a formação da mesa de
coordenação e a votação do Regimento Interno. Assim como na Conferência Municipal, o RI foi aprovado na integra pelos participantes, sem destaques e debates. À votação
do RI, seguiu-se a apresentação do Painel Temático intitulado “Avaliação da Gestão e
do Controle Social no estado de Minas Gerais” que realizou o balanço da política no
estado e os desafios a serem superados. Após as palestras, houve o debate com tempo de
três minutos regimentais para cada pronunciamento.
Na sequência ocorreu a eleição dos representantes da sociedade civil para o Conselho Estadual de Assistência Social de MG. O processo consistiu na apresentação oral
dos candidatos, na eleição, na apuração e no anúncio dos eleitos. Posteriormente à
eleição, ocorreram as oficinas simultâneas que tinham como objetivo a apresentação das
diretrizes a serem discutidas na conferência.
No segundo dia de Conferência, foram constituídos 20 Grupos de Trabalho (GTs),
com seus respectivos coordenadores e relatores, cada um composto, em média, por 40
participantes. Eles tinham a função de debater e elaborar três propostas relacionadas a
cada diretriz para os níveis estadual e nacional, totalizando 24 propostas.
O debate no interior dos GTs foi marcado por diferentes tipos de argumentos, ora
baseados em conhecimento técnicos, ora em experiências pessoais cuja solução ocorreu
por meio de aclamação e/ou de votação das propostas. Para proferirem seus pontos de
vistas, os integrantes do grupo levantavam o crachá e pediam destaques, mas não foi
estabelecido nenhum critério para as intervenções, como tempo de fala.
A eleição de delegados para a Conferência Nacional ocorreu após a realização dos
GTs e antes da plenária final. O regulamento previa o número de vagas conforme o porte
dos municípios e algumas para conselheiros estaduais. As eleições ocorreram simultaneamente em espaços diferenciados por porte de município e por segmento. A regra eleitoral
previa dois minutos para a apresentação e justificação da candidatura e votação entre os
candidatos, sem a participação do público da conferência. Os delegados com maior número de votos seriam eleitos titulares, seguidos dos suplentes.
Na plenária final, ocorreu a leitura das propostas elaboradas pelos GTs e consolidadas
pela comissão de relatoria, considerando as dez propostas que apareceram como prioritárias
nos grupos, assim como os dez resultados para cada subtema e por nível de governo. As
propostas contidas no consolidado foram apresentadas em telões, discriminadas pelos GTs
de origem. A dinâmica de discussão e votação das propostas consistia em leitura e destaques
das propostas por subtema e nível de governo. A regra previa que os destaques fossem apresentados na medida em que fossem requeridos, e não havendo as propostas, o subtema seria
automaticamente aprovado. As propostas para o âmbito estadual tiveram nove destaques
e para o nível federal tiveram 14 destaques. Após a votação das propostas e moções, foram
apresentados os delegados eleitos para a VIII Conferência Nacional de Assistência Social.
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5.2.4 A VIII Conferência Nacional de Assistência Social
A VIII Conferência Nacional de Assistência Social, último momento do processo analisado, ocorreu durante quatro dias, em Brasília, e contou com a participação de 1.820
pessoas oriundas de todos os estados brasileiros. Delas, 34% representavam a sociedade
civil, 32% representavam governos (municipais, estaduais, federal), 16% eram convidados e/ou observadores e 19% eram de outro tipo (como acompanhantes de pessoas com
deficiência) ou não foram identificados. Ressalta-se a grande quantidade de representantes
de minorias, como indígenas, quilombolas, líderes do movimento negro, pessoas com
deficiência, representantes de povos fronteiriços e refugiados.
Inicialmente, os participantes realizaram credenciamento, receberam crachás de
identificação e material de apoio, contendo a programação, a proposta de RI, textos,
resoluções do conselho nacional, referentes ao ano de 2011, e o caderno de deliberações
com a consolidação das propostas enviadas pelos estados. Uma primeira mesa, composta por autoridades, realizou a solenidade de abertura da conferência.
A atividade seguinte foi a instalação da mesa de coordenação e o início da plenária, ainda que muito esvaziada. Após a leitura do RI, a mesa abriu para os destaques.
Ao contrário das conferências precedentes, nesta o RI foi destacado e houve apresentação de justificativas, que resultaram na mudança de redação em dois dos quatro
artigos destacados.
Após a aprovação do RI, uma nova Mesa foi composta, dando inicio a uma série
de apresentações, realizadas por autoridades públicas e por especialistas do governo e
de universidades, que apresentaram um balanço crítico das conferências estaduais e da
situação da gestão e do controle social no Suas. A última foi uma conferência magna
realizada pela ministra da pasta da assistência social.
No segundo e terceiro dias de conferência aconteceram os Painéis Temáticos, constituídos por palestras referentes aos quatro eixos da conferência, seguidos de discussões
em 23 GTs. Os participantes foram previamente indicados, de forma aleatória, pela
Comissão Organizadora, assim como a coordenação, sendo a relatoria escolhida no
início dos trabalhos do Grupo. A média de participantes em cada GT era de 45 pessoas.
O consolidado das propostas para o nível nacional, oriundas das conferências estaduais,
subsidiou os trabalhos desses grupos, que leram, destacaram, discutiram e votaram as
que deveriam ser deliberadas pela plenária final.
Ao final do dia, foram realizadas 25 Oficinas Simultâneas para que os participantes, que as escolhiam livremente, pudessem aprimorar seus conhecimentos acerca dos
subtemas da conferência e seu eixo central. No segundo dia dos GTs, as coordenadorias,
premidas pelo tempo, tiveram que impor algumas mudanças nas suas dinâmicas, sendo
exigida maior precisão na discussão, destaque e votação das propostas.
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Revista Democracia e Participação
Formação de agenda na política de assistência social:
o papel das conferências como um sistema integrado de participação e deliberação
A plenária final teve suas regras alteradas, por exigência dos participantes. Os destaques foram lidos publicamente, com identificação de quem os realizou, e discutidos um a
um, independentemente do tempo necessário para isso, antes de se votarem as propostas.
Essa nova dinâmica atrasou o processo deliberativo, mas melhorou muito sua qualidade,
embora tenha havido um esvaziamento da plenária no final do processo. Foi decidido, em
plenária, suspender a eleição para conselheiros nacionais que deveria ocorrer nesta fase,
assim como ocorreu nas anteriores.
O número de destaques realizados na Conferência Nacional, assim como a decisão
de não realizar a eleição de conselheiros, mostra o nível de conflito que essa conferência
congrega, ao contrário das anteriores, ao juntar em um mesmo espaço diferentes delegações oriundas do Brasil inteiro. As deliberações da Conferência Nacional foram sistematizadas e tornadas resolução do Conselho Nacional, sendo-lhes dada ampla publicidade.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo buscou analisar as conferências de assistência social à luz de parte da literatura
sobre políticas públicas e deliberação democrática. Seguindo um conjunto de autores que
defendem a ampliação do perfil de atores que participam simultaneamente da determinação da agenda pública e do seu processo de mudança (HECLO, 1978; KINGDON,
2003; SABATIER; JENKINS-SMITH, 1999), bem como daqueles que defendem a importância de um tipo particular de interação entre esses atores, a interação deliberativa
baseada em argumentos estruturados, falas e/ou narrativas (FISCHER, 2003; HAJER;
WAGENAAR, 2003; GOODIN, 2008), buscamos na primeira e segunda seções deste
artigo estabelecer um diálogo entre estas duas abordagens. Entendemos que a análise de
políticas públicas se constitui em um campo em permanente desenvolvimento, o que
torna possível compatibilizar saberes distintos com o propósito de tentar dar conta da
complexidade do fenômeno que se busca analisar: a formação e a mudança de agenda em
política pública que se organiza em diferentes espaços deliberativos, particularmente, a
política de assistência social.
Para tal, privilegiamos na investigação desse fenômeno, um processo específico: a
dinâmica das conferências de políticas públicas, percebidas como janelas de políticas
previsíveis, cuja função primordial é deliberar sobre um conjunto de diretrizes que deverão pautar as ações dos três níveis de governo, de forma articulada e integrada. Acreditamos que as conferências em geral, e a de assistência social em particular, constituem
um lócus importante para avaliar uma das proposições deste artigo: a centralidade da
interação discursiva entre diferentes atores na conformação de uma agenda pública na
área da assistência social.
Exatamente por estarmos lidando com atores e espaços diferentes, tanto vertical
quanto horizontalmente, utilizamos a ideia de sistema integrado de participação e
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Cláudia Feres Faria | Eleonora Schettini M. Cunha
deliberação oriunda dos debates no interior do campo discursivo da democracia como
ferramenta para a análise das dinâmicas das conferências. Entender as conferências
como um sistema integrado de participação e deliberação que gera agendas públicas
nos três níveis de governo nos levou a analisar o processo pelo qual esse sistema vai
sendo formado mediante múltiplas vinculações. Para tal, foi descrita cada conferência,
seus atores, bem como os diversos padrões de ação neles desenvolvidos: participação,
deliberação e representação, o que possibilitou aferir a composição da comunidade de
atores que fazem parte desses espaços, seus padrões de ação, bem como o processo pelo
qual conformam discursivamente a agenda de política nessa área.
Constatou-se, em primeiro lugar, que a dinâmica das conferências de assistência
social assume uma forma integrada em que as partes são verticalmente conectadas e
funcionam como inputs umas para as outras. Seus objetivos e temas são os mesmos, nos
diferentes níveis de competências, oferecendo subsídios para as conferências posteriores
através da participação e do debate acerca do temário proposto. Esse arranjo busca dar
solução às especificidades do nosso federalismo e seu impacto na formulação e implementação da política, gerando agendas múltiplas, que são concomitantemente sobrepostas e articuladas, uma vez que a cada etapa são definidas diretrizes para o próprio
nível de governo e para o(s) ascendente(s).
Do ponto de vista da mobilização e da participação dos atores nesse sistema, é
possível afirmar que o conjunto de atores tende a se ampliar uma vez que nas préconferências a participação de cidadãos comuns, sem vínculo representativo nas diversas instituições e fóruns participativos que conformam esta política, é incentivada.
Esta, aliás, apresenta-se como a etapa que mais congregou pessoas. Ademais, na etapa
nacional, foi possível perceber, in loco, um número razoável de pessoas que estavam
participando pela primeira vez destes espaços.17 Isso aponta para o potencial inclusivo
desses espaços, nos quais couberam diferentes argumentos e tipos de fala para a inclusão e justificação de problemas e de soluções. Notamos que nos níveis subnacionais
predominaram depoimentos e o apelo pessoal na justificativa de interesses e perspectivas, ao passo que na etapa nacional este tipo de argumentação muda, cedendo lugar
para justificativas mais técnicas e politizadas em todos os segmentos.
Também foi possível verificar que, na medida em que muda a escala, o padrão de
ação se altera e a representação assume um papel mais proeminente, uma vez que os
participantes vão assumindo o papel de representantes formalmente eleitos nas diferentes etapas. A dinâmica representativa, construída ao longo do processo conferencista, impulsiona a conexão entre as partes por meio da eleição dos delegados, bem
como por meio da seleção dos temas, conformando aquilo que estamos denominando
17. Na plenária inicial, o presidente do CNAS solicitou que aqueles que participavam pela primeira vez de uma Conferência
Nacional se identificassem, evidenciando que mais da metade dos presentes estava nessa condição.
92
Revista Democracia e Participação
Formação de agenda na política de assistência social:
o papel das conferências como um sistema integrado de participação e deliberação
de representação discursiva (DRYZEK; NIEMEYER, 2008), em que temas, ideias e
propostas são representadas e selecionadas de uma etapa para outra.
Do ponto de vista organizacional, a mudança de escala impacta a organização e os
recursos. Enquanto nas pré-conferências a dinâmica é menos estruturada, justificando
a ausência de RI, da Comissão Organizadora, das regras para o debate, assim como do
uso do destaque, na medida em que ascendemos territorialmente, a tendência é aumentar a organização desses espaços em função da presença de uma pluralidade de atores,
de demandas e da melhor forma de formulá-las. Ainda com relação à organização dos
processos, foi possível constatar a realização de várias palestras e painéis, em todas as
conferências, proferidas por membros da comunidade de política, o que possibilitou
qualificar o debate, bem como contribuiu para o refinamento dos argumentos e das
proposições que foram consideradas nas deliberações finais e que indicarão as prioridades a serem inseridas na agenda pública.
No caso da política em análise, a assistência social, embora possamos afirmar que o
nível organizacional das etapas cresça com a mudança de escala, o mesmo não pode ser
afirmado quanto aos padrões de interação discursiva. Nas pré-conferências, Conferência
Municipal e Estadual houve pouca discussão, embora o conteúdo das propostas assim
o requeresse. Esta afirmação pode ser corroborada pelo número quase inexistente de
destaques nas plenárias iniciais, nos GTs e nas plenárias finais nessas etapas, bem como
pela pouca contestação quanto aos regimentos internos e às propostas. O padrão se altera
apenas na Conferência Nacional, onde o conflito em torno de procedimentos representativos e do conteúdo de algumas propostas gerou muita polêmica nos GTs e na plenária
final, como retratado na quarta seção deste artigo.
É possível afirmar, portanto, que embora existam fluxos de problemas e de soluções
que vão se conformando das pré-conferências até a Conferência Nacional, nas etapas
subnacionais, no estado de Minas Gerais, esses fluxos não foram caracterizados por uma
dinâmica essencialmente discursiva, onde a troca de argumentos e as justificações geram
contestações e, no limite, mudanças de preferências. O que se observou nessas etapas
foi mais uma consagração daquilo que foi proposto por outras instituições e fóruns participativos desta política e que conformam o que denominamos de sistema integrado
horizontal de deliberação e participação. No nível nacional a dinâmica muda: destaques,
justificações públicas e o voto passam a ser mais utilizados para resolver situações, de
cunho procedimental ou substantivo, mais conflituosas, evidenciando uma dinâmica
mais deliberativa nas plenárias e nos GTs.
É possível (e bem provável) que essa nova dinâmica decorra do encontro de múltiplos padrões de discussão provenientes das vinte e sete unidades da Federação, o que
envolve uma diversidade de condições e instituições conformadoras da política de assistência social no Brasil.
volume 1 | número 1 | abril-jun 2014
93
Cláudia Feres Faria | Eleonora Schettini M. Cunha
Com base no estudo realizado, é possível afirmar que a análise da dinâmica que
caracteriza a formação e a mudança das agendas de políticas públicas em processos
democráticas que se organizam de forma participativa e deliberativa pode em muito
contribuir para o campo de análise de políticas públicas. A dinâmica discursiva tanto
pode indicar o grau de legitimidade e de apoio de uma determinada agenda, bem como
o potencial de implementação dessa agenda em arranjos federativos.
94
Revista Democracia e Participação
Formação de agenda na política de assistência social:
o papel das conferências como um sistema integrado de participação e deliberação
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96
Revista Democracia e Participação
MOVIMENTOS SOCIAIS, ENGAJAMENTO INSTITUCIONAL E SEUS EFEITOS:
ESTUDO DE CASOS COMPARADOS NO ESPÍRITO SANTO1
Euzeneia Carlos2
Resumo:
Abstract:
Este artigo avalia os efeitos do engajamento
institucional de movimentos sociais em instituições
participativas sobre os padrões de ação coletiva,
em suas dimensões organizacional, relacional e
discursiva. Os efeitos institucionais nos movimentos
sociais são examinados por meio do método
comparativo, aplicado a quatro casos localizados
no Espírito Santo, ao longo de três décadas (19802010). São eles: Federação das Associações de
Moradores da Serra (Fams), Conselho Popular de
Vitória (CPV), Centro de Defesa de Direitos Humanos
da Serra (CDDH) e Associação Capixaba de Proteção
ao Meio Ambiente (Acapema). A análise estabelece
correlações entre as mudanças nos padrões
de ação coletiva e os efeitos do engajamento
institucional, e levanta novas hipóteses explicativas
das mudanças e continuidades na ação coletiva ao
longo do tempo, no que tange à: complexificação
organizacional, pluralização das redes sociais e
interações cooperativas e contestatórias na relação
sociedade-Estado.
This article examines the effects of institutional
engagement of social movements in participatory
institutions on patterns of collective action
regarding to organizational, relational and
discursive dimensions. Institutional effects in social
movements are examined through the comparative
method applied to four cases located in the Espírito
Santo over three decades (1980-2010). These are:
Federation of Neighborhood Associations of Serra,
Popular Council of Vitória, Center for the Defense of
Human Rights of Serra and Capixaba Association of
Environmental Protection. The analysis establishes
correlations between changes in patterns of
collective action and the effects of institutional
engagement and raises new hypotheses of changes
and continuities in collective action over time
toward to: organizational complexity, pluralization
of social networks and cooperative and contention
interactions in the relationship between society
and the state.
Palavras-chave: Movimentos sociais. Engajamento
institucional. Instituições participativas. Padrões de
ação coletiva. Relação sociedade-Estado.
Keywords: Social movements. Institutional
engagement. Participatory institutions. Patterns
of collective action. Relationship between society
and state.
1. Este artigo apresenta resultados da tese de doutoramento da autora, intitulada “Movimentos sociais e instituições
participativas: efeitos organizacionais, relacionais e discursivos” (CARLOS, 2012).
2. Professora adjunta do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES),
doutora em Ciência Política (FFLCH/USP) e mestre em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ). Pesquisadora
do Núcleo Democracia e Ação Coletiva (NDAC) do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). E-mail:
[email protected].
Euzeneia Carlos
No Brasil, nas duas últimas décadas, é notória a institucionalização de formas diversas
de participação e representação que incentivaram o engajamento de movimentos sociais
e atores da sociedade civil na esfera estatal, seja na elaboração e monitoramento de políticas públicas, seja na sua gestão e implementação (AVRITZER, 2008; TATAGIBA,
2004). Arranjos participativos se multiplicaram no nível municipal, estadual e nacional,
como os orçamentos participativos, os conselhos de políticas públicas, as conferências,
os planos diretores participativos, as comissões e comitês temáticos, os grupos de trabalho e programas governamentais. Nesse processo histórico, a participação “tornou-se
progressivamente [...] parte da linguagem jurídica do Estado e atingiu patamares de
institucionalização ímpares não apenas no país, mas em outras democracias” (GURZA
LAVALLE, 2011, p. 13).
Neste artigo, o engajamento dos movimentos sociais na política institucional é
identificado pela sua inserção nessas Instituições Participativas (IPs). As IPs constituem
“formas diferenciadas de incorporação de cidadãos e associações da sociedade civil na
deliberação sobre políticas” (AVRITZER, 2008, p. 45), cujo conceito abrangente permite a análise conjunta dos diferentes processos institucionais mediante os quais cidadãos interferem nas decisões, implementação e monitoramento de políticas públicas
(PIRES; VAZ, 2010).
Este artigo analisa os efeitos do engajamento institucional dos movimentos sociais
em IPs sobre seus padrões de ação coletiva. Especificamente, avalia quais mudanças os
movimentos sociais, constituídos no bojo do processo de redemocratização do país,
vivenciaram em decorrência de seu engajamento em arranjos participativos, no que
concerne às dimensões organizacional, relacional e discursiva da ação coletiva.
A categoria de análise “padrões de ação coletiva” (PACs) corresponde a modalidades de ações que orientam o comportamento dos movimentos como atores políticos
em face das instituições e do Estado em geral. Naturalmente, não existe um padrão
homogêneo ou um modelo de ação unitário que represente os atores societários e que
sirva de paradigma da ação dos movimentos sociais, tendo em vista a complexidade
e heterogeneidade da sociedade civil (DAGNINO; OLVERA; PANFICHI, 2006).
Os movimentos sociais são aqui compreendidos como coletividades formadas por uma
pluralidade de atores sociais, individuais e organizacionais, ligados em modelos de interação, com base em identidades compartilhadas construídas mediante relações de conflito e cooperação (DIANI, 2003; MELUCCI, 1996).
As Teorias dos Movimentos Sociais (TMS) oferecem as abordagens mais influentes
acerca das implicações do engajamento de atores societários nas instituições governamentais, quais sejam: a Teoria dos Novos Movimentos Sociais e a do Processo Político.
No país, a Teoria dos Novos Movimentos Sociais (MELUCCI, 1989; TOURAINE,
1988) orientou a maioria dos estudos acerca da emergência dos chamados movimentos
sociais urbanos, no período de transição do regime autoritário do final das décadas de
98
Revista Democracia e Participação
Movimentos sociais, engajamento institucional e seus efeitos: estudo de casos comparados no Espírito Santo
1970 e 1980. No entanto, essa abordagem gradualmente foi substituída pela Teoria
da Sociedade Civil, no contexto de estabilização do regime democrático, de eleição de
governos de esquerda e de institucionalização de arranjos participativos nos governos
locais (GURZA LAVALLE, 1999; ALONSO, 2009). Tal deslocamento teórico amargou a continuidade daquele campo de estudos desenvolvido no período de transição
política, bem como obstou a análise da relação entre movimentos, Estado e instituições
políticas no contexto democrático.
O enfoque da teoria da Sociedade Civil ampliou o lócus de movimento social
para uma variedade de atores e organizações societais e ofereceu aporte teórico para a
compreensão das instituições participativas, dos sujeitos sociais atuantes, dos formatos
institucionais e seus impactos para a democratização do Estado. Esses estudos conduziram ao mapeamento dos fatores condicionantes da sustentabilidade dos arranjos
participativos, enfatizando o papel da tradição associativa na estruturação das práticas
de participação (AVRITZER, 2002; BAIOCCHI, 2005), a interseção entre os projetos
políticos governamentais e os da sociedade civil (DAGNINO, 2002), e o desenho institucional dos arranjos participativos (LÜCHMANN, 2002; FUNG; WRIGHT, 2003).
Na Teoria da Sociedade Civil, a análise dos efeitos das instituições participativas, à
exceção de trabalho seminal de Marquetti (2003), somente recentemente tem ganhado
fôlego. Esses estudos têm contribuído para a avaliação dos impactos das IPs sobre a
atuação dos governos e a produção de políticas públicas (PIRES, 2011; AVRITZER,
2010; ISUNZA VERA; GURZA LAVALLE, 2010). Contudo, ainda são raros aqueles
que analisam os efeitos do engajamento nas instituições participativas sobre os atores da
sociedade civil, em particular, no padrão de ação coletiva dos movimentos sociais que
se inserem nesses espaços como relevante via de acesso ao poder público e de mediação
da interação com o Estado.
Com efeito, a análise do engajamento dos movimentos sociais nos arranjos participativos, nas agências estatais e nos partidos políticos, e das suas implicações para os
atores coletivos foram eclipsadas no âmbito da teoria da sociedade civil. A ocultação
dos movimentos sociais nessa literatura é atribuída à mudança nas categorias analíticas
empregadas, nos estudos da década de 1980, cuja ênfase numa concepção “restritiva
da sociedade civil” gerou uma ocultação artificial dos movimentos e o sobredimensionamento do papel de outros atores societários (GURZA LAVALLE; CASTELLO; BICHIR, 2004). No cenário em que muitos ativistas e movimentos sociais se inserem em
órgãos do governo e partidos políticos, a ocultação também pode ser explicada pela sua
limitação analítica à compreensão da relação dos movimentos com o sistema político,
dado o pressuposto de separação entre as esferas da sociedade civil e do Estado.
No âmbito internacional, a teoria do Processo Político deu continuidade ao campo
de estudos próprio e consagrou as principais teses acerca dos efeitos da inserção de atores coletivos na política institucional, bem como da institucionalização dos movimentos
volume 1 | número 1 | abril-jun 2014
99
Euzeneia Carlos
sociais (McADAM; TARROW; TILLY, 2001). Nessa abordagem, a institucionalização
do movimento é concebida como a sua integração às estruturas do Estado, a mudança
no repertório de confronto e a busca de benefícios concretos por meio da negociação e
acordo (TARROW, 1997). Segundo esse enfoque, a institucionalização do movimento,
decorrente do engajamento societário nas instituições políticas, afeta a sua estrutura
organizacional. Os efeitos esperados no movimento são de complexificação da sua estrutura organizacional, expressos pela rotinização, burocratização e profissionalização
da ação coletiva (MEYER; TARROW, 1998; KRIESE, 1995; PIVEN; CLOWORD,
1979; McCARTHY; ZALD, 1973). Nessa teoria, a complexificação organizacional do
movimento traria como consequências a mudança em seus objetivos de fundação, a
desmobilização dos militantes, a cooptação dos ativistas e a sua transformação em grupos de interesse ou partidos políticos.
Essa teoria dos movimentos sociais, todavia, não oferece chaves interpretativas adequadas às mudanças nos padrões de ação coletiva dos movimentos sociais em interação
com as instituições participativas. Em primeiro lugar, esse aporte teórico considera um
único modelo de organização dos movimentos sociais e apenas um formato das instituições políticas. Nesse caso, negligencia tanto a diferenciação nos padrões organizacionais
dos movimentos, que podem variar de modelos altamente formalizados e complexos
a padrões com baixo grau de formalização e complexificação organizacional, quanto a
inovação no formato das instituições, cujo desenho pode combinar mecanismos de participação direta e representativa no processo de elaboração e implementação de políticas
públicas. Em segundo lugar, a análise dos efeitos do engajamento institucional sobre os
movimentos sociais é restrita a sua estrutura organizacional e ignora outras dimensões
da ação coletiva – como a relacional e a cultural – imprescindíveis à compreensão dos
padrões da ação coletiva. Desse modo, ignora mudanças na dinâmica relacional do
movimento e a diversificação das suas redes de relações sociais, assim como os processos
discursivos de significação e reconfiguração da linguagem de relação com o Estado. Finalmente, essa abordagem interpreta as mudanças na ação coletiva como homogêneas e
não possui explicação para as variações e heterogeneidades nos padrões da ação coletiva
de movimentos sociais inseridos em instituições governamentais.
Em suma, é possível afirmar que as teorias dos movimentos sociais pressupõem uma
separação entre estes e a política institucionalizada e analisam a sociedade e o Estado a
partir de categorias estanques, autônomas e dicotômicas, limitadas à explicação dos efeitos das interações entre atores societários e institucionais sobre os PACs dos movimentos
sociais. Tanto a Teoria do Processo Político, ao enfatizar a ação coletiva como conflito político com os “detentores de poder” (McADAM; TARROW; TILLY, 2001; TARROW,
1997), quanto a Teoria dos Novos Movimentos Sociais, ao ressaltar a descontinuidade e
novidade destes em relação às modalidades tradicionais da política (MELUCCI, 1989;
TOURAINE, 1988), dificultam o reconhecimento do caráter coconstituinte, de influência mútua e de interpenetração entre movimentos sociais e Estado. O pressuposto
100
Revista Democracia e Participação
Movimentos sociais, engajamento institucional e seus efeitos: estudo de casos comparados no Espírito Santo
analítico da separação entre sociedade civil e Estado inibe esses teóricos de explorar a diversidade de conexões entre os movimentos e o sistema político, mantendo invisíveis certos tipos de relações entre atores coletivos e o Estado (VON BÜLLOW; ABERS, 2011).
Neste trabalho, sustenta-se que a relação entre os movimentos sociais e as instituições políticas requer uma compreensão dinâmica que acentue os aspectos de coconstituição entre a sociedade e o Estado, como esferas que interagem e se influenciam
mutuamente em um processo contínuo e circunstancial, cujas fronteiras são imprecisas
e enevoadas (SKOCPOL, 1992). Essa perspectiva é particularmente relevante à análise de movimentos institucionalmente inseridos – institutionally embedded – (EVANS,
1995), na medida em que concebe sociedade e Estado como produto de um processo
dinâmico e contingente de mútua constituição.
Neste artigo, a análise das mudanças nos PACs considera quatro movimentos sociais
localizados na região metropolitana do Espírito Santo, examinados por meio do método comparativo de estudo de casos (PETERS, 1998; GEORGE; BENNETT, 2004):
Federação das Associações de Moradores da Serra (Fams), Conselho Popular de Vitória
(CPV), Centro de Defesa de Direitos Humanos da Serra (CDDH) e Associação Capixaba de Proteção ao Meio Ambiente (Acapema). A análise comparativa desses movimentos
foi processada em dois níveis: (1) comparação intertemporal (cross-time), e (2) comparação entre os casos (cross-case). A comparação cross-time das trajetórias ao longo de um
continuum intertemporal de três décadas (1980-2010) considerou a variação nos PACs
em dois contextos analíticos, denominados Tempo 1 (T1) e Tempo 2 (T2). Compreende
o T1 o contexto de redemocratização da década de 1980, e o T2, o período de criação
das instituições participativas nos governos, sobretudo a partir de 1990. A comparação
cross-case, por sua vez, possibilitou a verificação das regularidades nos PACs, ao mesmo
tempo em que dimensionou as variações e heterogeneidades na ação dos movimentos.
O exame das regularidades e variações nos PACs, em ambos os níveis de comparação, foi controlado por uma compreensão densa dos casos, favorecida por perspectiva
multi-method, que conduziu a um desenho de pesquisa que combinou instrumentos
do método qualitativo e quantitativo, a saber: (1) pesquisa documental no acervo das
organizações dos movimentos; (2) entrevista em profundidade com atores-chave; e (3)
survey de questionário semiestruturado aplicado a 100 militantes e ex-militantes, selecionados por meio de amostra não aleatória que considerou a posição de centralidade do ator no movimento.3 Na análise geral, os dados provenientes dos diferentes
instrumentos metodológicos foram agrupados em torno de temas, a fim de verificar
a triangulação das evidências e promover a validação dos resultados a partir de linhas
convergentes de investigação (YIN, 2005).
3. Agradeço ao Fundo de Apoio à Ciência e Tecnologia do Município de Vitória-ES (Facitec), pelo financiamento da
pesquisa de campo e aos pesquisadores que atuaram nessa etapa do estudo.
volume 1 | número 1 | abril-jun 2014
101
Euzeneia Carlos
Este artigo segue estruturado em três seções: a primeira trata do nível de engajamento institucional dos movimentos sociais nas instituições participativas; a segunda, dos
efeitos da inserção institucional nos PACs, em suas dimensões organizacional, relacional
e discursiva; e, finalmente, a terceira seção estabelece correlações entre as mudanças nos
PACs e o engajamento na política institucional, bem como levanta novas hipóteses explicativas das mudanças e continuidades na ação coletiva ao longo do tempo.
1 MOVIMENTOS SOCIAIS E ENGAJAMENTO INSTITUCIONAL
Os movimentos sociais analisados insurgiram no contexto de transição do regime autoritário da década de 1980. A Fams e o CPV, autodenominados “movimento popular”,
emergiram com a finalidade de organizar, coordenar e fortalecer o movimento de bairro
e reivindicar melhorias sociais e urbanas ao poder público municipal, o primeiro na Serra e o segundo em Vitória. Atualmente, possuem uma estrutura federativa com 125 e
124 associações de moradores, respectivamente, e suas principais realizações correspondem a setores das políticas sociais, nas áreas de saúde, infraestrutura urbana, transporte
coletivo, educação, moradia e meio ambiente, além da criação de IPs na gestão pública.
Esses movimentos populares contaram com a atuação de uma rede de relações sociais, influentes em sua gênese organizacional e discursiva, como Comunidades Eclesiais
de Base (CEBs), partidos políticos de esquerda, a exemplo do Partido dos Trabalhadores
(PT), sindicatos trabalhistas, comissões de direitos humanos, grupos de mulheres e de
jovens, Equipe de Apoio aos Movimentos Populares e ONGs, como a Fase (Federação
de Órgãos para Assistência Social e Educacional) e o Cecopes (Centro de Educação e
Comunicação Popular D. João Batista).4
O CDDH, uma organização do Movimento Nacional de Direitos Humanos
(MNDH), surgiu no município da Serra, como movimento de coordenação da ação
mobilizadora de outros movimentos sociais e organizações civis, atuando na defesa dos
direitos humanos e fomentando a criação de associações, sindicatos trabalhistas e outras
formas de organização popular, em nível municipal e estadual. O CDDH foi inicialmente criado como comissão de direitos humanos da Igreja Católica e composto por
integrantes das CEBs e militantes de movimentos locais, sobretudo pastorais sindicais
e associações de moradores. Promoveu diversas ações unificadas entre forças sociais e
políticas, articulando com o Conselho Pastoral de Carapina (Copaca), a Fams, o PT,
sindicatos, ONGs e outros movimentos de direitos humanos. Suas conquistas compreendem áreas das políticas de direitos humanos, como criança e adolescência, violência,
saúde, educação, moradia, bem como a implementação de IPs nos governos.
4. Para uma análise da atuação de instituições religiosas e de organizações societais na formação dos movimentos sociais,
no final da década de 1970 e anos 1980, especialmente de setores da Igreja Católica, de partidos políticos de esquerda
e de organizações não governamentais ver Doimo (1995), Sader (1988) e Landim (1995).
102
Revista Democracia e Participação
Movimentos sociais, engajamento institucional e seus efeitos: estudo de casos comparados no Espírito Santo
A Acapema, fundada em Vitória, constitui um movimento ambientalista de
âmbito estadual. Atua na articulação e promoção de campanhas mobilizatórias em
prol da manutenção do equilíbrio ecológico e na oposição aos grandes projetos de
expansão industrial e desenvolvimento econômico, no fomento à criação de unidades de conservação ambiental e na criação e cumprimento de legislação de caráter
conservacionista. Na década de sua fundação, estabeleceu vínculos com redes de
relações sociais que atuaram como suporte e apoio às ações desenvolvidas, caracterizada, sobretudo, por entidades civis e movimentos sociais e, em menor proporção,
por instituições do sistema político, como partidos políticos, órgãos do governo e
instituições religiosas.
No contexto pós-transição, as novas oportunidades de participação na elaboração
das políticas e no controle da ação governamental que emergiram da criação das IPs
inauguraram um cenário de engajamento desses movimentos sociais em instituições
do Estado e de relação direta com agências governamentais. No município da Serra, as
IPs foram introduzidas a partir de 1997, pela coligação partidária PDT-PT-PSB, que
seguiu por quatro mandatos consecutivos (1997 a 2012). Em Vitória, por sua vez, os
arranjos participativos foram implementados pelo governo do PT (1989-1992), seguido por três governos do PSDB (1993 a 2004) e, mais recentemente, por duas gestões
do PT (2005 a 2012).
O engajamento institucional dos movimentos sociais se caracteriza pela densidade
dos arranjos participativos que atuam, pela diversidade das áreas de políticas públicas
e dos formatos de participação institucionalizada que se inserem, pela durabilidade de
sua inserção nas instituições de participação e pelo nível de deliberação nos espaços participativos frente aos representantes governamentais. A mensuração desses critérios de
densidade, diversidade, durabilidade e de deliberação compreende os diferentes níveis
de engajamento institucional.5
O componente densidade diz respeito à quantidade de instituições participativas
nas quais se inserem os movimentos sociais em foco, quais sejam, orçamento participativo, conselhos de políticas públicas, fóruns ou conferências setoriais, comissões ou
comitês, programas e convênios governamentais. O critério diversidade corresponde à
pluralidade ou variedade das áreas de políticas públicas e de formatos de participação
institucionalizada em que os movimentos se encontram inseridos. O critério durabilidade identifica a continuidade ou interrupção da inserção de movimentos sociais em
instituições participativas ao longo de quatro a seis gestões governamentais, possibilitando avaliar a relação entre essa permanência e a intensidade do seu engajamento
nas agências dos governos. O componente deliberação considera a possibilidade dos
5. O uso das variáveis – densidade, diversidade, durabilidade e deliberação – é uma adaptação daquele encontrado
em Pires e Vaz (2010). Por esses autores, as variáveis são utilizadas para mensurar o nível de institucionalização da
participação em municípios brasileiros.
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Euzeneia Carlos
movimentos de sustentar posições e propostas nos arranjos participativos frente aos
representantes governamentais e de efetivamente deliberar nesses espaços enquanto um
elemento que qualifica seu nível de engajamento institucional.
Esses elementos classificatórios do nível de engajamento institucional em IPs –
densidade, diversidade, durabilidade e deliberação – remetem não somente à habilidade
e predisposição do movimento a arquitetar seu “encaixe institucional” (HOUTZAGER, 2004), mas igualmente às oportunidades e aos constrangimentos do contexto
político da sua inserção, isto é, os projetos políticos dos governos, as alianças e clivagens
partidárias, as relações entre o Executivo e o Legislativo.
A análise comparada do nível de engajamento institucional dos movimentos sociais aponta a existência de dois subgrupos: o primeiro formado pela Fams, CPV e
CDDH e o segundo, pela Acapema. Considerando a quantidade de IPs que atuam,
ou seja, a densidade da sua participação, o primeiro grupo de movimentos apresenta
alta densidade e o último, uma baixa densidade. A Fams possui representação em 16
conselhos municipais de políticas públicas, o CPV em 24 conselhos, e o CDDH ocupa assentos de representação da sociedade civil em 10 conselhos, dos quais dois são
estaduais. Esses três movimentos participam, ainda, do orçamento participativo e de
outras esferas institucionalizadas de participação e representação. Segundo essa medida,
a Acapema apresenta baixa densidade nas IPs, atuando em um conselho de políticas em
nível municipal e três conselhos no âmbito estadual.
Considerando a variedade das áreas de políticas públicas e de formatos de participação institucionalizada acionados pelos movimentos sociais, ou seja, a diversidade das
instituições participativas nas quais eles se inserem, o primeiro grupo de movimentos
(Fams, CPV e CDDH) apresenta alta diversidade, e o segundo (Acapema), uma baixa
diversidade. Os conselhos gestores de atuação da Fams compreendem significativa variedade nas áreas de políticas públicas (saúde, educação, meio ambiente, política urbana, habitação, turismo, segurança, assistência social, cultura, direitos de gênero e etário,
entre outras). O CPV também atua em uma variedade de áreas de políticas públicas
(saúde, educação, meio ambiente, plano diretor urbano, habitação, transporte, turismo,
esporte, segurança, assistência social, direitos humanos, cultura, direitos da mulher,
do idoso, além de várias áreas de programas específicos). No caso do CDDH, as áreas
de políticas públicas também são diversificadas (saúde, assistência social, direitos da
mulher, do idoso, da pessoa com deficiência, cidade, antidrogas, segurança alimentar,
direitos humanos e gestão de segurança pública). Ao contrário desses três movimentos
que caracterizam alta diversidade nas áreas de políticas públicas, a Acapema atua somente nas áreas de meio ambiente e de saúde, retratando um caso de baixa diversidade
das instituições participativas.
O critério de diversidade considera, por fim, a variedade dos formatos de participação institucionalizada, que dizem respeito à abrangência do conjunto das IPs
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Revista Democracia e Participação
Movimentos sociais, engajamento institucional e seus efeitos: estudo de casos comparados no Espírito Santo
de inserção societal. Esse componente é particularmente inovador, pois enfatiza a
multiplicidade de formas institucionalizadas de participação que incentivam o engajamento de movimentos sociais e atores da sociedade civil na esfera estatal. No
caso dos movimentos que se caracterizam por alta diversidade de IPs (Fams, CPV e
CDDH), o seu engajamento ocorre não somente nos arranjos participativos comumente enfatizados, como os conselhos de políticas públicas, o orçamento participativo e as conferências setoriais, mas envolve outros formatos e procedimentos de atuação institucional, como o plano diretor urbano e o plano plurianual participativo,
as comissões e comitês temáticos e os convênios governamentais de implementação
e gestão de programas de políticas. Por sua vez, na Acapema, a atuação institucional
é circunscrita aos conselhos de políticas públicas e conferências setoriais, caracterizando, comparativamente, um movimento de baixa diversidade dos arranjos institucionalizados de participação.
No que se refere à durabilidade da inserção dos movimentos nas IPs, é avaliada
a sua longevidade ao longo de quatro a seis gestões governamentais, qualificada em
termos de durabilidade contínua e durabilidade descontínua. A aplicação do critério de
durabilidade mantém a classificação dos movimentos focada em dois subgrupos – de
um lado, Fams, CPV e CDDH e, de outro, Acapema. O primeiro grupo, em geral, caracteriza uma inserção contínua e sem interrupções nos arranjos participativos ao longo
do tempo, ao passo que o segundo apresenta uma durabilidade descontínua. A durabilidade descontínua do engajamento da Acapema nas IPs, ainda que guarde relação com
os projetos políticos governamentais, é justificada pelos atores pela sua baixa efetividade
na concretização de seus objetivos.
Por fim, o componente deliberação complementa os critérios de mensuração do
nível de engajamento institucional dos movimentos em arranjos participativos de políticas públicas. A deliberação compreende, aqui, a possibilidade do movimento de
sustentar posições e propostas nas instituições participativas frente aos representantes
do governo e de efetivamente deliberar nesses espaços, medida em termos de grau de
satisfação. Na Fams, no CPV e no CDDH predomina a avaliação de “regularmente
satisfeito”, quanto as suas possibilidades de deliberar efetivamente nos arranjos participativos. No caso da Acapema, prevalece entre os militantes a percepção de “pouco satisfeito”. De modo geral, os militantes argumentam que essas avaliações das limitações
em sustentar suas posições e decisões no debate público dos arranjos institucionalizados de participação são procedentes, dado dois fatores principais, o descumprimento
do governo de muitas deliberações dos representantes societais e a fragilidade decisória
do movimento nessas esferas públicas.
O nível de engajamento institucional dos movimentos sociais – nos critérios densidade, diversidade, durabilidade e deliberação – é sintetizado no Quadro 1.
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QUADRO 1
Movimentos sociais e nível de engajamento institucional pós 1990
Movimentos Sociais
Instituições participativas
Densidade
Diversidade
Durabilidade
Deliberação
Nível de Engajamento
institucional
Fams
Alta
Alta
Contínua
Regular
Alta intensidade
CPV
Alta
Alta
Contínua
Regular
Alta intensidade
CDDH
Alta
Alta
Contínua
Regular
Alta intensidade
Acapema
Baixa
Baixa
Descontínua
Baixa
Baixa intensidade
Fonte: Elaboração própria.
Em suma, os movimentos sociais se diferenciam conforme o nível de engajamento
institucional. Comparativamente, a Fams, o CPV e o CDDH caracterizam um engajamento institucional de alta intensidade, na medida em que as instituições participativas
em que atuam retratam densidade e diversidade alta, durabilidade contínua e deliberação regular. Por sua vez, a Acapema caracteriza um movimento de engajamento institucional de baixa intensidade, dado que os seus arranjos participativos são de densidade e
diversidade baixa, de durabilidade descontínua e de deliberação baixa.
2 EFEITOS DO ENGAJAMENTO INSTITUCIONAL NOS PADRÕES
DE AÇÃO COLETIVA
2.1 Efeitos organizacionais nos PACs dos movimentos sociais
De acordo com teorias dos movimentos sociais, o engajamento de atores societários
nas instituições políticas compreende um processo de institucionalização da ação coletiva que afeta sua estrutura organizacional (TARROW, 1997; MEYER; TARROW,
1998). A maioria dos teóricos ressalta que os movimentos emergem como formações
espontâneas e não formalizadas e assimilam a sua formalização organizacional como
decorrente da sua inserção na política institucional. Grosso modo, o contexto de inserção nas agências governamentais e nas instituições políticas produziria efeitos de
complexificação organizacional nos PACs, os quais incidiriam sobre a sua estrutura
funcional, os seus objetivos e demandas, as suas estratégias de ação e sobre a sua dinâmica de mobilização interna.
Este artigo demonstra que o engajamento institucional em IPs e agências governamentais produz efeitos de complexificação organizacional nos PACs, os quais
incidem sobre a sua estrutura funcional, objetivos, estratégias de ação e dinâmica de
mobilização interna. A comparação entre os diferentes movimentos sociais comprova,
no entanto, a existência não somente de padrões e regularidades na ação coletiva, mas
também de heterogeneidades e variações nos padrões organizacionais.
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Movimentos sociais, engajamento institucional e seus efeitos: estudo de casos comparados no Espírito Santo
2.1.1 Efeitos na estrutura funcional
Nas TMS o engajamento de atores societários nas instituições do Estado produz mudanças na sua estrutura funcional. Contudo, a análise dos movimentos sociais, neste
trabalho, aponta a ocorrência tanto de mudanças quanto de continuidades, comparativamente ao seu contexto de fundação.
Os padrões de mudança na estrutura funcional são verificados na Fams, CPV e
CDDH. No contexto de fundação, esses movimentos apresentaram estrutura organizacional formalizada e descentralizada; as suas reuniões ocorreram com periodicidade
predefinida e com registro em livro de atas; o seu funcionamento interno obedecia
a regras do estatuto social e a diretoria era eleita anualmente ou bianualmente em
assembleia geral ou congresso do movimento. Comparativamente, no contexto póstransição, o processo de complexificação organizacional que incide sobre a estrutura
funcional desses três movimentos é caracterizado pela especialização funcional, profissionalização e pelo financiamento público e privado, os quais assinalam mudanças nos
seus PACs ao longo do tempo.
O efeito de especialização funcional compreende a criação de novos órgãos na
estrutura organizacional, a melhor precisão na atribuição destes e a sua adequação
à atuação nas instituições participativas de políticas públicas, no acompanhamento
das atividades dos conselheiros de políticas e dos delegados do OP, assim como no
gerenciamento de programas e convênios governamentais. No contexto de inserção
institucional, a especialização das funções desses movimentos visa ajustar a sua estrutura funcional às suas múltiplas possibilidades de participação e representação na
elaboração e implementação de políticas públicas, ampliando a sua atuação em setores
que favorecem maior conhecimento sobre o funcionamento da máquina pública e o
modus operandi do Estado.
O efeito de profissionalização é caracterizado pela integração de profissionais temporários – remunerados ou voluntários – no interior da organização desses movimentos, voltados ao suporte técnico ou jurídico nas áreas de secretaria, comunicação, contabilidade, advocacia, ou ainda, nas de assistência social e psicológica. Nesse processo
de complexificação organizacional, o financiamento das atividades foi incrementado por
recursos dos setores público ou privado ou da sociedade civil, mediante convênios,
termos de parceria, cooperação técnica, contratos, entre outros. A diversificação dos
mecanismos de autossustentação financeira dos movimentos possui consequências para
o seu padrão funcional, na medida em que, demandando maior aquisição de conhecimentos técnicos especializados, aumenta a necessidade de assessoria de profissionais e
de especialização temática. A mudança na estrutura organizacional dos movimentos é
extensiva aos cursos de qualificação das lideranças, cujo escopo tornou-se mais técnico
e especializado, com ênfase, por um lado, na elaboração e implementação de programas
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Euzeneia Carlos
e projetos sociais, na captação de recursos financeiros e na prestação de contas e, por
outro, na formação de conselheiros e delegados das IPs de políticas públicas.
O padrão de mudanças na estrutura funcional desses movimentos sociais no
Espírito Santo, caracterizado pela especialização das funções, pela profissionalização
e pelo financiamento público e privado, parece conformar uma tendência em muitas
organizações da sociedade civil no contexto democrático e de reconfiguração das relações com o Estado. Gurza Lavalle e Bueno (2011) identificaram na ecologia organizacional da sociedade civil, em São Paulo e na Cidade do México, um padrão similar
de diversificação e modernização funcional, compreendendo diferentes repertórios,
estratégias e habilidades de atores societários para ampliar a sua influência na agenda
política. A essas distintas competências e capacidades de novos atores da sociedade
civil para influenciar as políticas públicas os autores nomeiam “diferenciação funcional”, enquanto uma estratégia de fortalecimento institucional de êxito assumido por
muitos atores, no universo das organizações sociais.
Todavia, o processo de complexificação organizacional não é homogêneo e comum a
todos os movimentos institucionalmente inseridos. Comparativamente àqueles que apresentam mudanças em sua estrutura funcional, a Acapema se caracteriza por continuidades
ao longo do tempo, não tendo desenvolvido processos de complexificação de sua estrutura organizacional. Nesse movimento ambientalista, a dinâmica organizacional permanece
pouco formalizada e organizada internamente, com reuniões sem periodicidade predefinida, com registro em atas inconstante e funcionamento instável. Esse movimento não
sofreu o efeito de especialização funcional, nem de profissionalização e as suas fontes de
financiamento são incertas e restritas à contribuição dos associados.
2.1.2 Efeitos nos objetivos
As TMS comumente associam o engajamento dos atores societários nas agências e instituições do Estado a mudanças no seu objetivo fundacional (KRIESI, 1995). Não obstante, a análise comparada dos movimentos sociais aqui estudados aponta um padrão
de mudanças e continuidades em três casos (Fams, CPV e CDDH) e de continuidade
em pelo menos um deles (Acapema).
No contexto de inserção institucional, a mudança nos objetivos da Fams, do CPV
e do CDDH é caracterizada pela incorporação de novas finalidades ao objetivo fundacional. De modo geral, os objetivos acrescidos dizem respeito à elaboração e gestão de
políticas públicas em áreas sociais e de direitos humanos; à implementação de programas e projetos governamentais de políticas; e ao estabelecimento de convênios, colaborações e parcerias com órgãos públicos, setores privados ou da sociedade civil.
O padrão de mudanças e continuidades nos objetivos dos movimentos, predominante na maioria dos casos institucionalmente engajados, não é passível de
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Revista Democracia e Participação
Movimentos sociais, engajamento institucional e seus efeitos: estudo de casos comparados no Espírito Santo
generalização para o caso da Acapema. Esse movimento ambientalista apresenta continuidade em seu objetivo ao longo do tempo, não tendo acrescido novas finalidades
ao seu intuito fundacional, qual seja, o de congregar pessoas e entidades em prol
do combate contra as formas de depredação do meio ambiente capazes de afetar o
equilíbrio ecológico.
As demandas ou áreas de trabalho dos movimentos igualmente apresentam mudanças e continuidades, comparativamente ao contexto de fundação. Os movimentos
sociais em foco apresentam regularidade quanto aos efeitos nas demandas no contexto
pós-transição. Na Fams, CPV, CDDH e Acapema a continuidade nas demandas diz
respeito à área de trabalho introduzida em sua fundação e consolidada, ao longo do
tempo, como bandeira fundamental dos atores coletivos. No caso da Fams e do CPV,
a continuidade compreende a demanda por políticas sociais; do CDDH, a defesa de
direitos humanos; e, da Acapema, os impactos dos grandes projetos industriais e a proteção de áreas de conservação ambiental.
Nesses movimentos, a mudança mais expressiva em sua área de atuação no
contexto democrático é a demanda por participação popular na gestão pública.
Nesse contexto, a centralidade das instituições participativas na vida dos movimentos moveu-os em direção à esfera estatal, ampliando a sua atuação em novas
oportunidades de participação e representação na elaboração de políticas públicas
e nas agências governamentais. Nesses movimentos sociais, engajados na política
institucional, as suas demandas históricas e fundamentais se diversificaram, com a
absorção das mudanças em sua área de atuação.
No contexto de engajamento institucional, a mudança no objetivo do movimento constitui efeito esperado na literatura especializada. No entanto, esses estudiosos
desconsideram que a mudança nos objetivos pode significar o acréscimo de novas
finalidades associadas ao objetivo fundacional. Conforme demonstra os casos da Fams-CPV-CDDH, essa mudança no objetivo do movimento pode não suprimir ou
anular aquele estabelecido no momento da sua fundação, podendo ser mantido ou
combinado aos novos objetivos do contexto democrático. Desse modo, o objetivo
inicial da Fams e do CPV, qual seja, o de congregar as associações de moradores e
as entidades comunitárias em prol da solução dos seus problemas e o de lutar por
melhores condições de vida, bem como, no caso do CDDH, o de defender a vida e a
dignidade humanas permaneceram objetivos inalterados ao longo das suas trajetórias,
ainda que acrescidos de novas finalidades de associação. Os novos propósitos acrescidos aos objetivos de fundação expressam novos interesses dos atores no contexto
democrático, que ampliam e diversificam a sua atuação na defesa de políticas sociais
e de direitos humanos.
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2.1.3 Efeitos nas estratégias de ação
Nas TMS os movimentos sociais são comumente concebidos como protesto público,
e o uso de estratégia de ação institucionalizada é compreendido por esses teóricos
como decorrente da integração do movimento à política institucional. Essa abordagem supõe uma separação entre movimentos e política institucional e analisa a ação
coletiva a partir de estruturas cíclicas e dicotômicas: outsider-insider, contention-institucionalização. Tal enfoque desconsidera a interpenetração entre os movimentos e
as instituições e ignora que os primeiros possam constituir relações e formar alianças
com partidos políticos, grupos religiosos e agências do Estado e, ao mesmo tempo,
combinar uma multiplicidade de formas de ação em sua trajetória.
A análise da trajetória dos movimentos sociais em foco demonstrou que, no encaminhamento dos seus objetivos e demandas ao poder público, as coletividades combinam uma pluralidade de estratégias de ação, seja atividades formais de exposição das
reivindicações (ofícios a órgãos públicos, audiências com autoridades, ação judicial),
seja repertórios contenciosos e disruptivos (manifestação pública, passeata, ocupação
de área pública ou abaixo-assinado, manifesto, carta aberta ou ato público e vigília),
ou ainda, a formação de alianças com partidos políticos, políticos e ex-lideranças (ou
militantes) do movimento nas agências estatais. Em maior ou menor medida, a diversidade de estratégias de ação foi combinada ao longo do tempo pela Fams, CPV,
CDDH e Acapema, percorrendo conjunturas de transição do regime autoritário e
de restabelecimento das instituições democráticas. Grosso modo, a combinação entre
formas diversas de ação é contingente e dinamizada pela relação sociedade-Estado de
cada contexto histórico.
Evidências de movimentos sociais que combinam, no contexto democrático
brasileiro, estratégias formalizadas e disruptivas de ação para encaminhar demandas ao poder público também foram encontradas por Tatagiba (2010) e Feltran
(2010). De acordo com Abers, Serafim e Tatagiba (2011), essa variedade de formas
de participação de movimentos sociais e de relação com o Estado compreende um
“repertório de interação”, no qual se inclui um conjunto de rotinas: participação
institucional, lobby, protesto, política de proximidade ou de relação direta e ocupação de cargos públicos. Tais repertórios de interação “envolvem muito mais do
que experiências formais de participação institucionalizada: incluem também outras
práticas de diálogo e conflito entre Estado e movimentos sociais que são utilizadas
em combinação com a participação em arenas formalmente instituídas” (ABERS;
SERAFIM; TATAGIBA, 2011, p. 24-25).
O reconhecimento da multiplicidade de estratégias de ação e de interação do
movimento com o Estado, no contexto democrático, constitui relevante contribuição
à literatura especializada. Isto é, indica que o movimento engajado em instituições
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Revista Democracia e Participação
Movimentos sociais, engajamento institucional e seus efeitos: estudo de casos comparados no Espírito Santo
participativas combina essa a uma diversidade de outras estratégias ou repertórios de
atuação, na finalidade de expressar as suas reivindicações e propostas ao poder público
e influir na agenda política. Em complemento, este trabalho se propôs a identificar
a regularidade e padrão na ação coletiva dos movimentos sociais, no contexto de inserção na política institucional, dado que cada momento histórico enseja uma forma
predominante de ação.
Na década de 1980, no conjunto das múltiplas modalidades de ação dos movimentos analisados, a ação direta ou disruptiva constituiu a estratégia predominante
dessas coletividades, alcançando êxito em diversas circunstâncias desse período. Essa
estratégia foi percebida como mecanismo eficiente de visibilidade e de pressão frente ao
não reconhecimento do poder público da legitimidade do movimento como representante dos interesses dos grupos organizados da sociedade civil.
Esse PAC dos movimentos apresentou mudanças nas estratégias no contexto de
engajamento institucional, comparativamente ao cenário da sua fundação, isto é, o seu
repertório de ação sofreu efeitos no contexto pós 1990, contexto esse de redemocratização do país, de acesso às instituições políticas e de criação de arranjos participativos
nas agências do Estado. No cenário pós-transição, os movimentos permaneceram combinando em seu repertório de ação, atividades formais, atividades disruptivas e alianças
políticas, no entanto, ocorreram significativas mudanças quanto à centralidade de cada
uma delas no contexto democrático. Ou seja, as estratégias formais de encaminhamento
das deliberações ao poder público tornaram-se predominantes em todos os movimentos examinados, em detrimento da redução das atividades disruptivas ou de protesto
público. Esse novo padrão aponta transformações nas estratégias de ação em direção
à preponderância do uso de repertórios rotinizados e previsíveis, os quais contrastam
com o ciclo de mobilização pretérito e caracterizam o processo de formalização das suas
modalidades de ação. O padrão de formalização das estratégias de ação é caracterizado,
ainda, pelo significativo aumento de alianças e apoios da elite política, dos partidos
políticos e de ex-militantes (ou militantes) em cargos comissionados no governo, que
passa a ocupar a posição de segunda estratégia mais importante, particularmente nos
movimentos com alta intensidade de engajamento institucional.
Em suma, o contexto democrático de engajamento nas instituições participativas
produziu efeitos sobre os PACs no sentido da predominância de medidas formais,
rotinizadas e previsíveis, assim como da formação de alianças com a elite política, em
prejuízo do protesto público. A formalização das estratégias dos movimentos sociais,
e suas modalidades institucionalizadas de ação, é um efeito do contexto de inserção
institucional esperado ou previsto pela teoria especializada. De acordo com esses teóricos, a mudança no repertório de confronto, privilegiando-se modalidades institucionalizadas de ação, é compreendida como decorrente da integração do movimento
à estrutura do Estado.
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2.1.4 Efeitos na mobilização interna
A análise da mudança organizacional nos movimentos em foco aponta significativos
deslocamentos na mobilização interna. No contexto posterior a 1990, em comparação à década de 1980, os movimentos sociais reduziram a frequência das reuniões e
assembleias internas, e a sua percepção de participação no planejamento e na execução das atividades comuns e na tomada de decisões coletivas decresceu. Por outro
lado, relevante incremento no associativismo civil e na pluralização das esferas de
mobilização foi verificado.
No contexto democrático de engajamento institucional, os movimentos sociais têm
combinado a atuação no interior da sua organização (reuniões, assembleias, encontros e
congressos) com a participação em instituições do Estado (conselhos gestores de políticas públicas, orçamento participativo, conferências setoriais, plano diretor urbano, plano
plurianual, comissões, comitês e programas governamentais), além da participação em seminários e fóruns de outros movimentos e entidades da sociedade civil. Nesse cenário, as
novas oportunidades de participação e representação no desenho das políticas que ascenderam dos arranjos institucionais inovadores possibilitaram a pluralização, diversidade e
densidade das arenas de mobilização desses movimentos.
A conjugação de múltiplas funções nessas esferas de mobilização e de participação societal guarda relação com a sobrecarga dos militantes e a redução da frequência
dos encontros e atividades no interior da organização do movimento, em privilégio
do tempo dedicado às instituições participativas. É mister ressaltar que os efeitos na
mobilização (em particular, a redução das atividades internas da organização) constituem mudança esperada na literatura, na medida em que esta associa a inserção do
movimento na política institucional com desmobilização, desradicalização e centralização (PIVEN; CLOWORD, 1979; McCARTHY; ZALD, 1973; KRIESE, 1995;
TARROW, 1989). Todavia, esses estudos negligenciam as possibilidades de diversificação da vida associativa no contexto de institucionalização dos canais de mediação da
relação sociedade-Estado e tomam como inesperadas as inovações nas modalidades de
mobilização dos movimentos.
Esses analistas, em geral, seguem o “modelo de oligarquização das organizações de
massas”, de Robert Michels (1962), segundo o qual toda e qualquer organização abriga
em si a tendência inexorável para a oligarquia e centralização burocrática. No entanto,
o modelo organizacional de Michels compreende organizações grandes, centralizadas e
burocráticas e não explica a dinâmica de mudança organizacional de grupos de base,
nem de modelos organizacionais diversificados (TARROW, 1997). A maioria dos teóricos considera um único modelo de organização e ignora a variedade de padrões organizacionais dos movimentos sociais (CLEMENS, 2010). A heterogeneidade dos movimentos contempla tanto modelos mais centralizados, burocratizados e profissionais,
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Movimentos sociais, engajamento institucional e seus efeitos: estudo de casos comparados no Espírito Santo
quanto padrões descentralizados e de bases, organizações internamente democráticas e
de dinâmicas inovadoras. A variedade nos padrões organizacionais depende do movimento social, do contexto político e, ainda, do arranjo institucional em que se inserem.
As mudanças organizacionais nos movimentos sociais analisados não os assemelham a organizações tradicionais, com estruturas burocráticas, liderança centralizada e
desmobilizada – contrariando a inexorabilidade da “lei de ferro da oligarquia” –, na
medida em que combinam um padrão de organização complexo e formalizado com
uma dinâmica de mobilização e participação. Nesses movimentos, apesar da redução da
frequência dos encontros e atividades internas, a mobilização fora relativamente mantida
pela atuação dos militantes na tomada de decisões e na realização de funções na organização, e pela sua participação em uma multiplicidade de arranjos institucionalizados de
elaboração de políticas públicas. A recente desmobilização verificada na Acapema, com
padrão de engajamento institucional baixo, parece mais associada à perda de ativistas do
quadro social do que à formalização organizacional.
É preciso considerar que a correlação usual entre complexificação organizacional
e desmobilização se baseia em uma noção estreita de mobilização, limitada à compreensão das formas de ação dos movimentos no contexto de inserção institucional. Os
teóricos comumente concebem a mobilização coletiva como protesto público ou ação
direta disruptiva, ignorando as novas modalidades de ação e práticas coletivas do contexto democrático. Desse modo e considerando a diversidade dos repertórios de ação
coletiva, é possível afirmar que os movimentos sociais declinaram suas atividades de
protesto nas duas últimas décadas, mas não se desmobilizaram, dado a emergência de
novas formas de participação que mantêm a atividade do movimento. A criação de IPs
tem incentivado a emergência de novas associações civis e o revigoramento da vida associativa (BAIOCCHI, 2005; AVRITZER, 2002), diversificando as arenas de atuação
e a densidade das atividades dos movimentos.
Considerando a expansão do associativismo civil e a pluralização das esferas de
participação, o que explicaria essa mobilização societal no contexto de engajamento
institucional? Esse aparente paradoxo pode ser hipoteticamente explicado pela especificidade das instituições participativas nas quais se inserem tais movimentos. Os arranjos participativos se diferem das instituições tradicionais por inovarem no formato
das instituições, combinando mecanismos de participação direta e representativa no
processo decisório de elaboração e implementação das políticas públicas. De acordo
com essa hipótese, o desenho inovador das instituições participativas geraria novas
oportunidades de participação no desenho das políticas para grupos tradicionalmente
excluídos do processo político, favorecendo a mobilização dos atores coletivos e aumentando a sua propensão à participação no contexto democrático de inserção institucional. Diversos estudos acerca das instituições participativas, no país e alhures,
enfatizam a relevância do seu desenho inovador para a expansão do associativismo e da
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participação societal. Do mesmo modo, o estudo de Katzenstein (1998) do ativismo
feminista na política institucional ressalta que diferentes habitat institucionais geram
variações nas formas de ação coletiva e, nesse sentido, que o ativismo configura diferentes padrões organizacionais em diferentes instituições e que a sua trajetória varia
dependendo do arranjo institucional em que se insere.
2.2 Efeitos relacionais nos PACs dos movimentos sociais
A ação coletiva de movimentos sociais é significativamente formada por relações entre
indivíduos, grupos, organizações e instituições, aos moldes de uma complexa estrutura
de redes que conecta uma multiplicidade de atores. Todavia, a grande variedade de
redes sociais existentes na estruturação da ação coletiva é quase sempre ignorada nas
teorias dos movimentos sociais, tendo o tema recebido tratamento mais adequado da
abordagem relacional (EMIRBAYER, 1997; DIANI, 2003; MISCHE, 2008). Nesse
enfoque, as relações sociais estabelecidas por indivíduos, atores coletivos, associações e
instituições constituem o elemento por excelência de estruturação da vida social, sendo
a ação coletiva constituída em um contexto de relações múltiplas, dinâmicas e mutáveis.
É mister ressaltar que, neste estudo, a dimensão relacional do PAC se restringe
à rede de relações interorganizacionais dos movimentos sociais. A análise comparada evidencia que, em diferentes contextos político-institucionais, a rede de relações sociais dos movimentos em foco é composta por múltiplas organizações tanto
institucionais quanto societárias. O padrão de vínculos sociais desses movimentos
contempla relações com instituições governamentais, partidárias e religiosas, de um
lado, e ligações com sindicatos trabalhistas, movimentos sociais e entidades da sociedade civil, de outro. Em grande medida, a articulação entre instituições e entidades
societais se vale das múltiplas formas de envolvimento social dos militantes ou, nos
termos de Mische (2008), das suas “afiliações sobrepostas” que ativam uma rede
múltipla de atores e organizações.
A rede de relações sociais dos movimentos se caracteriza pelo múltiplo pertencimento a diferentes segmentos institucionais e da sociedade civil, isto é, por “relações
sobrepostas” ou “múltiplas relações”. O reconhecimento dessa multiplicidade de atores na rede de relações do movimento constitui relevante contribuição às teorias dos
movimentos sociais. Isso, pois, a maioria dos estudiosos tende a eclipsar os seus vínculos com as instituições do sistema político, no contexto fundacional, assim como
a sobrepujar os laços com outros movimentos e organizações da sociedade civil no
cenário de engajamento na política institucional. A contraposição entre movimentos
e instituições políticas, típica das teorias dos movimentos sociais, impede os estudiosos de considerarem as relações sociais dos atores coletivos em sua diversidade e complexidade, obstruindo o estudo das interconectividades entre movimentos sociais,
partidos políticos e Estado.
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Revista Democracia e Participação
Movimentos sociais, engajamento institucional e seus efeitos: estudo de casos comparados no Espírito Santo
A análise da mudança no repertório de vínculos dos movimentos sociais, ao longo do tempo, aponta significativos deslocamentos na intensidade das conexões dessas
coletividades. O contexto de engajamento institucional, de atuação nos arranjos participativos e nos programas governamentais, introduziu efeitos na densidade de laços
sociais nos diferentes segmentos que compõem a rede de relações do movimento.
Comparativamente, a transformação mais significativa foi a intensificação das relações com órgãos governamentais, que configurou um novo padrão de vínculos entre
movimentos e governos, na Fams, no CPV e no CDDH. O repertório de relações
desses movimentos institucionalmente inseridos, além de adicionar de modo expressivo
vínculos com instituições governamentais, mantém relações com partidos políticos a altas proporções. Os partidos políticos de esquerda, sobretudo o PT, desempenharam papel de relevo na formação desses movimentos sociais, com os quais foram estabelecidas
alianças de apoio mútuo que influíram de modo decisivo em sua gênese organizacional
e discursiva, tendo as agremiações partidárias na rede de relações dos movimentos se
diversificado no contexto pós-transição.
Esse padrão relacional, significativamente composto por instituições governamentais e partidárias, todavia, não é passível de verificação na Acapema. A inserção institucional desse movimento ambientalista nos arranjos participativos veio desacompanhada
da tendência de ampliação dos vínculos com a esfera estatal do contexto posterior a
1990. Nesse aspecto, a Acapema apresenta continuidades em sua rede de relações pretérita que prescindiu de maiores interconexões com agências do governo e partidos
políticos em sua gênese. A análise da densidade nessas relações enfatiza regularidade no
subgrupo CPV-Fams-CDDH, caracterizada por alta proporção de vínculos com órgãos
governamentais e partidos políticos, comparativamente à baixa proporção de relações
com ambos os segmentos na Acapema.
O repertório de vínculos com movimentos sociais ou entidades da sociedade civil,
ao mesmo tempo, apresenta proporção crescente ao longo do tempo na Fams, CPV e
CDDH. Na década fundacional, a relação com redes de movimentos e organizações
sociais contribuiu significativamente para a articulação dos atores e a coordenação da
ação coletiva, em geral, mobilizados em inúmeros eventos de protesto público em prol
de causas comuns. No contexto de intensificação da interação dos movimentos com a
política institucional, o incremento dos laços com segmentos societais potencialmente
contribui para a ação articulada dos atores, ampliando suas possibilidades de influência
na agenda política, ainda que a existência desses vínculos não determine a capacidade
do movimento de coordenação da ação.
A Acapema desenvolveu uma rede de relações peculiar quanto à centralidade dos
movimentos e organizações não governamentais. Seus vínculos com uma multiplicidade de movimentos ambientalistas, populares e culturais que constituíram fonte de sustentação às ações desenvolvidas no contexto da sua emergência, decresceram de modo
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Euzeneia Carlos
expressivo. Conquanto laços sociais com “outras entidades ou instituições não governamentais”, relevantes no cenário fundacional, permaneceram relativamente estáveis ao
longo do tempo e apresentaram leve acréscimo.
Por fim, o repertório de relações dos movimentos com grupos religiosos e sindicatos caracteriza mudanças ao longo do tempo, em prejuízo desses segmentos na maioria dos casos. A dinâmica de relações com instituições religiosas, particularmente com
segmentos da Igreja Católica, foi expressiva na década de 1980 e influiu sobremaneira
na formação organizacional e discursiva dos movimentos populares e do movimento
de direitos humanos, tendo sido menos influente no movimento ambientalista. No
contexto pós 1990, a interconexão com os grupos religiosos sofreu redução drástica na
Fams, no CPV e na Acapema, do mesmo modo que declinaram os seus vínculos com
os sindicatos trabalhistas. De modo geral, essa tendência de arrefecimento das relações
com os segmentos progressistas da Igreja Católica foi anunciada como decorrente de
transformações internas à instituição (DOIMO, 1995), assim como diversos estudiosos
verificaram mudanças no “novo sindicalismo” (COLBARI, 2003).
Contudo, o CDDH representa um movimento que contraria a tendência de redução extrema nos vínculos com instituições religiosas e sindicais, tendo mantido o
vínculo com grupos religiosos em proporção elevada da rede de relações pretérita; além
disso, a conexão com sindicatos permaneceu como indicador significativo. De fato, o
padrão relacional no movimento dos direitos humanos no contexto democrático de
inserção institucional é singular, cujas transformações ao longo da sua trajetória conduziram à maior diversificação e pluralização da sua rede de relações sociais. Isso, pois, ao
mesmo tempo em que aumentou os vínculos com instituições do governo, movimentos
sociais e outras organizações não governamentais, manteve significativa a relação com
outros segmentos da rede pretérita, como grupos religiosos, sindicatos e partidos políticos. A pluralização da rede de relações do CDDH, em que pese a expressiva inclusão
de segmentos tanto institucionais quanto societários, potencialmente contribui para a
ampliação da sua capacidade de influência na política institucional; hipoteticamente,
isso equivale a dizer que quanto maior a diversificação da rede de relações, maior a habilidade dos atores para influenciar politicamente a agenda pública.
2.3 Efeitos discursivos nos PACs dos movimentos sociais
Os estudos acerca das interações entre movimentos sociais, Estado e instituições políticas
são limitados à noção de institucionalização da ação coletiva, segundo a qual a inserção
na política institucional implica rotinização, inclusão e marginalização e cooptação. Essa
perspectiva assume visão homogeneizante dos padrões de institucionalização: ativistas
e autoridades aderem a um modelo previsível de ação, atores sociais institucionalizados
têm acesso ao sistema político, são cooptados, mudam as suas reivindicações e perdem
a sua autonomia, ao passo que são oprimidos e marginalizados aqueles que evitam os
compromissos da política institucional (TARROW, 1997; MEYER; TARROW, 1998).
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Revista Democracia e Participação
Movimentos sociais, engajamento institucional e seus efeitos: estudo de casos comparados no Espírito Santo
No entanto, esses estudiosos desconsideram que a relação entre movimentos sociais e Estado seja mais complexa e multifacetada (DOOWON, 2006), ao ignorarem
que as mudanças e reconfigurações na ação coletiva, ao longo do tempo, são heterogêneas e multidimensionadas, que os padrões de interação sociedade-Estado são variados
e que podem combinar elementos aparentemente contraditórios, como a cooperação
e a contestação ou a cooperação e a autonomia. Neste estudo, a análise dos efeitos nos
PACs dos movimentos sociais, no contexto democrático demonstra a configuração de
diversos padrões de interação com os governos que caracterizam tanto mudanças quanto continuidades no discurso da relação sociedade-Estado.
No contexto de inserção nas instituições participativas, a mudança mais significativa foi a emergência do discurso de cooperação com a esfera governamental, que
conformou um novo padrão de interação entre movimento social e Estado, especificamente na Fams, no CPV e no CDDH. Esse padrão de interação cooperativo contrasta com aquela concepção pretérita do período de transição do regime autoritário
e de redemocratização da década de 1980, a saber, de antagonismo, de oposição e de
enfrentamento dos poderes instituídos. Nesse contexto de emergência dos movimentos, o padrão de interação com o Estado foi descrito mediante categorias de conflito
e contestação, marginalização e não reconhecimento, repressão e embate, em geral,
motivados pela linguagem de movimento autônomo e independente das instituições
políticas e do Estado.
O engajamento institucional desses movimentos sociais em arranjos participativos e
agências governamentais estabeleceu uma nova concepção de relação com o Estado, em
que pese o recuo da predominância das categorias de conflito e oposição e a emergência
de categorias de cooperação, parceria, proximidade e diálogo. Mas, o que significaria cooperação? Mais precisamente, o que caracterizaria um padrão de interação cooperativo?
São relevantes as contribuições de Giugni e Passy (1998) à noção de relação cooperativa entre atores coletivos e a esfera estatal. De acordo com os autores, cooperação
é entendida como “a relação entre duas partes baseada na concordância quanto aos fins
de uma dada ação, que envolve uma colaboração ativa com o objetivo de atingir cada
finalidade” (GIUGNI; PASSY, 1998, p. 84). A cooperação se distingue do protesto e
da oposição, na medida em que a primeira se caracteriza pela concordância quanto aos
fins da ação e, a segunda representa desacordo com as prioridades, decisões e políticas
governamentais. Os autores definem a cooperação a partir do nível pragmático da concordância, isto é, quando a relação de colaboração se converte em ações concretas. Essa
cooperação se distingue por três formas: consulta, quando os atores não institucionais
colaboram com informações relevantes à tomada de decisões; integração, quando os
atores agem na implementação de decisões mediante a atuação em comitês, grupos de
trabalho ou agências governamentais; e delegação, quando o Estado transfere a responsabilidade para o movimento no nível operacional.
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Euzeneia Carlos
Desse modo, a cooperação se estabelece no plano da solução de problemas sociais
e da contribuição com o Estado na elaboração, implementação ou execução de políticas
públicas, em que movimentos sociais colaboram com o seu conhecimento e informação
sobre dada política pública. Duas ressalvas são necessárias na noção de cooperação aqui
adotada: (1) a concordância quanto aos fins da ação raramente é completa, dada a assimetria de poder e de interesses entre os atores societais e os estatais; (2) a cooperação com o
Estado na elaboração, implementação e execução de políticas públicas não é extensiva ao
nível do consenso quanto às políticas governamentais.
O padrão de interação cooperativo dos movimentos com a esfera estatal é caracterizado pelo estabelecimento de relações de colaboração e parceria na elaboração de políticas públicas e na implementação e execução de programas do governo. Para essas
coletividades, a relação de cooperação e colaboração com o Estado favorece o resultado
de suas ações, na medida em que atores societários obtêm acesso aos órgãos públicos e a
espaços institucionais e alcançam o reconhecimento da sua legitimidade pelo governo.
Em outros termos, relações de proximidade e cooperação com os governos são relevantes
ao atendimento das reivindicações do movimento, ao estabelecimento do diálogo e da
proposição, à representação e participação nas instituições participativas, à discussão, fiscalização e acompanhamento de políticas públicas, e à gestão de programas e convênios
governamentais. Em suma, as interações colaborativas têm como consequências o atendimento a demandas históricas do movimento e a influência política na agenda pública.
Por outro lado, esse padrão de relação cooperativo expõe os movimentos a riscos diversos à sua capacidade de comportamento crítico e autônomo, conforme reconhecem
os militantes: risco de dependência e submissão, de atrelamento e cooptação; de perda
da autonomia, de distanciamento da base social; de impedimento de ações contrárias
e críticas ao governo; de vinculação da imagem do movimento com a do governo; e
risco de perda da capacidade de discussão e proposição. No contexto de engajamento
na política institucional, de um lado, o estabelecimento de interações cooperativas na
relação sociedade-Estado favorece o acesso ao ambiente institucional, aos agentes governamentais e a influência na agenda política; de outro, o excesso de colaboração e de
vínculos institucionais com o Estado pode reduzir o potencial de pressão e influência
do movimento e favorecer a perda de autonomia e a dependência dos atores societais.
A consciência dos ativistas de que as relações de proximidade e cooperação com
o Estado trazem consigo riscos de dependência e perda de autonomia, entretanto,
não significa necessariamente que esses riscos se realizem, ou que modelos cooperativos na relação sociedade-Estado sejam dependentes a priori. Endossar essa posição,
significaria partir de uma compreensão homogênea da ação coletiva que desconsidera
a diversidade das configurações sociais e as possibilidades de invenção criativa, como
o fazem as combinações dicotômicas que assimilam a cooperação à cooptação e a
contestação à autonomia.
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Revista Democracia e Participação
Movimentos sociais, engajamento institucional e seus efeitos: estudo de casos comparados no Espírito Santo
Nos movimentos analisados, o padrão de interação cooperativo comporta ambas as
categorias – dependência e autonomia. Na Fams e no CPV a relação de colaboração com
as instituições governamentais tem obstado um posicionamento crítico e independente
dos atores coletivos, ainda que os militantes associem esse padrão ao êxito nos resultados
das suas ações e ao acesso à esfera política. A fragilidade do sentimento de autonomia nas
interações de cooperação com o Estado, nesses dois movimentos, são autoidentificadas
por categorias de dependência, submissão e atrelamento. Nesses termos, ambos os movimentos configuram um padrão de interação cooperativo e dependente. É necessário assinalar que dependência é aqui entendida como a frágil capacidade de sustentar posições de
modo independente dos interesses dos atores estatais e da agenda política governamental
e não se confunde com cooptação, isto é, com a mudança de objetivos dos militantes.
No CDDH, diferentemente, os atores identificam a autonomia na relação de cooperação com o Estado e, unanimemente, não correlacionam categorias de dependência e submissão para qualificar essa relação com a esfera governamental. Nesse caso,
configura-se um padrão de interação cooperativo e autônomo. Essa análise comparativa
comprova que não há contradição, a priori, entre cooperação e autonomia e que ambos
podem ser combinados um mesmo padrão de ação coletiva, afinal, “institucionalização
e independência pode parecer antitético, mas pode ser complementar” (DOOWON,
2006, p. 185). Nessa relação entre movimentos sociais e instituições políticas, a autonomia é entendida nos termos de Tatagiba (2010, p. 68): como a “capacidade de determinado ator de estabelecer relações com outros atores (aliados, apoiadores e antagonistas)
a partir de uma liberdade ou independência moral que lhe permita codefinir as formas,
as regras e os objetivos da interação, a partir dos seus interesses e valores”.
O padrão de interação cooperativo e autônomo do CDDH é mais propenso à contestação, embate e denúncia de políticas governamentais em situações de não reconhecimento
ou não implementação de demandas defendidas pelo movimento, comparativamente ao
padrão de interação da Fams e do CPV. No movimento dos direitos humanos, relações
conflitivas com o Estado são circunstancialmente acionadas em prol da garantia de políticas
de seu interesse, conforme demonstraram as campanhas mobilizatórias contra a impunidade e corrupção no aparato estatal e o sistema prisional capixaba, nas décadas de 1990 e
2000, ao passo que a Fams e o CPV reduziram significativamente a contestação e o conflito,
nesse período. A contestação no padrão de interação do CDDH é expressa, ainda, pelo uso
de canais e fóruns alternativos à arena política institucionalizada, como a ação judicial e o
acesso a organizações nacionais e internacionais de direitos humanos, sendo muitas das suas
proposições de cunho contestatório e contrário aos interesses de governos. Na trajetória do
movimento dos direitos humanos, essas iniciativas complementares de ação possibilitaram
a pluralização das arenas para a participação e entendimentos políticos, na medida em que
o movimento considera a multiplicidade de esferas públicas para atuação, sejam espaços
institucionais ou não institucionais; ou, nos termos de Goldstone (2003), uma combinação
entre política institucionalizada e não institucionalizada.
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O CDDH desenvolveu habilidades em combinar formas criativas de ação e negociação política, voltadas ao equilíbrio entre a estabilidade e previsibilidade das interações
institucionalizadas e cooperativas e o ambiente instável e incerto produzido por relações
contestatórias e de confrontação. Esse movimento dos direitos humanos representa um
“padrão de interação híbrido” que conjuga cooperação, autonomia e contestação, cujas
partes são acionadas circunstancialmente no contexto histórico e político.
Por sua vez, a análise das transformações na trajetória da Acapema aprofunda a
atenção para a heterogeneidade e a variação nos PACs dos movimentos sociais, no
contexto pós-transição. Comparativamente à Fams-CPV-CDDH, esse movimento
ambientalista apresenta expressiva continuidade no seu discurso da relação sociedade-Estado, tendo preservada a sua linguagem de contestação e de autonomia na
relação com o Estado e se recusado às interações cooperativas e de parceria com a
institucionalidade política.
No cenário de inserção nas instituições participativas, a Acapema configurou
um padrão de interação contestatório, não colaborativo e de limitado engajamento
nas agências do Estado, sendo de baixa densidade e diversidade os canais de participação em que atuaram e descontínua a durabilidade da sua representação nestas
esferas. Esse padrão de relação não cooperativo é caracterizado, ainda, pela não integração do movimento a comitês ou órgãos públicos de implementação de políticas
públicas e pela sua não adesão a programas e convênios governamentais que delegam
a execução de políticas às organizações da sociedade civil. Por fim, o caráter contencioso da sua relação com o Estado é qualificado pelo uso de fóruns alternativos à
concretização de suas ações, a exemplo da ação civil pública junto ao poder judiciário, acessados como arenas de vocalização de demandas e proposições conflitivas e
contrárias aos interesses de governos.
O padrão de interação contestatório da Acapema, definido pelos militantes como
combatente e denuncista, nutre a permanência do seu posicionamento autônomo e
crítico em relação às instituições políticas e o setor privado, e se mantém cético quanto
às possibilidades de conjugação da autonomia ao modelo cooperativo de relação sociedade-Estado. A combinação entre contestação e autonomia no repertório de interação
desse movimento é uma articulação esperada na literatura especializada, conquanto ela
tenha circunscrito esse padrão ao movimento não engajado na política institucional.
Esses teóricos também associam o modelo de ação contestatório e autônomo à exclusão
e marginalização do processo político e, ao fazê-lo, ignoram que, em circunstâncias de
articulação à ampla rede de organizações societais, o movimento pode compensar os
limites ao êxito de sua ação, provocado pelo acesso restrito às instituições políticas, e
contrarrestar essa predestinação.
Alguns estudiosos têm identificado casos similares de movimentos ambientalistas, no país, que se inserem de modo diverso nas instituições governamentais e que
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Movimentos sociais, engajamento institucional e seus efeitos: estudo de casos comparados no Espírito Santo
variam significativamente na sua forma de atuação e no seu nível de autonomia. De
acordo com Acselrad (2010, p. 106), a maioria dos estudos enfatiza ora a “substituição do ambientalismo contestatório por um ecologismo de resultados, pragmático e
tecnicista”, ora a ocorrência de um “movimento de neutralização das lutas ambientais, empreendido por organismos internacionais, empresas poluidoras e governos”.
A despeito da predominância na transformação no ambientalismo brasileiro nos anos
1990, no sentido da diferenciação funcional, da profissionalização e do financiamento público e privado, há, no entanto, casos menos numerosos de “ecologismo combativo”, para usar o termo do autor.6 Nesse padrão de atuação contestatório, ao qual se
assemelha o da Acapema, os atores societários buscam preservar a crítica ao modelo
de desenvolvimento econômico e se envolver na discussão das políticas públicas de
modo crítico e independente.
A Acapema escapa à tendência de relações de cooperação e parceria com a esfera governamental e o setor privado, comumente desenvolvidas por organizações
ambientalistas e societárias no contexto democrático. Para esses ambientalistas, as
relações cooperativas e de colaboração pressupõem alianças e sistemas de reciprocidade que são inconciliáveis com a defesa da causa socioambientalista, em que pese o
seu discurso de “entidade de contestação do modelo político econômico existente” e
de incompatibilidade entre os propósitos do movimento e os interesses governamentais. Justificam, ainda, que o estabelecimento de relações de parceria e cooperação
com o governo gera riscos de dependência e submissão do movimento aos interesses
governamentais, dado os processos de atrelamento e de cooptação a que se exporiam
que tornariam a capacidade de crítica e de combate dos ambientalistas minimizada
e a sua autonomia comprometida. No reverso, o estabelecimento de relações de não
cooperação e conflito com o governo garantiria ao movimento o posicionamento autônomo, o exercício do questionamento e da crítica na defesa dos interesses coletivos.
A significativa presença do ideal de autonomia na identidade do movimento afeta a
sua decisão em não cooperar com o governo, conforme defende Medeiros (2008) no
estudo de ONGs brasileiras.
Resumidamente, a comparação dos efeitos na dimensão discursiva dos PACs dos
quatro movimentos sociais, no contexto pós 1990, aponta a ocorrência de três padrões
de interação sociedade-Estado: (1) o padrão de interação cooperativo e dependente;
(2) o padrão de interação cooperativo, autônomo e contestatório ou padrão de interação híbrido; e (3) o padrão de interação contestatório e autônomo. O Quadro 2
sumariza, comparativamente, esses três padrões de ação coletiva, suas configurações e
respectivos movimentos.
6. Ver também Losekann (2011), que enfatiza a variação na forma como os atores de organizações ambientalistas agem
na esfera institucional e, em alguns casos, conjugam inserção institucional com autonomia.
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Euzeneia Carlos
QUADRO 2
Comparação dos padrões da relação sociedade-Estado pós 1990.
Padrões de interação sociedade-Estado
Movimentos
Sociais
Cooperação
Dependência
Contestação
Autonomia
Fams-CPV
CDDH
Acapema
Fonte: Elaboração própria.
3 EFEITOS INSTITUCIONAIS NOS MOVIMENTOS SOCIAIS:
MUDANÇAS E CONTINUIDADES
No contexto posterior a 1990, os PACs dos movimentos sociais sofreram significativa
transformação. Este artigo demonstrou que os movimentos sociais mudam ao longo
do tempo e que tal mudança afeta as dimensões organizacionais, relacionais e discursivas dos PACs. Estas transformações se correlacionam ao contexto de engajamento
institucional nas IPs e a seus efeitos, ainda que essa correlação não explique parte
relevante das variações achadas.
Os padrões de complexificação organizacional – especialização funcional, profissionalização, financiamento público e privado, formalização das estratégias de ação
e mobilização interna – caracterizam mudanças nos movimentos institucionalmente
inseridos. No entanto, as teses da institucionalização dos movimentos não possuem
explicação para muitas dessas mudanças e falham ao ignorarem as variações nos padrões
organizacionais e ao conceberem a complexificação organizacional como decorrente
estritamente da inserção das coletividades na política institucional.
Em primeiro lugar, a especialização da estrutura funcional, a profissionalização e
o financiamento de atividades dos movimentos sociais compreendem um padrão com
regularidade na maioria dos casos, todavia, não é extensivo a todos os movimentos
que experimentam processos de engajamento institucional. Desse modo, ainda que
o engajamento dos atores societários nas instituições do Estado produza incentivos à
complexificação da sua estrutura funcional, existem variações entre os movimentos que
apontam continuidades. Em segundo lugar, a mudança nos objetivos dos movimentos
não implica em sua transformação em grupo de interesse ou partido político, mas significa o acréscimo de novas finalidades ao objetivo fundacional que expressam novos
interesses no contexto democrático.
Em terceiro lugar, ainda que a formalização das estratégias de ação se correlacione
ao contexto de engajamento institucional, é preciso ponderar que: (1) as estratégias
formalizadas e de formação de alianças políticas constituem parte do repertório de ação
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Movimentos sociais, engajamento institucional e seus efeitos: estudo de casos comparados no Espírito Santo
dos movimentos desde a sua fundação; (2) as ações disruptivas ou de protesto público
sofrem o efeito de redução em todos os movimentos sociais, independentemente do seu
nível de engajamento institucional; e (3) existe variação na proporção em que o protesto público é reduzido no contexto democrático e alguns movimentos conjugam, com
indicadores expressivos, estratégias rotinizadas e contenciosas.
Em quarto lugar, a associação entre inserção dos movimentos na política institucional e desmobilização não é inequívoca. Comumente se ignora a variedade de
padrões organizacionais dos movimentos, bem como o engajamento em instituições de formato inovador. Conforme tratado, a inserção em arranjos participativos
produz incentivos à emergência de novas formas de mobilização das coletividades
e impacta significativamente a expansão do associativismo civil e a pluralização das
suas esferas de participação.
Os padrões de vínculos sociais, correspondente à dimensão relacional dos PACs,
receberam pouca atenção das TMS. A rede de relações sociais dos movimentos, em diferentes contextos político-institucionais, caracteriza-se pelo “múltiplo pertencimento” a diferentes segmentos institucionais e da sociedade civil – órgãos governamentais,
partidos políticos, grupos religiosos, sindicatos, movimentos sociais e entidades civis.
No contexto de engajamento institucional, deslocamentos significativos ocorreram na
densidade das conexões com esses segmentos, assinalado pela ampliação das relações
com órgãos governamentais, manutenção de vínculos com partidos políticos, e crescimento dos laços com movimentos e entidades civis. Por outro lado, as variações
achadas apontam que o aumento da relação com instituições governamentais e partidos políticos define um padrão relacional predominante nos movimentos, ainda que
incomum a um dos casos.
Especialmente nesse aspecto, o argumento de que os efeitos relacionais nos PACs
são decorrentes do nível de engajamento institucional dos movimentos pode ser complementado pela hipótese de correlação com a sua gênese relacional. Os significativos
vínculos com partidos políticos de esquerda e instituições religiosas na fundação dos
movimentos com alta intensidade de engajamento teriam aumentado a sua propensão
a interação com instituições governamentais e partidárias no contexto democrático;
ao passo que o repertório de relações pouco afeito à interação com partidos políticos
e segmentos religiosos na fundação do movimento incidiria negativamente sobre a sua
propensão a interagir com agências do governo e partidos políticos, no cenário póstransição. Conforme comprovou Houtzager (2004), a interação de movimentos com
instituições do sistema político no contexto de fundação, como o PT e a Igreja Católica,
aumenta a sua propensão a interagir com instituições políticas no contexto democrático, na medida em que essas funcionaram como “incubadoras institucionais” para o movimento social contencioso, favorecendo o aprendizado institucional dos movimentos e
o reconhecimento dos atores institucionais como interlocutores válidos.
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Euzeneia Carlos
Finalmente, os padrões de interação sociedade-Estado, concernentemente à dimensão discursiva dos PACs, são caracterizados pelos discursos da relação do movimento
com o Estado. As TMS desprivilegiaram essa análise cultural dos movimentos institucionalmente inseridos, como também conceberam o engajamento desses na estrutura
do Estado como cooptada e desradicalizada. A perspectiva dicotômica dessas abordagens impede o reconhecimento das variações nos padrões de interação e da combinação de elementos supostamente contraditórios na ação coletiva – cooperação-contestação e cooperação-autonomia –, sendo inadequada à compreensão das interações
heterogêneas e multifacetadas.
Os padrões de interação – cooperativo e dependente, cooperativo e autônomo,
contestatório e autônomo – caracterizam tanto transformações quanto continuidades
nos discursos da relação dos movimentos com o Estado. O nível de engajamento institucional dos movimentos pode ser levantado como hipótese explicativa dessa diferenciação, na medida em que há correlação entre a intensidade do engajamento dos atores
coletivos nas agências governamentais e a sua propensão a desenvolver relações cooperativas e de parceria com a política institucional. Essa hipótese coincide com as teses
predominantes nas TMS, pelas quais se compreende a cooperação na relação sociedade-Estado como decorrente da institucionalização do movimento. Contudo, a assimilação entre o padrão de interação e o engajamento institucional parece insuficiente para
explicar porque alguns movimentos cooperam com a esfera governamental e outros a
contestam. Ademais, a literatura especializada sequer prevê que os movimentos sociais
podem acionar, circunstancialmente, a cooperação e a contestação e, assim, estabelecer
um padrão de interação híbrido.
Evidências deste estudo apontam que o repertório de interação com o Estado não
é determinado somente pelo contexto político-institucional, mas é igualmente afetado
pela gênese do movimento e pela sua rede de relações sociais pretérita. Em outras palavras, existiria uma correlação entre o padrão de interação dos atores societais com o
Estado no contexto democrático e a sua gênese relacional. Ou seja, a significativa presença de vínculos sociais com partidos políticos de esquerda e instituições religiosas na
fundação do movimento aumentaria a sua propensão a desenvolver interações cooperativas com a esfera estatal, no contexto democrático. O contrário é verdadeiro, sendo, o
repertório de vínculos pouco afeito a relações com partidos políticos e grupos religiosos
na fundação do movimento reduziria a sua propensão a estabelecer interações colaborativas com agências do governo no cenário pós-transição. Resumidamente, a relação
com o sistema político na gênese do movimento favorece o aprendizado institucional e
o reconhecimento da interlocução com atores estatais.
De modo complementar, a demanda clamada pelo movimento igualmente se correlaciona ao seu padrão de interação com o Estado. De acordo com essa terceira hipótese, o estabelecimento de relações cooperativas ou contestatórias com a esfera estatal
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Revista Democracia e Participação
Movimentos sociais, engajamento institucional e seus efeitos: estudo de casos comparados no Espírito Santo
variaria conforme a demanda defendida pelo movimento e a permeabilidade do Estado
a ditas políticas. Movimentos com reivindicações e propostas negociáveis e permeáveis à agenda governamental tenderiam a interações cooperativas com o governo, ao
passo que movimentos que defendem clamores considerados não negociáveis e que
constituem ameaças para o governo são menos propensos a colaboração e tenderiam a
contestação e ao conflito, tendo em vista a incompatibilidade de propósitos e interesses.
A demanda do movimento também explicaria o padrão de interação híbrido. Hipoteticamente, movimentos sociais que elaboram demandas tanto negociáveis e permeáveis
à estrutura do Estado quanto temáticas de trabalho inconciliáveis com interesses do
governo tenderiam a desenvolver padrões de interação que combinam, circunstancialmente, a cooperação e a contestação.
Em última análise, este estudo demonstrou que as transformações nos PACs dos
movimentos sociais, no contexto de engajamento nas instituições participativas, são
configuradas no bojo de processos de ressignificação da relação sociedade-Estado.
A compreensão das regularidades e variações nesses padrões de ação coletiva requer a consideração das configurações tanto institucionais quanto societárias, isto
é, não somente do contexto de engajamento institucional, mas, igualmente, da
gênese dos movimentos.
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Euzeneia Carlos
O Quadro 3 sintetiza a análise empreendida ao longo do artigo.
QUADRO 3
Síntese da comparação dos efeitos institucionais nos padrões de ação coletiva (PACs) no
contexto pós 1990: organizacionais, relacionais e discursivos
MUDANÇA E CONTINUIDADE
EFEITOS ORGANIZACIONAIS NOS PACs - ESTRUTURA FUNCIONAL
FAMS
CPV
MUDANÇA:
Complexificação da estrutura
organizacional (estatuto
social de 1996 e 2003)
caracterizada por:
MUDANÇA:
Complexificação da estrutura
organizacional (estatuto
social de 1998 e 2003)
caracterizada por:
MUDANÇA:
Complexificação da
estrutura organizacional
(estatuto social de 2000)
caracterizada por:
1) Especialização funcional:
criação de novos órgãos,
maior precisão em sua atribuição e a sua adequação à
participação nas instituições
de políticas públicas e ao
gerenciamento de programas
e convênios governamentais;
criação de secretarias populares de políticas públicas,
nas áreas de educação,
meio ambiente, segurança e
saúde; mudança do regime
de coordenação geral para
presidência; redução do
número de representantes
por associação de moradores
no congresso para cinco
delegados; a demanda por
cursos de qualificação política das lideranças populares
absorveu um escopo mais
técnico e especializado.
1) Especialização funcional:
criação de novos órgãos e
o seu amoldamento à discussão de políticas públicas
e ao modus operandi do
Estado; criação da diretoria
de departamentos voltada
a especializar a estrutura
funcional à participação nos
conselhos institucionais de
políticas públicas; criação
da função de representantes
regionais voltada a adequar
a estrutura do movimento
ao acompanhamento do orçamento participativo e das
atividades dos delegados nas
regionais administrativas.
1) Especialização funcional:
criação de novos órgãos, a
melhor precisão em sua atribuição, e a sua adequação
à atuação nas instituições
participativas e agências governamentais; transformação
da diretoria executiva em
conselho diretor, composto
por cinco coordenações
descentralizadas; os cursos
de qualificação política de
lideranças populares passou
a enfatizar a formação de
conselheiros e delegados dos
arranjos participativos.
2) Profissionalização:
absorção de profissionais
temporários e remunerados
no interior da organização,
voltados ao suporte técnico
e jurídico, nas áreas de
secretaria, comunicação,
contabilidade e advocacia.
3) Financiamento público
e privado das atividades
mediante convênios e termos
de parceria, firmados com órgãos do governo municipal e
do setor privado, somado as
contribuições das filiadas.
2) Profissionalização:
absorção de profissionais
temporários e remunerados
no interior da organização,
voltados ao suporte técnico
e jurídico nas áreas de
secretaria, comunicação,
contabilidade e advocacia.
3) Financiamento das
atividades por convênios
com órgãos do governo
municipal e do setor privado,
além das contribuições das
associações filiadas.
CDDH
ACAPEMA
CONTINUIDADE:
A estrutura organizacional
permanece com inexpressiva
especialização funcional,
formalização e organização
interna; reuniões sem periodicidade predefinida, com
registro em atas inconstante
e funcionamento instável.
Não absorção de profissionais remunerados.
Suas fontes de financiamento são incertas e restritas à
contribuição dos associados.
Permanece sem sede própria
e infraestrutura de funcionamento precária.
2) Profissionalização:
absorção de profissionais voluntários e remunerados para
suporte técnico aos trabalhos
desenvolvidos, nas áreas de
secretaria, jurídica, contábil,
administrativa e assistência
social e psicológica.
3) Financiamento das atividades por convênios, termos
de parceria e de cooperação
técnica, firmados com órgãos
do governo municipal, estadual ou federal ou do setor
privado ou da sociedade
civil, além das contribuições
existentes de organizações
sociais e religiosas de âmbito
nacional e internacional.
Continua
126
Revista Democracia e Participação
Movimentos sociais, engajamento institucional e seus efeitos: estudo de casos comparados no Espírito Santo
Continuação
EFEITOS ORGANIZACIONAIS NOS PACs - OBJETIVOS E DEMANDAS
MUDANÇA E CONTINUIDADE
MUDANÇA:
Incorporação de novas finalidades ao objetivo fundacional
(estatuto social de 2003 e
2008), ao qual foi acrescido
da proposição, elaboração e
implementação de programas
e projetos de políticas
públicas e da formação de
parcerias com órgãos públicos
ou privados ou da sociedade
civil, voltados às lutas comuns
do movimento.
Acréscimo das demandas por
participação popular na gestão pública e por organização,
articulação e fortalecimento
do movimento.
CONTINUIDADE:
Continuidade no objetivo
inicial de congregar as
associações de moradores
e entidades comunitárias
em prol da solução de seus
problemas e de lutas por
melhores condições de vida
social, econômica, política,
cultural e ambiental.
Continuidade nas demandas
com a permanência das políticas sociais como principal
área de trabalho.
MUDANÇA:
Incorporação de novas
finalidades ao objetivo
fundacional (estatuto social
de 1998 e 2003), a saber:
estabelecer colaboração com
órgãos públicos, setores privados ou da sociedade civil
e a realização de convênios
voltados à implementação
de programas e projetos de
políticas públicas.
Acréscimo das demandas
por participação popular na
gestão pública e por organização, articulação e fortalecimento do movimento.
CONTINUIDADE:
Continuidade no objetivo
inicial de congregar as
associações de moradores
e entidades comunitárias
em prol de melhorias nas
condições de vida social,
econômica, política, cultural
e ambiental.
Continuidade nas áreas de
trabalho: as políticas sociais
permanecem como sua
temática fundamental.
MUDANÇA:
Mudanças nos objetivos, caracterizada pela incorporação
de novos segmentos sociais e
novas finalidades ao objetivo
fundacional (estatuto social
de 2000).
MUDANÇA:
Mudança nas demandas:
a defesa de políticas
ambientais e a participação
na gestão pública emergem
como principais mudanças
em suas áreas de trabalho.
Foram acrescidos novos
objetivos voltados à
elaboração e gestão de
políticas públicas nas áreas
de direitos humanos, justiça,
segurança, educação, saúde
e assistência social.
CONTINUIDADE:
Continuidade nos objetivos, sem acréscimo de
novas finalidades ao intuito
fundacional de congregar
pessoas e entidades em
prol do combate às formas
de depredação do meio
ambiente capazes de afetar
o equilíbrio ecológico.
A mudança na demanda mais expressiva é a
emergência do clamor por
participação popular na
gestão pública.
CONTINUIDADE:
Continuidade no objetivo
inicial de defesa da vida e
da dignidade humana, sem
distinção de nacionalidade,
credo, cor, sexo, orientação
sexual, idade, ideologia, raça
e etnia, o qual permanece
inalterado.
Continuidades nas áreas de
trabalho: os impactos dos
grandes projetos industriais
e a proteção de áreas de
conservação ambiental
permanecem como as demandas mais importantes.
Continuidades em suas áreas
de trabalho: a defesa de
direitos humanos permanece
sendo sua área de trabalho
fundamental, seguida pela
demanda por organização,
articulação e fortalecimento
do movimento.
Continua
volume 1 | número 1 | abril-jun 2014
127
Euzeneia Carlos
Continuação
MUDANÇA E CONTINUIDADE
EFEITOS ORGANIZACIONAIS NOS PACs - ESTRATÉGIAS DE AÇÃO
MUDANÇA:
Formalização das estratégias de ação
caracterizada pela redução das atividades de protesto público
(manifestações, passeatas, atos públicos, abaixo-assinado) e pelo aumento
das ações formalizadas (ofícios a
órgãos públicos, audiências com
autoridades do governo, ação judicial)
e das alianças políticas (políticos,
partidos políticos e militantes em cargos públicos), tendo as duas últimas
tornadas predominantes.
MUDANÇA:
Formalização das estratégias de ação
caracterizada pela redução das atividades de protesto público
(manifestações, passeatas, atos públicos, abaixo-assinado) e pelo aumento
das ações formalizadas (ofícios a
órgãos públicos, audiências com
autoridades do governo, ação judicial)
e das alianças políticas (políticos,
partidos políticos e militantes em cargos públicos), tendo as duas últimas
tornadas predominantes.
MUDANÇA:
Formalização das estratégias de ação
caracterizada pela redução das atividades de protesto público
(manifestações, passeatas, atos públicos, abaixo-assinado) e pelo aumento
das ações formalizadas (ofícios a
órgãos públicos, audiências com
autoridades do governo, ação judicial)
e das alianças políticas (políticos,
partidos políticos e militantes em cargos públicos), tendo as duas últimas
tornadas predominantes.
Essa mudança aponta a prevalência de
mecanismos de ação formais, rotineiros
e previsíveis, típicos de um processo de
formalização das estratégias de ação,
intensificada na última década, dado a
ausência de iniciativas mobilizatórias
ou de campanhas de protesto público
promovida pelo movimento, cujo último
registro remete a década de 1990.
CONTINUIDADE:
Relativa continuidade nas estratégias de
ação, na medida em que o movimento
mantém o uso de atividades disruptivas
e contenciosas, combinada às ações
formais ou institucionalizadas, mesmo
que em menor proporção se comparado
à década de sua fundação.
Esse repertório de ação formal, rotineiro
e previsível é preponderante no contexto pós 1990.
CONTINUIDADE:
Continuidade na modalidade de ação
judicial, a qual se manteve estável ao
longo do tempo.
A formalização das estratégias de ação
é traço predominante do seu PAC,
porém, esse é combinado a eventos
mobilizatórios de repercussão significativa no cenário estadual e nacional,
ao longo das décadas de 1990 e 2000,
a exemplo da campanha contra a impunidade e a violência e da campanha
contra a violação dos direitos humanos
no sistema prisional capixaba.
EFEITOS ORGANIZACIONAIS NOS PACs – MOBILIZAÇÃO INTERNA
FAMS
CPV
MUDANÇA E CONTINUIDADE
MUDANCA:
Alterações na dinâmica de mobilização interna do movimento,
com a redução da frequência das reuniões e da percepção de
participação no planejamento e na execução das atividades, e
na tomada de decisões.
CONTINUIDADE:
Incremento no associativismo civil, com a emergência de
novas associações de moradores; e a pluralização de suas
esferas de mobilização, caracterizada pela participação no
interior da organização (reuniões, assembleias e congressos)
e a atuação nas instituições participativas (conselhos de políticas públicas, orçamento participativo, conferências setoriais,
plano diretor urbano e plano plurianual).
CDDH
ACAPEMA
MUDANCA:
Alterações na dinâmica de
mobilização interna do movimento, com a redução da
frequência das reuniões e da
percepção de participação no
planejamento e na execução
das atividades, e na tomada
de decisões.
MUDANCA:
Alterações na dinâmica de
mobilização interna do movimento, com a redução da
frequência das reuniões e da
percepção de participação no
planejamento e na execução
das atividades, e na tomada
de decisões.
CONTINUIDADE:
Emergência de novas modalidades de mobilização e de
participação nos arranjos
participativos.
CONTINUIDADE:
Emergência de novas esferas
de mobilização e de participação nas IPs de políticas
públicas. Interrupção da participação nessas instituições
participativas em meados
dos anos 2000, seguida de
desarticulação dos militantes
e de desmobilização do
movimento.
O movimento passou a
combinar a participação
no interior da organização
(reuniões e assembleias) com
a atuação nas IPs (conselhos
de políticas públicas, conferências setoriais, comitês e
programas governamentais),
além da participação em
seminários e encontros do
MNDH e nos fóruns de redes
de movimentos.
Continua
128
Revista Democracia e Participação
Movimentos sociais, engajamento institucional e seus efeitos: estudo de casos comparados no Espírito Santo
Continuação
MUDANÇA E CONTINUIDADE
EFEITOS RELACIONAIS NOS PACs – REDE DE RELAÇÕES SOCIAIS
MUDANÇA:
Deslocamentos na intensidade dos vínculos sociais com
os segmentos institucionais
e societais.
MUDANÇA:
Deslocamentos na intensidade dos vínculos sociais com
os segmentos institucionais
e societais.
MUDANÇA:
Deslocamentos na intensidade dos vínculos sociais com
os segmentos institucionais
e societais.
A mudança mais significativa
é o incremento dos vínculos
com órgãos governamentais,
seguida pelo aumento dos
laços com movimentos e
entidades civis, pela manutenção dos níveis elevados
de relação com partidos
políticos e, pela redução dos
vínculos com segmentos
religiosos e sindicais.
A mudança mais significativa
é o incremento dos vínculos
com órgãos governamentais,
seguida pelo aumento dos
laços com movimentos e
entidades civis, pelo leve
decréscimo das conexões
com partidos políticos e
pela significativa redução
dos laços com instituições
religiosas e sindicatos.
A mudança mais significativa
é o incremento dos vínculos
com órgãos governamentais,
seguida pelo aumento dos
laços com movimentos e
entidades civis e, ainda,
pelo aumento da relação
com outras instituições
ou entidades; e pelo leve
decréscimo das conexões
com partidos políticos.
CONTINUIDADE:
Continuidade significativa
nos vínculos sociais com
grupos religiosos e sindicatos
de sua rede pretérita.
Nesse movimento ocorre
maior diversificação e pluralização da rede de relações
sociais.
MUDANÇA:
Deslocamentos na rede
de relações sociais,
caracterizada pela
redução da intensidade dos
vínculos com movimentos
e entidades societários; e
relativa estabilidade quanto
aos vínculos com outras
entidades ou instituições
não governamentais.
CONTINUIDADE:
Continuidade na rede de
relações sociais, quanto aos
vínculos menos expressivos
com instituições do Estado,
como órgãos do governo,
grupos religiosos e, sobretudo, partidos políticos.
Continuidade na centralidade dos movimentos
sociais, entidades e outras
instituições no conjunto de
sua rede de relações.
MUDANÇA E CONTINUIDADE
EFEITOS DISCURSIVOS NOS PACs – RELAÇÃO SOCIEDADE-ESTADO
MUDANÇA:
Padrão de interação cooperativo caracterizado pelo deslocamento no discurso
de relação sociedade-Estado, com a
substituição das categorias de conflito e
oposição pelas de cooperação, colaboração e parceria.
MUDANÇA:
Padrão de interação cooperativo caracterizado pelo deslocamento no discurso
de relação sociedade-Estado, com a
substituição das categorias de conflito e
oposição pelas de cooperação, colaboração e diálogo.
CONTINUIDADE:
Continuidade no discurso de relação
sociedade-Estado, qual seja, de
antagonismo, autonomia e de recusa
às interações cooperativas com a
esfera governamental e instituições
partidárias.
As interações cooperativas com a esfera
governamental são autopercebidas
como favoráveis à influência na agenda
pública, ao atendimento de suas
demandas históricas e ao acesso aos
órgãos públicos.
As interações cooperativas com a esfera
governamental são autopercebidas
como favoráveis à influência na agenda
pública, ao atendimento de suas
demandas históricas e ao acesso aos
órgãos públicos.
Discurso contestatório, combatente,
denuncista e de comportamento autônomo e crítico na relação com o Estado
e o poder econômico.
O discurso de autonomia das instituições políticas perde a ênfase do período
de emergência do movimento, sendo
frágil a sua percepção de autonomia
nas relações cooperativas com o
governo, conformando um padrão de
interação cooperativo e dependente.
CONTINUIDADE:
Continuidade no discurso de autonomia das instituições políticas e de
contestação no sistema de relação
sociedade-Estado, conformando um
padrão de interação, ao mesmo tempo,
cooperativo, autônomo e contestatório
ou padrão de interação híbrido.
Discurso de que as interações colaborativas com instituições públicas ou
privadas são nefastas à identidade do
movimento, conformando um padrão de
interação contestatório e autônomo.
Fonte: Elaboração própria.
volume 1 | número 1 | abril-jun 2014
129
Euzeneia Carlos
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Revista Democracia e Participação
A PLURALIDADE DE SOCIEDADES CIVIS NA SEGURANÇA PÚBLICA:
DELIBERAÇÃO E CONCEPÇÕES DE REPRESENTAÇÃO POLÍTICA NO CONASP
Gabriela Ribeiro Cardoso1
Fábio de Sá e Silva2
Julian Borba3
Resumo:
Abstract:
O artigo propõe-se a contribuir com os novos debates
sobre participação, examinando a presença e a atuação
da “sociedade civil” nas instituições participativas e,
para tanto, considera como lócus de análise o Conselho
Nacional de Segurança Pública (Conasp). O enfoque
principal está nas concepções de representação
política, ou seja, na forma como as concepções de
representação política são compreendidas e evocadas
pelas diversas organizações da sociedade civil com
atuação no Conasp, nas duas gestões compreendidas
entre 2010 e 2012. Este exercício permite ainda
relacionar as proposições teóricas já clássicas como as
de Pitkin (1967) com os debates mais contemporâneos
que revigoram as discussões sobre representação, a
exemplo das contribuições de Urbinati (2006; 2010)
e o conceito de representação como advocacy. De
um ponto de vista empírico, isso se traduz em um
aprofundamento e uma caracterização das associações,
redes e movimentos que integraram o Conasp no
período analisado. A pesquisa revela que, mais do que
uma sociedade civil monolítica, há uma pluralidade
de trajetórias, repertórios de ação, demandas e grau
de articulação com o Estado. A complexidade é ainda
maior quando a atuação das “sociedades civis” é
compreendida de modo relacional com a percepção
dos outros segmentos que integram o conselho.
This article wishes to contribute to the
contemporary debates on participation, by
examining the presence and the agency of
the so-called civil society within participatory
institutions. In particular, we use empirical, multi
method research to look at the workings of the
National Council for Public Security (Conasp) in
Brazil. Our main focus is on the visions of political
representation among civil society organizations
that have participated in the Conasp – i.e., in
the way such organizations have understood
and evoked political representation during the
two Council terms comprised in the 2010-2012
timeframe. We examine these visions in light of the
literature on political representation, ranging from
Pitkin’s (1967) classical theoretical propositions to
Urbinati (2006; 2010) contemporary contributions
and the notion of representation as advocacy. Our
inquiry reveals that way beyond a monolithic civil
society there is a myriad of trajectories, repertoires
of action, demands, and degrees of relationship
with the state. The complexity is even bigger
when the agency of members of civil society
organizations is examined in relationship with
the agency of members from other segments that
constitute the Conasp.
Palavras-chave: Representação. Participação. Conselho
Nacional. Segurança Pública. Sociedade Civil.
Keywords: Representation. Participation. National
Council. Public Security. Civil Society.
1. Mestra em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e técnica em Assuntos Educacionais
na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). E-mail: [email protected].
2. PhD em Direito, Política e Sociedade pela Northeastern University (EUA); técnico de Planejamento e Pesquisa do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea); professor substituto de Teoria Geral do Direito na Faculdade de Direito
da Universidade de Brasília (UnB).
3. Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professor da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC).
Gabriela Ribeiro Cardoso | Fábio de Sá e Silva | Julian Borba
1 INTRODUÇÃO
Nas duas últimas décadas consolidou-se no Brasil um sistema participativo desenhado
para promover a participação dos cidadãos nas decisões de políticas públicas (SÁ E
SILVA; LOPEZ; PIRES, 2010). A institucionalização da participação tem marcado
a agenda de pesquisas nas ciências sociais, de tal modo que já se delineia um cenário
pós-participativo permeado por novos desafios analíticos, tais como: arranjos institucionais que operam como lócus da participação; legitimidade dos atores e do processo
de representação extraparlamentar verificado naqueles espaços; e efeitos das práticas
participativas sobre as políticas públicas, ou seja, “efetividade” da participação social
(GURZA LAVALLE, 2011; AVRITZER, 2011; PIRES, 2011).
Esses desafios tornam-se ainda mais instigantes em um campo como o da segurança pública, no qual as iniciativas de institucionalização da participação são extremamente recentes em comparação com outras áreas. Nesse contexto, verifica-se não apenas
a presença e a emergência de novos atores (sociedade civil, trabalhadores e gestores),
desenhos institucionais e processos de participação (a convocação da 1ª Conferência
Nacional de Segurança Pública com Cidadania – 1ª Conseg, em 2009, e a reforma do
Conselho Nacional de Segurança Pública – Conasp, em 2010), mas também a histórica
tensão entre a perspectiva da ampliação da democracia em que se baseia a institucionalização da participação e a cultura autoritária e tendente ao fechamento que incide sobre
o setor da segurança pública (PERALVA, 2000).
Com base em análises qualitativas e quantitativas de dados primários (IPEA,
2013; SÁ E SILVA; DEBONI, 2012; CARDOSO, 2012), o presente artigo propõese a contribuir com os novos debates sobre participação, examinando a presença e a
atuação da “sociedade civil” nas instituições participativas e tomando como lócus de
análise o Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp). O enfoque principal
está nas concepções de representação política, ou seja, na forma como a condição de
representante é compreendida e evocada pelas diversas organizações da sociedade civil
com atuação no Conasp, nas duas gestões compreendidas entre 2010 e 2012.4 Esse
exercício permite ainda relacionar as proposições teóricas já clássicas, como as de Pitkin (1967) com os debates mais contemporâneos que revigoram as discussões sobre
representação, a exemplo das contribuições de Urbinati (2006; 2010) e do conceito de
representação como advocacy.
O artigo está dividido em três partes, além desta introdução. Inicialmente apresentamos algumas linhas do debate teórico sobre representação política. Na sequência,
realizamos uma breve caracterização do Conasp, das entidades da sociedade civil e
4. Como adiante será explicitado, essas duas gestões têm natureza e composição distintas, o que inclusive torna possível
elaborar, para o período em questão, uma análise comparada, enriquecendo a discussão proposta neste artigo.
134
Revista Democracia e Participação
A pluralidade de sociedades civis na segurança pública:
deliberação e concepções de representação política no Conasp
dos conselheiros que dele participam, com destaque para o histórico e objetivo de
cada uma. Na terceira parte, analisamos as concepções de representação que circulam
no Conasp, com enfoque nas organizações que nele atuam em nome do segmento da
“sociedade civil”.
2 CONCEPÇÕES TEÓRICAS DE REPRESENTAÇÃO POLÍTICA: BASES PARA UMA
AVALIAÇÃO DA ATUAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL NO CONASP
Ao tratarmos de representação política, é necessário mencionar, ainda que brevemente,
as contribuições de Pitkin (1967). Em obra seminal, a autora aborda visões representação que têm tido grande reverberação no debate contemporâneo, as quais se tornaram
um marco para a discussão da temática.
Pitkin inicia examinando o que considera duas visões formalísticas de representação: a visão da autorização e a visão da accountability. A visão da autorização é formalística por definir a representação “em termos de uma transação que ocorre no início,
antes que a representação vigente comece” (PITKIN, 1967, p. 39, tradução nossa),
ou seja, é um tipo de representação que foca mais no que antecede a representação
do que no conteúdo desta propriamente dito. Para diversos teóricos da autorização, a
representação é como uma “caixa-preta” formatada no momento da outorga do poder,
sendo que se os limites do poder outorgado são excedidos, ela se extingue. Não há
como o mandatário representar “bem” ou “mal”, não há outros deveres associados à
representação. Visão distinta da autorização é a da accountability, para cujos teóricos o
representante deve ser alguém que presta contas, ou seja, responde aos outros pelo que
faz (PITKIN, 1967, p. 55).
Assim, enquanto para os teóricos da autorização o representante é livre (ou,
quando muito, limitado pelos termos originais de um contrato), para os teóricos do
accountability, um representante representa na medida em que está sujeito à reeleição
ou ao fim de seu mandato.
A accountability é considerada um corretivo da perspectiva da autorização, visto
que aquela atribui direitos aos representados, mas não destina lugar para as obrigações
e mecanismos de controle dos representantes. No entanto, Pitkin considera que as duas
visões são formalísticas justamente porque o critério da representação está fora da atividade pela qual esta se dá. Uma enfoca no momento que antecede o início da representação e a outra que ocorre depois, em como termina. Porém, nenhuma das duas trata
do que ocorre durante a representação, de como é esperada a ação de um representante,
se ele representa bem ou mal.
Outra concepção de representação abordada por Pitkin, que expressa uma visão completamente diferente da formalística, é a de tipo descritivo. Essa perspectiva
argumenta que o legislativo deve ser selecionado como uma composição capaz de
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Gabriela Ribeiro Cardoso | Fábio de Sá e Silva | Julian Borba
corresponder a toda a nação, um retrato exato da população. Trata-se mais de ser
alguém do que fazer algo. Em síntese:
Para estes autores, representação não é agir com autoridade, ou agir antes de ser
responsabilizado, ou qualquer outro tipo de agir em absoluto. Pelo contrário,
ela depende das características dos representantes, sobre o que ele é ou como
é, trata-se mais de ser algo do que fazer algo. O representante não age pelos
outros, ele está pelos outros, pela virtude da correspondência ou conexão entre
eles, a semelhança ou o reflexo (PITKIN, 1967, p. 61, tradução nossa).
A representação descritiva proporcionalista considera um modo de representar
muito diferente dos teóricos formalistas, ou seja, envolve representar por “standing for”,
“agir por” alguém ou algo que está ausente, tendo em vista a correspondência de características entre o representante e o representado. É um modo de representar que pode
ser chamado de representação descritiva, na qual uma pessoa torna-se responsável pelas
demais em função da semelhança que guarda com estas.
A representação como “agir por”5 preocupa-se, desse modo, com a natureza da representação, com o que acontece durante a representação, sua substância e conteúdo.
Essa visão possibilita discutir as obrigações do representante como um agente e a representação como princípio de ação. Dentre as características de agir pelos outros, está o fato
de não agir por impulso, mas sim pela ação deliberada, ou seja, pelo que já foi decidido.
A representação significa ainda agir de um modo responsivo em relação ao interesse do
representado de modo que não haja conflito. Por fim, o dever do representante consiste
na tarefa dual de perseguir tanto o interesse local quanto o nacional. A representação
substantiva existe apenas onde os interesses e as decisões não são escolhas arbitrárias.
Na conclusão de sua obra, Pitkin aponta que uma visão correta e completa da
representação depende do entendimento adequado do que a representação significa,
pois cada visão de representação possui hipóteses e implicações. Pitkin (1967) apresenta
uma importante contribuição para a definição de representação política ao considerá-la
como “agir por”; mas entende que o sistema representativo deve cuidar do interesse
público e ser responsivo à opinião pública. Por isso, a autora considera que a forma e
a substância são os dois grandes e indispensáveis ânimos para a vida social e política,
sendo necessária a articulação de ambos. Isso porque para assegurar a substância da
representação é necessária a institucionalização. O conceito de representação é, então,
uma contínua tensão entre o ideal e o conquistado, mas esta tensão não deve conduzir
a abandonar o ideal ou a institucionalização para a vida política.
5. Dando continuidade à representação como “agir por”, Pitkin apresenta os argumentos de duas correntes teóricas: (1)
os teóricos do mandato – que fazem o que os seus eleitores desejam; (2) os teóricos da independência – que ressaltam
a importância de ter liberdade para decidir de acordo com o seu próprio julgamento.
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Revista Democracia e Participação
A pluralidade de sociedades civis na segurança pública:
deliberação e concepções de representação política no Conasp
No debate mais recente, Philips (2001) ressalta que, na dinâmica corrente da representação, valorizam-se mais as preferências e crenças dos eleitores que as características dos
representantes. Neste sentido, dialoga com Pitkin, que critica a representação descritiva ao
apontar a importância da dimensão formal (institucional) da representação (a autorização
e accountability). A qualidade da representação normalmente é vista como dependente de
mecanismos mais firmes de responsabilização e prestação de contas, mas tais argumentos
nem sempre se comprometem com a questão da exclusão política.
A preocupação central de Philips é com os mecanismos que permitem associar a
representação justa à presença política e que reivindicam mudanças no nível político.
Assim, Philips destaca as demandas por presença política de grupos que se reconhecem
como marginalizados ou excluídos – grupos étnicos que almejam maior inclusão política. Trata-se de colocar em discussão “a separação entre quem e o quê é para ser representado” (PHILIPS, 2001, p. 272, grifo nosso).
Ainda entre os autores que se destacaram no revigoramento do debate recente
sobre representação está a cientista política italiana Urbinati (2006). Essa autora desenvolve a compreensão de que a democracia representativa não é um substituto imperfeito
para a democracia direta, mas sim consiste em um primado para expandir a democracia.
Urbinati (2006) propõe-se a realizar uma redescoberta do termo representação,
sem perder de vista uma perspectiva genealógica que trate dos diferentes sentidos atribuídos ao conceito.6 Consequentemente, Urbinati argumenta que a democracia representativa não é um paradoxo ou uma alternativa para algo tornado impossível contemporaneamente. Para tanto, propõe que enxerguemos a representação como um processo
político que articula a sociedade e o Estado, além de ser um componente essencial da
democracia. Nesse sentido, a autora ressalta que:
A representação política transforma e expande a política na medida em que
não apenas permite que o social seja traduzido no político; ela também
promove a formação de grupos e identidades políticas. Acima de tudo,
ela modifica a identidade do social, uma vez que, no momento em que
as divisões sociais se tornam política ou adotam uma linguagem política,
elas adquirem uma identidade na arena pública de opiniões e tornam-se
mais inclusivas ou representativas de um espectro mais largo de interesses e
opiniões (URBINATI, 2006, p. 219).
6. Urbinati identifica três teorias da representação ao tratar do governo representativo nos seus duzentos anos de história:
a perspectiva jurídica, a perspectiva institucional e a perspectiva política. A teoria jurídica é a mais antiga e denominase jurídica porque trata a representação como um contrato privado. Nesse modelo, a relação entre representante e
representado está de acordo com a lógica individualista e não política, a representação não é um processo. A perspectiva
política da representação rompe com os modelos anteriores e cria uma categoria nova ao conceber a representação de
modo dinâmico ao invés de estático. Assim sendo, Urbinati aponta que Pitkin reformula o conceito de representação
política (no sentido de agir em nome de).
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Gabriela Ribeiro Cardoso | Fábio de Sá e Silva | Julian Borba
A partir das contribuições de Mill, que ligou governo representativo, representação
proporcional e o caráter agonístico da assembleia, Urbinati desenvolve o conceito de
representação como advocacy. Enquanto para Rousseau o cidadão deveria formar a sua
opinião sozinho, sem influência de paixões extremas, Mill defendeu o debate público e o
processo deliberativo. Mill supõe, portanto, a representação como uma instituição complexa, com diversas camadas de ação política. Dessa forma, a representação é compreendida como uma “linha de ação, mais do que um ‘simples ato’ – uma prática de interação
política entre cidadãos que vai muito além do ato de votar” (URBINATI, 2010, p. 66).
A representação como advocacy apresenta dois componentes: “a ligação ‘apaixonada’
do representante com a causa dos eleitores e a relativa autonomia de juízo do representante”
(URBINATI, 2010, p. 77). Os representantes como advocates não são apenas partidários,
mas também deliberadores. Além disso, a advocacy não é um partidarismo cego, no qual
um advocate precisa ser imparcial como um juiz, pois este possui vínculos com os seus
“clientes”. O advocate7 deve aderir à causa que defende, é a ideia de um defensor apaixonado, uma identificação pela identidade dos ideais e dos projetos. A representação como
advocacy faz parte do modelo agonístico da política que valoriza a importância do conflito.
Destacamos ainda que, no debate brasileiro, é possível encontrar importantes referências para a compreensão da representação política nas experiências participativas.
A representação desempenhada por organizações da sociedade civil é objeto das análises de Gurza Lavalle, Castello e Houtzager (2006), os quais ressaltam a relevância de
abordar a representação e a participação de modo relacionado. Posteriormente, outros
pesquisadores dedicaram-se a tratar da representação no interior das experiências participativas como Luchmann8 (2007), Borba e Luchmann (2010), Avritzer (2007) e
Almeida (2010). Eles desenvolveram os conceitos de representação por entidades ou
organizações sociais, representação por afinidade9 e autorização contingente.10 Tais conceitos, como veremos, podem ser de grande utilidade para se examinar a atuação da
“sociedade civil” em um órgão como o Conasp.
7. Entretanto Urbinati considera a figura do representante-advocate como “peculiar a uma democracia cuja sociedade civil
não encarna plenamente os princípios democráticos” (URBINATI, 2010, p. 87), o que necessita ser mais bem explorado.
8. A abordagem desenvolvida por Luchmann (2007) visa combinar as relações de participação e representação que
ocorrem no interior das experiências participativas, fenômeno denominado como representação no interior da participação.
9. De modo geral, trata este tipo de representação como fruto de uma “relação variável no seu conteúdo entre os atores
e os seus representantes”, ou seja, uma legitimidade que se dá pelo tema (AVRITZER, 2007, p. 457).
10. Almeida (2010) analisa as práticas da representação política, com enfoque nos conselhos municipais de saúde. Assim,
vale-se das contribuições de Pitkin para cunhar o conceito de autorização contingente, pois se trata de um poder derivado,
na medida em que é transmitido por outros poderes constituídos. Em síntese, o exercício da representação aparece
relacionado com outros poderes: “Ademais, nos conselhos, o mandato e a capacidade de ‘agir em nome’ de públicos,
temas e/ou perspectivas é sempre dependente do poder político, em termos de disposição de partilha do poder decisório
e capacidade de implementação das políticas deliberadas, o que reforça a incerteza do componente da autorização”
(ALMEIDA, 2010, p. 136). Almeida acrescenta que a representação nos conselhos de políticas públicas depende de um
tipo de autorização que pode contribuir para a legitimação daqueles que possuem afinidade com o tema, o que por sua
vez recebe a influência da própria definição dos métodos de escolha para os representantes, que podem ou não “autorizar
pessoas que tenham afinidade e relação com o tema” (ALMEIDA, 2010, p. 136).
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Revista Democracia e Participação
A pluralidade de sociedades civis na segurança pública:
deliberação e concepções de representação política no Conasp
3 O CONASP E SUAS SOCIEDADES CIVIS: OBJETO, MÉTODOS E ESCOPO
DA ANÁLISE
O Conasp foi criado por meio do Decreto nº 98.936/1990, ou seja, na esteira – ao
menos aparente – da promulgação da Constituição de 1988. Originalmente, tratavase de colegiado de cúpula, não envolvendo participação da sociedade civil, orientação
mantida na reforma operada por meio do Decreto nº 2.169/1997.11 A partir de 2007,
começou a ganhar força, no Ministério da Justiça (MJ), a ideia de se reformar o Conselho. A proposta foi impulsionada, afinal, com a realização da I Conferência Nacional
de Segurança Pública (1a CONSEG).
De fato, a convocação da 1a CONSEG, em 2008, foi acompanhada da formação
da Comissão Organizadora Nacional (CON). Essa comissão era formada por atores dos
três segmentos de representação reconhecidos pela Conferência e, mais tarde, pelo próprio Conasp: (1) trabalhadores da segurança pública12, (2) sociedade civil e (3) gestores
dos três entes federados e dos três poderes. Tanto na CON quanto no Conasp, esses
segmentos se dividiam na proporção de 30%, 40% e 30%, respectivamente.
A CON funcionou até o final da etapa nacional da Conseg, em agosto de 2009,
quando, amadurecida a decisão política do MJ de reformar o Conasp, foi transformada
em versão transitória deste Conselho (Decreto nº 6.950/2009), processo para o qual,
afinal, acabou servindo de fiadora. Essa versão transitória recebeu mandato de um ano,
tendo por objeto a definição de critérios, regras e procedimentos eleitorais do Conasp
“definitivo”. Assim é que, em 2010, ocorreram as eleições para os representantes dos trabalhadores e da sociedade civil que integrariam a primeira gestão do Conasp “definitivo”.
A análise constante deste artigo recai sobre esses dois momentos de existência
do Conasp e resulta de pesquisas empíricas (IPEA, 2013; SÁ E SILVA; DEBONI,
2012; CARDOSO, 2012) que envolvem entrevistas, análise das recomendações aprovadas pelo conselho (mecanismo relevante para tratar das deliberações produzidas
do órgão); observação das reuniões; e aplicação de questionários (surveys), primeiramente aos conselheiros do Conasp “transitório”, em 2010 e, posteriormente, aos
11. O início desta seção está baseado em Sá e Silva e Deboni (2012). Os membros permanentes, na composição de 1990,
eram: Ministério da Justiça (presidente); Presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP);
Diretor-geral do Departamento de Polícia Federal (DPF); e Secretários estaduais de segurança pública. Os membros
permanentes na composição de 1997 eram: Ministério da Justiça (presidente), Secretário nacional de segurança pública,
Presidentes dos conselhos regionais de segurança pública, Inspetor-geral das PMs, Diretor-geral do DPF, Diretor-geral
do Departamento de Polícia Rodoviária Federal (DPRF), Presidente nacional dos chefes da Polícia Civil, Presidente do
Conselho Nacional de Comandantes-Gerais das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares do Brasil (CNCG). Em
ambas as configurações, OAB e Ministério Público Federal eram membros convidados.
12. São exemplos dessa categoria: Oficiais da Polícia Militar, Praças da Política Militar, Agentes Penitenciários, Policiais
Rodoviários Federais, Policiais Civis, entre outros.
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conselheiros da primeira gestão do Conasp “definitivo”, em 2012.13 A análise das atas
também rendeu insumos relevantes, pois estas constituem um material bastante rico
e possuem um grau de detalhamento que foge ao padrão de registro observado em
outros conselhos. Três questões orientam a discussão pretendida: quem atua como
representante da sociedade civil; quem ou o que tais representantes representam; e
que mecanismos embasam esse ofício de representação. As próximas seções exprimem
os resultados dessa investigação.
3.1 Q
uem atua como representante (I): organizações, movimentos e redes
da “sociedade civil”
Inicialmente apresentamos uma caracterização geral e um breve histórico dos fóruns, redes de movimentos sociais e entidades da sociedade civil que integram o Conasp na versão
“definitiva”. Essas informações são relevantes para a compreensão tanto da diversidade da
sociedade civil no Conselho e no campo da segurança pública de um modo mais geral
quanto para analisar as próprias concepções de representação política aí envolvidas.
Movimento Nacional de Direitos Humanos
Fundado em 1982, constitui, com o Gajop, o Iser e o Inesc, uma das organizações
da sociedade civil mais antigas a integrar o Conasp. Na sua origem, possui relação com
a Igreja Católica e as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que durante a ditadura
militar atuavam na defesa de presos políticos. Nesse contexto, emergiram os Centros de
Direitos Humanos do país. Como ressaltou entrevistada:14
A gente é um saldo daquelas entidades que têm origem nas comunidades
eclesiais de base, naquela época em que a igreja é uma teologia da libertação,
entendeu? ... Então a gente tem... é como eu disse, é diferente de outras ONGs
que se profissionalizam, mas não tem uma visibilidade, uma credibilidade uma
história, não arrastam uma história como a gente. (Entrevista a Cardoso, 2012).
É interessante ressaltar a ênfase que a representante do MNDH no Conasp atribui à
própria história do MNDH em diferenciação às demais entidades que compõem o órgão.
Conforme consta no site, o MNDH (2012) tem atuado nas seguintes frentes: campanha
nacional de combate à tortura; produção de estudos e pesquisas; intervenção nas políticas
públicas (planos nacionais de direitos humanos); lobby e advocacy. Com relação ao lobby e
13. Os dados de 2010, coletados nas pesquisas de Sá e Silva e Deboni (2012) e Ipea (2013) contêm entrevistas com 36
(trinta e seis) conselheiros(as), sendo 25 (vinte e cinco) titulares e 11 (onze) suplentes. Já os dados de 2011, coletados
na pesquisa de Cardoso (2012), contêm entrevistas com 32 (trinta e dois) conselheiros(as), dos quais 23 (vinte e três)
eram titulares e 09 (nove) suplentes. Especialmente neste ano, é relevante a participação dos suplentes, tendo em vista a
divisão de cadeiras entre alguns trabalhadores(as) e entidades da sociedade civil.
14. Entrevista concedida por representante do MNDH [dez. 2011]. Entrevistadora: Gabriela Ribeiro Cardoso. Joinville,
2011. 1 arquivo .mp3 (2h e 02 min.)
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Revista Democracia e Participação
A pluralidade de sociedades civis na segurança pública:
deliberação e concepções de representação política no Conasp
advocacy, atuou nas mobilizações pela Constituição de 1988, assim como pela aprovação
de leis como a que tipifica o crime de tortura e a proteção às testemunhas. Assim, é relevante observar que o MNDH mobiliza o conceito de advocacy para designar uma de suas
formas de atuação, uma das vertentes teóricas consideradas neste artigo.
Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop)
Criado em 1981, em Recife (PE), fruto da iniciativa de advogados que desejavam
trabalhar com educação jurídica popular. No período de elaboração da Constituição de
1988, o Gajop participou das discussões sobre os novos direitos fundamentais. Em 1995,
criou o Programa Estadual de Apoio e Proteção a Vítimas, Testemunhas e Familiares de
Vítimas da Violência (Provita), com o intuito de colaborar com a redução da impunidade. Possui como objetivo “contribuir para a democratização e o fortalecimento da Sociedade e do Estado, na perspectiva da vivência da cidadania plena e da indivisibilidade dos
Direitos Humanos” (ALMEIDA, 2011).
Instituto de Estudos da Religião (Iser)
Possui origens vinculadas ao Iset (Instituto Superior de Estudos Teológicos), fundado
em 1970. Foi criado em 1973, com o objetivo de realizar estudos no campo da moral, da
educação, da cultura e da religião. Em 1980, expandiu a sua atuação para as ações e projetos
de intervenção social. Com a agenda bastante sensível às questões da cidadania, a partir da
década de 1990 também passa a abordar questões ambientais e a atuar em conjunto com
outras ONGs em temas como racismo, direitos humanos e defesa dos meninos de rua.
Em 1993, “desempenha um papel fundamental no processo de criação do Movimento Viva Rio, nascido e desenvolvido no próprio espaço institucional do Iser” (ISER,
2012). Suas atividades atuais possuem os seguintes eixos temáticos: religião e espaço público; sociedade e relações sustentáveis; e violência, segurança pública e gestão de conflitos.
Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)
Fundado em 1979, constitui-se em uma das entidades mais antigas que integra o
Conasp. É uma organização não governamental que possui como missão “contribuir
para o aprimoramento da democracia representativa e participativa visando à garantia
dos direitos humanos, mediante a articulação e o fortalecimento da sociedade civil”
de modo a influenciar nos espaços de governança. As temáticas prioritárias de atuação
são: democracia, parlamento e sociedade; direitos humanos e igualdade; infância e
juventude; orçamento público e justiça tributária; política socioambiental; política
indígena; política internacional e integração regional; reforma agrária e soberania alimentar; segurança pública (INESC, 2012).
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Viva Rio
Fundada em 1993 por representantes da sociedade civil, possui como missão
“promover a cultura de paz e viabilizar a inclusão social” (VIVA RIO, 2012). Surgiu
em resposta a duas grandes tragédias cariocas: o massacre de oito meninos em frente
à Igreja da Calendária e a execução de 21 moradores da favela de Vigário Geral.
Em 1994, participou da primeira mobilização pela coleta de armas de fogo com a
campanha “Rio, desarme-se” e, posteriormente, contribuiu para a elaboração do
Estatuto do Desarmamento. Atua nas áreas da segurança, meio ambiente, saúde,
educação, artes e esportes. Na área da segurança, possui como um dos principais
projetos o Controle de Armas, temática discutida em Reunião do Conasp realizada
na sede da instituição em 2011, quando foi aprovada a Recomendação n. 01, de
10/06/2011, que trata da Campanha do Desarmamento. Essa deliberação recomendava ao Ministro da Justiça a divulgação e o esclarecimento para a população,
por diversos meios de comunicação, sobre os riscos da posse de armas.
Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais
Criada em 1995, atualmente constitui-se na maior rede LGBT na América Latina.
Conta com 253 organizações formais nos diferentes estados do país e possui as seguintes linhas de atuação:
o monitoramento da implementação das decisões da I Conferência Nacional
LGBT; o monitoramento do Programa Brasil Sem Homofobia; o combate
à homofobia nas escolas; o combate à Aids e outras doenças sexualmente
transmissíveis; o reconhecimento de Orientação Sexual e Identidade
de Gênero como Direitos Humanos no âmbito do Mercosul; a advocacy
no Legislativo, no Executivo e no Judiciário; a capacitação de lideranças
lésbicas em direitos humanos e advocacy; a promoção de oportunidades de
trabalho e previdência para travestis; a capacitação em projetos culturais
LGBT (ABGLT, 2012).
Convém mencionar que no site da organização é possível encontrar referência à
sua atuação em conferências nacionais que, de algum modo, envolveram as demandas
LGBT; em conselhos LGBT nos três níveis federativos; assim como em frentes parlamentares e diferentes projetos de lei. Assim, existe a possibilidade de identificar um
repertório15 amplo de ação política da entidade, que perpassa por diferentes estratégias
e arenas. Na 14ª Reunião Ordinária do Conasp, realizada em dezembro de 2011, o
15. Luchmann (2011), ao analisar as novas práticas de representação política sustentadas pelas associações, mobiliza o
conceito de repertório de Charles Tilly e por isso desenvolve uma concepção que vê complementaridades e não somente
conflitos entre as práticas associativas. Desse modo, a atuação de representação institucional combina-se com outras
atividades políticas e sociais.
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A pluralidade de sociedades civis na segurança pública:
deliberação e concepções de representação política no Conasp
representante da ABGLT Márcio Marins realizou interessante exposição no pleno,
para que os(as) demais conselheiros(as) compreendessem de modo mais profundo as
temáticas relevantes para o movimento e as suas diversas formas de incidência.16
Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais
Criada em 1991, reúne organizações que lutam contra os diferentes tipos de discriminações e desigualdades e visa à radicalização da democracia. É uma associação formada por um conjunto de organizações da sociedade civil e visa articular os movimentos
sociais no Brasil em prol dos direitos humanos, democracia e justiça.
Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos
Nasceu da articulação das entidades que se reuniam para organizar e preparar as
conferências nacionais de direitos humanos. A partir de 2000, passou a reunir-se para
além das conferências e possui os seguintes objetivos: ampliar as organizações da sociedade civil que atuam na defesa dos direitos humanos; apoiar os fóruns estaduais e
municipais de direitos humanos; garantir a autonomia da sociedade civil; e combater as
diferentes formas de discriminação, partilhando de uma concepção bastante ampliada
de direitos humanos (FENDH, 2012).
Coletivo de Entidades Negras (CEN)
Criado em 2005, visa agregar a experiência da tradição, os terreiros, os movimentos urbanos e a juventude negra. Assim constitui-se como “um esforço do povo negro
para que a nossa sociedade melhore” (CEN BRASIL, 2012).
Fórum Nacional de Juventude Negra
É resultado da articulação dos fóruns estaduais de juventude negra que busca incluir
os jovens das periferias e das comunidades marginalizadas nos processos de participação
social. Possui como principal diretriz “o combate ao racismo sob todas as suas formas de
expressão, especialmente no que diz respeito à violência contra jovens negros e negras
nas diversas regiões brasileiras” (FOJUNEBA, 2012). Nessa direção, realiza a campanha
nacional contra o extermínio da juventude negra.
A recomendação n. 02 do Conasp, aprovada em 10 de junho de 2011, foi proposta pelo fórum e destaca o crescente número de homicídios e o encarceramento de
16. Conforme citação extraída da Ata da Reunião: “Então ... eu trago um pouco do que é o movimento LGBT, o
que é que lésbicas, gays, travestis e transexuais passam no Brasil e pelo que nós trabalhamos. É uma forma de nos
conhecermos melhor. Assim como temos que conhecer o trabalho que é feito na Maré, como é que são os trabalhos
feitos nas comunidades, nas associações de classe que temos aqui, como é que está funcionando todas as áreas”
(CONASP, 2011, p. 148).
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jovens negros no país, sugerindo a “busca de soluções e definição de responsabilidades
setoriais em relação às políticas públicas de combate à violência letal contra a juventude negra” (p. 2). A temática dos homicídios contra jovens negros foi debatida na
reunião de agosto de 2011, quando vários conselheiros cobraram avanços nas ações do
Pronasci.17 Nas reuniões de 2011, este tema mobilizou grande parte dos representantes
da sociedade civil18.
Rede Desarma Brasil
Criada em 2005 com o “... objetivo de ampliar e melhorar a Campanha de Entrega
Voluntária de Armas no Brasil”, no contexto das discussões geradas pelo Referendo do
Desarmamento. Agrega mais de 50 organizações de todas as regiões do país que buscam
consolidar o Estatuto do Desarmamento (REDE, 2012).
Conselho Federal de Psicologia (CFP)
Constitui-se na única entidade representante da sociedade civil no Conselho que
tem caráter classista, tendo sido constituída para a defesa dos interesses de uma categoria profissional. Nacionalmente, porém, o CFP tem histórico recente de várias manifestações em relação a sistema prisional, tratamento sem segregação a usuários de
entorpecentes, educação, democratização das comunicações, população em situação de
rua, entre outras temáticas (CFP, 2012).
Pastoral Carcerária
Possui como missão ser a “presença de Jesus Cristo e da Igreja Católica no cárcere
e promover a valorização da dignidade humana” (PASTORAL, 2012). A coordenação
nacional foi criada em 1988 e os esforços da pastoral voltaram-se à conscientização da
sociedade sobre a situação do sistema penitenciário, à criação de políticas públicas voltadas aos direitos humanos e à promoção da dignidade humana.
Redes de Desenvolvimento da Maré e Observatório das Favelas
Possui como missão “promover a construção de uma rede de Desenvolvimento
Territorial por meio de projetos que articulem diferentes atores sociais comprometidos
17. Como se pode observar da crítica do representante do Inesc no Conasp nos debates sobre o Plano Plurianual:
“A gente tem 50 milhões de vítimas nesse país, mais de 50% destas vítimas são negros, a maioria são jovens, há uma
caracterização da violência letal que já no Pronasci e não aparece aqui. Não há nenhuma medida específica com relação
à violência contra jovens negros. [...] Eu não vi nenhum diagnóstico ainda, que o Pronasci ou mesmo a campanha do
desarmamento tenham influenciado na redução dos homicídios.” (Ata da 12ª Reunião Ordinária do Conasp).
18. No entanto, ao mesmo tempo em que a recomendação foi aprovada pelo Conasp, o Conselho teve notícia de que um
“plano de articulação nacional para a redução dos homicídios dolosos” elaborado pela Secretaria Nacional de Segurança
Pública havia sido rejeitado pela Presidência da República.
144
Revista Democracia e Participação
A pluralidade de sociedades civis na segurança pública:
deliberação e concepções de representação política no Conasp
com a transformação estrutural da Maré” e desenvolver ações nos espaços populares
que sejam capazes de interferir “lógica de organização da cidade e combatam todas as
formas de violência” (REDES, 2012). O Observatório das favelas, criado em 2001,
constitui-se em uma organização social de pesquisa, consultoria e ação pública formada
por profissionais oriundos de espaços populares. O Observatório visa “afirmar uma
agenda de Direitos à Cidade, fundamentada na ressignificação das favelas, também no
âmbito das políticas públicas” (OBSERVATÓRIO, 2012).
Esta breve explanação das entidades e movimentos sociais que integram o Conasp
já permite identificar uma pluralidade de sociedades civis no campo da segurança
pública. Trata-se de uma sociedade civil não coesa, composta de organizações com
perfis diferentes, os quais eventualmente conflitam, como ressalta a representante do
Movimento Nacional de Direitos Humanos ao mencionar o processo eleitoral para o
Conasp biênio 2011-2012:
Eu acho que ele [o processo eleitoral] foi muito positivo no sentido de que a
gente conseguiu ampliar a participação popular no CONASP. A entrada
do Gajop, da pastoral carcerária, da juventude negra. Tudo isso fortaleceu a
nossa base de intervenção no CONASP. São entidades que historicamente
tem uma atuação em nível nacional forte na defesa de direitos humanos na
área de segurança pública, mas que não tinham voz no CONASP né. Porém
por outro lado nós não temos uma sociedade civil coesa, nós temos uma
sociedade civil com perfis diferentes dentro do CONASP. Temos entidades
muito mais voltadas para um espaço de, talvez, conciliação seja uma palavra
forte, mas muito mais alinhadas com o status quo vigente na segurança
pública do que outras como nós que temos um combate direto com a
questão do homicídio, da discriminação, da violência, né? E isso provoca
uma determinada divisão. (Entrevista a Cardoso, 2012).
Assim, a representante do MNDH descreve uma divisão da sociedade civil em
duas linhas gerais de organizações: as alinhadas com o status quo vigente da segurança
pública; e as que se dedicam a uma postura de combate mais direto em relação a temas
de discriminação e violência. No que se refere à política do desarmamento, por exemplo, nota-se divisão, com entidades como o MNDH reivindicando prioridade para o
combate à violência institucional, oriunda do próprio Estado.
A política do desarmamento não é uma política que esteja na cabeça da pauta
de entidades como o movimento negro, da juventude negra, é... pastoral
carcerária, não é uma prioridade pra nós movimentos de defesa de direitos
humanos. Porque, a não ser tirar a arma do contexto da cultura ... Ela não
contribui para construção de uma política pública diferenciada, porque boa
parte da violência da qual a gente é vítima, é a violência institucional.
É a violência que vem das polícias, que vem das forças organizadas do
volume 1 | número 1 | abril-jun 2014
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Gabriela Ribeiro Cardoso | Fábio de Sá e Silva | Julian Borba
aparelho de segurança do Estado. Não basta simplesmente desarmar, tem
que saber de onde é que vêm as armas, porque que o crime organizado tem
arma, quem é que tá vendendo essas armas que são privativas do exército...
isso a política do desarmamento não faz. (Entrevista a Cardoso, 2012).
Em reunião do Conasp, o representante da Pastoral Carcerária também explicitou
a preocupação que a entidade possui com a questão da violência policial, assim como
o nexo entre deliberações tomadas no âmbito do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3, oriundo de Conferência Nacional de Direitos Humanos) com as
temáticas em debate no Conasp.
Nós que somos do Fórum Nacional de Ouvidores, a gente tem uma
preocupação com isso [penas restritivas de liberdade aos policiais
militares], isso é muito forte, mas também temos uma preocupação sobre
a questão da violência policial, das arbitrariedades policiais contra
à sociedade. Na verdade é um papel da ala da ouvidoria da Pastoral
Carcerária, no caso que eu represento, porque eu vivenciei isso tanto
dentro quanto fora das prisões. E ainda nesse final de ano, o Ministério
da Justiça e a Secretaria Especial de Direitos Humanos, tomaram uma
decisão muito importante, que foi evitar aquela portaria interministerial
sobre o uso da força. Isso aí eu acho que foi um avanço significativo, mas
que tava lá previsto já no PNDH3 e outros documentos [...] Nós temos
hoje um PNDH3 que no seu eixo 4 tem tudo, tem tudo sobre política
de segurança pública que foi produzido ou quase tudo, tá lá com os
compromissos firmados, com as recomendações. Então eu acho que a
gente tem que se apropriar disso, porque às vezes a gente tá fazendo coisa
aqui e parece desconhecer tudo o que ta lá. (Representante da Pastoral
Carcerária, Reunião Conasp, conforme notas de Cardoso, 2012)
Essa diferença e (eventual conflito) de posições pode ser explicada, em larga medida, pela trajetória de cada organização ou conjunto de organizações. Os movimentos
sociais e entidades criadas nas décadas de 1970 e 1980 possuem um vínculo forte com o
processo de redemocratização brasileiro. Tal vínculo se reflete, por exemplo, no histórico
do Movimento Nacional de Direitos Humanos, no qual se destaca na defesa dos presos
políticos; além de entidades como Iser e o Inesc, que contribuíram para a articulação e o
fortalecimento da sociedade civil ainda neste período de abertura política.
A partir da década de 1990, destaca-se a criação de ONGs e movimentos contra
a violência urbana, impulsionados também pelo crescimento da criminalidade, principalmente em São Paulo e Rio de Janeiro (PAVEZ et al., 2012). Como aponta Gohn
(2010, p. 55), esta foi uma característica importante dos anos 1990 que cada vez mais
tem ganhado força; se organiza em “bairros e representa um clamor da sociedade civil
146
Revista Democracia e Participação
A pluralidade de sociedades civis na segurança pública:
deliberação e concepções de representação política no Conasp
na área da segurança pública, na busca de proteção à vida do cidadão no cotidiano”.
Espelhando essas diferenciações entre as trajetórias, o tema da violência urbana assume nuances diferentes nas manifestações da sociedade civil no Conasp: pela promoção de uma cultura de paz via Campanha do Desarmamento, como propõe a Rede
Desarma Brasil e o Viva Rio; pela ressignificação do território e do sentido atribuído
às favelas, como postula o Observatório das Favelas; ou por projetos com caráter de
intervenção social para melhorar as condições sociais de certas comunidades, como
sustentam as Redes da Maré.
A pluralidade da sociedade civil ganha traços ainda mais nítidos quando se examina
as mudanças na representação deste segmento na passagem do Conasp “transitório” para o
Conasp “definitivo” (2010-2012), indicadas no Quadro 1, abaixo. Destaca-se, nesse caso,
uma maior aproximação entre os direitos humanos e a segurança pública, assim como o
distanciamento de setores mais tradicionais e influentes como a Ordem dos Advogados
do Brasil – OAB (ALVES; MONTEIRO, 2011; SÁ E SILVA; DEBONI, 2012). Outro
dado importante consiste na maior importância adquirida por movimentos identitários
oriundos das demandas LGBT, de juventude, e questão racial – os movimentos que mais
cresceram desde a década de 1990 (GOHN, 2010). Trata-se, aqui, da vitória de uma
parcela, dentro da variedade de formas e posições que forma o todo da “sociedade civil”.
QUADRO 1
Composição do Conasp, versões “transitória” e “definitiva” (segmento sociedade civil)
Sociedade civil – Conasp “transitório”
Sociedade civil – primeira gestão do Conasp definitivo
Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH)
Manteve-se
Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos
(FENDH)
Manteve-se; divide assento com a Associação Brasileira de Organizações
Não Governamentais (Abong)
Rede Desarma Brasil
Manteve-se
Rede F4
Manteve-se como Observatório de Favelas do Rio de Janeiro; divide assento
com Redes de Desenvolvimento da Maré (Redes)
Viva Rio
Manteve-se
Instituto Sou da Paz
Não eleito; assume o Fórum Nacional de Juventude Negra (Fonajune)
Grande Oriente do Brasil
Não eleito; assume o Coletivo de Entidades Negras (CEN Brasil)
Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Não eleito; assume o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações
Populares (Gajop)
OAB
Não eleito; assume a Pastoral Carcerária Nacional (Asaac)
Instituto São Paulo Contra a Violência
Não eleito; assume o Conselho Federal de Psicologia (CFP)
Renaesp
Não eleito; assume a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Travestis e
Transexuais (ABGLT)
Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic)
Não eleito; assumem p Instituto de Estudos da Religião (Iser) e o Instituto de
Estudos Socioeconômicos (Inesc)
Fonte: SE/Conasp/MJ. Elaboração de Sá e Silva; Deboni (2012).
Nota: 1 A substituição das organizações, destacada no estrato inferior do quadro, não é direta – ou seja, as organizações mencionadas
na coluna da direita (primeira gestão do Conasp “definitivo”) não substituem diretamente as organizações mencionadas na coluna da
esquerda, que compuseram o Conasp “transitório”. O objetivo do desenho do quadro foi indicar as mudanças ocorridas.
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Gabriela Ribeiro Cardoso | Fábio de Sá e Silva | Julian Borba
Sá e Silva e Deboni (2012) chamam a atenção para a ação articulada, no processo
eleitoral, das entidades Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), Fórum
de Entidades Nacionais de Direitos Humanos (FENDH), Observatório das Favelas (presente no Conasp “transitório” como Rede F4) e Inesc. Tais autores reputam esta ação
como “decisiva para as mudanças ocorridas na composição de fóruns e de entidades da
sociedade civil no Conasp ‘definitivo’” (2012, p. 35). De todo modo, como eles próprios
anotam, não é possível desprezar os efeitos do desenho institucional sobre os resultados
desse processo eleitoral, “a começar pelo número de cadeiras”:
A composição do Conasp “definitivo” é mais reduzida que a do “transitório”,
cujo número de cadeiras havia sido herdado da CON. As 37 cadeiras no
Conasp “transitório”, que comportavam 46 organizações distintas, foram
reduzidas para 30, mantendo-se a mesma proporcionalidade da CON para
cada segmento, qual fosse, 40% para sociedade civil, 30% para trabalhadores e
30% para gestores. Assim, a composição definitiva do Conasp tem 12 cadeiras
para a sociedade civil, nove para os trabalhadores e nove para os gestores. Esse
“enxugamento” na composição do colegiado impôs a necessidade de diversas
concertações entre os segmentos nele representados, uma vez que não havia
espaço para acomodar as 46 organizações participantes da CON no contexto
da formação de chapas para a eleição do Conasp “definitivo” (SÁ E SILVA;
DEBONI, 2012, p. 35).
De fato, além de oferecer um número menor de vagas para representantes em comparação ao Conasp “transitório”, o edital de eleição do Conasp “definitivo” estabeleceu
os seguintes critérios para as entidades da sociedade civil que desejassem concorrer:
• Ter personalidade jurídica própria e estar regularmente constituídas e registradas há no mínimo 2 (dois) anos;
• Ter entre os seus objetivos a promoção da segurança pública, dos direitos humanos, da cultura de paz, ou ainda a prevenção da violência ou
da criminalidade;
• Possuir atividades reconhecidas com impacto nacional ou internacional,
comprovadas mediante pesquisas na área da segurança pública, ou premiações, ações, participação em instâncias de âmbito nacional ou internacional, ou ainda mediante a apresentação de 03 (três) cartas de entidades e/ou redes nacionais que atestassem a aptidão da entidade na área de
segurança pública; e
• Não ter finalidade lucrativa.
Para os fóruns, redes e movimentos sociais era necessário apresentar também
uma Carta de Indicação subscrita por ao menos 3 (três) entidades com personalida-
148
Revista Democracia e Participação
A pluralidade de sociedades civis na segurança pública:
deliberação e concepções de representação política no Conasp
de jurídica e que fazem parte da rede, fórum ou movimento. O mesmo edital vetou
a participação, no processo eleitoral de entidades, fóruns, redes, movimentos que
fossem estatais ou estivessem submetidos a um regime de direito público (com exceção de conselhos profissionais); que tivessem sede fora do território nacional; ou que
estivessem ligadas à área de segurança privada. Este posicionamento inviabilizou a
candidatura de instituições acadêmicas e de pesquisa, ao mesmo tempo em que possibilitou a candidatura bem-sucedida do Conselho Federal de Psicologia (ALVES;
MONTEIRO, 2010)
É possível, portanto, compreender a influência do edital de eleição na configuração
de uma autorização contingente e no fortalecimento de entidades vinculadas com a temática dos direitos humanos e com a promoção da cultura de paz. Já a inserção de entidades
e movimentos identitários, que não estava explícita no edital, parece ter resultado da ação
concertada entre as entidades e movimentos “autorizados” e suas redes de ação.
3.2 Quem atua como representante (II): os(as) conselheiros(as)
Apresentam-se a seguir algumas características gerais do perfil dos conselheiros.
A maior parte dos(as) conselheiros(as) nos dois períodos se declarou branca, com a
média de 60%; entretanto, na composição de 2011 o número de conselheiros que
se declararam “pretos(as)” aumentou consideravelmente (11%). Esse aspecto é interessante, pois aponta para uma diversificação no perfil dos representantes, possuindo
assim relevância para a dimensão descritiva da representação e as concepções que ressaltam uma política de presença (PHILIPS, 2001).
Os conselheiros possuem alta escolaridade, já que a grande maioria possui mais
do que o ensino superior completo (97%), quadro este que permanece semelhante
no Conasp biênio 2011-2012 (93%). Entretanto, a renda dos(as) conselheiros(as)
tem uma alteração mais intensa, tendo em vista que no Conasp “transitório” inexistiam integrantes na faixa de renda entre R$ 1.501,00 e R$ 2.500,00 (mil quinhentos e um e dois mil e quinhentos reais). As rendas mais elevadas, acima de R$
4.000,00 (quatro mil reais), apresentam um declínio de 89% para 75%. No Conasp 2011-2012, gestores(as) e trabalhadores(as) possuem as rendas mais elevadas,
enquanto os integrantes da sociedade civil concentram-se nas faixas mais baixas.
De qualquer modo, a renda dos(as) conselheiros(as) é bem maior do que a renda
média da população brasileira e se assemelha aos resultados observados em outras
pesquisas sobre conselhos gestores.
Uma mudança significativa do Conasp “transitório” para o “definitivo” consistiu no tempo de experiência como conselheiro(a), pois o percentual de conselheiros(as) que ocupavam esta posição há mais de um ano cresceu 28%. Enquanto em
2010 predominaram os(as) conselheiros(as) com menos de um ano de experiência
(67%), em 2011 a situação se inverte. Ao mesmo tempo em que ocorreu a renovação,
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Gabriela Ribeiro Cardoso | Fábio de Sá e Silva | Julian Borba
principalmente no segmento da sociedade civil, a memória da Comissão Organizadora Nacional (CON) é presente para parte considerável do Conselho e em diversos
momentos foi retomada.
No que se refere à atuação em outros conselhos, em 2010 observou-se que 31%
dos(as) conselheiros(as) participavam e 11% já haviam participado de outros conselhos. Em 2011, eleva-se o percentual de conselheiros(as) que participaram pela
primeira vez, sendo que diminuiu o número de participantes em outros conselhos
(19%). Embora por vezes criticado na literatura, a participação em outros conselhos
é interessante, na medida em que possibilita um acúmulo de experiências em institucionalidades participativas, o que esteve presente em diversas discussões no Conasp.
Nesses casos, a trajetória de outros conselhos foi constantemente evocada, tanto para
refletir sobre o caráter recente da institucionalização da participação e da relação com
a sociedade civil e os movimentos sociais na segurança pública, como para observar
nestas outras experiências processos que de alguma forma possam ser “inspiradores”.
3.3 Quem ou o quê os representantes representam
A visão que os(as) conselheiros(as) possuem sobre o exercício da representação no Conasp foi tratada de modo mais específico pelo seguinte questionamento: Quem ou o quê
representa prioritariamente no Conasp? Nesta questão, os(as) conselheiros(as) podiam
responder uma única alternativa. Embora as opções de resposta e a redação da questão
não sejam exatamente as mesmas para os anos de 2010 e 2011, esta questão merece ser
analisada levando também em consideração o cruzamento por segmento.
No Conasp “transitório”, a grande maioria dos(as) conselheiros(as) declarou não
se orientar por nenhum interesse específico, seguindo apenas as suas convicções pessoais (61%). Os interesses do setor que os(as) conselheiros(as) representam vieram na
sequência, com 20% das respostas. Já os interesses dos movimentos sociais organizados
em função de temas específicos obtiveram apenas 11% das respostas. Essa dimensão
da representação como vinculada a uma causa ou tema relaciona-se ao conceito de representação como advocacy desenvolvido por Urbinati que descreve o(a) representante
como o(a) defensor(a) apaixonado(a) de uma causa.
150
Revista Democracia e Participação
A pluralidade de sociedades civis na segurança pública:
deliberação e concepções de representação política no Conasp
GRÁFICO 1
Interesses que defende prioritariamente (2010)
Interesses de redes ou movimentos
organizados em função de temas ou
problemas específicos 11%
Nenhum interesse espcífico,
sigo apenas as minhas
convicções pessoais 61%
Intereses do meu
setor 20%
Interesses da minha
instituição 8%
Fonte: Sá e Silva; Deboni (2012); Ipea (2013).
Org.: Autores.
No Conasp biênio 2011-2012 ocorreu uma modificação grande na compreensão
sobre o quê ou quem os(as) conselheiros(as) representam. Como retrata o gráfico 2,
metade afirmou representar o bem comum e, na sequência, uma causa ou tema específico (19%), um setor ou segmento (13%) e a própria organização (9%). Alguns(algumas) conselheiros(as) sentiram dificuldade em responder esta questão e, ao optarem pela resposta “outros”, ressaltaram a necessidade de se compatibilizar um ideal
de bem comum com demandas específicas, como expressaram as seguintes respostas
de representantes da sociedade civil: “O bem comum, levando-se em consideração os
setores mais vulneráveis”; “Penso que esta causa ou tema específico é complementar
a ideia de bem comum”19.
19. Convém mencionar que pesquisadores do Ipea apresentaram relatório sobre o Conasp em agosto de 2011 para os(as)
conselheiros(as) no pleno e abordaram as respostas expressas no gráfico 1 sobre o predomínio de interesses pessoais.
Este acontecimento pode ter influenciado na maior reflexividade nas respostas dos conselheiros, pois os dados aqui
referidos resultam de questionário aplicado a esse mesmo pública, ainda que em reuniões posteriores. De qualquer modo,
é necessário citar que os resultados obtidos em 2011 assemelham-se aos encontrados em outros conselhos nacionais,
conforme os dados do Projeto Conselhos Nacionais: perfil e atuação dos conselheiros, desenvolvido pelo Ipea (IPEA,
2012a; 2012b).
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Gabriela Ribeiro Cardoso | Fábio de Sá e Silva | Julian Borba
GRÁFICO 2
Quem ou o quê representa prioritariamente no Conasp?
Outros 9%
A sua própria
organização 9%
O bem comum 50%
Um setor ou
segmento 13%
Uma causa ou tema
específico 19%
Fonte: Cardoso (2012).
Org.: Autores.
O gráfico 2 é interessante, tendo em vista que retrata quem ou o quê os (as) conselheiros(as) representam de acordo com o segmento. O “bem comum” é mais citado
pela sociedade civil (54,5%) e pelos gestores (50%); já a representação de causa ou
tema específico (27,3%) assim como de um setor ou segmento (27,3%) predomina
entre os(as) trabalhadores(as). Convém mencionar que, entre os(as) representantes da
sociedade civil, ninguém citou o fato de representar um segmento. Quando se trata
de representar a própria organização, destacam-se os(as) gestores(as) (25%). Era uma
expectativa desta pesquisa que a representação de uma causa ou tema estivesse prioritariamente relacionada à sociedade civil, o que não foi evidenciado na análise empírica.
152
Revista Democracia e Participação
A pluralidade de sociedades civis na segurança pública:
deliberação e concepções de representação política no Conasp
GRÁFICO 3
Quem ou o quê representa no Conasp por segmento (2011)?
54,5%
50,0%
45,5%
27,3%
27,3%
25,0%
18,2%
12,5%
18,2%
12,5%
9,1%
0,0%
O bem comum
Uma causa ou
tema específico
Gestor
Um setor ou
segmento
Trabalhador
0,0%
A sua própria
organização
0,0% 0,0%
Outros
Sociedade civil
Fonte: Cardoso (2012).
Org.: Autores.
3.4 Que mecanismos embasam o ofício da representação
Por quais mecanismos os(as) representantes sentem-se aptos(as) para o exercício da representação? Para responder, os(as) conselheiros(as) foram indagados(as) sobre distintos
modos de representação.
Dentre esses modos está o pertencimento e vivência em relação ao setor – o que corresponde à concepção de representação descritiva e enfoca na ideia de ser alguém, na semelhança com o representado mais do que na capacidade de fazer algo. Essa abordagem do
pertencimento é retomada na argumentação de Philips (2001, p. 273) que ressalta esta
dimensão: “representação adequada é, cada vez mais, interpretada como implicando uma
representação mais correta dos diferentes grupos sociais que compõem o corpo de cidadãos, e noções de representação ‘típica’, ‘especular’ ou ‘descritiva’, portanto, têm retornado
com força renovada”. Assim, Philips (2001, p. 272) destaca as demandas por presença
política, de grupos de que se reconhecem como marginalizados, excluídos, grupos étnicos
que almejam maior inclusão política. Trata-se de colocar em discussão “a separação entre
quem e o quê é para ser representado”.
Outro tipo de autorização mencionado refere-se ao eleitoral, que consiste em
um mecanismo vinculado à concepção padrão de representação. Na sequência, foram
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Gabriela Ribeiro Cardoso | Fábio de Sá e Silva | Julian Borba
incluídas a capacidade de argumentar e influenciar decisões e a qualificação profissional,
que remetem à abordagem de recursos. Por fim, a identificação do representante com
o tema, que se refere ao conceito de representação como advocacy de Urbinati.
O pertencimento e vivência em relação ao setor foi o mais citado, com 75% das
respostas. Em seguida vieram as eleições (50%); a capacidade de argumentar e influenciar decisões (46,9%); a qualificação profissional na área (46,9%); e a identificação
com o tema (46,9%). Contudo, as respostas necessitam ser analisadas de modo mais
detalhado com o cruzamento por segmento.
GRÁFICO 4
Por meio de quais mecanismos você se considera autorizado para representar a sua
organização/entidade?
Pertencimento e vivência em
relação ao setor/organização
75
25
Eleições
50
50
Capacidade de argumentação e
influenciar decisões
46,9
53,1
Qualificação profissional na área
46,9
53,1
Identificação com o tema
46,9
53,1
Outros
Sim
3,1
96,9
Não
Fonte: Cardoso (2012).
Org.: Autores.
Conforme retrata o gráfico 5, o argumento eleitoral possui grande peso para a sociedade civil, pois consiste no mecanismo de autorização mais citado neste segmento, com
90,9%. Esse aspecto revela a importância que o processo eleitoral de 2010 possui na atual composição do Conasp, assim como o fato de a eleição para a sociedade civil ter sido
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Revista Democracia e Participação
A pluralidade de sociedades civis na segurança pública:
deliberação e concepções de representação política no Conasp
disputada, demandando articulações. Em contrapartida, entre os(as) trabalhadores(as),
as eleições possuem uma relevância menor, com 36,4% de respostas, o que pode ser um
reflexo de que para os(as) trabalhadores(as) as principais categorias profissionais já estão
consolidadas na forma de sindicados e associações. Esta dimensão reforça o argumento
do tipo diferenciado de representação desempenhado pelos(as) trabalhadores(as).
GRÁFICO 5
Eleições
90,9%
75,0%
63,6%
36,4%
25,0%
9,1%
Gestor
Trabalhador
Sim
Sociedade civil
Não
Fonte: Cardoso (2012).
Org.: Autores.
Para os(as) trabalhadores(as), o argumento do pertencimento e vivência em relação
ao setor de representação apresenta grande força, somando assim 81,8%. Entre os(as)
gestores(as), o pertencimento e a vivência constituem-se em um forte mecanismo de
autorização, com 75%, sendo mais relevantes que a capacidade de influenciar decisões
e a própria qualificação profissional. Na sociedade civil, este tipo de autorização é o
segundo mais citado, com 63,6%, o que também demonstra a importância da proximidade entre representante e representado(a) nos moldes apresentados por Philips.
De qualquer modo, seria interessante um estudo mais aprofundado sobre as entidades
da sociedade civil que se vinculam mais a este tipo de representação.
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GRÁFICO 6
Pertencimento e vivência
81,8%
75,0%
63,6%
36,4%
25,0%
18,2%
Gestor
Trabalhador
Sim
Sociedade civil
Não
Fonte: Cardoso (2012).
Org.: Autores
A capacidade de influenciar decisões possui maior peso para os(as) representantes
da sociedade civil, que soma o mesmo percentual do argumento de pertencimento e
vivência (63,6%). Assim, é interessante observar que este tipo de autorização vincula-se
com a valorização do caráter de conflito da política, de interesses que estão em disputa
e, nesse contexto, a capacidade de debate possui destaque. De modo distinto, trabalhadores(as) e gestores(as) apresentam um percentual menor com 36,4% e 37,5%.
GRÁFICO 7
Capacidade de influenciar decisões
63,6%
62,5%
37,5%
Gestor
36,4%
Fonte: Cardoso (2012).
Org.: Autores.
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Revista Democracia e Participação
36,4%
Trabalhador
Sim
63,6%
Sociedade civil
Não
A pluralidade de sociedades civis na segurança pública:
deliberação e concepções de representação política no Conasp
A identificação com o tema é o mecanismo de autorização mais relevante para
os(as) representantes da sociedade civil, com 63,6%, estando no mesmo patamar do
pertencimento e vivência na área, o que indica a existência de dimensões diferenciadas
da representação política para este segmento. Tal aspecto pode reforçar a observação da
existência de uma pluralidade de sociedades civis inseridas no Conasp.
GRÁFICO 8
Identificação com o tema
72,7%
63,6%
50,0%
50,0%
36,4%
27,3%
Gestor
Trabalhador
Sim
Sociedade civil
Não
Fonte: Cardoso (2012).
Org.: Autores.
A qualificação profissional apresenta maior relevância para os(as) gestores(as),
com 50%. Mesmo assim, entre os(as) trabalhadores(as) a qualificação profissional é
um atributo com mais de destaque que as eleições e a capacidade de influenciar decisões. Para os(as) representantes da sociedade civil, este mecanismo de autorização
possui menor importância. De qualquer modo, convém lembrar que a escolaridade
dos(as) conselheiros(as) é altíssima.
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Gabriela Ribeiro Cardoso | Fábio de Sá e Silva | Julian Borba
GRÁFICO 9
Qualificação profissional
54,5%
50,0%
54,5%
50,0%
45,5%
Gestor
45,5%
Trabalhador
Sim
Sociedade civil
Não
Fonte: Cardoso (2012).
Org.: Autores.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Analisando dados quantitativos e qualitativos coletados em pesquisas recentes a respeito do Conasp, este artigo buscou contribuir para discussões contemporâneas sobre
a participação social, dando ênfase às concepções de representação política presentes
entre as organizações da sociedade civil com assento no Conselho no período de 2009 a
2012. Se desde as primeiras experiências democráticas é possível observar a emergência
e o embate entre teorias sobre a representação política, o advento e a proliferação de
instituições como conselhos, conferências, orçamento participativo e outras renovam o
horizonte no qual se dá o exercício desta prática social e política e convidam a novos
testes daquele rico repertório teórico elaborado para explicá-la e legitimá-la.
Examinando: (1) quem são os representantes (organizações e conselheiros), atuando em nome do segmento “sociedade civil” do Conasp; (2) o que eles dizem representar; e (3) em que eles pretendem embasar esse ofício de representação (em suma, quais
as concepções de representação política mantidas por esses atores), foi possível verificar
um quadro complexo. Esta complexidade se revela ainda mais quando a atuação da
“sociedade civil” é compreendida de modo relacional com a percepção dos outros segmentos (trabalhadores e gestores) que integram o conselho.
Entre os(as) representantes, da “sociedade civil” as eleições foram o mecanismo
de representação mais citado, com 90,9%, o que a torna distinta de outros segmentos,
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Revista Democracia e Participação
A pluralidade de sociedades civis na segurança pública:
deliberação e concepções de representação política no Conasp
inclusive aqueles em que poderia haver igual disputa pela condição de representante,
como o dos trabalhadores. O argumento do pertencimento e vivência20 foi o segundo
mais citado, com a capacidade de influenciar decisões e a identificação com o tema,
de maneira distinta, mais uma vez, dos segmentos de gestores e de trabalhadores.
É necessário refletir sobre como estes aspectos se relacionam no exercício cotidiano da
representação. Ao mesmo tempo em que existe uma relação de afinidade entre representante e representado, existe a identificação com o tema e uma preocupação com
a capacidade de influenciar decisões, que remete ao conflito político ou até mesmo à
capacidade de debate. Em síntese, a representação como advocacy guarda maior conexão com a representação da sociedade civil, mas em articulação com a representação
descritiva e a perspectiva dos recursos.
Analisar essa variedade na representação da sociedade civil passa por compreender este segmento em perspectiva plural, reconhecendo que ele é integrado por
movimentos sociais e entidades com perfis diferenciados. Existem movimentos criados nas décadas de 1970 e 1980, com forte atuação durante o regime ditatorial e a
transição democrática. Existem entidades constituídas nesse mesmo período, mas
que se dedicaram a pesquisas, bem como à articulação da sociedade civil. Já outras
entidades e movimentos criados a partir da década 1990 possuem relação com o
processo de criação e fortalecimento das ONGs em contextos de luta contra o aumento da criminalidade – viés que se expressa em diferentes propostas de agenda
para o Conasp por parte dessas organizações, tais como: construção de uma cultura
de paz, ressignificação do sentido atribuído às favelas e reivindicação por projetos e
intervenções de caráter social nessas comunidades ou em favor de públicos vulneráveis. Destacam-se ainda, mas múltiplas conexões da “sociedade civil” com demandas
de movimentos identitários (movimento negro, LGBTT, etc.), parcela que adquiriu
grande proeminência no Conselho em tempos recentes.
Os dados revelam, assim, que mais do que uma sociedade civil monolítica há
uma pluralidade de trajetórias, repertórios de ação, demandas e graus de articulação
com o Estado entre os conselheiros pertencentes a esse segmento. É na permanente
disputa por espaço, balizada por aspectos do desenho institucional do Conselho, que
também se constroem as concepções de representação política mobilizadas por esses
conselheiros, cujos contornos são suficientemente distintos dos demais atores, mas
nem por isso pouco complexos.
20. Para o aprofundamento deste argumento, as reflexões de Pierre Rosavallon (2009) são relevantes, na medida em
que o autor enfatiza a emergência de uma legitimidade de proximidade que está vinculada com a política de presença.
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Gabriela Ribeiro Cardoso | Fábio de Sá e Silva | Julian Borba
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