UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
O FREVO NO DISCURSO LITEROMUSICAL BRASILEIRO:
ETHOS DISCURSIVO E POSICIONAMENTO
JÚLIO CÉSAR FERNANDES VILA NOVA
ORIENTADORA: Profª Drª NELLY CARVALHO
Recife 2012
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
O FREVO NO DISCURSO LITEROMUSICAL BRASILEIRO:
ETHOS DISCURSIVO E POSICIONAMENTO
JÚLIO CÉSAR FERNANDES VILA NOVA
Tese de Doutorado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Letras
da Universidade Federal de Pernambuco
como requisito para obtenção do título
de Doutor em Letras
Orientadora: Profª Drª Nelly Carvalho
Área de Concentração: Linguística
Linha de Pesquisa:
Linguagem, Trabalho e Sociedade
Recife 2012
1
Catalogação na fonte
Bibliotecária Gláucia Cândida da Silva, CRB4-1662
V695f
Vila Nova, Júlio César Fernandes.
O Frevo no discurso literomusical brasileiro: Ethos discursivo e
posicionamento / Júlio César Fernandes Vila Nova. – Recife: O autor,
2012.
224p. + 1 CD
Orientador: Nelly Carvalho.
Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, CAC.
Letras, 2012.
Inclui bibliografia e anexos.
1. Linguística. 2. Frevo. 3. Análise do discurso. 4. Música popular –
Brasil. I. Carvalho, Nelly (Orientador). II. Titulo.
410 CDD (22.ed.)
UFPE (CAC2012-18)
2
3
“São belos igualmente os usos peculiares a cada povo
E tudo quanto manifesta as práticas estimadas
No seio de cada comunidade”
(Aristóteles. Arte Retórica, livro primeiro, cap.IX)
“Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas.
Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em
mim. Carnaval era meu, meu”.
(Clarice Lispector, Restos de Carnaval)
4
Aos meus pais, Severino e Alzenir Vila Nova,
que me ofereceram os primeiros acordes
do Frevo, ainda na infância.
A Cristiane e Lívia, esposa e filha,
pelo amor incondicional, pelo incentivo integral
Ao amigo Marcos Rodrigues (in memorian),
com quem compartilhamos, em família, os
últimos dias de 2011, pelo incentivo
para concluir o trabalho.
Aos amigos e familiares todos, pelo apoio e incentivo.
5
AGRADECIMENTOS
Ao Deus Supremo Criador, pela música que pulsa no coração
e embala os sonhos de todos nós.
A Nelly Carvalho, orientadora, pela confiança no trabalho e pela partilha generosa.
Aos professores do curso de Letras da UFPE, pela sabedoria e amizade compartilhadas,
ao longo de muito tempo.
Aos colegas de trabalho na UFRPE, pelo incentivo.
A Diva e Jozaías, funcionários da Pós-Graduação em Letras, pela atenção e
cordialidade.
Ao compositor e musicólogo Samuel Valente, pela gentileza e disponibilidade.
Aos amigos compositores Bráulio de Castro, Fátima de Castro e Edson Rodrigues, pela
amizade e pela colaboração.
Aos radialistas Mirian Leite e Hugo Martins, da Rádio Universitária da UFPE, pela
gentileza e disponibilidade.
Ao músico e colecionador Raimundo Floriano, pela disponibilização de seu acervo
musical.
6
RESUMO
Este trabalho enfoca o discurso literomusical brasileiro, com o objetivo central de
descrever e analisar a organização linguístico-discursiva do gênero Frevo-Canção, em
obras produzidas desde a década de 1930 até a década de 1970. A fundamentação
teórica é baseada nas contribuições de Dominique Maingueneau para a Análise do
Discurso; e na concepção dialógica de linguagem, de acordo com Mikhail Bakhtin.
Partindo da definição de canção como gênero discursivo, o estudo lança mão de
categorias como ethos discursivo, posicionamento e cena enunciativa para identificar os
processos de construção de sentido no Frevo-canção. O trabalho analisa, ainda, o
contexto sócio-histórico de emergência do Frevo, a partir do final do século XIX,
identificando aspectos de sua consolidação como marca da identidade cultural
pernambucana. As opções teórico-metodológicas e o recorte histórico definidos para
seleção do corpus justificam-se pela importância do Frevo-canção no cenário da música
carnavalesca do Brasil, ao longo do período de crescimento da indústria fonográfica no
país e de consolidação da popularidade do rádio como meio de comunicação, no século
XX. Nesse percurso, são identificados diferentes aspectos do posicionamento do Frevo,
através de canções que estabelecem um gesto afirmativo de inserção desse fenômeno
cultural no campo do discurso literomusical brasileiro.
Palavras-chave: Frevo. Discurso literomusical. Análise do discurso. Gênero do discurso
7
RESUMEN
Este trabajo enfoca el discurso literomusical brasileño, con el objetivo central de
describir y analizar la organización lingüístico-discursiva del género “frevo-canção”, en
obras producidas desde la década 1930 hasta la década de 1970. La fundamentación
teórica está basada en los aportes de Dominique Maingueneau, para el Análisis del
Discurso; y en la concepción dialógica del lenguaje, de acuerdo con Mikhail Bakhtin.
Teniendo como punto de partida la definición de “canção” (canción) como género
discursivo, el presente estudio haz uso de categorías como ethos discursivos,
posicionamiento y escena enunciativa para identificar los procesos de construcción de
sentido en el “frevo-canção”. Este trabajo analiza, todavía, el contexto socio-histórico
de emergencia del “frevo”, a partir del final del siglo XIX, identificando aspectos de su
consolidación como marca de identidad cultural pernambucana. Las opciones teóricometodológicas y el recorte histórico definidos para la selección del corpus, se justifican
por la importancia del “frevo-canção” en el escenario de la música carnavalesca de
Brasil, a lo largo del período de crecimiento de la industria fonográfica en el país y de la
consolidación de la popularidad de la radio como medio de comunicación, en el siglo
XX. En esa trayectoria se identifican diferentes aspectos del posicionamiento del
“frevo”, a través de canciones que establecen un gesto afirmativo de inserción de ese
fenómeno cultural en el campo del discurso literomusical brasileño.
Palabras-clave: “Frevo”. Discurso Literomusical. Análisis del Discurso. Género del
Discurso.
8
ABSTRACT
This paper focus on Brazilian song lyrics discourse (discurso literomusical) with the
main aim of describing and analyzing linguistic and discoursive organization of “FrevoCanção” (Frevo-Song) genre, in songs produced from the 1930’s to the 1970’s. The
study is framed by Dominique Maingueneau’s contributions to Discourse Analysis, as
well as by Mikhail Bakhtin’s theorization of language and discourse as “dialogic”. From
the definition of song as a discourse genre, categories such as discoursive ethos,
positioning and enunciation scene are dealt with, in order to identify processes of
construction of meaning in Frevo-Canção. It is also analyzed the social-historical
context of emergence of Frevo, from the late nineteenth century, so to identify aspects
of its consolidation as cultural identity mark of Pernambuco. The methodological and
theoretical options as well as the historic framing are justified by the importance of
Frevo-Canção in carnival music of Brazil, along the period of significant growth of
phonographic industry and the popularity of radio as a means of mass communication,
in the twentieth century. Different aspects of Frevo positioning are then identified in
songs which define an affirmative gesture of insertion in the field of Brazilian song
lyrics discourse.
Key words: Frevo. Song Lyrics discourse. Discourse analysis. Discourse genres.
9
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ________________________________________________ 12
2. OPÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS PARA ANÁLISE DISCURSIVA
DO FREVO
2.1. Dialogismo e Gêneros do Discurso, contribuições do
Círculo de Bakhtin ______________________________________ 22
2.1.1. Os Gêneros, da Antiguidade Clássica à Atualidade ________ 28
2.1.2. O Gênero Canção __________________________________ 30
2.1.3. Frevo-Canção, um Gênero e Alguma Polêmica ___________ 35
2.1.4. Aspectos de Inter-relação Genérica: canção e crônica ______ 42
2.2. A Análise do Discurso
2.2.1. AD Francesa_______________________________________ 52
2.2.2. Segunda e Terceira Épocas____________________________ 55
2.2.3. Prática Discursiva___________________________________ 64
2.2.4. Posicionamento_____________________________________ 66
2.2.5. Comunidades Discursivas_____________________________ 69
2.2.6. Investimento Genérico _______________________________73
2.2.7. Ethos Discursivo ___________________________________ 74
2.2.8. Ethos e Incorporação ________________________________76
2.2.9. Ethos e Cena Enunciativa ____________________________ 79
2.3. Delimitando e Caracterizando o Objeto ______________________ 84
2.4. Definindo Objetivos e Anunciando Hipótese__________________ 88
3. O FREVO NO DISCURSO LITEROMUSICAL BRASILEIRO
3.1. Primeiros Movimentos _______________________________________ 92
3.2. A Marcha Rumo ao Frevo ____________________________________ 94
3.3. A Música no Disco, o Frevo na Música Popular ___________________ 100
3.4. Frevo e Identidade Cultural ___________________________________107
3.5. Frevedouro, Frevolência: a experiência sinestésica do Frevo nas ruas __ 109
3.6. Encontros, confrontos e gingados: a dança dos nomes e o aspecto guerreiro
do Frevo __________________________________________________ 119
3.6.1. O Nome da Música na Dança: Frevo, Festa, Folia e Coreografia _122
10
3.6.2. Entre Saltos, Pernadas e Rasteiras, o Frevo que não é Brincadeira.143
3.7. Vozes do Frevo nas Ondas do Rádio ____________________________ 158
3.7.1. Passionalização da Canção e Regulação da Folia ____________ 165
3.7.2. Capiba, Cancionista Malabarista _________________________ 174
3.8. A Era da Rozenblit e Outros Passos do Frevo _____________________182
4. CONCLUSÕES ________________________________________________193
5. REFERÊNCIAS _______________________________________________ 196
6. ANEXOS
6.1. Canções analisadas _____________________________________205
6.2. Fontes discográficas ____________________________________ 215
6.3. Arquivos de áudio ______________________________________ 217
11
1. INTRODUÇÃO
No processo de formação da cultura brasileira, com seus múltiplos gestos e vozes, a
canção popular exerce um papel de considerável importância, que vem sendo
reafirmado, no âmbito dos estudos acadêmicos, em um número crescente de
investigações em diferentes áreas das ciências humanas. No período de um século,
aproximadamente, ela deixou a condição de marginalidade que a estigmatizava até as
primeiras décadas do século XX, sendo artistas alvo de preconceito, em geral
vinculados à boemia e à malandragem (associadas a um instrumento musical, o violão),
e conquistou espaço privilegiado de enorme popularidade entre nossas manifestações
artísticas, passando a figurar como objeto de estudo sob enfoques diversos1. A canção
consolida, então, sua posição enquanto gênero discursivo2 de enorme circulação na
sociedade brasileira.
Isso ocorre ainda nas primeiras décadas do século XX, concomitantemente ao
surgimento e aprimoramento das técnicas de registro fonográfico e ao desenvolvimento
do rádio como veículo de comunicação de massa. Segundo Tatit (2004), é um período
de consolidação e disseminação de “uma prática artística que, além de construir a
identidade sonora do país, se pôs em sintonia com a tendência mundial de traduzir os
conteúdos humanos relevantes em pequenas peças formadas de melodia e letra.”
(TATIT 2004, p.11)
Em depoimento colhido no documentário Palavra (En)Cantada (2009), da
diretora Helena Solberg, José Miguel Wisnik argumenta que a importância da canção
deve-se à força das manifestações populares, essencialmente marcadas pelas práticas
orais, de grande importância na cultura brasileira, numa realidade reconhecida
historicamente pela carência de oportunidades de acesso à cultura letrada, ao longo das
diversas etapas do desenvolvimento do país. Conforme Wisnik, a canção cumpre, por
exemplo, o importante papel cultural de permitir a uma vasta parcela da população
brasileira o acesso às formas de expressão poética constituídas nas letras. Analisando a
1
COSTA (2001, p.17) enumera, em sua tese de doutoramento, sete tipos de produções sobre a MPB
(historiografia, análises histórico-sócio-antropológicas, resenha jornalística, exegese literária, trabalhos de
catalogação, análises semióticas e análises textuais) que empreendem análises discursivas.
2
Enfocamos a canção em sua dimensão discursiva, e por isso a consideramos como gênero discursivo,
conforme abordaremos adiante.
12
questão na perspectiva da produção, no momento histórico em que o surgimento da
tecnologia de gravação permite o registro fonográfico, Tatit (2004) salienta a
importância da canção como possibilidade de expressão artística com base em práticas
quotidianas:
A canção brasileira, na forma que a conhecemos hoje, surgiu com o século
XX e veio ao encontro do anseio de um vasto setor da população que sempre
se caracterizou por desenvolver práticas ágrafas. Chegou como se fosse
simplesmente uma outra forma de falar dos mesmos assuntos do dia-a-dia,
com uma única diferença: as coisas ditas poderiam então ser reditas quase do
mesmo jeito e até conservadas para a posteridade. (TATIT 2004, p. 70)
Ao longo do século XX, então, muito daquilo que se disse em forma de canção foi
conservado para a posteridade e tem servido como objeto de estudo, em busca da
compreensão da sociedade e da cultura brasileiras, sob diferentes perspectivas.
Inúmeros autores têm dado sua contribuição para a construção do conhecimento em
áreas como a história social e política (v. TINHORÃO 1990, 1991, 2005; CALDAS
2005), a comunicação (v. MEDINA 1973) e a semiótica (v. TATIT 1986, 1996, 2004),
por exemplo. No âmbito dos estudos discursivos, entre os quais se incluem, de modo
abrangente, os trabalhos que privilegiam a análise das letras, há aqueles que se
debruçam sobre a obra de um determinado autor (v. CARVALHO 1982, sobre Chico
Buarque de Hollanda), ou sobre um tema específico – por exemplo, a sexualidade (v.
FAOUR 2006), a construção da imagem da mulher (SANTA CRUZ 1992) ou as
relações entre música popular3 e futebol (XAVIER 2009) e entre a música popular e a
literatura (SANT’ANNA 1986)
Há, ainda, uma vasta bibliografia de cunho eminentemente biográfico, que aborda a
produção discográfica de inúmeros artistas, sem empreender análises mais detalhadas de
sua obra, mas de qualquer forma cumprindo importante papel documental na história
cultural do país.
Em âmbito internacional, a produção acadêmica sobre música popular tem sido
divulgada através de instituições como a IASPM (International Association for the
3
A definição do conceito de música popular é complexa. No âmbito deste trabalho, música popular
designa a música urbana produzida no Brasil a partir do século XX, com o advento das técnicas de
registro fonográfico e da propagação pelo rádio. Incorporamos a posição de Shuker (1998), para quem
“uma definição satisfatória de música popular deve dar conta tanto de suas características musicais quanto
de suas características socioeconômicas. Essencialmente, toda música popular consiste de um híbrido de
tradições, estilos e influências musicais, e também é um produto econômico investido de significados
ideológicos” (SHUKER 1998, p.228, tradução nossa). Ressalta-se, ainda, o caráter autoral da música
popular urbana, em oposição à música folclórica. Sandroni (2004) destaca, ainda, a vinculação da noção
de música popular, no Brasil, a uma ideia de povo, a partir da consolidação de ideais republicanos:
“Quem pensa em música popular brasileira tem em mente alguma concepção de ‘povo brasileiro’, tanto
quanto quem adere a ideais republicanos.” (SANDRONI 2004, p.25)
13
Study of Popular Music), criada na década de 1980, nos Estados Unidos, e pela sua
ramificação para a América Latina (IASPM-LA), que desde 1994 realiza congressos em
todo o continente, com participações de estudiosos da música popular do mundo inteiro.
De um modo geral, a perspectiva interdisciplinar que norteia a atuação dos
pesquisadores tem possibilitado o desenvolvimento de diálogos enriquecedores sobre
diferentes temas.
Entretanto, mesmo diante desse reconhecimento da importância da canção para a
interpretação da cultura brasileira, o número de estudos acadêmicos na área ainda
parece pequeno. Essa é uma impressão corroborada por Travassos (2005), que, fazendo
uma revisão de algumas das várias linhas de pesquisa sobre música popular no Brasil4,
afirma:
há tempos que a música popular atrai os eruditos, e o assunto nunca esteve de
todo ausente das cogitações dos pesquisadores vinculados às universidades
[...], a presença da música popular é constante, ainda que desproporcional ao
seu lugar na cultura brasileira. (TRAVASSOS 2005, p. 94)
No âmbito dos estudos linguísticos que enfocam a canção, a análise do discurso
tem se mostrado um terreno profícuo. Teses, dissertações e outros trabalhos acadêmicos
têm abordado o discurso literomusical brasileiro, sobretudo na perspectiva da análise do
discurso de linha francesa, e especialmente a desenvolvida por Dominique
Maingueneau. Reconhecendo a validade das posições do autor francês, Costa (2007)
salienta que os trabalhos que se utilizam do dispositivo teórico-analítico baseado em
Maingueneau têm por característica principal “lançar um olhar atento à articulação entre
a materialidade da canção, ou seja, sua substância verbo-melódica, e o contexto mediato
ou imediato que ela pressupõe.” (COSTA 2007, p. 15). Entre as principais concepções
desse dispositivo teórico-analítico incorporadas ao nosso trabalho, destacamos as
noções, desenvolvidas adiante, de posicionamento e de ethos discursivo, integradas à
noção de cena enunciativa, na análise das canções que compõem o nosso corpus.
Optando por situar o trabalho nessa perspectiva, buscamos articular, com a análise das
obras selecionadas, “um funcionamento discursivo e sua inscrição histórica, procurando
pensar as condições de uma ‘enunciabilidade’ passível de ser historicamente
circunscrita.” (MAINGUENEAU 2008, p.17)
4
Após enumerar alguns estudos pioneiros, a partir de Sílvio Romero e de Mário de Andrade, que trataram
a poesia popular e a música popular como “objetos de pesquisa séria” (TRAVASSOS 2005, p.94), a
autora observa que a música popular foi, durante muito tempo, olhada com desconfiança no meio
acadêmico por ser considerada como “tema associado ao entretenimento massificado e ao consumo, ou à
festa e aos setores populares. Falar sobre música popular equivaleria, dessa perspectiva, a capitular
perante a indústria cultural” (TRAVASSOS 2005, p.95).
14
A tarefa, entretanto, não é simples. Estamos adentrando um terreno instável, este da
análise do discurso (AD), marcado pela heterogeneidade de conceitos e de
procedimentos, e lidando com um objeto de investigação não menos complexo, o
discurso literomusical brasileiro, também marcado por uma heterogeneidade de
posicionamentos, de opções artísticas e de orientações estéticas. Nossa proposta é
enfocar a produção linguístico-discursiva do Frevo, procurando compreender como se
dá a sua inserção no panorama da música popular brasileira, a partir das primeiras
décadas do século XX. Abordamos especificamente a produção literomusical do FrevoCanção, um dos dois tipos de Frevo que admitem a palavra cantada5, e cuja emergência
está vinculada à atuação dos primeiros clubes carnavalescos do Recife.
A noção de interdiscursividade, basilar para a AD, é incorporada ao nosso estudo na
perspectiva desenvolvida por Maingueneau (2008), nos termos de suas postulações
acerca do primado do interdiscurso: “o interdiscurso tem precedência sobre o discurso.
Isso significa propor que a unidade de análise pertinente não é o discurso, mas um
espaço
de
trocas
entre
vários
discursos
convenientemente
escolhidos”.
(MAINGUENEAU 2008, p.20). Os procedimentos analíticos dão-se a partir de um
recorte que evidencie a constituição do discurso em um espaço de relação com outros, já
que “seria a relação interdiscursiva que estruturaria a identidade” (MAINGUENEAU
2008, p. 21). Nesse sentido, estabelecemos diálogo com a produção discursiva de outros
gêneros, sobretudo o samba, consagrado na tradição musical brasileira como
representativo de uma certa ideia de nacionalidade, conforme veremos no capítulo 4.
Para situar mais precisamente a esfera de ação do analista, Maingueneau (2008) propõe
as noções de universo discursivo, campo discursivo e espaço discursivo, de que
trataremos adiante, no capítulo 2, sobre o arcabouço teórico da pesquisa.
Com base nessas categorias, buscamos analisar a organização discursiva das
canções que integram o nosso corpus com o objetivo de identificar o posicionamento do
Frevo em relação a outros enunciados historicamente inscritos no campo do discurso
literomusical brasileiro. Sobre a noção de posicionamento, trata-se de “uma categoria de
base da análise do discurso, que diz respeito à instauração e à conservação de uma
identidade enunciativa” (CHARAUDEAU e MAINGUENEAU 2004, p.392).
Definimos como recorte histórico deste trabalho o período dos anos 1930 aos anos
1970. Aí incluímos a Era de Ouro do Rádio (décadas de 1930, 1940 e 1950), quando o
5
O outro tipo de Frevo cantado é o Frevo-de-bloco, por nós abordado em trabalhos anteriores (cf. VILA
NOVA 2007)
15
Frevo-Canção recebeu inúmeras gravações no sudeste do país, por algumas das vozes
mais representativas da canção popular brasileira; incluímos também o período mais
significativo (décadas de 1950 a 1970) de atuação da Rozenblit, fábrica de discos
localizada no Recife, responsável por uma intensa produção de títulos voltados para a
música carnavalesca pernambucana e brasileira. Ao longo de todo o período, destaca-se,
por sua atuação como divulgador do Frevo, a figura do Maestro Nelson Ferreira, diretor
artístico da Rádio Clube de Pernambuco e, posteriormente, diretor musical da
Rozenblit.
Ao estabelecer este recorte, pretendemos oferecer uma contribuição para os estudos
discursivos sobre o Frevo cobrindo um período de reconhecida importância para a
história da música popular brasileira. A noção de posicionamento é desenvolvida por
Costa (2001, 2007, 2007a, 2009, 2009a), no âmbito do discurso literomusical
brasileiro6. Uma importante observação acerca da noção diz respeito à ideia da não
fixidez dos posicionamentos, sendo, portanto, frequente a ocorrência de artistas cuja
obra se caracteriza pelo investimento em mais de um posicionamento. Isto se explica,
em parte, pela postura de rejeição a rótulos, bastante comum na música brasileira, como
lembra o autor7. Outra explicação está na percepção de que os posicionamentos devem
ser encarados como momentos de um percurso, não sendo possível compreendê-los
como “um enquadramento de uma vez por todas dos sujeitos” (COSTA 2001, p. 167).
Reconhecemos aí uma importante marca distintiva do discurso literomusical, definidora
de sua heterogeneidade, quando comparado a outros campos discursivos, a exemplo da
religião e da ciência, em que “grupos, correntes, tendências [...] se definem, se
organizam e se estabilizam mediante estatutos e ideologias razoavelmente bem
definidos” (COSTA 2001, p. 169), através de textos fundadores que orientam as práticas
discursivas (o manifesto político, as obras de caráter doutrinário etc.).
Reconhecendo a validade das interlocuções entre a pesquisa em Análise do
Discurso e as teorias sobre gêneros, incorporamos contribuições que dão conta da
definição de gêneros enquanto formas de ação social e cultural (BAKHTIN, 1981, 1992,
2000; MARCUSCHI 2004, 2005, 2007, 2008; BAZERMAN 2005 e outros). A opção
revela-se coerente com a posição de Maingueneau (2008), ao observar que “há um
6
O autor identifica cinco formas de marcação identitária, a partir da aproximação de artistas de acordo
com diferentes critérios, a saber: “a) movimentos estético-ideológicos [...]; b) agrupamentos de caráter
regional [...]; c) agrupamentos em torno de temáticas [...]; d) agrupamentos em torno do gênero musical
[...]; e) agrupamentos em torno de valores relativos à tradição [...]” (COSTA 2001, p. 169)
7
Ele observa, no entanto, que essa postura de rejeição a rótulos configura, em si mesma, um
posicionamento, “o daqueles que se dizem acima de qualquer posicionamento” (COSTA 2001, p.167).
16
consenso entre analistas do discurso de que a noção de gênero ocupa papel central na
disciplina” (MAINGUENEAU 2008a, p. 151) e que “a análise do discurso e as
correntes pragmáticas colocaram a categoria de gênero no centro de suas preocupações”
(MAINGUENEAU 2006, p. 229). Enfatizamos, no capítulo 2, as concepções de gêneros
do discurso em Bakhtin a partir de suas formulações acerca do princípio dialógico, que
embasam as contribuições do autor russo para o estudo dos fenômenos da linguagem,
ressaltando sua dimensão social. Enfocaremos as relações entre os gêneros primários e
secundários (BAKHTIN 2000), que ensejam uma interpretação da canção como
manifestação cultural da linguagem numa esfera de produção artística elaborada a partir
da fala cotidiana.
De fato, ao definirmos, com base em Costa (2007a), a canção como “gênero híbrido,
de caráter intersemiótico” (COSTA 2007a, p. 107), ressaltamos a compreensão de que
sua produção situa-se no limiar entre a oralidade e a escrita, conferindo-lhe um interesse
peculiar enquanto objeto de pesquisa. A redução das fronteiras entre oralidade e escrita,
com a superação de uma visão dicotômica por muito tempo presente na pesquisa
linguística, é uma perspectiva em geral vinculada à constituição de novos gêneros,
sobretudo a partir do desenvolvimento das tecnologias de comunicação, conforme
Marcuschi (2007). O autor salienta que um aspecto central desses gêneros é
a nova relação que instauram com os usos da linguagem como tal [com] a
redefinição de alguns aspectos centrais na observação da linguagem em uso,
como por exemplo a relação entre a oralidade e a escrita, desfazendo ainda
mais as suas fronteiras. (MARCUSCHI 2007, p. 21)
Embora não estejamos lidando com um gênero novo, absolutamente, a inserção da
canção nessa perspectiva é sem dúvida pertinente. A palavra cantada é, de fato, uma das
mais antigas manifestações da linguagem, remontando aos primórdios da história
humana, disseminada praticamente em todas as culturas, e sua constituição dá-se a partir
dos padrões entoacionais da fala8. Tal compreensão fundamenta, por exemplo, a análise
de Tatit (1996, 1997, 2004, 2007) sobre a consolidação da canção brasileira ao longo do
século XX. O autor argumenta que ela se deve a um princípio entoativo segundo o qual
as melodias “mimetizam as entoações da fala para manter o efeito de que cantar é
também dizer algo, só que de um modo especial” (TATIT 2004, p. 73). Ao mesmo
tempo, é inegável que a canção tem uma dimensão escrita inquestionável a qual, de
acordo com Costa (2007a), está situada no momento da produção e da distribuição das
8
Em alguns gêneros musicais mais recentes, como o rap, por exemplo, esses padrões são mais evidentes,
reconhecidos, de modo geral, como uma fala cantada.
17
obras, sendo portanto sujeita à “análise das disciplinas que privilegiam a matéria
escrita” (COSTA 2007a, p.112), entre as quais inclui-se a literatura, como ele ressalta.
Para uma breve reconstituição do percurso sócio-histórico da canção, analisamos, a
partir de Matos (2008) e outros autores, alguns “laços de parentesco” verificados na
relação entre poesia e música, assim como a importância da canção em diferentes
práticas culturais. Recorremos ainda a Zumthor (2005) para ressaltar a importância da
voz na elaboração dessas práticas, bem como na elaboração da noção de performance.
Enfatizamos, ainda, alguns aspectos composicionais e contextos socioculturais
específicos, que caracterizam a elaboração, circulação e recepção do gênero, ao longo
da formação da cultura brasileira.
Propomos ainda uma aproximação entre o gênero canção e a crônica, considerando a
análise de muitas obras em que a organização discursiva e, sobretudo, os propósitos
comunicativos, permitem identificar nas canções analisadas traços comuns aos dois
gêneros discursivos. Em geral, são obras elaboradas na forma de narrativas sobre cenas
da vida cotidiana, descrevendo personagens, usos linguísticos e costumes, comentando
aspectos da vida política etc. Tal percepção não constitui propriamente um dado novo
na música popular brasileira, se considerarmos, com Tatit (2004), que “a prática musical
brasileira sempre esteve associada à mobilização melódica e rítmica das palavras, frases
e pequenas narrativas ou cenas cotidianas.” (TATIT 2004, p. 69). Nesse sentido, muito
já se disse acerca de, por exemplo, um Noel Rosa como cronista de Vila Izabel, seu
bairro de origem, no Rio de Janeiro; ou um João Santiago cronista do Batutas de São
José, bloco carnavalesco do Recife ao qual o artista dedicou quase integralmente a sua
obra. Pretendemos, então, identificar no corpus selecionado as obras que se enquadram
neste espaço de intersecção entre a canção e a crônica.
A definição das opções teórico-metodológicas, a partir da articulação entre a AD e
contribuições das teorias de gêneros, bem como as limitações de conhecimento técnico
da linguagem musical, de nossa parte, impõem-nos um direcionamento voltado mais à
análise da materialidade linguística das canções, em busca das configurações de sentido
que nos permitam identificar alguns dos posicionamentos do Frevo no discurso
literomusical brasileiro. Não obstante essa postura metodológica, lançamos mão das
contribuições de Tatit (1986, 1996, 1997) para apresentar, no desenvolvimento do
trabalho, considerações gerais acerca da estruturação harmônica e melódica das
canções, necessárias para que se cumpra, ainda que parcialmente, a proposta de
18
Maingueneau formulada nos termos de uma semântica global (MAINGUENEAU 2008,
pp. 75-97), que enfocaremos adiante.
Abordando especificamente os gêneros literários, Maingueneau (2006) apresenta
uma reflexão que julgamos pertinente à análise de outros gêneros do discurso situados
na esfera da produção artística: “A obra não se limita a representar um real exterior a
ela, mas define igualmente um quadro de atividade que é parte integrante do universo de
sentido que ela simultaneamente pressupõe e pretende impor.” (MAINGUENEAU
2006, p.229). Considerando, ainda conforme Maingueneau (2008a, pp. 43-46), que a
definição de posicionamentos implica a existência de comunidades discursivas9, a
compreensão dos posicionamentos do Frevo no campo do discurso literomusical
brasileiro interessa-nos enquanto construção de sentidos para a afirmação de uma
comunidade discursiva cuja identidade é constituída pelos modos de dizer do Frevo, isto
é, pela configuração discursiva de suas letras em conjugação com a elaboração de sua
complexa estrutura musical. O conceito de comunidade discursiva será desenvolvido no
capítulo 2.
Apresentamos como justificativa adicional para a realização deste trabalho o
interesse que ele pode suscitar entre pesquisadores e estudiosos, e para a sociedade em
geral, dada a crescente valorização do Frevo no cenário nacional. Como evidência dessa
constatação, salientamos a resolução do Conselho Consultivo do IPHAN (Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), homologada pelo então ministro da Cultura,
Gilberto Gil, em reconhecimento do ritmo pernambucano como Patrimônio Imaterial do
Brasil, em 9 de fevereiro de 2007.10
O reconhecimento oficial representa uma etapa do longo processo de instituição das
formas imateriais como patrimônio histórico e artístico, num contexto mundial. No
Brasil, conforme destacam Barbosa e Couceiro (2008),
considerar danças, manifestações [...] ofícios e diversos costumes de
comunidades específicas, como merecedores de ações especiais de proteção e
salvaguarda por parte das políticas governamentais, é uma idéia com presença
relativamente recente nos debates nacionais acerca do tema. (BARBOSA e
COUCEIRO 2008, p.13)
9
Conforme o Dicionário de Análise do Discurso, uma comunidade discursiva “tem sua identidade
marcada pelos saberes de conhecimento e de crença nos quais seus membros se reconhecem e dos quais
dão testemunho ao produzirem discursos que circulam no grupo social”. (MAINGUENEAU, D. e
CHARADEAU, P. 2004, p. 109)
10
A resolução foi anunciada pelo Ministro G.Gil após reunião do Conselho Consultivo do IPHAN
realizada na sacristia da Igreja de São Pedro dos Clérigos, no Pátio de São Pedro, Recife, no dia em que
oficialmente se comemorava o centenário do frevo, tomando como referência histórica a data do primeiro
registro impresso da palavra frevo, publicada no Jornal Pequeno, do Recife, em 9 de fevereiro de 1907.
19
É somente depois da Segunda Guerra que a visão de patrimônio cultural, antes
relacionada apenas às grandes obras de arte e aos monumentos, começa a ser revista,
sobretudo por influência dos países do Terceiro Mundo, cuja tradição e identidade se
expressam de modo intenso “a partir de manifestações, de artes e modos de fazer,
danças, folguedos e ritos.” (BARBOSA e COUCEIRO 2008, p.12). Conforme as
autoras, o Brasil antecipa-se, através do Decreto 3.551, do ano 2000, às deliberações da
Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, realizada pela
UNESCO, em Paris, em 2003. O decreto brasileiro já então estabelecia o Registro de
Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural de nosso país.
No entanto, o trabalho exaustivo da comissão de pesquisadores do projeto Formas de
Expressão da Cultura Imaterial em Pernambuco, desenvolvido em 2006, em todo o
Estado, apontou a escassez de registros de muitas das formas de expressão abordadas,
sejam eles através de publicações, imagens ou arquivos sonoros.
Nossa iniciativa constitui uma modesta contribuição, pequena parcela de um trabalho
extenso a se cumprir, para dar conta da riqueza do Frevo no cenário cultural brasileiro.
O contexto sócio-histórico de emergência do Frevo-Canção no panorama do carnaval
brasileiro será enfocado no capítulo 3. Inicialmente vinculada às primeiras agremiações
de rua do Recife, essa música cantada espraiou-se por todos os segmentos sociais
representados no palco da nossa maior festa popular, das elites responsáveis pelos
clubes de alegorias e críticas às camadas subalternas que formaram os clubes pedestres,
oriundos das associações de classes do trabalho proletário.
Esse importante dado sociológico relacionado ao Frevo-Canção - sua vinculação às
primeiras sociedades e clubes carnavalescos, agremiações que reproduziam no carnaval
as divisões sociais da cidade – é abordado assim por Araújo (1996):
A cidade dividida em segmentos e grupos étnicos e sociais distintos,
portadores de interesses e visões de mundo próprios – e muitas vezes
antagônicos, embora houvesse momentos e pontos de identificação e
consenso – de práticas e expressões culturais específicas, era múltipla e
mutante, assim como o Carnaval. (ARAÚJO 1996, p.210)
Por um lado, incluíam-se aí os clubes de alegorias e críticas, formados pelas camadas
da elite recifense e caracterizados pela influência do carnaval europeu e por um forte
apelo para a crítica de costumes. Por outro lado, os clubes pedestres, que começaram a
surgir a partir da década de 1880, sobretudo após a Abolição da Escravatura. Os nomes
dessas agremiações quase todos se referem ao mundo do trabalho proletário
20
(Lenhadores, Caiadores, das Pás, Vassourinhas, Espanadores, Empalhadores do
Feitosa, Parteiras de São José, etc.) e, ao contrário dos primeiros, eram formadas por
pessoas pobres “oriundas de categorias de trabalhadores urbanos, como comerciários,
alfaiates, costureira, talhadores, estivadores, funileiros, gazeteiros, verdureiros [...]”
(SOUTO MAIOR e SILVA 1991, p. XXXVII).
Buscando, então, cumprir o objetivo geral do trabalho, que é definir o
posicionamento do Frevo no campo do discurso literomusical brasileiro, a partir das
opções teórico-metodológicas anunciadas, levantamos a hipótese de que a organização
linguístico-discursiva do Frevo-Canção se caracteriza, basicamente:
a) por configurar um projeto enunciativo de afirmação identitária do Frevo –
como gesto de demarcação de terreno no campo literomusical brasileiro, em
relação a outros gêneros musicais;
b) pela abordagem de uma temática variada, reveladora das peculiaridades da
obra dos autores enfocados, em diferentes contextos sócio-históricos ao longo
do período enfocado, com destaque para as canções cuja organização
linguístico-discursiva permite-nos apontar uma relação intergenérica com a
crônica, conforme já referido.
Esperamos, com a realização deste trabalho, oferecer uma contribuição para o
desenvolvimento dos estudos que visam à compreensão da dinâmica que rege a
evolução de uma manifestação cultural tão importante para os pernambucanos e para os
brasileiros de modo geral. Aliamo-nos a outros pesquisadores cientes da importância
das manifestações da cultura popular para a compreensão da vida brasileira, e nosso
trabalho representa um gesto de inserção desse universo de produção criativa nos
domínios da investigação acadêmica.
21
2. OPÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGIAS
PARA UMA ANÁLISE DISCURSIVA DO FREVO
2.1. Dialogismo e Gêneros do Discurso, contribuições do Círculo de Bakhtin
O discurso literomusical brasileiro é caracterizado pela heterogeneidade, por uma
pluralidade de gêneros sobre os quais se elaboram diferentes posicionamentos e
propostas estéticas variadas, através de diversas formas composicionais - dentre as quais
se destaca a canção. Em nossa proposta de descrição e análise do posicionamento do
Frevo, deparamo-nos com duas tarefas básicas: primeiro, definir a canção enquanto
gênero discursivo, de caráter híbrido, dotado de uma materialidade linguística e de uma
materialidade musical, como veremos adiante; e segundo, definir o Frevo como
manifestação da cultura pernambucana, consolidada a partir de variadas influências na
música e na dança, desde o século XIX.
Neste capítulo, apresentamos nossas opções teóricas, a partir da concepção geral de
língua e discurso, com base nos postulados do Círculo de Bakhtin, assim como uma
breve discussão acerca dos gêneros do discurso, incorporando as contribuições de
Marcuschi (2004, 2005, 2007, 2008) e Bazerman (2005). Depois de definirmos o gênero
canção, com base em Costa (2001, 2007, 2007a), Tatit (1986, 1996, 2004) e outros,
desenvolvemos uma breve discussão acerca do gênero Frevo-Canção, nosso objeto de
estudo.
Em seguida, discorremos sobre a Análise do Discurso, traçando um panorama da
área sobre a qual nos debruçamos para fundamentar o trabalho, enfatizando as
contribuições de Maniguenau (1997, 2001, 2005, 2006, 2008, 2008a, 2008b, 2008c) e,
para uma definição do discurso literomusical, as contribuições de Costa (2001, 2007a).
Os estudos sobre gêneros têm constituído uma linha central de trabalho na pesquisa
linguística. No Brasil, com um significativo número de pesquisadores atuando em
projetos e grupos de trabalho em diversos centros, a bibliografia disponível contempla
áreas que incluem desde o ensino de línguas às diferentes correntes da Análise do
Discurso. Uma ideia da multiplicidade de interesses em torno das questões pertinentes
ao estudo dos gêneros (de texto ou de discurso) é apresentada por Meurer, Bonini e
Motta-Roth (2005), ao enumerarem alguns profissionais que, no Brasil assim como
22
noutros países, “hoje, estão inclinados a discutir questões relacionadas aos gêneros”, e
que incluem, entre outros,
críticos literários, retóricos, sociólogos, cientistas cognitivistas, especialistas
em tradução automática, linguistas computacionais, analistas do discurso,
especialistas em inglês para fins específicos, professores de língua [...]
(MEURER, BONINI e MOTTA-ROTH 2005, p.8).
Algumas perspectivas de estudos sobre gêneros em curso internacionalmente são
apontadas por Marcuschi (2008)11, dentre as quais se destaca a “perspectiva sóciohistórica e dialógica”, sob influência de Bakhtin. Ao traçar um panorama sobre esses
estudos em nosso país, até a primeira década do século XXI, Marcuschi (2008) também
chama a atenção para a obra de Bakhtin, assinalando que tem havido no Brasil uma
enorme proliferação de trabalhos sob a sua influência, já que o autor russo “fornece
subsídios teóricos programáticos de ordem macroanalítica e categorias mais amplas”,
podendo ser “assimilado por todos de forma bastante proveitosa. Bakhtin representa
uma espécie de bom-senso teórico em relação à concepção de linguagem”
(MARCUSCHI 2008, p. 152).
De fato, a validade da obra de Bakhtin e a importância das suas concepções gerais
sobre a linguagem levam a que seja reconhecido como um importante filósofo da
linguagem, cujos postulados básicos configuram uma percepção da linguagem em sua
dimensão sociocultural, transcendendo as posições adotadas pela filosofia da linguagem
e pela Linguística de seu tempo quanto ao problema da delimitação do seu objeto de
estudo específico. A essas posições Bakhtin (Volochinov) (1992) chamou de
“subjetivismo idealista” e “objetivismo abstrato”, cujo foco de observação seria,
respectivamente, “o ato da fala, de criação individual” mobiliado pelo “psiquismo
individual”; e “o sistema lingüístico, a saber os sistemas das formas fonéticas,
gramaticais e lexicais da língua” (BAKTHIN/VOLOCHINOV 1992, pp.72-77).
A partir daí, o autor elabora os fundamentos da sua teoria dialógica, que permeia
todo o pensamento bakhtiniamo e que diz respeito, em suma, à percepção da realidade
social da língua. Trata-se de uma posição que fundamentará outros conceitos basilares,
tais como o de gêneros do discurso e de enunciado, que abordamos aqui, recorrendo
11
Com a advertência de que “não representam de modo completo todas as possibilidades teóricas
existentes no momento, o autor enumera uma “perspectiva comunicativa”; uma “perspectiva sistêmicofuncional”; uma “perpsectiva sociorretórica de caráter etnográfico voltada para o ensino de segunda
língua”; uma “perspectiva interacionista e sociodiscursiva de caráter psicolinguístico e atenção didática
voltada para a língua materna”; uma “perspectiva da análise crítica”; e uma “perspectiva
sociorretórica/sócio-histórica e cultural” (MARCUSCHI 2008, p. 152)
23
também a considerações de outros autores, sobretudo Marcuschi (2004, 2005, 2007,
2008) e Bazerman (2005).
Na verdade, falar da obra de Bakhtin implica falar do Círculo12, como é conhecido o
grupo de intelectuais reunidos em torno do mestre, com os quais compartilhavam
interesses acerca de variados temas, divulgados como as ideias do Círculo de Bakhtin
em publicações que, em alguns casos, receberam dupla assinatura, a exemplo das obras
Marxismo e Filosofia da Linguagem (1992) e Discurso na Vida e Discurso na Arte –
sobre poética sociológica (mimeo, s/d), assinadas por Bakhtin e Volochinov.
As bases da concepção dialógica da linguagem, tal como desenvolvida em Marxismo
e Filosofia da Linguagem (Bakthin/Volochinov, 1992), estão assentadas na negação da
noção de língua fundada tanto na objetividade quanto na subjetividade pura, duas
perspectivas norteadoras do trabalho de pesquisa linguística até princípios do século
XX, com base no “estudo da enunciação monológica isolada”, de caráter filológico:
“Estudam-se documentos históricos em relação aos quais o filólogo adota uma atitude
de compreensão passiva” (Bakhtin/Volochinov 1992, p. 104). Para o pensamento do
Círculo, essa perspectiva de apreensão da língua não contempla a sua verdadeira
natureza dinâmica e criativa, que se materializa unicamente através da interação:
A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato
de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo
ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação
verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação
verbal constitui assim a realidade fundamental da língua. [...] A língua vive e
evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema
lingüístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos
falantes. (BAKHTIN/VOLOCHINOV 1992, p. 123)
O conceito de dialogismo funda-se, portanto, numa concepção de língua que
extrapola os domínios da Linguística – saussureana e estruturalista – e se volta para uma
perspectiva discursiva. Embora a leitura da obra de Bakhtin revele que ele nunca propôs
formalmente “uma teoria e/ou análise do discurso, no sentido em que usamos a
expressão para fazer referência, por exemplo, à Análise do Discurso Francesa” (BRAIT
2008, p.9), é inegável a relevância de suas contribuições, sobretudo as reflexões acerca
do princípio dialógico, para o desenvolvimento das teorias do texto e do discurso, no
século XX. Na verdade, indo um pouco mais além, autores como Cunha (1997)
12
Do Círculo de Bakhtin participavam intelectuais como Valentin Volochinov, Pavel Medvedev, o
filósofo Matvei Kagan, o biólogo Ivan Kanaev, a pinaista Maria Yudina e o professor Lev Pumpianski.
(FARACO 2009, p.13)
24
sustentam que, a partir do conceito de dialogismo, “Bakhtin elaborou uma teoria do
discurso humano, que constitui a base da lingüística pós-estrutural” (CUNHA 1997,
p.304), incluindo aí diferentes contribuições para a Análise do Discurso, a Linguística
Textual, a Análise da Conversação e a Pragmática. O próprio Bakhtin (2000) defende,
por fim, que a concepção dialógica é uma realidade fundamental que deve nortear não
apenas a compreensão do fenômeno linguístico, mas o método de pesquisa nas ciências
humanas:
As ciências exatas são uma forma monológica de conhecimento: o intelecto
contempla uma coisa e pronuncia-se sobre ela. Há um único sujeito: aquele
que pratica o ato de cognição (de contemplação) e fala (pronuncia-se). Diante
dele, há a coisa muda. Qualquer objeto do conhecimento (incluindo o
homem) pode ser percebido e conhecido a título de coisa. Mas o sujeito como
tal não pode ser percebido e estudado a título de coisa porque, como sujeito,
não pode, permanecendo sujeito, ficar mudo; consequentemente, o
conhecimento que se tem dele só pode ser dialógico. (BAKHTIN 2000, p.
403)
Assim, desde a descoberta, fora dos limites da URSS, da produção intelectual do
Círculo, a partir do final dos anos 1960, o pensamento bakhtiniano tem conquistado
significativo espaço, não apenas nas áreas destinadas ao estudo mesmo da linguagem –
a Linguística e a Literatura –, mas também, numa perspectiva transdisciplinar, peculiar
à visão de mundo do autor, nas áreas da educação, da filosofia, e da semiótica da
cultura.
A primeira obra em que o autor propõe as bases de sua teoria dialógica é Problemas
da Poética de Dostoievski, originalmente publicada em 1929 (a primeira tradução
brasileira é de 1981, que utilizamos aqui). A concepção de dialogismo está aí atrelada à
emergência de uma nova disciplina, a Metalinguística (Translinguística)13, apresentada
no capítulo 5 (O discurso em Dostoievski), em que Bakhtin anuncia que tem em vista “o
discurso, ou seja, a língua em sua integridade concreta e viva e não a língua como
objeto da lingüística” (BAKTHIN 1981, p.157). A sua proposta, entretanto, não
descarta a Linguística, mas, ao contrário, recomenda aplicar os seus resultados:
as nossas análises subseqüentes não são lingüísticas no sentido rigoroso do
termo. Podem ser situadas na Metalingüística, subentendendo-a como um
estudo – ainda não constituído em disciplinas particulares definidas –
13
O termo Metalinguística aparece em Problemas da Poética de Dostoievski (1981) para identififcar a
nova disciplina que, segundo Bakhtin, ultrapassaria os limites da Linguística (sem ignorá-la), voltando-se
para as relações dialógicas. No entanto, autores como Faraco (2009) e Fiorin (2006) preferem usar
Translinguística para dar conta dessa proposta de abordagem extralinguística, já que, segundo Fiorin
(2006), “metalingüística é imediatamente relacionada aos discursos que falam sobre a língua, que a
descrevem, que a analisam” (FIORIN 2006, p.20).
25
daqueles aspectos da vida do discurso que ultrapassam – de modo
absolutamente legítimo – os limites da lingüística. As pesquisas
metalingüísticas, evidentemente, não podem ignorar a lingüística e devem
aplicar os seus resultados. (BAKHTIN 1981, p. 157)
O autor esclarece, nesse ponto que, afinal, a Linguística e a Metalinguística
(Translinguística) estudam o mesmo fenômeno, embora sob ângulos diferentes.
Refinando mais a sua definição, o autor propõe que o objeto da Metalinguística
(Translinguística) são, precisamente, “as relações dialógicas (inclusive as relações do
falante com a sua própria fala)” (BAKHTIN 1981, p. 158), situadas numa dimensão
extralinguística, ou seja, além dos limites da língua – a língua tal como concebida pela
Linguística estruturalista. Continua Bakhtin:
As relações dialógicas, deste modo, são extralinguísticas. [...] A linguagem
vive apenas na comunicação dialógica daqueles que a usam. É precisamente
essa comunicação dialógica que constitui o verdadeiro campo da vida da
linguagem. Toda a vida da linguagem, seja qual for o seu campo de emprego
(a linguagem cotidiana, a prática, a científica, a artística etc.), está
impregnada de relações dialógicas. Mas a lingüística estuda a ‘linguagem’
propriamente dita com sua lógica específica [...] como algo que torna
possível a comunicação dialógica, pois ela abstrai conseqüentemente as
relações propriamente dialógicas. Essas relações se situam no campo do
discurso, pois esse é por natureza dialógico e, por isto, tais relações devem
ser estudadas pela metalingüística, que ultrapassa os limites da lingüística e
possui objeto autônomo e tarefas próprias. (BAKHTIN 1981, p. 158)
Estão assim definidas as bases da concepção de linguagem postulada pelo Círculo de
Bakhtin, levando em conta a complexidade das relações humanas, fundamentadas no
princípio da interação, para a construção de sentidos através da língua. Como se
depreende das considerações acima, essa compreensão aponta para contextos mais
amplos, numa perspectiva extralinguística, que pressupõe, no trabalho analítico e
interpretativo de textos, a identificação das relações interdiscursivas, a inserção
sociocultural e histórica do(s) discurso(s) e dos sujeitos dessa produção, concebida em
sua heterogeneidade. Além disso, observa Brait (2008), o trabalho deve ultrapassar a
necessária análise da materialidade linguística para também
reconhecer o gênero a que pertencem os textos e os gêneros que nele se
articulam, descobrir a tradição das atividades em que esses discursos se
inserem e, a partir desse diálogo como objeto de análise, chegar ao inusitado
de sua forma de ser discursivamente, à sua maneira de participar ativamente
das esferas de produção, circulação e recepção (BRAIT 2008, p.13)
26
Daí a importância da concepção de gêneros do discurso proposta por Bakhtin e
desenvolvida, principalmente, em Estética da Criação Verbal (2000)14. Em resumo, a
noção de gênero diz respeito ao uso da língua em todas as esferas da atividade humana,
através de “enunciados (orais ou escritos), concretos e únicos, que emanam dos
integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana.” (BAKHTIN 2000, p. 279). É
assim, levando em conta a heterogeneidade das manifestações linguísticas em uma
imensa variedade de possibilidades de uso, que emerge a definição bakhtiniana de
gêneros como “tipos relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN 2000, p, 279),
podendo abarcar desde as réplicas do diálogo cotidiano até as obras literárias de
elaboração mais complexa.
Bakhtin distingue então os gêneros discursivos primários (que se constituem de
forma espontânea, na comunicação cotidiana,) dos gêneros discursivos secundários
(elaborados, de uma forma mais complexa, na comunicação cultural, principalmente
através da escrita). Essa distinção, porém, não configura uma proposta de dicotomia ou
hierarquização para classificação dos gêneros. O que Bakhtin postula, na verdade, é que
aos gêneros primários e secundários correspondem duas realidades interdependentes.
Faraco (2009) ressalta essa posição observando que
além de destacar essa perspectiva não dicotômica, mas de inter-relação entre
os dois grandes tipos de gêneros, é importante chamar a atenção para o fato
de que, em muitas de nossas atividades, há uma passagem constante do plano
secundário para o primário e deste para aquele (FARACO 2009, p.133)
O autor exemplifica, então, com a atividade de uma conferência, gênero secundário
bastante elaborado, no domínio acadêmico, que pode ser desenvolvido de forma
relativamente estável, “mas que se mescla [...] com gêneros primários de vários tipos,
como, por exemplo, quando o expositor conta uma piada ou faz uma réplica a uma
observação espontânea” (FARACO 2009, p.133).
A ideia da relativa estabilidade diz respeito à natureza dinâmica dos gêneros,
considerando-se a sua historicidade, ao longo da evolução humana; e também “à
necessária imprecisão de suas características e fronteiras” (FARACO 2009, p. 127).
14
Na verdade, a discussão teórica sobre gêneros é desenvolvida em duas partes (I - Problemática e
definição; II- O enunciado, unidade da comunicação verbal), reunidas sob o título de Os gêneros do
discurso (BAKHTIN 2000, pp. 278-326). De acordo com Faraco (2009), é um texto inacabado, escrito
“provavelmente em 1952/1953”, em que Bakhtin “está discutindo [...] caminhos para um estudo da
linguagem como atividade sociointeracional e aponta algumas características da unidade deste estudo (o
enunciado) em contraste com a unidade tradicional dos estudos lingüísticos (a sentença)” (Faraco 2009,
p.124)
27
Essa posição pressupõe a abertura de uma perspectiva bastante distinta da análise de
gêneros consagrada desde a Antiguidade, como veremos a seguir.
2.1.1. Os gêneros, da Antiguidade Clássica à atualidade
Os estudos sobre gêneros remontam, no mundo ocidental, à Antiguidade Clássica,
com as definições dos gêneros literários (lírico, épico e dramático) de Platão e dos
gêneros retóricos (deliberativo, judiciário e epidítico) de Aristóteles, a partir de
determinadas características formais tidas como canônicas, norteadores da definição dos
gêneros, encarados como produtos da criação artística ou retórica. Enfatizavam-se, pois,
os traços formais, tomados como propriedades fixas dos gêneros, muito embora, como
ressalta Faraco, “Aristóteles não separasse as formas de suas funções e das respectivas
atividades sociais em que ocorriam” (FARACO 2009, p.123)
A concepção clássica de gêneros, como foco em suas propriedades formais, norteará
os estudos linguísticos ao longo de muito tempo. No Renascimento, conforme analisa
Marcuschi (2004), a discussão dá-se em torno da definição de “formas hierarquicamente
mais elevadas, estando no cume em geral a tragédia.” (MARCUSCHI 2004, p.3
mimeo). É somente no Romantismo, quando se observa uma reação à hegemonia dos
modelos clássicos, que a teoria clássica dos gêneros é posta em xeque. Isso ocorre, por
exemplo, através da “percepção do anacronismo da epopéia” e do desenvolvimento do
romance, “gênero para o qual as teorias tradicionais não forneciam qualquer subsídio
analítico.” (FARACO 2009, p.124)
Atualmente, a noção de gênero é muito mais abrangente. Ela não está relacionada
unicamente à ideia de gêneros literários, mas inclui todas as realizações discursivas, na
língua falada ou escrita. Não são mais analisados apenas os aspectos formais, as
regularidades textuais verificadas nos gêneros, mas sim a sua relação com as práticas
sociais. Por isso, a visão dos gêneros como formas fixas, marcadas pela rigidez das
construções linguísticas definidas por determinados padrões, foi sendo redimensionada.
Hoje, a compreensão dos gêneros leva em conta seu caráter de plasticidade e a sua
variabilidade, moldados pelas práticas sociais e culturais em que estão inseridos. Para
Marcuschi (2005), por exemplo,
o estudo dos gêneros textuais é uma fértil área interdisciplinar com atenção
especial para o funcionamento da língua e para as atividades culturais e
sociais. Desde que não concebamos os gêneros como modelos estanques
28
nem como estruturas rígidas, mas como formas culturais e cognitivas de
ação social corporificadas de modo particular na linguagem, temos de ver os
gêneros como entidades dinâmicas. (MARCUSCHI, 2005, p.18, ênfase do
autor)
Daí advêm as dificuldades de categorização, dada a própria complexidade das
mudanças sociais e tecnológicas, a todo momento fazendo surgir novos gêneros. Sobre
isso, Marcuschi (2007) aponta que
hoje, em plena fase da denominada cultura eletrônica com o telefone, o
gravador, o rádio, a TV e particularmente o computador pessoal e sua
aplicação mais notável, a internet, presenciamos uma explosão de novos
gêneros e novas formas de comunicação tanto na oralidade quanto na escrita.
(MARCUSCHI 2007, p.19, grifo do autor)
A abordagem bakhtiniana sobre os gêneros é, portanto, embasada na compreensão do
caráter dinâmico dos fenômenos socioculturais e da comunicação humana, articulados,
por exemplo, à evolução tecnológica dos meios de armazenagem e circulação da
informação.
A noção de gênero como forma de ação social é desenvolvida, ainda, por Bazerman
(2005), autor cuja orientação teórica vincula-se a uma corrente sociorretórica, sóciohistórica e cultural de estudos dos gêneros, influenciada por Bakhtin, e preocupada com
“a organização social e as relações de poder que os gêneros encapsulam”
(MARCUSCHI 2004a, mimeo), considerando a sua historicidade e a vinculação às
instituições que os produzem. Na visão de Bazerman (2005), a compreensão dos
gêneros não se limita à identificação de suas regularidades formais:
A definição de gêneros como apenas um conjunto de traços textuais ignora o
papel dos indivíduos no uso e na construção de sentidos. Ignora as diferenças
de percepção e compreensão, o uso criativo da comunicação para satisfazer
novas necessidades percebidas em novas circunstâncias e a mudança no
modo de compreender o gênero com o decorrer do tempo. (BAZERMAN
2005, p.31)
O autor considera os gêneros como formas de tipificação das ações humanas, ou seja,
são “parte do modo como os seres humanos dão forma às atividades sociais”
(BAZERMAN 2005, p.31). Ele apresenta como exemplo uma situação em que uma
torcida, no estádio, entoa um cântico de apoio ao seu time, fazendo assim com que
alguém reconheça e seja atraído “para o espetáculo e emoções de um evento atlético
comunitário” (BAZERMAN 2005, p.31). O exemplo nos remete às diferentes
possibilidades de ocorrência do gênero canção que extrapolam o ato individual de
29
fruição, além do envolvimento emocional que atualiza toda uma experiência humana
associada à vivência musical culturalmente situada. Numa dimensão social, a variedade
possível de ações humanas em que a canção se faz presente inclui, por exemplo, a
participação em determinadas mobilizações coletivas, de caráter político-social
(comícios, passeatas, manifestações) religioso (procissões), cultural (o carnaval, por
exemplo); na celebração de momentos de euforia – como acontece nas celebrações
esportivas, mencionadas pelo autor – ou de tristeza, como as cerimônias fúnebres.
Retomando as posições de Bakhtin, a noção de gêneros como formas de ação social é
fundamental para a observação e estudo do fenômeno linguístico em suas relações
dialógicas, ou seja, enquanto discurso. Para Bakhtin, isso só pode ser realizado a partir
da afirmação do enunciado como verdadeiro objeto de análise (em oposição à oração –
ou sentença – enfocada pela Linguística do seu tempo), como “unidade real da
comunicação verbal” (BAKHTIN 2000, p. 295) em oposição à “unidade da língua” - a
oração. O enunciado é caracterizado pela noção de acabamento, que pressupõe sempre
uma atitude responsiva:
o acabamento do enunciado é de certo modo a alternância dos sujeitos
falantes vista do interior; essa alternância ocorre precisamente porque o
locutor disse (ou escreveu) tudo o que queria dizer num preciso momento e
em condições precisas. [...] O primeiro e mais importante dos critérios de
acabamento do enunciado é a possibilidade de responder – mais
precisamente, de adotar uma atitude responsiva para com ele (por exemplo,
executar uma ordem) (BAKHTIN 2000, p.299)
A noção de enunciado é pertinente a todas as instâncias da comunicação humana, já
que ele se molda aos gêneros do discurso que empregamos cotidianamente. Bakhtin
lembra que “todos os nossos enunciados dispõem de uma forma padrão e relativamente
estável de estruturação” (BAKHTIN 200, p.301), e suas considerações incluem desde as
réplicas num diálogo familiar até as obras de construção complexa no âmbito das
ciências e das artes, por exemplo. É sobre esse conjunto de orientações teóricas acerca
da concepção dialógica de língua e da noção de gêneros do discurso que desenvolvemos
o estudo da canção, considerando ainda alguns aspectos da relação intergenérica, de que
trataremos adiante.
30
2.1.2. O gênero canção
Numa definição bastante sucinta do gênero canção, Costa (2007b) afirma que se trata
de “um gênero híbrido, de caráter intersemiótico, pois é resultado da conjugação de
dois tipos de linguagem, a verbal e a musical (ritmo e melodia).” (COSTA 2007a,
p.107, grifo do autor). A concisão da definição revela, no entanto, uma complexidade
com a qual inevitavelmente lidamos ao escolher esse gênero como objeto de estudo. De
início, é preciso considerar que a análise das configurações de sentido na canção deve
integrar as duas dimensões (a verbal e a musical), o que exige do analista, ainda
conforme Costa (2007a), “uma tripla competência: a verbal, a musical e a líteromusical, sendo esta última a capacidade de articular as duas linguagens” (COSTA
2007a, p.107). Advém daí o desafio para a constituição de um instrumental teórico e
analítico suficientemente adequado para dar conta de todos os processos criativos
engendrados na canção. No Brasil, no que diz respeito à área de estudos em Linguística,
duas correntes principais têm se destacado, sobretudo pela possibilidade de um trabalho
interdisciplinar: a Semiótica e a Análise do Discurso.
Como já assinalamos, optamos pela segunda perspectiva, enfocando a canção em sua
dimensão enunciativa, em conformidade com as orientações bakhtinianas acerca do
dialogismo e da definição de gêneros do discurso. Para identificar o Frevo no campo do
discurso literomusical brasileiro, compreendemos a produção artística da canção como
enunciados
que,
sempre
numa
perspectiva
dialógica,
instauram
diferentes
posicionamentos definidos a partir de sua identificação genérica e de sua proposta
estética e ideológica, dentro da reconhecida heterogeneidade da música popular
brasileira.
Num breve levantamento do percurso sócio-histórico do gênero, consideramos, de
início, que a canção está vinculada a tradições orais em praticamente todas as culturas,
de todas as épocas, o que, de acordo com Finnegan (2008), faz com que ela possa “sem
dúvida ser considerada como um dos verdadeiros universais da vida humana.”
(FIINNEGAN 2008, p.15). Autores como Schurmann (1989) ressaltam as práticas
ritualísticas do passado, que conjugavam manifestações do canto e da dança15,
apontando como seus remanescentes, rituais “ainda em uso, por exemplo, no âmbito das
15
O autor cita como exemplo a lenda egípcia da filha do deus-sol Re, Telfnut, que só consegue ter a ira
abrandada com a música: “É por isso que não se pode parar de cantar e dançar diante de Telfnut, a fim de
não se permitir que a sua antiga ira torne a levantar-se” (SCHURMANN 1989, p.26)
31
religiões afro-brasileiras, onde o som de batucadas e cantorias contribui com a dança
para a invocação dos orixás.” (SCHURMANN 1989, p. 27)
No mundo ocidental, a canção tem um claro vínculo original com a poesia, que
remonta, conforme o mesmo autor, à época dos poetas-músicos ambulantes – os bardos,
escaldos e rapsodos – cujas narrativas sobre façanhas notáveis e sobre a bravura dos
heróis suscitaram a criação de uma grande variedade de mitos e lendas. Na verdade,
como observa Matos (2008), “já é lugar-comum assinalar o enlace primordial entre
palavra poética e expressão musical, que andaram juntas em suas manifestações mais
primitivas e imemoriais” (MATOS 2008, p.83), assim como estiveram, por exemplo, na
origem da poesia épica. As múltiplas e complexas correspondências entre poesia e
música são evidenciadas, ainda, na denominação de algumas formas específicas que
originalmente definem-se na intersecção entre as duas linguagens. É o caso da balada
(lírica ou narrativa), da barcarola, do hino, do salmo, da ode, do madrigal, da cantata
etc.
O que sobressai na definição do gênero, entretanto, é a voz. Na obra de Zumthor
(2005), ela é analisada como fenômeno de grande importância para a cultura: “a voz é
verdadeiramente um objeto central [...] representa um conjunto de valores que não são
comparáveis verdadeiramente a nenhum outro, valores fundadores de uma cultura”
(ZUMTHOR 2005, p.61). Ela é o elemento fundamental na concepção de performance,
definida pelo autor como “o ato pelo qual o discurso poético é comunicado por meio da
voz” e que se dá, evidentemente, a partir da presença física do corpo: “Quanto à
presença, não somente a voz, mas o corpo inteiro está lá, na performance. O corpo, por
sua própria materialidade, socializa a performance” (ZUMTHOR 2005, p.84). Essa
noção de performance, com a ênfase primordial na importância da voz, associada à
presença de um corpo físico, enriquece a compreensão do gênero canção, em sua
dimensão social, que é enfocada pelo autor quando se refere à performance coletiva,
exemplificada pelo canto nacional, pelo canto revolucionário e pelos cantos religiosos.
A respeito do canto coletivo, ele diz:
O canto reivindica a totalidade concreta do homem. Eu estou aqui, numa
multidão pela qual e para a qual é cantado esse canto, que age sobre ela, e
que a transforma assim em uma espécie de ser coletivo; ouço um corpo
múltiplo, com toda sua carga psico-física, suas paixões; meu corpo é parte
dela, e eis que se põe a gesticular, dançar ou levantar o punho. (ZUMTHOR
2005, p. 89)
32
Como veremos adiante, a contextualização sócio-histórica do Frevo-Canção revela
uma variedade de cenários de onde emerge a voz cantada, a partir da segunda metade do
século XIX. Primeiro, no calor das ruas, nos desfiles das primeiras agremiações do
Carnaval do Recife. Em seguida, nos salões dos clubes sociais, já nas primeiras décadas
do século XX; e depois nos palcos montados para a festa, a partir da segunda metade do
mesmo século. Essas mudanças articulam, no plano discursivo, diferentes configurações
da cena enunciativa da canção, possibilitando-nos, a partir da análise da construção de
sentidos nas letras – a face textual da canção -, perceber as mudanças sociais do período
enfocado.
Não se trata, porém, de limitar o trabalho de leitura e interpretação à tentativa de
definir um determinado sentido dos textos, tendo-os como objetos em si mesmos; nem
tampouco considerá-los como uma mera representação da realidade. Na perspectiva da
Análise do Discurso, que enfocamos adiante, como parte de nossa fundamentação
teórica, trata-se de compreender o contexto sócio-discursivo e o processo histórico que
incidem sobre a produção de textos, como forma de intervenção no mundo. Resumindo
essa proposta de abordagem do texto, falando especificamente sobre a canção, Costa
(2009a) chama a atenção também para a necessidade de considerar a heterogeneidade e
a dialogicidade inerentes a qualquer produção discursiva
As palavras [..] estão irremediavelmente marcadas pelos usos sociais [...]
além disso, qualquer enunciado só existe na medida em que responde a
outros enunciados e antecipa outros; deve-se considerar portanto que todo
texto é heterogêneo [...] e histórico, marcado irremediavelmente por uma
memória e constituído de uma materialidade já habitada e em constante
devir. (COSTA 2009a, mimeo)
A importância da voz para a definição do gênero canção também é ressaltada por
Tatit (2004), para quem “a atuação do corpo e da voz sempre balizou a produção
musical brasileira” (TATIT 2004, p.19). O autor considera o canto como uma
reelaboração da fala cotidiana, fazendo com que esta seja perenizada. Para Tatit, “o
canto sempre foi uma dimensão potencializada da fala” (TATIT 2004, p.41).
É a partir do estabelecimento das técnicas de registro fonográfico, no começo do
século XX, que as diferentes vozes que compõem o vasto terreno da música popular
brasileira, caracterizando a sua heterogeneidade, foram se constituindo, agrupando-se
segundo diferentes critérios de afinidade, que incluem desde posicionamentos de caráter
estético-ideológico – como na canção de protesto e no Tropicalismo, nos anos 1960; ou
33
no Manguebeat, nos anos 1990 – até, por exemplo, posicionamentos definidos pela
vinculação a determinados gêneros (sambistas, forrozeiros, sertanejos etc.). A análise da
produção literomusical, articulada a outros discursos que circulam na sociedade, revela
a importância da canção para a cultura brasileira, ao longo do século XX. Ainda
segundo Tatit (2004),
A canção brasileira [...] surgiu com o século XX e veio ao encontro do
anseio de um vasto setor da população que sempre se caracterizou por
desenvolver práticas ágrafas. Chegou como se fosse simplesmente uma outra
forma de falar dos mesmos assuntos do dia-a-dia, com uma única diferença:
as coisas ditas poderia ser reditas quase do mesmo jeito e até conservadas
para a posteridade. (TATIT 2004, p.70)
Considerando a classificação bakhtiniana dos gêneros do discurso, a canção é
definida como gênero secundário, por desenvolver-se em “circunstâncias de uma
comunicação cultural, mais complexa e relativamente mais evoluída” (BAKHTIN 1992,
p. 281). Há, entretanto, de forma bastante evidente, uma inter-relação com gêneros
primários, como a saudação, a conversa informal, a conversa telefônica etc. Trata-se de
um fenômeno inerente À constituição dos gêneros, que explicita seu caráter de
plasticidade e permite uma melhor compreensão do fenômeno da comunicação verbal:
“A inter-relação entre os gêneros primários e secundários de um lado, o processo
histórico de formação dos gêneros secundários do outro, eis o que esclarece a natureza
do enunciado.” (BAKHTIN 2000, p.282) Na análise do discurso literomusical, com
aparato teórico da Análise do Discurso, essa relação é abordada a partir da noção de
cenografia, proposta por Maingueneau (2001, 2006, 2008a) e desenvolvida por Costa
(2011, 2009a) para a análise de canções. Este autor lembra que, na produção discursiva,
a elaboração de uma cenografia não diz respeito
aos elementos empíricos de suas circunstâncias de produção, mas à fundação,
no nível do texto, de uma cena enunciativa, na qual se definem um
enunciador, um co-enunciador, uma topografia e uma cronografia da
enunciação. (COSTA 2009, mimeo)
Para mencionar um exemplo retirado do nosso corpus, um Frevo-Canção como Byebye my baby (Nelson Ferreira, 1944) demonstra a inter-relação genérica, com a
elaboração de uma cenografia baseada na conversa informal. Trata-se de uma situação
de despedida de um namorado ou pretendente, que se dirige a sua amada, na primeira
estrofe, em inglês: “my baby, bye bye”. Na segunda estrofe, a canção assume um caráter
metadiscursivo, situando o contexto sócio-histórico de crescimento da influência da
língua inglesa no Brasil, no período da II Guerra Mundial:
34
BYE, BYE MY BABY (Nelson Ferreira, 1944)
Amor, eu vou-me embora
Aí vem o teu papai
Só te vejo amanhã
My baby, bye bye!
Atualmente só se fala o inglês
Tudo está tão diferente
Diferente pra chuchu
É yes, kiss me okey
Até eu só sei dizer I love you
A obra dialoga com outras composições, anteriores a esse período, que enfocam a
presença cada vez mais marcante da língua inglesa na vida brasileira. É o caso de duas
canções lançadas no ano de 1933 (Good bye16, marchinha de Assis Valente, com
gravação de Carmen Miranda; e Não tem tradução17, parceria de Noel Rosa, Ismael
Silva e Francisco Alves, gravada por este último) que têm o propósito comum de
empreender um gesto crítico em relação ao que muitos consideravam uma invasão
cultural, no contexto de propagação da música e do cinema norte-americanos. A canção
de Nelson Ferreira foi regravada, no início dos anos 1980, num momento em que se
reelabora o debate acerca da influência norte-americana na cultura brasileira, desta vez
pela popularização da disco music, no rádio a na televisão – curiosamente, a regravação
é feita pelo grupo vocal As Frenéticas, que alcançara grande sucesso exatamente com a
disco music, através da canção Dancing Days (Nelson Mota e Ruban Sabino) trilha
sonora de abertura da novela homônima exibida pela TV Globo entre 1978 e 1979. A
regravação está no disco Asas da América volume 2 (1981), produzido pelo compositor
Carlos Fernando.
2.1.3. Frevo-Canção, um gênero e alguma polêmica
O contexto sócio-histórico de aparecimento do Frevo, na segunda metade do século
XIX, será enfocado de maneira mais aprofundada no capítulo 4, que apresenta também
considerações acerca da configuração genérica do Frevo-Canção. O surgimento do
Frevo como fenômeno cultural no panorama das manifestações do Carnaval brasileiro
16
“Good bye, good bye boy / deixa a mania do inglês / […] / Não é mais boa noite, nem bom dia/ só se
fala good morning, good night/ Já se desprezou o lampião de querosene/ lá no morro só se usa a luz da
Light” (Good Bye, Assis Valente)
17
“Amor lá no morro é amor pra chuchu/ as rimas do samba não são I love you/ e esse negócio de alô/
alô boy, alô Johnny/ só pode ser conversa de telefone”
35
dá-se, como veremos, num período de grandes transformações na sociedade, sobretudo
a partir da Abolição da escravatura. A identificação do gênero, pelo registro escrito em
discos e partituras, ocorre a partir dos anos de 1930, com a definição do Frevo-de-Rua
(instrumental), do Frevo-de-Bloco (ou marcha-de-bloco, característica dos blocos
mistos, com orquestras formadas basicamente por instrumentos de corda) e do FrevoCanção. Este se assemelha ao Frevo-de-Rua, pelo andamento acelerado e pela formação
orquestral similar, distinguindo-se pela presença do canto.
Mas a aposição de letras ao Frevo, que é a principal marca do Frevo-Canção, é
objeto de contestação. Duarte (1968), por exemplo, põe em dúvida a legitimidade
mesma do gênero, resumindo sua posição de modo lacônico: “Frevo não admite parte
cantada, letra.” (DUARTE 1968, p.66) Para ele, o Frevo-Canção seria uma distorção,
que “descaracterizou a autêntica e revolucionária música pernambucana”, sobretudo a
partir da interferência de “uns jornalistas e intelectuais que entenderam que frevo tinha
que apresentar uma letra, quando a música, pela sua própria natureza, não foi feita para
ter a parte de canto” (DUARTE 1968, p.58). A argumentação do autor baseia-se na
consideração de que o Frevo é música ligeira demais para comportar o canto. “Fazer
uma letra para um frevo seria obra de ficar na história” (DUARTE 1968, p.61), afirma
ele, apontando como origem do problema a instituição dos concursos de música
carnavalesca – primeiro pelos órgãos de imprensa, como o Diario de Pernambuco, e
depois pela Federação Carnavalesca de Pernambuco.
Ao que tudo indica, a opinião de Duarte reflete a posição crítica de outros
contestadores, anteriores a ele, já que, numa publicação trazida a público dezessete anos
antes, Ariano Suassuna (1951) então assinalava:
O frevo-canção tem sido detratado em Pernambuco como uma forma hibrida
e não regional. Admitem somente estes detratores a forma orquestral do
frevo. Este combate entretanto não tem razão de ser. Surgiu o frevo-canção
da marcha e do dobrado, da mesma maneira que o orquestral; apenas o frevocanção guardou daquela o canto, fato que não sucedeu com o outro. [...]
Além disso, os primeiros frevos de que se tem notícia são cantados, o que
bastaria para legitimar o frevo-canção [...]; mas é o próprio povo quem se
encarrega de legitimá-lo, como sendo a forma popular de frevo que mais
anima o carnaval (SUASSUNA 1951, p. 46)
A polêmica prossegue, com Duarte questionando a afirmação de Suassuna, na parte
final da citação acima - de que era o Frevo a música mais popular do carnaval. “A que
carnaval se refere, ao de rua ou ao dos salões?” (DUARTE 1968, p.67)
Compreendemos, então, que a discussão é embasada, da parte de Duarte, pela posição
36
de rejeição à modernidade, conforme atestam suas palavras: “Tudo no Brasil, por mais
sério que seja, recebe as investidas dos inovadores, dos que acham que devem
modernizar, não percebendo que certas coisas não admitem essas alterações” (DUARTE
1968, p.67); mas que sua crítica é dirigida também às instâncias organizadoras do
Carnaval, responsáveis pela instituição dos concursos, como enfocaremos adiante.18 O
debate ainda situa, historicamente, o momento de crescimento da popularidade do
carnaval de salão, com um certo arrefecimento do carnaval de rua, evidenciado pelo
desaparecimento de algumas agremiações – questão que também será discutida no
capítulo 4.
Para Duarte (1968), a aposição de letra ao Frevo o faria transmutar-se em outro
gênero, a marchinha carioca: “Para transformar um frevo-canção em marcha, ou
marchinha, é bastante suprimir a introdução, substituindo-a por outra na feição carioca”
(DUARTE 1968, p.59), como fizera Ari Barroso, em 1932, ao apropriar-se da canção
Mulata, dos Irmãos Valença e, depois de alterar-lhe a letra e o título (para O Teu cabelo
não nega)19, lançá-la em seu nome apenas, com gravação do cantor Castro Barbosa
(com a indicação de que era adaptação sobre “motivo do Norte”). A questão ganhou
repercussão e é certamente um dos casos mais famosos de plágio na história da música
popular brasileira, levado às raias de justiça com ganho de causa pelos irmãos
compositores pernambucanos – a propósito da polêmica, Raul e Manoel Valença
compuseram o Frevo-Canção Mulata Imitada, lançado em 1979:
MULATA IMITADA (J. Raul Valença/ Manoel Valença, 1979)
Mulata malvada
Mulata danada
Criada no norte
E no sul imitada
Mulata te encheram de fama e trama
Pois quem primeiro te viu partiu
18
O autor aponta como problema dos concursos uma contradição principal: “De grande utilidade como
incentivo, depois que alcançam essa finalidade, passam a desservir. As músicas, compostas especialmente
para “ganhar o concurso”, perdem sua espontaneidade principalmente pela produção em massa que
passam a ter. A ganância nos prêmios provoca discussões e brigas [...]” (DUARTE 1968, p.62)
19
A introdução é de Pixinguinha. A letra original da canção, “interessante mas de excessiva cor local”,
como observa Alencar (1979, p.210) mantém um estilo semelhante ao de canções regionais levados ao
sudeste por grupos como o Turunas da Mauricéia e Grupo de Caxangá (v. cap. 4): “Nestas terras do Brasil
aqui/ não precisa mais prantá qui dá/ Feijão muito douto e giribita, muita mulata bonita/ O teu cabelo não
nega , mulata/ que tu és mulata na cor/ mas como a cor não pega, mulata/ mulata, eu quero teu amor/ Me
deste um curto-circuito, que bruito/ Que inté queimou-se os fusíveis, incríveis/ mulata nos teus dois
quartos de fama/ passa a corrente da “Trama”/ Mulata tu não morre de fome, qui os home/ te dão sapato
dos sarto bem arto/ pra tu arremexer no gereré/ nas chama dos coroné/ [...]” (in ALENCAR 1979, p.211)
37
Partiu alucinado, enfeitiçado por ti
Mulata igual nunca vi
Mulata malvada
Mulata danada
Criada no norte
E no sul imitada
Mulata és carnavalença, Valença
Grandeza nacional, sem igual
Levada ao tribunal
E o mundo inteiro cantou
Rainha do carnaval
A observação feita acima, por Duarte (1968), de que seria bastante alterar a
introdução para transformar-se o gênero, de frevo para marchinha, não se revela
consistente. Essa conclusão é baseada, sobretudo, nas considerações feitas por
diferentes autores acerca das distinções entre um e outro gênero.
Enfocando especificamente a marchinha, Tatit (2007) assinala que ela dividia espaço
com o samba carnavalesco no gosto popular do público do Rio de Janeiro, mas ainda
assim conseguia conquistar maior preferência, sobretudo nos salões dos bailes de
carnaval. Segundo o autor, as marchinhas
eram velozes e, ao mesmo tempo, concentradíssimas: só refrão e segunda
parte. Próprias para o cordão dos foliões que, sob sua inspiração, seguiam em
fila até os limites do salão e voltavam ao ponto inicial, quando não giravam
em círculos propondo brincadeiras em torno de um centro. (TATIT 2007, p.
200)
Essa análise dessa dinâmica do baile de carnaval, com a movimentação das pessoas
no salão, corresponde à própria definição do percurso da marchinha: “a marchinha é
uma forma musical que não vai a lugar nenhum. [...] Só conhece um caminho, que é o
caminho de volta. Refrão, refrão e mais refrão.” (TATIT 207, p.200). A descrição
inicial da marchinha, mencionando a velocidade do andamento, bem como a sua
vinculação aos salões dos clubes sociais, podem suscitar a imediata comparação com o
Frevo-Canção, considerando que em dado momento de sua evolução o frevo ocupará
também esse espaço. Não é, entretanto, o que assinala Valdemar de Oliveira (1985),
quando compara os dois gêneros, apontando duas principais características que os
diferenciam, muito embora admita a semelhança estrutural, com introdução
instrumental e parte cantada:
Primeira: a parte introdutória tem todas as características do frevo
autenticamente pernambucano, rasgado, desabrido, furioso. Depois, ameniza,
38
abrindo passagem ao canto. Segunda: o andamento da marchinha carioca é
moderado: o do frevo-canção, bem mais vivo. (OLIVEIRA 1985, p. 36)
Enfocando a marchinha, Tatit (2007) ressalta a ideia de concentração, que se traduz
numa estrutura composicional mínima, formada por “refrão e segunda parte”.
Entretanto, se a observação mais atenta sobre a produção do Frevo-Canção, ao longo do
período enfocado neste trabalho, de fato revela uma regularidade com base nesse
esquema mínimo, muitos exemplos se destacam pela maior elaboração, extrapolando-o
para acrescentar, pelo menos, uma terceira parte da canção. É o caso, dentre outros,
deste Frevo de Luiz Bandeira:
NOVAMENTE (Luiz Bandeira, 1967)
Meu Recife,
Voltei novamente
Alegre e contente
Revendo o meu povo de novo
Andei maluco batendo cabeça
Pelo mundo afora
Até parece mentira
O que ouço agora,
Pelo som só pode ser Vassoura
Que vem rasgando um frevo
Fazendo a gente vibrar
Com licença vou fazer meu passo
Estou meio fora de forma
Vocês vão me desculpar...
Vou fazer serenata em Casa Amarela
Quero ver chegar à janela
Uma bela morena de lá
Vou lembrar ao Capiba,
Carnera e Nelson Ferreira
Que o frevo é nossa bandeira
Não vamos deixar ninguém rasgar...
Outro exemplo é o Frevo nº 2 do Recife, de Antônio Maria, lançado em 1954:
FREVO Nº 2 DO RECIFE (Antônio Maria, 1954)
Ai que saudade tenho do meu Recife
Da minha gente que ficou por lá
Quando eu pensava, chorava, falava
Contava vantagem, marcava viagem
Mas não resolvia se ia
Vou-me embora
Vou-me embora
Vou-me embora
Pra lá
Mas tem que ser depressa
39
Tem que ser pra já
Eu quero sem demora
O que ficou por lá
Vou ver a Rua Nova,
Imperatriz, Imperador
Vou ver, se possível
Meu amor.
Artistas cuja obra se desenvolve num período mais recente, a partir da década de
1980, também se destacam por uma produção que foge ao esquema típico de refrão e
primeira parte, como é o caso de boa parte das canções de Carlos Fernando, J. Michiles,
Bráulio de Castro, dentre outros.
Esclarecedoras, também, são as considerações de Sandroni (2011) a respeito das
peculiaridades do Frevo-Canção em relação a outros gêneros. A primeira observação é a
que o Frevo-Canção tem clara identidade genérica com o Frevo-de-Rua, que é
puramente instrumental. O autor assinala que a instrumentação do Frevo-Canção é
basicamente a mesma do Frevo-de-Rua, com a parte introdutória em geral obedecendo
às mesmas características gerais da configuração melódica do Frevo-de-Rua. Embora
saliente que o Frevo-Canção não é, simplesmente, o Frevo instrumental ao qual se
adicionou uma letra, como acontece com alguns choros cantados, Sandroni observa que,
dentre outras peculiaridades, os “saltos melódicos repetidos” e os “frequentes diálogos
entre naipes são alguns traços típicos” (SANDRONI 2011, p.44) tanto do Frevo-de-Rua,
instrumental, como do Frevo-Canção. E complementa:
Mesmo uma melodia como Vassourinhas, que originalmente era cantada e
que, em si, não tem nada de especificamente instrumental, em sua versão
consagrada pelas orquestras de frevo é tocada em forma dialogal,
incorporando a diferença timbrística entre trompetes e saxofones.
(SANDRONI 2011, p. 44)
As questões discutidas acima dizem respeito a uma tentativa de identificação de
alguns traços formais do gênero, que, evidentemente, são suscetíveis a mudanças, ao
longo de sua evolução. Para manter uma coerência teórica e metodológica, em relação
aos postulados bakhtinianos acerca da definição de gêneros do discurso, é preciso
considerar também os aspectos pertinentes à sua inserção sociocultural, para identificar
a esfera de atividade em que se dá a produção, a circulação e a recepção do gênero. Só
assim, então, será possível a compreensão mais clara dos enunciados elaborados nas
canções e sua relação dialógica com outros enunciados, demarcadores de outros
posicionamentos no campo do discurso literomusical brasileiro.
40
Em linhas gerais, e ainda retomando as considerações de Sandroni (2011), o FrevoCanção, hoje, não está vinculado diretamente a um tipo de agremiação carnavalesca
específico. As primeiras ocorrências do Frevo cantado dão-se espontaneamente, ainda
no século XIX, através de versos improvisados pela população que acompanhava a
apresentação das bandas militares na rua, como veremos co Capítulo 3. Ao longo da sua
evolução, até o presente, o Frevo-Canção – assim como o Frevo-de-Rua - é o gênero
dos clubes e troças, que saem em desfile pelas ruas, de forma espontânea – sem contar
com incentivo financeiro institucional ou subvenção pública para custear suas despesas
–, ou que são filiados à Federação Carnavalesca de Pernambuco; ou ainda que recebem
algum apoio das instâncias públicas de organização do Carnaval, como as secretarias e
fundações de cultura. É também o gênero predominante em agremiações conhecidas
como “blocos de trio”, ou seja, cuja animação musical é feita por um grupo musical que
utiliza trios elétricos, ainda que esse tipo de agremiação tenha, de modo geral, uma
seleção de repertório bastante eclética, incluindo músicas não carnavalescas.
Sandroni (2011) observa, por fim, que o Frevo-Canção é “o que tem maior interface
com o mundo do espetáculo profissional e da indústria fonográfica”, destacando, por
exemplo, Frevos produzidos por artistas não pernambucanos, a exemplo de Edu Lobo,
Geraldo Vandré, Egberto Gismonti e Tom Jobim, cuja obra é vinculada a outros
gêneros; e também Caetano Veloso e Moraes Moreira, conhecidos por produzirem
Frevos conhecidos como frevos baianos. O autor analisa, então, que essas obras são
“frevos-canção, no sentido de serem canções populares para consumo amplo em rádios,
discos, espetáculos, e agora em CDs, DVDs e internet.” (SANDRONI, 2011, p. 41)
Voltando ao polêmico debate entre Ariano Suassuna e Ruy Duarte, acima enfocado,
acerca da legitimidade do Frevo-Canção, transcrevemos as considerações de Capiba,
publicadas na contracapa de um disco lançado em 1959, quando o artista completava 25
anos de carreira. Por essa razão mesma, o texto é investido de certa autoridade que lhe
confere a condição de artista criador, cuja especialidade maior era justamente o gênero
em disputa: o Frevo-Canção. Apesar de longa, a citação é esclarecedora:
Para falar no atual frevo canção, teria que rememorar a velha MARCHA
PERNAMBUCANA. Seria contar um pouco da história de frevo e, ao
mesmo tempo, contrariar algumas opiniões apressadas sobre a marcha
pernambucana; desmentir algumas teorias de gabinete; reabilitar, enfim, essa
música tida por alguns como bastarda. Teria que provar, pelo que se tem
escrito e por testemunho de elementos que viveram desde fins do século
passado até os dias atuais, que a marcha pernambucana, chamada hoje de
41
frevo-canção, tem suas raízes plantadas nos primórdios deste famoso
carnaval pernambucano. [...]
E por que marcha pernambucana? Porque ela se diferençava da marcha
universal pela sua introdução já sincopada, por aqueles tempos iniciais do
carnaval de Pernambuco. [...] Era um novo gênero que surgia do sangue do
povo, como um grito de libertação, ditado pelo prazer de se divertir, de
esconder suas mágoas ao som das canções puxadas por trombones, pistons,
clarinetas e demais instrumentos usados para animar os cordões dos clubes.
[...] Que o chamado frevo-canção de nossos dias sempre existiu, ninguém de
boa fé poderá negar sem negar a própria existência do nosso carnaval. Seria o
mesmo que dizer que a marcha puramente instrumental, hoje conhecida
unicamente pela palavra FREVO e que data do princípio do século atual, não
existe. Seria negar que a palavra FREVO, introduzida em nosso carnaval há
uns 50 anos, mais ou menos, não é uma corrutela de ferver, fervura etc.
(CAPIBA 1959, contracapa do LP Capiba 25 Anos de Frevo, Rozenblit disco
nº40039)
2.1.4. Aspectos de inter-relação genérica: canção e crônica
“[...] encher o filtro com batida de limão em dia de feijoada; ser apresentado
a um rio famoso; [...] flores; frevo; escola de samba; aquarela de criança;”
(PAULO MENDES CAMPOS, Coisas Deleitáveis)
Nos estudos sobre gêneros, hoje, observa-se um predomínio das abordagens que
enfocam os seus propósitos comunicativos, nas diferentes esferas da comunicação,
mais do que as regularidades formais que definem a sua estrutura. Dada a definição
bakhtiniana de gêneros como “tipos relativamente estáveis de enunciados”, a sua
dinamicidade e flexibilidade, características de seu componente fundamental, a
linguagem, é o que tem atraído mais o olhar analítico: “hoje, a tendência é observar os
gêneros pelo seu lado dinâmico, processual, social, interativo, cognitivo, evitando a
classificação e a postura estrutural.” (MARCUSCHI, 2005, p.18). Isso não significa,
porém, desprezar por completo os aspectos estruturais dos gêneros.
Se, por um lado, convivemos em sociedade com um número de gêneros marcados
pelo alto grau de padronização, definidos por uma certa regularidade formal, por outro
lado, a diversificação das atividades comunicativas, a ampliação das possibilidades de
interação determinam a emergência de uma enorme variedade de novos gêneros, muitos
dos quais relacionados às novas formas de tecnologia. Nesse cenário, deparamo-nos
com o desafio crescente de investigar a complexa relação entre os gêneros, as práticas
sociais e as relações discursivas no interior da cultura.
42
Um importante aspecto da observação e análise dos gêneros, nesta perspectiva, é a
relação intergenérica que se estabelece entre os gêneros primários e os gêneros
secundários, conforme as postulações de Bakhtin (2000), apresentadas acima. Além
disso, em diversas instâncias da atividade sociocultural, as práticas discursivas têm sido
cada vez mais reconhecidas pelo fenômeno do hibridismo, como se tem observado, por
exemplo, na literatura. De acordo com Goicochea (2007):
Assistimos a um proceso de configuración de ‘escenarios de hibridización’
en los que la circulación entre culturas (popular, alta, de masas) proyecta los
gêneros literário em gêneros culturales, lo que impacta sobre la literatura
ampliando sus fronteras. En este contexto, es necesario explicitar [...] que la
preocupación por el gênero se sustenta en la idea de que estamos ante
prácticas culturales de alta densidade simbólica caracterizadas
fundamentalmente por la hibridización.... (GOICOCHEA, 2007, p.328)
A hibridização também está na base dos estudos sobre as relações entre a oralidade e
a escrita, enriquecendo, por exemplo, a compreensão das práticas de letramento, no
ensino de línguas. Nesse sentido, Marcuschi (2007) ressalta a importância do fenômeno
para a superação de uma visão dicotômica entre a oralidade e a escrita “ainda presente
em muitos manuais de ensino de língua.” (MARCUSCHI 2007, p.21)
No âmbito do discurso literomusical, igualmente, verifica-se o fenômeno da
hibridização, na própria definição do gênero canção, como uma marca distintiva de
heterogeneidade, num espaço definido pela pluralidade de formas musicais e propostas
estéticas. Trabalhando na perspectiva teórica da Análise do Discurso, Costa (2001)
aborda essa heterogeneidade a partir da noção de posicionamento, desenvolvida por
Maingueneau (1997, 2001, 2005, 2006, 2008a). Na descrição dos posicionamentos,
caracterizados por agrupamentos de artistas sob diferentes critérios de aproximação (por
exemplo, movimentos estéticos-ideológicos, identidade regional, identidade genérica
etc.), Costa (2001) analisa a produção de canções a partir da elaboração de uma cena
enunciativa, que é definida pela diversidade de cenografias. A canção pode, então,
assumir a forma de uma conversa cotidiana, de uma carta, de uma oração etc.
Em nossa tarefa de identificar o posicionamento do Frevo no campo do discurso
literomusical brasileiro, propomos a análise de canções que se constituem, no tocante à
sua abordagem temática e, sobretudo, aos seus propósitos comunicativos, por um certo
grau de hibridismo, definido pela aproximação com o gênero da crônica. Em geral, são
obras que se organizam discursivamente como pequenas narrativas sobre fatos e
personagens históricos, sobre a vida social, costumes, usos linguísticos da população
43
etc. Compreendemos aí um aspecto da inserção do Frevo no campo do discurso
literomusical, contribuindo para a sua identificação em relação a outros dizeres
elaborados nesse espaço de trocas. Trata-se, na verdade, de um traço peculiar à música
popular brasileira, facilmente identificado ao longo de sua história, como observa Tatit:
“A prática musical brasileira sempre esteve associada à mobilização melódica e rítmica
de palavras, frases e pequenas narrativas ou cenas cotidianas.” (TATIT 2004, p.69)
Sem desconsiderar a complexidade intrínseca de cada gênero, com suas formas
peculiares de hibridização, nossa proposta de aproximação resume-se a um aspecto
comum, se considerarmos os propósitos comunicativos de cada um: por um lado, na
canção o artista pode “traduzir os conteúdos humanos relevantes em pequenas peças
formadas por melodia e letra” (TATIT 2004, p.11), ou, com o redimensionamento da
fala, na voz cantada e registrada em disco, “falar dos mesmos assuntos do dia-a-dia,
com uma única diferença: as coisas ditas poderiam ser reditas quase do mesmo jeito e
até conservadas para a posteridade.” (TATIT, 2004, p. 70); por outro lado, na crônica, o
artista da palavra pode falar das questões relativas ao seu tempo, em “textos feitos para
o momento e que, pela qualidade, vão ficar para sempre” (SANTOS, 2007, p.15)
A propósito da definição do gênero, Matos (2007) observa que, na etimologia grega,
a crônica está associada à ideia de tempo (chrónos) e, “em acepções que remontam à
Idade Média, sua função equipara-se à história, designando a compilação de fatos
cronologicamente” (MATOS 2007, p.13). Já a partir do século XIX, e por influência da
imprensa francesa, nasce no Brasil o folhetim20, gênero consagrado no jornal como
espaço de periodicidade semanal, para o relato dos fatos da semana. Aos poucos, com a
tarefa sendo assumida por figuras como Manuel Antonio de Almeida, Joaquim Manuel
de Macedo, José de Alencar e Machado de Assis, o folhetim foi ganhando uma
configuração de romance, publicado em capítulos. Matos (2007) esclarece, ainda, que o
folhetim e a crônica eram muitas vezes escritos pelos mesmos autores, ocupavam o
mesmo espaço no jornal e versavam sobre os mesmos temas – em geral, a sociedade
contemporânea.
Entretanto, são dois gêneros distintos, que em certo momento receberam o mesmo
nome, pelo fato de ocuparem o mesmo espaço no jornal, conforme esclarece Matos
(2007), acrescentando: “O folhetim era um produto ficcional [...], imaginativo,
20
Com características semelhantes ao feuilleton (artigo de literatura, ciências, crítica, que aparece com
regularidae num jornal), conforme explica Faria (2004, p.XVII), retomando a definição do dicionário
Petit Robert.
44
construído dentro da estrutura narrativa do romance”, enquanto “a crônica cumpria uma
função bastante diversa do folhetim: era informativa, imediata e efêmera.” (MATOS
2007, p. 17).
Um importante aspecto da identidade genérica da crônica é o seu caráter híbrido,
definido muitas vezes como um espaço impreciso entre o jornalismo e a literatura.
Aimeé (2008) resume assim a questão:
A crônica é um gênero de considerável complexidade e hibridismo.[...] Mais
poéticas ou mais bem humoradas, mais sensíveis ou mais debochadas, a vasta
gama de possibilidades da crônica indica sua complexidade, seus limites
imprecisos, as largas opções de desenvolvimento.(AIMÉE 2008, p. 5)
Abordando a mesma questão, Santos (2007) ressalta as aproximações com gêneros
vizinhos, como a prosa poética e o conto, concluindo: “Definitivamente, e eis uma de
suas graças, ela dialoga sem preconceitos com tudo que lhe vai ao redor” (SANTOS
2007, p.21). Incluímos aí, na perspectiva dialógica que norteia este trabalho, a canção
como gênero vizinho à crônica, aproximando-os por algumas peculiaridades comuns,
sobretudo a sua inserção na vida cotidiana e a sua larga disseminação na sociedade. É
interessante que, para destacar a relevância cultural da crônica entre os gêneros da
escrita, no Brasil, Santos (2007) o faça exatamente através de uma citação de Noel
Rosa, retirada da canção Coisas Nossas21: “Temos o samba, a prontidão e podemos
colocar a crônica entre o que Noel listou como outras bossas.” (SANTOS 2007, p.15)
O pequeno número de Frevos que incluímos a seguir exemplifica, na prática
discursiva da canção popular brasileira, a materialização de enunciados que dialogam
sobre diferentes problemas e inquietações humanas, sobre temas de alcance mundial,
como a Segunda Guerra e a Guerra Fria, e sua repercussão nas relações sociais. As três
primeiras canções listadas abaixo abordam o fim da guerra, com a derrocada dos
alemães e a tomada de Berlim. O tom geral, de exaltação à vitória dos aliados, é
pontuado pela ironia dirigida aos representantes do Eixo: Hitler é “Seu Fritz”, do
“bigodinho”, o “valentão” que afinal caiu. Hiroito “perdeu o passo” e Mussolini “de
fantoche está servindo”.
O tratamento jocoso em geral dado, na canção carnavalesca, a qualquer assunto mesmo um assunto tão sério como a guerra - ajuda a compreender a noção de
21
Samba gravado em 1932, pelo próprio Noel Rosa (disco Columbia 78rpm nº 22.089ª): “Queria ser
pandeiro /pra sentir o dia inteiro/ a tua mão na minha pele a batucar/ saudade do violão e da palhoça/
coisa nossa, coisa nossa/ O samba, a prontidão e outras bossas/ são nossas coisas/ são coisas nossas/ [...]
Baleiro, jornaleiro/ motorneiro/ condutor e passageiro/ prestamista e vigarista/ e o bonde que parece uma
carroça/ coisa nossa, muito nossa
45
cenografia, tal como proposta por Maingueneau (2001, 2006). A cenografia é a cena de
fala que instaura a enunciação, através da qual a obra cega ao leitor/ouvinte, com a
definição do enunciador, do co-enunciador, de uma cronografia e de uma topografia.
Afastando a ideia de uma simples mensagem, que poderia ser transmitida de diversas
formas, a cenografia é “tanto condição como produto da obra” (MAINGUENEAU
2006, 252), ao mesmo tempo está na obra e a constitui, ou seja, a cenografia, longe de
ser entendida como simples “procedimento” é, sim, “um dispositivo que permite
articular a obra sobre aquilo de que ela surge: a vida do escritor [compositor], a
sociedade.” (MAINGUENEAU 2001, p.134). Aparecendo, então, no contexto do
Carnaval, as obras assumem esse tom específico de irreverência, próprio da esfera
sociocultural em que o gênero circula.
A primeira canção, de 1943, celebra a derrota alemã no Mediterrâneo, com a invasão
da Itália por americanos e britânicos. O discurso nacionalista e ufanista, largamente
disseminado sob controle estatal no Estado Novo, aparece na terceira canção abaixo, em
que “o grande Vargas” alia-se ao Tio Sam e seu correspondente britânico, John Bull
CAI-CAI (Marambá 1943)
Cai, cai, valentão
Assim não vai não
À procura da vitória
O Seu Fritz padeceu
Foi à França, foi à Grécia,
Foi até ao Mar Egeu
Mas Seu Fritz não tem sorte
E por isso agora vai
Descansar na geladeira
Vai, vai, vai, vai
Cai, cai, valentão
Assim não vai não
QUÉ MATÁ PAPAI, OIÃO? (Nelson Ferreira/ Sebastião Lopes, 1945)
E foi assim, e foi assim
Que preparam a invasão de Berlim
Começou na Sicília, a história diz
Entraram em Roma e depois Paris
Seu Bigodinho, isso é que é façanha!
Com mais um salto nós entramos na Alemanha
Fazendo meu passo com satisfação
E tratando de acabar coma goga do alemão
Qué matá papai, oião?
46
QUEBROU-SE A MOLA DO EIXO (Nelson Ferreira e Sebastião Lopes,
1945)
SEM GRAVAÇÃO
(fonte: OLIVEIRA, W. 1985, p.268)
Nações unidas
Marquem firme o compasso
Que o Hiroito já perdeu o passo
É dente ou beiço
É língua ou queixo
Ai, seu Adolfo
Quebrou-se a mola do eixo
Ai, ai , ai seu Adolfo
Quebrou-se a mola do eixo
Lá na Europa
O bigodinho está sumindo
E o Benito de fantoche
Está servindo
Mas Tio Sam, John Bull
E o grande Vargas
Acertaram uma escrita
Pra acabar de uma vez
Com a salsicha do alemão
E o arroz do japonês.
A crônica da guerra é feita em canções carnavalescas de outros gêneros, como o
samba e a marcha. Entre os sucessos do carnaval de 1943, no Rio de Janeiro, incluemse, por exemplo, Adolfito Mata-Moros22 (João de Barro e Alberto Ribeiro) e Que passo
é esse, Adolfo?, de Haroldo Lobo e Roberto Roberti23. A respeito de Ruas do Japão,
marchinha de Haroldo Lobo e Cristovam de Alencar, gravada em 1944, Alencar (1979)
destaca o seguinte: “o brutal ataque à base naval norte-americana de Pearl Harbor
indispusera o nosso povo com os japoneses, antes admirados [...] pela colaboração que
nos davam através da numerosa colônia sediada em São Paulo”. A canção dizia: “Nas
ruas do Japão/ não há mão nem contramão/ lanterna de papel é lampião/ suicídio lá se
chama harakiri/ Aquilo é um verdadeiro abacaxi.”
O desenvolvimento da Guerra Fria, a partir dos anos 1950, com a polarização das
forças políticas internacionais entre Estados Unidos e União Soviética repercute, por
exemplo, na corrida espacial enfocada, em suas diversas etapas, na produção discursiva
da canção, na década de 1960. À velocidade dos foguetes é associada a rapidez da
transformação dos costumes:
22
“Adolfito bigodinho era um toureiro/ que dizia que vencia o mundo inteiro/ [...] /E agora o Adolfito
caracoles/ Soprado pelos foles/ perdeu o seu cartaz”
23
“Que passo é esse, Adolfo/ que dói a sola do pé/ [...] Mas a dança não pegou, ô/ Ô Adolfo,a cigana te
enganou/ ô ô ô/ sai pra outra que a turma não gostou”
47
MENINA DE HOJE (Manuel Gilberto, 1960)
Menina de hoje não quer fantasia
só vai à escola pra fazer folia
a vida pra ela é sempre carnaval
e ainda acha que isso é muito natural
de calça comprida, cigarro e boné
já fez seu programa, vou dizer o que é
dar o braço ao seu playboy, entrar no Lunik
ir lá detrás da lua fazer piquenique
AMOR DE HOJE (Carnera, 1962)
Amor de hoje,
Amor espacial...
Passa veloz como um foguete,
É amor de carnaval...
Primeiro dia, aperto de mão...
Segundo dia, abraço apertado
Terceiro dia, um beijo no escuro...
Quarta-feira, tudo terminado...
(Tá, como é que é!)
A diversidade de cenografias revela a habilidade dos compositores para articular, no
ato criativo, a sua voz ao contexto social em que está situada a sua obra. Na cena
enunciativa da canção, torna-se possível, então, o diálogo entre Yuri Gagarin e a lua, a
respeito dos atrativos do nosso Carnaval, apresentado a partir de uma topografia
validada (o Brasil, Olinda). No caso da canção de Capiba, o título já anuncia a
elaboração de uma cenografia baseada na contagem regressiva, tal como nos
lançamentos de foguete transmitidos pela televisão para o mundo inteiro. Na canção, a
contagem anuncia a preparação para o folião entrar no Frevo.
A LUA DISSE (Gildo Branco, 1962)
Gagarin subiu, subiu, subiu
Foi até ao espaço sideral
Chegou perto da lua e sorriu
Vou embora pro Brasil
Que o negócio é carnaval
A lua disse ‘não vá, demore mais
Já ouvi que lá na Terra
querem me passar pra trás’
Mas o Gagá nada ligou e deu no pé
Vou mesmo pro Brasil
Eu quero é conhecer Pelé
HINO DE CEROULA (Milton Bezerra de Alencar, 1969)
Eu vou este ano à lua
Não é privilégio
48
Foguete já tem
Eu quero ver se o carnaval de rua
Collin, Aldrin, Armstrong
Falam que vai bem
Eu quero ver se tem troça que escolha
Como em Olinda, que tem a Ceroula
Mas se tiver, para mim é legal
Passarei lá na lua todo o carnaval
5 – 4 – 3 – 2 – 1 – FREVO (Capiba, 1970)
Estão me convidando
Para eu ir dançar
Numa festa ao luar
Eu sei que nessa festa
não se dança o frevo
O que vou fazer lá?
Sair daqui não posso
Isso eu nem me atrevo
Vai começar
A contagem regressiva
Para entrar o frevo
5 – 4 – 3 – 2 – 1 – Frevo!
Esse aspecto da produção discursiva do Frevo, caracterizado pela abordagem de
assuntos do dia-a-dia, tal como a crônica nas páginas dos jornais, é observado com
maior destaque sobretudo a partir dos anos de 1950, com a abertura de um espaço
privilegiado de divulgação, a gravadora Rozenblit, instalada no Recife em 1954. Na
aproximação que fazemos entre os dois gêneros, a canção e a crônica, reiteramos a
compreensão dos gêneros do discurso tal como concebido por Brait (2005), a respeito
da posição de Bakhtin. Para a autora, os gêneros discursivos devem ser vistos em suas
finalidades comunicativas e expressivas [...] como manifestações da cultura.
Nesse sentido, não é espécie nem tampouco modalidade de composição; é
dispositivo de organização, de troca, divulgação, armazenamento,
transmissão e, sobretudo, de criação de mensagens em contextos culturais
específicos. (BRAIT 2005, p.158)
Muitos outros exemplos se incluem nessa perspectiva. A seleção do corpus de
pesquisa revelou significativo número de canções que se enquadram aí, pela variedade
de temas elaborados criativamente. Alguns compositores, como Sebastião Lopes,
revelam particular interesse e habilidade em construir canções com o material
linguístico que circulava à sua época, evidenciando a relação intergenérica definida por
Bakhtin (2000), acima. A fala espontânea surge na elaboração das canções de Sebastião
Lopes, trazendo a voz coloquial, circulante nas ruas, através de expressões e ditados
populares, que dão título a algumas de suas obras. É assim com É peia, seu doutô!
49
(Sebastião Lopes e Inaldo Vilarim, 1952), É rim! (1957), Qual é o pó? (1959), Mesmo
que queijo (1961), Está pra nós (Nelson Ferreira e Sebastião Lopes, 1962), Olha o
dedinho! (1963), entre outras.
A escuta e a análise dessas canções permitem-nos, enfim, ressaltar a dimensão
dialógica da produção discursiva do Frevo-Canção. Considerando o caráter híbrido dos
dois gêneros colocados aqui numa relação de aproximação, a partir de algumas traços
peculiares a cada um, reiteramos as considerações e Brait (2005) sobre a validade da
concepção bakhtiniana de língua, que enfatiza a emergência e a circulação dos gêneros
como fenômeno sociocultural de grande importância para a compreensão da produção
discursiva nas diversas esferas de atuação humana. Conforme a autora, “o dialogismo,
ao valorizar o estudo dos gêneros, descobriu um excelente recurso para ‘radiografar’ o
hibidrismo, a heteroglossia e a pluralidade de sistemas de signos da cultura” (p. 153). A
observação põe em destaque a emergência das vozes que se constituem socialmente
através dos gêneros, ao longo do tempo ajudando a moldar, dialogicamente, os traços
distintivos de uma dada cultura, como se verifica com o Frevo, no campo do discurso
literomusical brasileiro.
2.2. A Análise do Discurso
Nos muitos trabalhos introdutórios sobre a Análise do Discurso (AD), nos últimos
anos, seja numa perspectiva histórica, seja numa perspectiva de revisão teórica, quase
sempre se apresentam dificuldades de delimitação e categorização dos estudos
empreendidos na área. Em geral, argumenta-se que essas dificuldades decorrem do
crescimento do interesse de estudiosos no mundo inteiro, fazendo ampliar-se o escopo
da AD, cujo estatuto de inter (ou multi-) disciplinaridade, ao mesmo tempo que lhe
confere valor, pela riqueza de possibilidades de abordagens nas ciências sociais,
configura-se também como um dado complicador, pela falta de unidade apontada por
muitos.
De fato, o percurso da AD nos últimos anos tem sido marcado pela ampliação de seu
alcance analítico, com a reformulação e o refinamento de alguns de seus postulados.
Esse caminho é também definido pela abordagem de novos corpora, possibilitando a
emergência de novos diálogos – com os estudos em comunicação, ou no domínio das
manifestações culturais e artísticas, para mencionar apenas alguns.
50
Relativamente recentes, por exemplo, são as abordagens do campo de estudos do
discurso literomusical brasileiro, no qual inserimos este trabalho. De modo geral, tratase de um empreendimento de leitura que busca compreender as configurações de
sentido da canção popular, desenvolvendo-se em grande parte sobre bases teóricas
elaboradas a partir das contribuições de Dominique Maingueneau (1997, 2001, 2005,
2008, 2008a, 2008b, 2008c), eminente analista de discurso francês. Apresentamos, a
seguir, um breve resumo do percurso da AD, com ênfase na obra desse autor, a fim de
definir alguns aspectos centrais do discurso literomusical, incorporando a abordagem de
Costa (2001, 2007, 2007a, 2009), autor que se tem destacado pelo trabalho na área.
De início, é importante salientar que o contexto de surgimento da AD é marcado por
uma redefinição do enfoque estruturalista adotado na pesquisa linguística, até meados
do século XX. A partir daí, começam a se desenhar os contornos da nova área de
estudos, com o estabelecimento de algumas posições teóricas fundamentais, muito
sucintamente resumidas a seguir:
1. A AD nasce numa perspectiva de superação da dicotomia saussureana langue x
parole, com o foco das atenções voltado para a linguagem em diferentes
contextos de uso, ou seja, a linguagem concebida em sua dimensão
sociodiscursiva;
2. A AD nasce da necessidade de empreenderem-se análises linguísticas que deem
conta de sua dimensão ideológica, extrapolando os limites de uma linguística
imanente, centrada no próprio código linguístico, e superando uma visão de
língua de caráter representacionista ou enquanto mero instrumento de
comunicação. A AD funda-se, portanto, na noção de linguagem enquanto
discurso, ou seja, como um modo de produção de sentidos a partir da interação
humana, concebendo-se a língua em sua dimensão sociocultural e histórica.
Explicando as diferenças básicas entre as duas perspectivas, para aprofundar o
esclarecimento da noção de discurso, Charaudeau (2006) enfatiza:
A língua é voltada para sua própria organização [...]. Descrever a língua é,
de um modo ou de outro, descrever regras de conformidade, a serem
repertoriadas em gramáticas e dicionários. Já o discurso está sempre voltado
para outra coisa além das regras de uso da língua. Resulta da combinação
das circunstâncias em que se fala ou escreve (a identidade daquele que fala e
daquele a quem se dirige, a relação de intencionalidade que os liga e as
condições físicas da troca) com a maneira pela qual se fala. É, pois, a
imbricação das condições extradiscursivas e das realizações intradiscursivas
que produz sentido. (CHARAUDEAU 2006, p. 40)
51
Portanto, o objeto da AD não é propriamente a língua, mas a atividade de construção
de sentidos elaborada a partir das relações sociodiscursivas por ela engendradas,
necessariamente situadas numa dimensão extralinguística, o que permite chegarmos,
com Faraco (2009) à conclusão de que “de todas as disciplinas contemporâneas, é a
análise do discurso aquela da qual mais diretamente se aproximaria o projeto de uma
translinguística” (FARACO 2009, p.117), tal como desenvolvida por Bakhtin, conforme
já abordado.
Uma ideia fundamental para a compreensão dos postulados da AD é, portanto, a
superação de uma visão imanentista e representacionista de língua, assim como de uma
concepção de língua enquanto mero instrumento de comunicação, posições que
dominaram o cenário da Linguística até a metade do século XX. Sintetizando a questão,
Marcuschi (2001) lembra que
a língua é algo muito mais fundamental que um simples instrumento de
comunicação e informação e não pode ser vista apenas no seu aspecto formal.
Parece incontornável [...] a noção de língua como trabalho ou atividade e
como fenômeno sócio-histórico de modo que os sentidos são sempre
produzidos na convergência de fatores mais complexos do que uma relação
biunívoca entre linguagem e mundo ou relações formais (MARCUSCHI 2001,
p.4, grifos do autor)
2.2.1. AD Francesa
Na década de 1960, emerge a corrente que passou a ser denominada escola francesa
de Análise do Discurso, e que nasce, de acordo com Maingueneau (1997), sob a égide
do estruturalismo, numa conjuntura intelectual marcada pela reflexão sobre a
“escritura”,
que
articulava
“a
lingüística,
o
marxismo
e
a
psicanálise”
(MAINGUENEAU 1997, p.10). O autor argumenta ainda que o surgimento da AD na
França e seu desenvolvimento posterior estão vinculados a uma prática escolar, a da
“explicação de textos”, “presente sob múltiplas formas em todo o aparelho de ensino, da
escola à Universidade” (1997, p.10), estando aí uma das explicações para o sucesso da
AD naquele país.
Em linhas gerais, questiona-se uma visão idealista de sujeito, como origem
enunciadora do seu discurso. Ou seja, o sujeito é na verdade atravessado pela ideologia.
O discurso é concebido, então, como
52
uma máquina autodeterminada e fechada sobre si mesma, de tal modo que
um sujeito-estrutura determina os sujeitos como produtores de seus
discursos; os sujeitos acreditam que ‘utilizam’ seus discursos quando na
verdade são seus ‘servos’ assujeitados, seus ‘suportes’ (PÊCHEUX 1990, p.
311)
Em termos metodológicos, propõe-se a análise automática do discurso, pela qual
se busca a interpretação dos efeitos de sentido do discurso a partir da constituição de um
corpus fechado, pertencente a uma determinada formação discursiva. De início, então, a
AD se debruça, basicamente, sobre discursos doutrinários, sobretudo o discurso político
das forças atuantes na sociedade da época, recolhido em manifestos, em documentos de
partidos ou na mídia. Segundo Costa (2005), a proposta baseia-se na
construção de um dispositivo capaz de produzir a leitura automática de um
conjunto de discursos previamente selecionados e organizados segundo
critérios que garantissem homogeneidade e estabilidade em termos de
circunstâncias históricas e sociais de produção, numa palavra, em termos de
condições de produção A esse corpus convencionou-se chamar de arquivo.
(COSTA 2005, p. 17)
A noção de formação discursiva foi concebida por Foucault (em Arqueologia do
Saber, escrito em 1969) como possibilidade de descrição dos “sistemas de dispersão”
pelos quais se elabora a construção do conhecimento histórico. Uma formação
discursiva poderia ser identificada então como um conjunto de enunciados associado a
um mesmo sistema de regras historicamente determinadas, “no caso em que entre os
objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se poderia definir
uma
regularidade
(uma
ordem,
correlações,
posições
e
funcionamentos,
transformações)” (FOUCAULT 1972, p. 51)
O conceito é reformulado por Pêcheux e integrado à AD, na perspectiva teórica do
marxismo althusseriano, segundo a qual toda formação social implica uma formação
ideológica, operando nas diversas instâncias de poder e controle social do Estado, com
posições políticas e ideológicas agindo sobre os indivíduos e os assujeitando.
Maingueneau (2008a) apresenta restrições ao conceito de formação discursiva, tal como
elaborado por Foucault, sobretudo por conta da imprecisão que, segundo ele, emerge
das possibilidades de interpretação das noções de “sistema” e de “dispersão”. Ele
observa: “Essa dupla linguagem, bem condensada naquilo que pretende ser talvez um
oximoro (‘sistema de dispersão’) dá trabalho aos exegetas da obra de Foucault”
(MAINGUENEAU 2008a, p.13).
53
Para o autor, o conceito de formação discursiva é desenvolvido de forma mais clara
em Pêcheux, com grande êxito na AD, embora tenha enfrentado, a partir dos anos 80,
“mais dificuldade em encontrar o seu lugar”, à medida que se desenvolve o interesse
crescente de pesquisa sobre corpora não doutrinais. Em todo caso, a noção de formação
discursiva está mais diretamente ligada aos discursos doutrinais, e aí encontra-se o cerne
da crítica geralmente feita a essa primeira fase da AD: o fato de ter-se voltado para
discursos fechados, em textos “emanados de formações discursivas previamente
supostas como homogêneas (discurso comunista, discurso cristão etc.)” (COSTA 2005,
p. 28). Assim,
as propostas iniciais da AD estão preocupadas com os condicionamentos da
produção discursiva, o que as leva a excluir de seu campo de estudo as
produções mais espontâneas (a linguagem do cotidiano, a conversação
mundana etc.) ou mais propensas à transgressão dos limites impostos
especialmente pela língua (a literatura). Por outro lado, a preocupação
política, pressuposta na própria fundamentação marxista, leva a que o
discurso político presente quer nos manifestos ou regimentos dos partidos e
forças políticas em disputa na época ou na mídia seja o objeto preferido dos
analistas. (COSTA 2005, p. 21)
As restrições acerca do conceito de formação discursiva não invalidam a sua
importância nesta fase inicial da AD, assim como no desenvolvimento da assim
chamada segunda época. Conforme Mussalim (2001, p.118), o conceito de formação
discursiva “é o dispositivo que desencadeia o processo de transformação na concepção
do objeto de análise da Análise do Discurso”. Isso ocorre a partir da superação da noção
de “máquina discursiva”, presente na primeira fase da AD, para o empreendimento da
análise automática do discurso.
Outro conceito básico da AD é o de condições de produção, segundo o qual se define
o que pode e deve ser dito no interior de uma determinada formação discursiva.
Conforme Orlandi (2003, p. 30), as condições de produção podem ser compreendidas,
em sentido estrito, como “as circunstâncias da enunciação” ou o “contexto imediato” de
produção do discurso. Num sentido mais amplo, a autora assinala que “as condições de
produção incluem o contexto sócio-histórico, ideológico.” (ORLANDI 2003, p.30)
Charaudeau e Maingueneau (2004, p.114) esclarecem que, segundo as formulações
de Pêcheux, as condições de produção englobam as relações do sujeito no interior do
discurso, resumidas num quadro em que ele apresenta o que denomina de “jogo de
imagens de um discurso” (PÊCHEUX 1969, apud MUSSALIM 2001, p.136). A
respeito desse quadro, Charaudeau e Maingueneau (2004, p.114) o definem como “um
dispositivo em que as situações objetivas do locutor e de seu interlocutor são
54
desdobradas em representações imaginárias dos lugares que um atribui ao outro”,
observando que “as relações entre os lugares não constituem comportamentos
individuais, não remetem nem à parole saussuriana nem à psicologia, mas dependem da
estrutura das formações sociais”. Por outras palavras, considera-se que o sujeito não é
livre para dizer o que quer, e que as opções do que ele tem para dizer são determinadas
“pelo lugar que ocupa no interior da formação ideológica à qual está submetido”
(MUSSALIM 2001, p. 137)
2.2.2. Segunda e Terceira Épocas
Como assinalamos acima, a noção de formação discursiva, à qual se relaciona a de
condições de produção, desempenha papel central na passagem da primeira para a
segunda fase da AD. Em termos metodológicos, a principal mudança está em que a AD
não se volta mais apenas aos discursos fechados, mas às formações discursivas
concebidas “numa relação de confronto ou aliança” (MUSSALIM 2001, p. 119). O
papel do analista do discurso é, portanto, descrever os sistemas de dispersão que
caracterizam as formações discursivas, conforme a definição de Foucault. De acordo
com Costa (2005, p.25), nessa fase da AD os empreendimentos analíticos se voltam à
compreensão das relações “entre formações discursivas ou entre uma formação
discursiva e o interdiscurso, ou ainda, entre uma formação discursiva e o ‘préconstruído’ ou ‘memória discursiva’”, daí porque o autor referir-se a esse momento da
AD como o momento em que “se instaura o primado da relação” (COSTA 2005, p.25)
Entre as contribuições de Maingueneau para a AD, sobretudo a partir dos anos 1980,
inclui-se precisamente o questionamento sobre a articulação entre os conceitos de
formação discursiva e de condições de produção, categorias que “são frequentemente
vistas segundo a fórmula conjunto/subconjunto, como um exterior que se opõe a um
interior, ou um anterior a um posterior.” (COSTA 2001, p. 27). Para superar essa
concepção dualista, segundo a qual a produção discursiva, no interior de uma dada
formação, estaria condicionada às coerções impostas pelo contexto de produção, a
proposta de Maingueneau concebe a formação discursiva como indissociável das
comunidades que a produzem e a difundem. O autor propõe então o conceito de prática
discursiva para integrar essas duas vertentes do discurso, ou seja, “para designar essa
55
reversibilidade essencial entre as duas faces, social e textual, do discurso.”
(MAINGUENEAU 1997, p.56).
Trabalhando sobre a noção de discursos constituintes, definidos como aqueles
discursos que “dão sentido aos atos da coletividade” e são fundados a partir de “um
corpo de enunciadores consagrados” (os exemplos são o discurso religioso, o filosófico,
o literário, o científico), Maingueneau (2008a, pp. 37-54) desenvolve os conceitos de
posicionamento e de comunidade discursiva, imbricados na configuração da prática
discursiva.
A ideia de posicionamento é então definida como “a construção de uma identidade
enunciativa que é tanto ‘tomada de posição’ como recorte de um território cujas
fronteiras devem ser incessantemente redefinidas.” (MAINGUENEAU 2006, p.151) O
autor esclarece que o posicionamento está indissociavelmente ligado a “grupos que os
elaboram e os fazem circulam, gerindo-os”. E prossegue:
o posicionamento supõe a existência de redes institucionais específicas, de
comunidades discursivas que partilham um conjunto de ritos e normas. [...]
A forma tomada por uma ‘comunidade discursiva’, que não existe senão na
e pela enunciação de textos,às vezes, varia em função do tipo de discurso
constituinte em questão e de cada posicionamento. Este último não é
somente um conjunto de textos, um corpus, mas uma imbricação entre um
modo de organização social e um modo de existência de textos.
(MAINGUENEAU 2008a, p.44)
As noções de posicionamento e comunidade discursiva são fundamentais para o
desenvolvimento do nosso trabalho. Conforme veremos adiante, são categorias básicas
para o estudo do discurso literomusical brasileiro. Para uma melhor compreensão da
identidade enunciativa do Frevo no discurso literomusical brasileiro, tomamos a noção
de posicionamento articulada à categoria de gênero do discurso, com ênfase nos
aspectos sociocomunicativos de sua organização, no âmbito da vida cultural e social,
conforme abordamos acima. Salientamos, conforme Charaudeau e Maingueneau (2004,
p.393), que “o posicionamento não diz respeito apenas aos ‘conteúdos’, mas às diversas
dimensões do discurso: ele se manifesta também na escolha destes ou daqueles gêneros
do discurso, no modo de citar etc”. O estudo do Frevo no discurso literomusical
brasileiro enfoca, portanto, uma prática discursiva empreendida no âmbito de uma
comunidade que se caracteriza pela produção de sentidos marcada em diversas esferas
da produção cultural no estado de Pernambuco, com destaque para o trabalho
desenvolvido sobre o gênero canção, nosso objeto de estudo.
56
Tomando as considerações de Pêcheux (1997), no balanço histórico da AD, ao longo
de “três épocas”, Costa (2005) caracteriza a terceira como a fase de desenvolvimento do
que ele denomina “primado do outro”. A denominação busca ressaltar uma nova
vertente da AD, ainda bastante atual, marcada pela predominância da noção
fundamental de heterogeneidade discursiva. Trata-se de uma perspectiva que nasce a
partir das críticas comumente feitas às fases anteriores, em que se procedem a análises
de caráter homogeneizador, baseadas na constituição de corpus discursivos fechados, na
identificação de “sequências organizadas em torno de unidades lexicais consideradas
‘chaves’ ou ‘pivôs’” (BRANDÃO 2004, p. 88). Segundo o próprio Pêcheux, é nesta
fase que ocorre a definitiva “desconstrução das maquinarias discursivas”: “o primado
teórico do outro sobre o mesmo se acentua empurrando até o limite a crise da noção de
máquina discursiva estrutural” (PÊCHEUX 1990, p. 314)
A terceira fase da AD é então o momento em que se afirma o primado do
interdiscurso, que define uma perspectiva teórica segundo a qual
os diversos discursos que atravessam uma FD [Formação Discursiva] não se
constituem independentemente uns dos outros para serem, em seguida,
postos em ação, mas se formam de maneira regulada no interior de um
interdiscurso. Será a relação interdiscursiva, portanto, que estruturará a
identidade das FDs em questão. (MUSSALIM 2001, p.120)
A afirmação do primado do interdiscurso sobre o discurso configura uma das teses
fundamentais da AD francófona, constituída a partir da influência de orientações que
vêm enriquecer os estudos sobre o discurso, redirecionando o enfoque sobre a produção
discursiva em diferentes corpora. Dentre essas orientações, destaca-se com especial
relevância a teoria dialógica proposta pelo Círculo de Bakhtin.
A identidade de um discurso é definida, então, com base na interdiscursividade, que
diz respeito à presença do “Outro”. Conforme as formulações teóricas elaboradas por
Jaqueline Authier-Revuz (1990), essa presença é identificada através de marcas
explícitas (a negação, o discurso relatado) ou não, configurando, respectivamente, o
conceito de heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva do discurso. A
autora argumenta acerca da “heterogeneidade mostrada como formas linguísticas de
representação de diferentes modos de negociação do sujeito falante com a
heterogeneidade constitutiva do seu discurso” (AUTHIER-REVUZ 1990, p.26) e se
refere ainda, entre as formas da heterogeneidade mostrada o “discurso direto, aspas,
57
formas de retoque ou de glosa, discurso indireto livre, ironia” (AUTHIER-REVUZ
1990, p.25).
Em Gênese dos Discursos (publicado originalmente em 1984, com edição brasileira
de 2008), algumas importantes contribuições de Maingueneau para a AD são
desenvolvidas, numa perspectiva metodológica de trabalho sobre um corpus que fugia à
regra como objeto da AD24. Dentre as proposições mais relevantes apresentadas pelo
autor, a primeira diz respeito exatamente à prevalência do interdiscurso: “o interdiscurso
tem precedência sobre o discurso. [...] a unidade de análise pertinente não é o discurso,
mas um espaço de trocas entre vários discursos convenientemente escolhidos.
(MAIGUNEAU 2008, p.20)”
A seguir, o autor propõe que “o discurso não deve ser pensado somente como um
conjunto de textos, mas como uma prática discursiva” (MAINGUENEAU 2008, p.22)
que é ao mesmo tempo concebida como uma “prática intersemiótica que integra
produções pertencentes a outros domínios semióticos (pictórico, musical etc.)”
(MAINGUENEAU 2008, p. 23)
Essas proposições são particularmente interessantes para o desenvolvimento de nosso
trabalho, tendo em vista dois dos principais traços constitutivos do discurso
literomusical, que são a multiplicidade de vozes e o caráter intersemiótico da produção
artística da canção e de outros gêneros produzidos pela comunidade discursiva do Frevo
– encartes, capas de discos, comentários, críticas etc. Acerca dessas particularidades do
discurso literomusical, Costa (2001) assinala que
Diferentemente de outros campos discursivos, como é o caso da religião e da
ciência, onde grupos, correntes, tendências etc. se definem, se organizam e se
estabilizam mediante estatutos e ideologias razoavelmente bem definidos, o
discurso lítero-musical brasileiro aparece dilacerado por uma
heterogeneidade complexa e inconsistente. (COSTA 2001, p. 169)
Em sua tese de doutoramento, o autor enfoca a interdiscursividade entre o discurso
literomusical brasileiro e os discursos literário, científico e religioso, definindo a Música
Popular Brasileira como lugar de atuação e de interação entre diversos posicionamentos,
que “disputam lugares sobre o campo discursivo, procurando orientá-lo, defini-lo, nele
marcar posições ou mesmo questionar sua existência ou apagar suas fronteiras.”
(COSTA 2001, p. 58)
24
O objeto de pesquisa de Maingueneau é o discurso religioso, especificamente o espaço discursivo
humanismo devoto/jansenismo
58
Para o nosso propósito de identificar os posicionamentos do Frevo, a análise da
organização linguístico-discursiva das canções que compõem o nosso corpus será
empreendida numa perspectiva interdiscursiva, o que pressupõe a compreensão das
configurações de sentido a partir das relações estabelecidas entre as canções em foco e
outros dizeres, demarcadores de outros posicionamentos no campo do discurso
literomusical brasileiro. É assim que, ao longo da análise, a identidade discursiva do
Frevo será posta em relação, por exemplo, ao posicionamento do samba e da bossa
nova.
É ainda em Gênese dos Discursos (2008) que Maingueneau propõe uma maior
especificação do conceito de interdiscurso, reformulando-o nos termos de uma tríade:
Universo discursivo: “conjunto de formações discursivas de todos os tipos que
interagem numa conjuntura dada.” É uma noção de pouca utilidade para o analista, dada
a sua amplitude, mas serve então para definir uma extensão máxima, “o horizonte a
partir do qual serão construídos domínios suscetíveis de ser estudados, os ‘campos
discursivos’” (MAINGUENEAU 2008, p.35).
Campos discursivos: “conjunto de formações discursivas que se encontram em
concorrência, delimitam-se reciprocamente em uma região determinada do universo
discursivo”. (MAINGUENEAU 2008, p.35) O autor observa que a delimitação desses
campos não se dá de forma evidente: “não basta percorrer a história das ideias para vêlos oferecer-se por si mesmos à apreensão do analista”. Assim, eles são definidos a
partir do enfoque analítico da pesquisa, das escolhas feitas e das hipóteses levantadas.
Costa (2005) esclarece que os campos discursivos incluiriam o político, o pedagógico, o
filosófico etc. “ou subconjuntos desses, que comporiam, dentre desses campos maiores,
uma configuração relativamente autônoma” (COSTA 2005, p.37). O discurso
literomusical pode ser incluído aí como exemplo, quando, no empreendimento da
análise, articula-se com o discurso histórico, midiático etc. Essa articulação definiria,
assim, a emergência de Espaços discursivos, ou seja, “subconjuntos de formações
discursivas que o analista, diante de seu propósito, julga relevante pôr em relação”,a
partir das hipóteses “fundadas sobre um conhecimento dos textos e um saber histórico”
(MAINGUENEAU 2008, p. 35)
Outra importante contribuição teórica de Maingueneau para os estudos do discurso é
o que ele chama de “semântica global”, uma proposta de que visa a integrar os
diferentes planos do discurso, ao invés de privilegiar apenas um deles – como os
modelos de análise lexicológica, que dá como exemplo de empreendimento analítico
59
que privilegia, nesse caso, o plano do vocabulário. Salienta o autor que a identidade de
um discurso integra múltiplas dimensões textuais, e não é “somente uma questão de
vocabulário ou de sentenças”. (MAINGUENEAU 2008, p.18) Sua crítica dirige-se a
uma concepção “estática” e “arquitetural” do discurso, própria de algumas abordagens
estruturalistas que o concebiam como um “sistema de ideias” ou como “uma totalidade
estratificada que poderíamos decompor mecanicamente” (MAINGUENEAU 2008,
p.19)
No capítulo de Gênese dos Discursos dedicado ao desenvolvimento da proposta
(intitulado Uma Semântica Global), Maingueneau ressalta que a definição dos “planos”
do discurso não se baseia em nenhuma hierarquização das categorias propostas, e
também “não é objeto de uma elaboração teórica suficiente para pretender definir um
modelo de textualidade”. A única finalidade da lista de planos elaborada pelo autor é a
de “ilustrar a variedade das dimensões abarcadas pela perspectiva de uma semântica
global” (MAINGUENEAU 2008, p.77).
Dentre esses planos do discurso, destacam-se os seguintes:
- A intertextualidade, que é propriedade constitutiva de qualquer texto, entendendo-se
a produção textual como um processo elaborado na base de uma dinâmica intertextual,
ou seja, todo texto é, de fato, um intertexto, composto por uma teia de referências
anteriores ou atuais, muitas vezes irrecuperáveis. A intertextualidade é analisada por
Costa (2001) como uma marca definidora do caráter constituinte do discurso
literomusical brasileiro, a partir da menção elogiosa ou da citação direta de “trechos de
canções famosas, de autoria ou interpretação marcante de arquienunciadores, citadas,
parafraseadas ou aludidas” (COSTA 2001, p. 339), que o autor exemplifica com
citações como a de Ronda (Paulo Vanzolini, 1953) na canção Sampa (Caetano Veloso,
1978), nos respectivos versos: “cena de sangue num bar da Avenida São João” e “Que
só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João”; ou ainda na canção Jack Sou
Brasileiro (Lenine, 1999), em que são inseridos trechos da Cantiga do Sapo (Jackson do
Pandeiro e Buco do Pandeiro), O Canto da Ema (Ayres Vianna e João do Vale) e
Chiclete com Banana (Jackson do Pandeiro e Gordurinha).
Em nosso corpus, a canção Frevotheque (Inaldo Vilarim e Duda) é um interessante
exemplo de referência intertextual, que evidencia um aspecto do posicionamento do
Frevo em relação a outras formas musicais, para enfatizar a importância dele no cenário
da música popular. Não se trata propriamente de uma menção elogiosa, como se
60
depreende da negativa observada na letra (“eu não quero discotheque”). A obra foi
gravada em 1979, no auge do sucesso da disco music no Brasil:
FREVOTHEQUE (Inaldo Vilarim / Duda, 1979)
Vou tomar o meu pileque
Eu não quero discotheque
O meu caso é carnaval
E vou dar uma de moleque
Vou fazer o passo
E mostrar que sou o tal
E nesse frevo pulo, bebo,
E com prazer
Estou nessa com você
Há citações musicais diretas da canção Dancing Days (Nelson Mota e Ruban
Sabino), na introdução e no refrão, reproduzindo frases melódicas daquela obra, com
utilização do recurso sonoro da sirene para estabelecer uma cenografia de pista de
dança.
- O vocabulário: o procedimento mais pertinente à análise discursiva do vocabulário é a
observação das “explorações semânticas contraditórias das mesmas unidades lexicais
pelos diversos discursos” (MAINGUENEAU 2008, p. 80), já que não faz sentido falar
de um vocabulário específico desse ou daquele discurso, “como se um discurso
possuísse um léxico que lhe fosse próprio.” O autor dá como exemplo o lexema doçura,
definido como uma palavra-chave do discurso humanista devoto, por ele pesquisado.
Ele salienta, ainda, que, “além de seu estrito valor semântico, as unidades lexicais
tendem a adquirir o estatuto de signos de pertencimento. Entre vários termos a priori
equivalentes, os enunciadores serão levados a utilizar aqueles que marcam sua posição
no campo discursivo”. Como exemplo, cita a voga extraordinária da palavra estrutura
(quando outras, como sistema, organização, totalidade, plano teriam dito a mesma
coisa) na crítica literária dos anos 1960. Enfocaremos, em nossa análise, o
desenvolvimento do plano do vocabulário para a construção da identidade discursiva do
Frevo, enfocando o processo de definição do nome do gênero musical, marcado por
uma complexidade maior, se comparado ao de outros gêneros da música brasileira;
- Os temas: Maingueneau adverte que a noção de tema de um discurso pode ser
concebida em variados níveis (“microtemas de uma frase, de um parágrafo...;
macrotemas de uma obra inteira, de várias obras”), mas prefere optar por uma definição
mais ampla, tratando de tema como “aquilo de que um discurso trata, em qualquer nível
61
que seja” (2008, p.81). Ele salienta que definir uma hierarquia dos temas e um
determinado discurso não é de grande interesse, bastando perceber que os temas mais
importantes podem ser observados em todos os pontos do texto. Assim como no caso do
vocabulário, o importante não é exatamente o tema em si, mas o tratamento semântico a
ele dado na análise da construção de sentidos;
- A dêixis enunciativa: refere-se à delimitação espaço-temporal de todo ato de
enunciação. Essa dupla orientação “delimita a cena e a cronologia que o discurso
constrói para autorizar sua própria enunciação”, mas não se trata “das datas, dos locais
em que foram produzidos os enunciados efetivos, tanto mais que o estatuto textual dos
enunciadores não coincide com a realidade biográfica dos autores” (MAINGUENEAU
2008, p.89). Em Novas Tendências em Análise do Discurso (1987, publicado no Brasil
em 1997), o autor fala em dêixis discursiva no quadro de uma cena enunciativa, em que
se instauram, na enunciação, o locutor e o destinatário discursivos, a cronografia e a
topografia. Como exemplo, ele cita sua análise de manuais escolares do período da
Terceira República Francesa25, em que o termo República recobre os três lugares:
a República é, a um só tempo, o locutor discursivo (é ela que se dirige às
crianças), a topografia (a República delimita o território da pátria) e a
cronografia (a República é a última fase da história da França, de onde este
discurso é enunciado). Apenas o destinatário, o aluno, parece escapar deste
termo; mas é unicamente o afastamento que faz com que tudo funcione: o
discurso escolar tem exatamente por função integrar estes alunos à
República, sob a forma do ‘cidadão’ (MAINGUENEAU 1997, p. 41);
- O estatuto do enunciador e do destinatário: para legitimar o seu dizer, o enunciador
deve se conferir – e conferir a seu destinatário – certo status, que em geral está
vinculado a uma posição institucional. No trabalho sobre o discurso humanista devoto,
por exemplo, Maingueneau lembra que “o enunciador se considera integrado a uma
‘Ordem’: é membro de uma comunidade religiosa reconhecida, bispos, mestre-escola...e
dirige-se a destinatários também inscritos em ‘Ordens’ socialmente bem caracterizadas”
(MAINGUENEAU 2008, p.87). Essa dimensão institucional estabelece uma relação do
enunciador e do destinatário com as fontes de um saber. Tal relação é evidenciada, por
exemplo, no caso dos discursos constituintes.
25
MAINGUENEAU, D. 1979. Lês livres d’école de la Republique, 1870-1914 – Discours et idéologie,
Paris, Le Sycomore.
62
Os discursos constituintes cumprem, na produção simbólica de uma sociedade, a
função de archéion26, ou seja, a função de registrar “um corpo de enunciadores
consagrados e uma gestão da memória” (MAINGUENEAU 2008a, p. 38). Além disso,
eles são caracterizados pelo fato de “não reconhecer outra autoridade além da sua
própria, de não admitir quaisquer outros discursos acima deles”. São discursos que “dão
sentido aos atos da coletividade” e são, ao mesmo tempo “auto e heteroconstituintes”;
portanto, “só um discurso que se constitui tematizando sua própria constituição pode
desempenhar um papel constituinte para outros discursos.” (MAINGUENEAU 2008a,
pp. 37-38 ). Propondo a tese de que o discurso literomusical brasileiro pode ser
considerado como discurso constituinte - em processo de construção -, Costa (2001)
assinala que
os enunciados de um discurso constituinte são inscrições em uma rede
institucional que só existe na e pela enunciação de textos. Inscrições que
supõem necessariamente um caráter exemplar: seguem exemplos e dão
exemplo. Assim, inscrever-se em uma comunidade discursiva implica, por
um lado, associar-se a modelos de posicionamento e, em última instância, à
Fonte que funda o discurso constituinte: a Beleza, a Verdade, a Justiça... Por
outro lado, inscrever-se é, ao mesmo tempo, abrir-se à possibilidade de
reatualização, se dar a citar, criando condições de possibilidade de ser
citado. (COSTA 2001, p. 72)
O autor argumenta ainda que o discurso literomusical se articula por meio de “uma
rede de posicionamentos mais ou menos intrincada” (COSTA 2001, p. 333), que é outra
característica dos discursos constituintes. Além da própria canção, essa rede inclui a
produção de outros gêneros, que configuram o que o autor denomina “discursos
secundários (comentários, crítica, obras não-cancionistas de cantores ou compositores)”
(COSTA 2001, p. 336)27
- O modo de enunciação: além de vincular-se a uma posição institucional e de
relacionar-se a fontes de saber, o discurso é também uma certa maneira de dizer - ou um
modo de enunciação. Este é o plano sobre o qual Maingueneau elabora a noção de ethos
discursivo, desenvolvida ao longo de vários momentos, em sua obra, e articulada à
noção de cena enunciativa, através da qual se definem os posicionamentos em
determinado campo discursivo. Trata-se de um conjunto de conceitos de particular
interesse para o desenvolvimento do nosso trabalho, e que por essa razão serão
retomados adiante.
26
Termo grego, étimo do latino archivum, ligado a arché, fonte, princípio, e a partir daí comando, poder.
“O archéion é a sede da autoridade; por exemplo, um palácio, um corpo de magistrados, mas também os
arquivos públicos.” (CHARAUDEAU e MAINGUENEAU 2004, p. 126)
27
Cf. COSTA 2001 (pp. 333-473). Música Popular Brasileira: discurso constituinte? (cap. 4).
63
De início, ressaltamos que o ethos discursivo extrapola os limites de um quadro
retórico, de base aristotélica, caracterizado pela persuasão por meios argumentativos,
com a construção de uma imagem positiva do orador perante um auditório. A noção de
ethos discursivo integra um tom, um caráter e uma corporalidade. Na verdade, essa ideia
de que todo discurso está associado a uma determinada “voz” já era, conforme
Mussalim (2008)
uma dimensão bem conhecida da retórica antiga, que entendia por ethe as
propriedades que os oradores se conferiam implicitamente, não pelo que
diziam de si mesmos, mas pela aparência que lhes conferia o próprio modo
de enunciarem seus discursos: o ritmo, a entonação, a escolha das palavras e
dos argumentos revelavam determinadas características desses oradores.
(MUSSALIM 2008, p.71)
Maingueneau retoma a noção de ethos retórico, mas não a limita às manifestações da
oralidade, estendendo-a também à linguagem escrita. Por isso, prefere falar em “tom”
para referir essa “vocalidade” presente em qualquer texto. Para ele, “o termo ‘tom’ tem
a vantagem de valer tanto para o escrito quanto para o oral”. (MAINGUENEAU 2008a,
p. 64). Além disso, sua concepção de ethos relaciona o discurso a uma fonte
enunciadora que confere autoridade ao que é dito, e que desempenha o papel de fiador,
investido de um caráter (conjunto de traços psicológicos que o leitor-ouvinte atribui ao
enunciador, pelo seu modo de dizer) e uma corporalidade (representação do corpo físico
– do enunciador e, indiretamente, do enunciatário - associada à compleição, a um modo
de vestir-se e de mover-se no espaço social).
2.2.3. Prática Discursiva
No debate sobre os caminhos da AD, hoje, é evidente o reconhecimento da
pluralidade de enfoques que a define, refletindo o contexto de redução das fronteiras
teóricas entre os diversos campos de saber nas ciências humanas e revelando a
popularidade que a disciplina alcançou, por exemplo, no Brasil. Quanto aos objetos de
estudo da AD, Charaudeau e Mainguenau (2004) atestam que
Os corpora da análise do discurso tornaram-se progressivamente
diversificados. Assistimos a uma descompartimentalização generalizada das
pesquisas. Isso se deve à abertura de um diálogo entre as diferentes
disciplinas que trabalham com o discurso e entre as diversas correntes de
análise do discurso. (CHARAUDEAU e MANIGUENEAU 2004, p. 45)
As contribuições teóricas de Maingueneau desempenham aí um papel importante,
sobretudo com a compreensão do discurso enquanto prática discursiva, a partir de uma
64
articulação fundamental entre os discursos e o funcionamento de grupos que gerem
esses discursos. A sua proposta é “articular o discurso e instituições através de um
sistema de restrições semânticas comuns” (MAINGUENEAU 2008, p. 121).
Conforme já assinalamos, o discurso em Maingueneau é concebido como uma prática
discursiva de caráter intersemiótico, integrando diferentes domínios que, em geral, estão
submetidos às mesmas restrições que subjazem, por exemplo, às noções de escola ou de
movimento – como no caso da “escola romântica em pintura, e música, em arquitetura,
assim como em literatura...” (MAINGUENEAU 2008, p. 138). De modo sucinto, ele
afirma que seu propósito é não restringir exclusivamente ao domínio textual, mas
“definir a prática discursiva como a unidade de análise pertinente, que pode integrar
domínios
semióticos
variados:
enunciados,
quadros,
obras
musicais...”
(MAINGUENEAU 2008, p.139). Na verdade, esse tipo de concepção integradora não é
algo novo. O próprio Maingueneau apresenta como exemplo anterior as pesquisas de
Erwin Panofsky28 sobre as relações entre a arquitetura gótica e o pensamento
escolástico.
Na história recente da música popular brasileira, a articulação entre discurso e
instituições pode ser encontrada, por exemplo, a partir dos anos de 1960, com a criação
do CPC (Centro Popular de Cultura), cujo embrião foi o grupo de teatro Arena, de São
Paulo, com forte ligação com o Partido Comunista Brasileiro. Vale salientar, ainda,
como influência para a criação do CPC, a atuação do MCP (Movimento de Cultura
Popular), desenvolvido no Recife durante a gestão do prefeito Miguel Arraes, com a
participação de renomados intelectuais e artistas29.
A partir da chegada do Arena no Rio de Janeiro, para uma bem sucedida temporada
de um ano e meio, o grupo passa a utilizar as dependências da UNE (União Nacional
dos Estudantes). A partir de 1962, o sucesso do CPC espalha-se pelo Brasil inteiro
através da Une Volante, em que
uma comitiva de cerca de 25 dirigentes da entidade e integrantes do CPC
percorreu os principais centros universitários do país [...] levando adiante
suas propostas de intervenção dos estudantes na política universitária e na
política nacional, em busca das reformas de base, no processo da revolução
brasileira (RIDENTI 2000, p. 108)
28
PANOFSKY, E. Gothic Architecture and Scholasticis. Latrobe: The Archabbey Press, 1951.
Paulo Freire, Abelardo da Hora, Francisco Brennand, Ariano Suassuna, Hermilo Borba Filho, José
Cláudio, Luis Mendonça, dentre outros
29
65
Com a proposta de utilizar as diversas manifestações artísticas em sua tarefa de
conscientização, o CPC tinha atuação destacada no teatro, mas a música sem dúvida
exercia papel fundamental. Sobre esse papel, Ridenti (2000) transcreve depoimento de
Aquiles Reis, músico integrante do conjunto musical MPB-4 (fundado em Niterói, Rio
de Janeiro, em 1963, com o nome de Quarteto do CPC, tendo mudado de nome após o
golpe militar de 1964): “A música era um instrumento daquilo que eu acreditava, que
era conscientizar as pessoas através da arte. Tentar modificar a cabeça das pessoas [...]
através dessa atuação com a música” (RIDENTI 2000, p.112)
Em 1963, é lançado o disco compacto O Povo Canta, cuja vendagem ajudaria a
angariar fundos para a construção do Teatro do CPC da UNE. O disco, com canções de
Carlos Lyra e outros autores30, seria proibido após o golpe, quando os militares
atacaram a sede da UNE e incendiaram o teatro.
Uma análise das práticas discursivas integradas a diferentes domínios semióticos, ao
longo do desenvolvimento do discurso literomusical brasileiro, revelará, ainda, uma
produção artística de indiscutível importância para a nossa cultura, em diferentes
momentos históricos. Sant’anna (1986), por exemplo, ressalta a aproximação de
compositores da bossa nova com o ideário da esquerda e sua incursão pela canção de
protesto – caso do próprio Carlos Lyra, que também trabalhou para o cinema,
compondo trilhas sonoras de filmes como Couro de Gato, dirigido por Joaquim Pedro
de Andrade, e Gimba, de Gianfrancesco Guarnieiri, dirigido por Flávio Rangel.
Sant’anna continua:
Esse inter-relacionamento da música com outros gêneros artísticos continua
com Sérgio Ricardo, também provindo da Bossa Nova e que agora faz a
música da peça O Coronel de Macambira, de Joaquim Cardozo, e dos filmes
Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha e O Auto da
Compadecida [...] de Ariano Suassuna. Nessa linha está Geraldo Vandré
compondo a partitura de A Hora e a Vez de Augusto Matraga, basedo na
novela de João Guimarães Rosa. (SANT’ANNA 1986, p.227)
Importante ressaltar, ainda a esse respeito, o movimento Tropicalista, cujos
principais representantes são Caetano Veloso e Gilberto Gil, e o movimento Armorial,
encabeçado por Ariano Suassuna, no Recife, ambos caracterizados pelas interlocuções
entre música, literatura, teatro e artes plásticas, embora com propostas estéticas
30
O repertório do disco é este: 1 - O Subdesenvolvido (Carlos Lyra / Francisco de Assis); 2 - João da
Silva (Billy Blanco); 3 - Cancão do Trilhaozinho (Carlos Lyra / Francisco de Assis); 4 - Grileiro Vem
(Rafael de Carvalho); 5 - Zé da Silva (Geny Marcondes / Augusto Boal)
66
completamente distintas, que são analisadas por Costa (2007) na perspectiva teórica
oferecida por Maingueneau31.
No caso do Frevo, especificamente, ainda há muito a se explorar por este caminho, e
aqui não objetivamos cumprir senão uma ínfima parte desta tarefa, que não é pequena a saber, o empreendimento de um esforço interpretativo sobre sua elaboração
discursiva, articulada a diferentes manifestações simbólicas da arte – da literatura e da
dança, por exemplo, como veremos adiante.
Para isso, retomamos a seguir alguns dos conceitos apresentados por Maingueneau, e
desenvolvidos em diversas pesquisas recentes – na análise do discurso político,
jornalístico, literário, por exemplo – dada a sua relevância para o nosso trabalho. Vale
salientar que essas categorias - posicionamento, comunidade discursiva e ethos
discursivo - se desenvolvem articulando-se a outras, igualmente importantes para os
estudos discursivos – a noção de gêneros, por exemplo, concebida no quadro da teoria
dialógica do Círculo de Bakhtin, e também a noção de investimento, desenvolvida pelo
próprio Maingueneau. Igualmente importante é o conceito de cena enunciativa, que será
empregada na análise das canções que compõem o nosso corpus de pesquisa.
2.2.4. Posicionamento
A noção de posicionamento aparece em O Contexto da Obra Literária, em que
Maingueneau apresenta restrições a algumas abordagens que “tentaram relacionar a
obra literária com a configuração histórica da qual ela emerge” (MAINGUENEAU
2001, p.1), a saber, a filologia no século XIX, o marxismo e o estruturalismo.
Tais restrições incidem sobre a complexa questão do contexto de produção da obra
literária. Para o empreendimento filológico, ao qual a história literária é estreitamente
vinculada – Maingueneau lembra que é pelo menos desde o século III a.C., com os
gramáticos alexandrinos, que se reflete sobre a relação entre um texto literário e o
contexto histórico no qual ele surgiu – importa recuperar no texto o “espírito e os
costumes da sociedade da qual pretensamente era a ‘expressão’” (MAINGUENEAU
31
Cf. COSTA, Nelson Barros da (2007) Armorialistas X tropicalistas: elementos de uma
interincompreensão? Em COSTA, N.B da. O Charme dessa nação – música popular, discurso e
sociedade brasileira. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora.
67
2001, p.2). O texto é encarado então como um documento através do qual se busca
recuperar um momento histórico, caracterizando-se o seu autor como representativo de
sua época. Em síntese, o problema aí é que
com muita freqüência, a vontade de restabelecer o texto impede a indagação
das próprias condições de possibilidade da enunciação literária, do
surgimento enigmático de uma obra num determinado local e num
determinado momento (MAINGUENEAU 2001, p.6)
Sobre a crítica marxista, o autor aponta como problema a falta de uma preocupação
maior com o funcionamento do texto, já que o foco incide sobre a questão da obra
literária como reflexo da luta de classes. Sobre a questão dos gêneros, por exemplo,
Maingueneau pondera que, na abordagem marxista eles “ocupam decerto um lugar
importante, mas em função do tipo de ‘reflexo’ da sociedade que implicam, não
enquanto instituições da comunicação literária” (MAINGUENEAU 2001, p.8)
Por sua vez, o estruturalismo apresentaria uma dificuldade quanto à sua visão
imanentista da obra literária, referida pelo termo “clausura” e por outros que
Mainguneau assinala como “metáforas mecânicas ou geométricas” que são trazidas para
o primeiro plano na análise estrutural – por exemplo, “funcionamento”, “isomorfismos”,
“rede”, níveis” etc. (MAINGUNEAU 2001, p.13). Para o autor, o problema do contexto
é tido como secundário, já que, “antes de relacionar a obra com um contexto, deve-se
compreender seu ‘funcionamento’” (p.14). Há, entretanto, pontos positivos no
estruturalismo, que são reconhecidos por Maingueneau. Ele afirma que, ao dissociar
“‘história literária’ e ‘estilística’, contexto e texto”, o estruturalismo “preparou as
condições de uma renovação” já que, “diferentemente da maioria das abordagens
anteriores dos textos literários, ele indagou a natureza e o modo de organização dos
textos” (MAINGUENEAU 2001, p. 15)
A proposta geral de Maingueneau baseia-se, então, no estudo da literatura numa
perspectiva enunciativa, que incorpora contribuições de correntes diversas cujo ponto
comum “é concentrar sua atenção na inscrição sócio-histórica das obras através de uma
reflexão sobre a comunicação literária” (p.15). Aí se incluem as correntes da
pragmática, da análise do discurso, da retórica, além dos trabalhos que reivindicam
M.Bakhtin, dentre outras perspectivas que “impuseram uma nova concepção do fato
literário, a de um ato de comunicação no qual o dito e o dizer, o texto e seu contexto são
indissociáveis.” (MAINGUENEAU 2001, p.IX)
68
Como se percebe, sua proposta extrapola tanto uma visão representacionista quanto
as concepções imanentistas que marcaram o estudo literário, sobretudo ao longo do
século XX. A literatura é concebida como forma de ação, elaborada a partir mesmo de
sua enunciação. Quanto a isso, ele esclarece:
não se conceberá a obra como uma representação, um arranjo de ‘conteúdos’
que permitiria ‘exprimir’ de maneira mais ou menos desviada ideologias ou
mentalidades. As obras falam efetivamente do mundo, mas sua enunciação é
parte integrante do mundo que pretensamente representam. [...] A literatura
também consiste numa atividade; não apenas ela mantém um discurso sobre
o mundo, mas gere sua própria presença nesse mundo. As condições de
enunciação do texto literário não são uma estrutura contingente da qual este
poderia se libertar, mas estão indefectivelmente vinculadas a seu sentido.
(MAINGUNEAU 2001, p. 19)
Essa perspectiva leva o autor a debruçar-se sobre o processo de imbricação entre
os sujeitos, sua enunciação e o contexto de produção literária, tendo em vista as relações
institucionais necessariamente presentes. Assim, ele analisa a condição do escritor,
considerando os espaços institucionais e grupos aos quais este se vincula. Sua proposta
contempla, ainda, a polêmica questão da biografia autoral, que, como salienta Costa
(2005), sempre foi “rechaçada pelas vertentes estruturalistas de análise do texto literário
que a acusam de tentar explicar a obra com base na vida do autor.” (COSTA 2005,
p.42). Não é, entretanto, uma proposta de caráter subjetivista, na medida em que não
dissocia o sujeito das práticas discursivas no campo em que ele se inscreve. Em resumo,
ele afirma que “a obra é indissociável das instituições que a tornam possível: não existe
tragédia clássica ou epopéia medieval fora de uma certa condição dos escritores na
sociedade, [...] de certos modos de elaboração ou de circulação de textos”
(MAINGENEAU 2001, p.19).
Ao explicitar o propósito do livro O Contexto da Obra Literária, o autor afirma que
serão estudados “os modos de inserção da condição de escritor no campo literário”. É
através do campo que “devem ser pensadas a pertinência das obras a gêneros e correntes
estéticas, mas igualmente aos traçados biográficos dos autores.” (MAINGUENEAU
2001, p.23). Nessa perspectiva, os aspectos biográficos são redimensionados no sentido
de favoreceram a compreensão dessa imbricação vida/obra/instituição/sociedade (v.
COSTA 2005, p.42). Maingueneau então assinala:
Ao relacionar o escritor a seu espaço institucional, esforçamo-nos por
mostrar o caráter ilusório de uma oposição entre uma individualidade
criadora e uma sociedade concebida como um bloco. Nem por isso
69
invalidaremos a existência dos criadores no funcionamento de um campo
literário. A Literatura como configuração institucional condiciona os
comportamentos, mas, para criar, o escritor deve explorar esse
condicionamento e interferir nele. (MAINGUENEAU 2001, p.45)
O conceito de posicionamento é desenvolvido aí, portanto, para referir os gestos de
inserção no campo discursivo. Posicionar-se, segundo o autor, significa colocar em
relação um certo percurso em uma determinada esfera (a literária, por exemplo, mas
também a religiosa, a filosófica etc.) com o lugar que o autor se confere no campo, por
meio de sua obra. Essa inserção pode se dar em uma trilha já aberta ou pode ser
“fundada no próprio gesto da enunciação dessa obra, no campo discursivo”, como
esclarece Costa (2005, p.43). Maingueneau exemplifica com autores franceses:
Escrevendo ‘baladas’, Victor Hugo volta, para além do classicismo, a um
gênero medieval, traça como que um percurso na esfera literária afirmandose como ‘romântico’. Quando Baudelaire escreve um pantum, gênero
poético de origem malásia, abre a poesia para o alhures, como poeta
simbolista obsedado pela nostalgia de alguma ‘vida anterior’. Como,porém,
o pantum já foi utilizado por poetas românticos, essa escolha assinala
igualmente uma filiação. (MAINGUENEAU 2001, p. 69)
Desse modo, os posicionamentos correspondem, na história literária, à ideia de
doutrinas, escolas ou movimentos. Nesse sentido, o autor acrescenta que é explorada a
polissemia de posição em dois eixos principais: o de uma “tomada de posição” e o de
“uma ancoragem num espaço conflitual (fala-se de uma ‘posição’ militar).”
(MAINGUENEAU 2001, p. 69). Ele adverte, porém, que a noção de posição aqui
diverge da noção corrente nas primeiras fases da AD: “o posicionamento se define no
interior de um campo discursivo, enquanto a ‘posição’, da qual fala Pêcheux, é inscrita
no espaço da luta de classes.” (MAINGUENAU 2008a, p.14). Considerando as
possibilidades de aplicação do conceito, pode-se acrescentar ainda que, de maneira mais
ampla,
o termo posicionamento designa apenas o fato de que, por meio do emprego
de tal palavra, de tal vocabulário, de tal registro da língua, de tais
construções, de tal gênero de discurso etc., um locutor indica como ele se
situa num espaço conflituoso: utilizando a lexia ‘luta de classes’, posicionase como de esquerda; falando em tom didático e com um vocabulário
técnico, posiciona-se como especialista etc. (CHARAUDEAU e
MAINUENEAU 2004, p.392)
Mas, num campo discursivo, posicionamento define o que os autores denominam de
“uma identidade enunciativa forte” e “um lugar de produção discursiva bem específico”.
E mais: “designa ao mesmo tempo as operações pelas quais essa identidade enunciativa
70
se instaura e se conserva num campo discursivo, e essa própria identidade.”
(CHARAUDEAU e MAINGUENEAU 2004, p.392). Isso pressupõe a ideia de um
permanente trabalho de reconfiguração dessa identidade, que não pode ser considerada
como algo fechado, cristalizado, nem tampouco limitado aos conteúdos - o
posicionamento diz respeito às diversas dimensões do discurso, podendo se manifestar
através da escolha deste ou daquele gênero, pelas maneiras de citar etc.
2.2.5. Comunidades Discursivas
Para evitar interpretações de caráter subjetivista de sua proposta, Maingueneau
aprimora o conceito de posicionamento, articulando-o à noção de comunidade
discursiva, redes institucionais específicas que “partilham um conjunto de ritos e
normas.” (p.44). Assim, ele esclarece:
O interesse recai sobre os modos de vida, os ritos dessas comunidades
restritas que disputam um mesmo território institucional. É nessa zona que
se travam realmente as relações entre o escritor e a sociedade, o escritor e
sua obra, a obra e a sociedade. (MAINGUENEAU 2001, p.30, grifo do
autor),
Um aspecto importante das comunidades discursivas é a reciprocidade entre as
instâncias de produção e de gestão dos discursos. Maingueneau define dois tipos de
comunidades discursivas, estreitamente imbricadas: “as que gerem e as que produzem o
discurso.” (MAINGUENEAU 2008a, p.44). Na esfera literária, por exemplo, outros
papéis sociodiscursivos são mobilizados além dos autores – o papel dos críticos,
comentaristas etc. Enfatiza-se, portanto, a importância dessas duas instâncias para a
consolidação do campo discursivo em questão, através da imbricação dos papéis aí
desempenhados: “falar de ‘comunidade discursiva’ é afirmar que, por um movimento de
envolvimento recíproco, a comunidade é cimentada por discursos que são produto dessa
mesma comunidade.” (p.45)
Fica então evidente a importância dos “lugares institucionais” de onde emergem os
textos, e que de certa forma os moldam através de um conjunto de normas internas dos
grupos aí envolvidos. Vale mais uma vez assinalar que o objeto de Maingueneau é o
discurso literário, mais precisamente o período entre o século XVI e o século XX, na
71
literatura francesa, “com algumas incursões contudo nas culturas vizinhas.”
(MAINGUNEAU 2001, p.23). Para exemplificar a imbricação entre as comunidades
discursivas, seus modos de vida e as redes institucionais aos quais elas se vinculam,
nesse contexto, ele afirma:
Não se pode conceber o romantismo sem a ‘boêmia’, nem os escritores das
Luzes, do século XVIII, fazendo-se abstração da rede internacional da
‘República das Letras’. Não há independência entre as normas que regem os
modos de vida da comunidade e o ‘conteúdo’ de seus posicionamentos.”
(MAINGUENEAU 2008a, p.44)
Ele justifica seu recorte aludindo ao que Regis Debray propôs chamar de
grafosfera32, ou seja, a era de predomínio da tipografia e de consolidação da escrita no
mundo ocidental, em que “a imagem é subordinada ao texto, em que o autor coloca sua
singularidade como caução soberana” (MAINGUENEAU 2001, p.23). Trata-se da
época considerada como idade de ouro da Literatura, com a emergência de uma
intelligentsia “para quem o legível é o único fundamento do verdadeiro” (p.23)
Por fim, avaliando a situação presente da literatura, Maingueneau afirma:
Essa ‘grafosfera’ está se acabando sob nossos olhos. É claro que o escrito
impresso desempenha ainda um papel essencial, existe ainda um campo
literário ativo, mas a literatura, dominada pelo audiovisual, não tem mais o
poder de criar acontecimentos, de impor seus ritos à sociedade.
(MAINGUENEAU 2001, p.24)
Embora o enfoque de Maingueneau seja a literatura, entendemos que as
considerações teóricas por ele desenvolvidas são perfeitamente adequadas a outros
campos discursivos, ensejando a pesquisa acerca da relação entre sujeitos concretos e a
produção discursiva. Suas observações, acima, acerca da condição atual da literatura,
marcada pela diluição de seu poder de “criar acontecimentos” e “impor seus ritos à
sociedade”, graças à emergência de outras formas de produção simbólica, permitem-nos
inserir aí o discurso literomusical, essencialmente marcado pela constituição de um
espaço de confluência entre diferentes domínios semióticos. Como veremos adiante, as
contribuições de Maingueneau têm sido incorporadas de maneira exitosa ao estudo
dessa área, sobretudo a partir de Costa (2001).
32
In DEBRAY, R. Cours de médiologie générale. Paris, Gallimard, 1991.
72
2.2.6. Investimento genérico
A definição dos conceitos de posicionamento e comunidade discursiva traz à
discussão a problemática dos gêneros do discurso, já abordado acima. Maingueneau
ressalta a importância das reflexões sobre gêneros para as abordagens que se ocupam da
linguagem em uso:
Ao se desenvolver em torno de uma reflexão sobre a interação
enunciativa e sobre a pertinência contextual dos enunciados, as correntes
pragmáticas tornaram a reflexão sobre os gêneros um eixo principal de
qualquer abordagem dos enunciados. Qualquer enunciação constitui um certo
tipo de ação sobre o mundo cujo êxito implica um comportamento adequado
dos destinatários, que devem poder identificar o gênero ao qual ela pertence.
(MAINGUENEAU 2001, p. 65)
Articulando a noção de posicionamento a essas reflexões, ainda se ocupando do
campo literário, Maingueneau assinala que a identificação de obras literárias com
determinados gêneros, quando feita pelos próprios autores – através de um subtítulo, de
uma indicação no prefácio etc. – reflete “escolhas que remetem às estratégias de
posicionamento dos autores” (MAINGUENEAU 2001, p.65)
Surge daí a concepção de investimento genérico, que entretanto não deve ser
concebida como um meio a serviço de um fim, mas como “definindo a própria
identidade de um posicionamento: o recurso a tais gêneros em vez de outros é, de fato,
parte constitutiva do posicionamento” (CHARAUDEAU e MAINGUENEAU 2004,
p.290). Maingueneau esclarece:
Os gêneros literários não poderiam, portanto, ser considerados como
‘procedimentos’ que o autor ‘utilizaria’ da maneira que lhe aprouvesse para
‘passar’ de forma diversa um conteúdo estável, mas como dispositivos de
comunicação em que o enunciado e as circunstâncias de sua enunciação estão
implicados para realizar um macroato de linguagem específico.
(MAINGUENEAU 2001, p. 66)
Para Costa (2005), o investimento não supõe uma ação individual definida por uma
opção, de acordo com intenções, mas um gesto enunciativo que se define pelas próprias
condições da enunciação. Assim, como esclarece o autor, “o sujeito é ativo e pode, a
partir de sua posição enunciativa e nos limites que ela circunscreve, gerir sua relação
com os constrangimentos (genéricos, linguísticos, institucionais etc.) que essa posição
implica.” (COSTA 2005, p.44). A título de exemplo, ele apresenta a hipótese de um
professor, que já tem um papel enunciador legitimado por seus co-enunciadores
73
(alunos), poder investir, em determinadas circunstâncias, em um gênero diferente, que
quebre as expectativas de sua aula – uma conversação familiar. Entretanto, esse
professor não deve investir em uma piada grosseira, por exemplo, “a não ser que queira
perder suas credenciais de enunciador privilegiado” (COSTA 2005, p.44)
2.2.7. Ethos discursivo
O conceito de ethos, retomado da retórica grega é redimensionado, na obra de
Maingueneau, como ethos discursivo. Trata-se de uma noção que começou a ser
explorada nas teorias da linguagem, numa perspectiva discursiva, a partir dos anos
1980, e que recentemente tem sido objeto de grande interesse, por exemplo, para os
estudos de comunicação, para os estudos culturais e para a análise do discurso. Segundo
Maingueneau, esse interesse crescente pelo ethos “está ligado a uma evolução das
condições de exercício da palavra publicamente proferida, particularmente com a
pressão das mídias audiovisuais e da publicidade” (MAINGUENEAU 2008b, p.11)
Na retórica aristotélica, ethos designa a imagem de si que o locutor constrói em seu
discurso. Constitui, junto com o logos e o pathos, a triologia dos meios de prova
(Retórica, Livro I) que se emprega para garantir a persuasão. Para resumir esse triângulo
da retórica, Maingueneau alude a Gilbert (século XVIII): “instrui-se pelos argumentos;
comove-se pelas paixões; insinua-se pelas condutas: os ‘argumentos’ correspondem ao
logos, as ‘paixões’ ao pathos, as ‘condutas’ ao ethos”. (MAINGUENEAU 2008b, p.14)
A prova pelo ethos está relacionada à boa impressão que se deve construir no discurso, a
fim de convencer o auditório. A citação de Barthes33, apresentada por Amossy (2005), é
esclarecedora:
São os traços de caráter que o orador deve mostrar ao auditório (pouco
importa sua sinceridade) para dar uma boa impressão (...) O orador enuncia
uma informação e, ao mesmo tempo, diz: eu sou isto aqui, não aquilo lá
(BARTHES 1970, p.212, apud AMOSSY 2005, p.10).
O ponto central para a compreensão do ethos, entretanto, é a percepção de que ele
não está ligado a um saber extradiscursivo sobre o locutor, mas é pertinente à própria
enunciação. Maingueneau esclarece que, embora seja associado a um locutor, fonte da
enunciação, o ethos é definido por uma forma de dizer, - é, portanto, essencialmente
33
Bathes, R. (1970) L’ancienne rhétorique. Aide-mémoire. In: Communications, n.16, 1970, pp.172-223
74
intradiscursivo. Há que se considerar, porém, que em sua elaboração intervêm “dados
exteriores à fala propriamente dita (mímica, trajes...)” (MAINGUENEAU 2008b, p.14).
De toda forma, é importante ressaltar que o ethos é algo distinto dos atributos reais
do locutor. Por isso, a tradução de ethos como “caráter”, frequentemente verificada em
português, é “bastante infeliz”, de acordo com Maingueneau (2005, p.70). Na Retórica,
claro está que se trata de uma noção ligada à própria instância discursiva:
Persuade-se pelo caráter (ethos) quando o discurso é de tal natureza que torna
o orador digno de fé, porque as pessoas honestas nos inspiram uma confiança
maior e mais imediata. [...] Mas é necessário que esta confiança seja o efeito
do discurso, não de um juízo prévio sobre o caráter do orador
(ARISTÓTELES, Retórica II, 1356a, apud MAINGUENEAU 2005, p.70)
Não obstante, alguns teóricos reconhecem aquilo que se convencionou denominar de
ethos prévio,34 ou seja, as representações do ethos que o público constrói antes mesmo
que o enunciador fale. O exemplo mais comumente referido é o domínio do discurso
político, em que os enunciadores ocupam com muita freqüência os espaços midiáticos,
sendo associados a um ethos que cada enunciação pode confirmar ou não. Além disso,
adverte Maingueneau,
mesmo que o co-enunciador não saiba nada previamente sobre o caráter do
enunciador, o simples fato de que um texto pertence a um gênero de discurso
ou a um certo posicionamento ideológico induz expectativas em matéria de
ethos. (MAINGUENEAU 2005, p. 71)
Há, por outro lado, tipos de discurso e circunstâncias para os quais se supõe que o
co-enunciador não dispõe de representações prévias do enunciador. É o caso, por
exemplo, da leitura de um novo romance ou da audição de uma nova canção, de autores
ou intérpretes desconhecidos.
Alguns princípios mínimos, para a compreensão da dimensão sociodiscursiva do
ethos são apresentados assim, por Maingueneau:
- o ethos é uma noção discursiva, ele se constrói através do discurso, não é
uma ‘imagem’ do locutor exterior a sua fala;
- o ethos é fundamentalmente um processo interativo de influência sobre o
outro;
- é uma noção fundamentalmente híbrida (sócio-discursiva), um
comportamento socialmente avaliado, que não pode ser apreendido fora de
uma situação de comunicação precisa, integrada ela mesma numa
determinada conjuntura sócio-histórica. (MAINGUENEAU 2008b, p.17)
34
Cf., por exemplo, HADDAD, G. Ethos prévio e ethos discursivo: o exemplo e Romain Rolland, in
AMOSSY, R. (2005, pp. 145-165). Vale salientar que o próprio Maingueneau (2005, 2008a, 2008b)
reconhece a distinção entre ethos pré-discursivo e ethos discursivo.
75
2.2.8. Ethos e incorporação
Trabalhando também com textos de comunicação, sobretudo no discurso
publicitário, Maingueneau introduz a noção de incorporação, para designar a ação do
ethos sobre o co-enunciador. Sua proposta amplia o alcance da compreensão do ethos na
retórica clássica, que o associa primordialmente à oralidade, “em situações de fala
pública (assembléia, tribunal...)” (MAINGUENEAU 2008b, p.17). O autor busca
enfocar também o texto escrito, considerando que “todo texto escrito, mesmo que o
negue, tem uma ‘vocalidade’ que pode se manifestar numa multiplicidade de ‘tons’,
estando eles, por sua vez, associados a uma caracterização do corpo do enunciador”
(MAINGUENEAU 2008b, p.18) – que não deve ser confundido com o corpo físico do
enunciador efetivo, ou seja, “a instância que assume o tom de uma enunciação
evidentemente não coincide com o autor efetivo da obra” (MAINGUENEAU 2001, p.
139)
Essa instância enunciativa assume o papel de fiador, cuja figura o co-enunciador
deve construir a partir de certos indícios, com base em duas categorias: o caráter e
corporalidade. O caráter constitui “um feixe de traços psicológicos”, que, no caso
específico da literatura, são “apenas estereótipos específicos de uma época, de um lugar,
que a literatura contribui para validar e nos quais se apóia” (MAINGUENEAU 2001, p.
139). A corporalidade é associada a “uma compleição física e a uma forma de se vestir e
de se movimentar no espaço social” (MAINGUENEAU 2008c, p.98). A noção de
incorporação é baseada, portanto, na identificação desse fiador e na apreensão do ethos
aí constituído. Na verdade, conforme Maingueneau salienta, a incorporação ultrapassa
a simples identificação a uma personagem fiadora. Ela implica um mundo
ético [de ethos] do qual o fiador é parte pregnante e ao qual ele dá acesso.
Esse ‘mundo ético’, ativado por meio da leitura, é um estereótipo cultural que
subsume determinado número de situações estereotípicas associadas a
comportamentos. (MAINGUENEAU 2008a, p.65)
Os exemplos apresentados situam-se no campo da publicidade, que explora
intensamente o mundo ético de estereótipos do tipo “o executivo dinâmico”, “os ricos
emergentes”, as “celebridades” etc.; o mundo ético das estrelas de cinema também é
mencionado por Maingueneau, que cita, por exemplo, “cenas como a subida dos
degraus do palácio do Festival de Cannes, entrevistas à imprensa, seções de filmagem
etc.” (MAINGUENEAU 2008c, p.18). No campo da música, ele argumenta que “a
76
simples participação de um cantor num videoclipe tem como efeito inserir o fiador num
mundo ético particular” (2008c, p.18). Se tomarmos o campo do discurso literomusical
brasileiro, em particular, o processo de incorporação pode ser exemplificado através dos
diversos posicionamentos aí verificados, incluindo desde o mundo ético do sambista
malandro, a partir dos anos 20 do século passado até, mais recentemente, o mundo dos
mangueboys e das manguegirls consagrado a partir dos anos 90, com a emergência do
Manguebeat na cena musical brasileira, a partir do Recife.
O processo de incorporação se baseia, portanto, num conjunto de representações
sociais, avaliadas positiva ou negativamente, que ganham forma, na configuração
discursiva, através de estereótipos sobre os quais se apóia a enunciação. Conforme
ressalta o autor, “Esses estereótipos culturais circulam nos registros mais diversos da
produção semiótica de uma coletividade” (MAINGUENEAU 2005, p. 72), podendo ser
encontrados, por exemplo, na iconografia, no teatro, na pintura etc.; ou seja, “através da
iconografia [...], da música, da estatutária, do cinema, da fotografia..., circulam
esquematizações do corpo, valorizadoras, ou desvalorizadoras, que encarnam vários
modos de presença no mundo.” (MAINGUENEAU 2001, p.139)
Em resumo, o autor define a noção de incorporação como a maneira como o coenunciador se apropria do ethos instituído na enunciação, o que ocorre por meio de “três
registros indissociáveis”:
- a enunciação da obra confere uma corporalidade ao fiador, ela lhe dá corpo;
- o co-enunciador incorpora, assimila um conjunto de esquemas que
correspondem à maneira específica de relacionar-se com o mundo, habitando
seu próprio corpo;
- essas duas primeiras incorporações permitem a constituição de um corpo,
da comunidade imaginária dos que aderem a um mesmo discurso.
(MAINGUENEAU 2005, p.73)
As formulações do conceito de incorporação complementam, assim, uma proposta de
estudo do ethos que oferece, no quadro da análise do discurso, uma perspectiva
integradora de abordagem de diferentes manifestações da linguagem, coerente com uma
prática discursiva de caráter intersemiótico, característica do momento atual da AD,
conforme vimos acima. De fato, a proposta de Maingueneau para a abordagem do ethos
“ultrapassa bastante o quadro da argumentação”, como elaborado na retórica. Afinal,
ressalta o autor, “não vivemos no mesmo mundo da retórica antiga, e a fala não é mais
governada pelos mesmos dispositivos” (MAINGUENEAU 2008a, p.63).
77
Um aspecto fundamental desta nova fase da AD é a abordagem de corpora bastante
diferenciados daqueles comumente trabalhados em seus períodos iniciais. Agora,
observa-se que o interesse de pesquisa se volta para um considerável número de gêneros
discursivos. Neste contexto, a noção de ethos se desenvolve no sentido de possibilitar a
reflexão “sobre o processo mais geral de adesão dos sujeitos a determinado
posicionamento” (2008a, p.64), analisando a sua incidência “em textos escritos e em
textos que não apresentam nenhuma sequencialidade de tipo argumentativo”
(MAINGUENEAU 2005, p.69)
A validade dessa proposta para a análise do discurso literomusical tem sido reiterada
no desenvolvimento de diversos trabalhos publicados recentemente35, enfocando, por
exemplo, a Bossa Nova, analisada como posicionamento estético que marca um
momento crucial no percurso da música popular em nosso país. Furtado (2007) salienta
que os posicionamentos bossanovistas são em geral caracterizados por um ethos de
jovem enamorado e contemplativo, que convida à intimidade de sua música e
de seu espaço, do sujeito carinhoso [...] que anseia por carinho e amor, e com
a sua corporalidade compõe igualmente um ethos emocionalmente frágil e
sensível (FURTADO 2007, p.448)
A autora observa, ainda, que a bossa nova se define também, em termos de
incorporação, por um certo modo de executar o canto cujo modelo pode ser encontrado
em um João Gilberto, por exemplo, com seu jeito de “cantar baixinho quase falando,
numa música voltada para o detalhe e num extraordinário jogo rítmico entre o violão, a
bateria e a voz do cantor” (FURTADO 2007, p. 448)
A opção de integrar à fundamentação teórica de nosso trabalho as contribuições de
Maingueneau acerca do ethos discursivo se revela coerente com a proposta que
assumimos, para uma análise dos posicionamentos do Frevo numa perspectiva de
prática intersemiótica. Embora nos concentremos nos aspectos discursivos da canção,
nosso objeto de estudo – com ênfase nas configurações de sentido elaboradas nas letras
- buscaremos não perder de vista as outras manifestações que constituem uma semântica
global do Frevo, e que, em geral, colaboram para a definição dos diferentes
posicionamentos no campo do discurso literomusical brasileiro – a dança, a iconografia
etc.
35
Cf., por exemplo, COSTA (org.) O Charme Dessa Nação: música popular, discurso e sociedade
brasileira. Fortaleza: Expressão Gráfica (2007)
78
Entendemos, assim, que uma proposta de abordagem do discurso que evidencie a
importância da presença de um corpo em movimento, ou seja, de uma “concepção
encarnada do ethos”, conforme estabelecida pela noção de incorporação, recobrindo
“não só a dimensão verbal, mas também o conjunto de determinações físicas e psíquicas
ligado ao ‘fiador’ pelas representações coletivas estereotípicas” (MAINGUENEAU
2008b, p.18), oferece ferramentas de análise que nos permitirão dar conta da riqueza de
linguagens do Frevo – ou, pelo menos, nos aproximarmos desse intento, tendo em vista
que nossa pretensão não é empreender uma análise exaustiva dessa semântica global,
que se reveste de significativa importância enquanto marca identitária da cultura
pernambucana. Afinal, como ressalta o próprio Maingueneau,
Em última instância, a questão do ethos está ligada à da construção da
identidade. Cada tomada da palavra implica, ao mesmo tempo, levar em
conta representações que os parceiros fazem um do outro e a estratégia de
fala de um locutor que orienta o discurso de forma a sugerir através dele certa
identidade. (MAINGUENEAU 2008a, p.59)
2.2.9. Ethos e cena enunciativa
Incorporamos também como embasamento teórico de nosso trabalho as formulações
de Maingueneau acerca da cena enunciativa, que têm sido empregadas na análise do
discurso literomusical brasileiro (cf. COSTA 2009), para situar o ethos discursivo e
definir o quadro geral da enunciação, em que se identificam o enunciador, o coenunciador, a cronografia e a topografia da enunciação. Como ressalta Costa (2001), as
figuras do enunciador e do co-enunciador são representações construídas pela
enunciação, e evidentemente não equivalem aos sujeitos empíricos. Isso permite,
segundo ele, a elaboração de “jogos e disfarces enunciativos muito comuns nos diversos
tipos de produções verbais literárias ou não” (COSTA 2001, p.68) – como exemplo, cita
as personagens femininas das canções de Chico Buarque, que são enunciadas em
primeira pessoa, e que não devem ser confundidas nem com a voz do compositor nem
com a voz do locutor/intérprete da obra.
Maingueneau fala em cena englobante, cena genérica e cenografia para indicar as
condições de efetivação da enunciação, dentro de
79
um quadro profundamente interativo, em uma instituição discursiva inscrita
em uma certa configuração cultural e que implica papéis, lugares e momentos
de enunciação legítimos, um suporte material e um modo de circulação para
o enunciado. (MAINGUENEAU 2005, p.75)
Na verdade, a ideia de encenação é relativamente recorrente entre os analistas do
discurso influenciados pelas correntes pragmáticas, com base numa metáfora teatral Charaudeau e Maingueneau (2004) assinalam, ainda, que o termo “cena” pode ser
empregado para caracterizar “qualquer gênero do discurso que implica um tipo de
dramaturgia”. A proposta de Maingueneau se aplica, no entanto, a quaisquer outros
gêneros do discurso, evidenciando de fato a sua importância no desenvolvimento da
enunciação.
Um aspecto fundamental da noção de cena enunciativa é que a cena de fala, aquela
que interpela o co-enunciador - e que Maingueneau denomina de cenografia – não pode
ser concebida como “um simples quadro, uma decoração, como se o discurso
sobreviesse no interior de um espaço já construído e independente desse discurso. Ela é
constitutiva dele.” (CHARAUDEAU e MAINGUENEAU 2004, p.95) Está aí o que o
autor denomina processo de “enlaçamento”, observado na cenografia para descrever a
emergência de um ethos na enunciação que, “de fato, se valida progressivamente por
meio da própria enunciação.” (MAINGUENEAU 2008a, p.71). Essas considerações
afastam qualquer possibilidade de interpretação de caráter representacionista do
discurso, conforme se depreende desta afirmação:
O discurso não resulta da associação contingente entre um ‘fundo’ e uma
‘forma’: é um acontecimento inscrito em uma configuração sócio-histórica e
não se pode dissociar a organização e seus conteúdos e o modo de
legitimação de sua cena enunciativa. (MAINGUENEAU 2005, p. 74)
O conceito de cena enunciativa proposta pelo autor integra, de fato, três cenas, que
ele propõe chamar de cena englobante, cena genérica e cenografia, assim definidas:
1. A cena englobante diz respeito ao tipo de discurso em questão (literário,
filosófico, religioso etc.). Maingueneau esclarece com o seguinte exemplo:
“Quando recebemos um folheto na rua, devemos ser capazes de determinar a
que tipo de discurso ele pertence: religioso, político, publicitário etc., ou seja,
qual é a cena englobante na qual é preciso que nos situemos para interpretá-lo,
em nome de quê o referido folheto interpela o leitor, em função de qual
finalidade ele foi organizado.” (MAINGUENEAU 2008c, p.86).
80
2. A cena genérica corresponde ao gênero do discurso – editorial, sermão, guia
turístico, consulta médica etc. – com o qual o co-enunciador se depara.
3. A cenografia corresponde à cena de fala propriamente dita. Ela não é imposta
pelo gênero, mas “construída pelo próprio texto: um sermão pode ser enunciado
por meio de uma cenografia professoral, profética etc.” (MAINGUENEAU
2005, p.75). A cenografia é considerada como a instância discursiva “de onde o
discurso vem e aquela que ele engendra”, ao mesmo tempo: “ela legitima um
enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la, deve estabelecer que essa cena de
onde a fala emerge é precisamente a cena requerida para enunciar, como
convém, a política, a filosofia, a ciência...” (MAINGUENEAU 2005, p.77). No
discurso publicitário e no discurso político, por exemplo, o uso de cenografias
variadas faz parte das estratégia de persuasão que visam a “disfarçar” os
verdadeiros objetivos da comunicação. Conforme analisa Costa (2009, p.6), no
discurso publicitário a cena englobante, que pressupõe uma relação entre
sujeitos na qual se desempenha “o papel de interessado no dinheiro do outro,
que, por sua vez, é posto na condição de consumidor” é estrategicamente
encoberta, por meios de inúmeras cenografias que, a depender da criatividade
das agências publicitárias, podem captar o imaginário do co-enunciador atribuindo-lhe uma identidade, por exemplo.
Ressaltando a importância dos gêneros de discurso para a compreensão de sua
formulação teórica, Maingueneau aponta que há, por um lado, gêneros de discurso cujas
cenas de enunciação se reduzem à cena englobante e à cena genérica, gêneros que “se
conformam às rotinas de uma cena genérica fixa”, que organizam atividades cotidianas
em certas esferas da atividade social e profissional – os exemplos oferecidos pelo autor
são “o despacho administrativo ou os relatórios do especialista”; por outro lado, há
gêneros que se caracterizam por uma “maior possibilidade de suscitar cenografias que
se afastam de um modelo preestabelecido” (MAINGUENEAU 2005, p. 75). Ele então
conclui que, em termos das possibilidades de desenvolvimento de cenografias variadas,
os gêneros podem ser distribuídos num continuum cujos pólos extremos podem ser
indicados assim:
- de um lado, os gêneros que se atêm a sua cena genérica, que não admitem
cenografias variadas (a lista telefônica, as receitas médicas etc.);
- de outros, os gêneros que, por sua natureza, exigem a escolha de uma
cenografia: é o caso dos gêneros publicitários, literários, filosóficos...Há
publicidades que apresentam cenografias de conversação, outras, de discurso
81
científico etc. Assim, há grande diversidade de cenografias narrativas em um
romance. O discurso político é igualmente propício à diversidade das
cenografias: um candidato poderá falara seus eleitores como jovem
executivo, como tecnocrata,como operário, como homem experiente etc.
(MAINGUENEAU 2005, p. 76)
Entre esses dois pólos situam-se os gêneros suscetíveis de cenografias variadas, “mas
que, na maioria das vezes, limitam-se ao cumprimento de sua cena genérica rotineira.”
(MAINGUENEAU 2008c, p.90). O exemplo, apresentado pelo autor em Análise de
Textos de Comunicação (2008c), é o de um guia turístico, o Guide Du Routard, que
“em vez de se contentar com a cena genérica do tipo didático, habitual nos guias em que
o enunciador apaga as marcas de sua presença [...] desenvolve uma cenografia original”,
que se manifesta em expressões como “realmente delirante”, “um montão de obrasprimas” etc. Para Maingueneau, essa cenografia não foi definida por acaso, mas cumpre
o objetivo de “harmonizar-se com o perfil do ‘mochileiro’” (MAINGUENEAU 2008c,
p.89).
Podemos situar também a canção, como objeto de estudo privilegiado no campo do
discurso literomusical, nesse espaço intermediário de elaboração da cena enunciativa.
Na verdade, o jogo das cenas enunciativas interessa ao estudo do discurso literomusical
brasileiro porquanto contribui para a definição de posicionamentos - de caráter estético
ou ideológico, por exemplo - em diferentes contextos históricos.
A título de exemplo, podemos mencionar o tipo de samba-canção em voga no
período entre o final dos anos 40 e início dos 60, que Matos (2005) denomina de
“samba de fossa” – e que é conhecido também como samba de “dor-de-cotovelo -, “com
letras fortemente intimistas e sentimentais” (MATOS 2005, p. 121), marcados por
cenografias elaboradas em torno de um ethos discursivo em circunstâncias de
sofrimento suscitado pelo sentimento de perda ou pela desilusão amorosa. Embora a
autora assinale que se trata de um subgênero do samba “muito praticado por
compositoras e intérpretes femininas, como Maysa e Dolores Duran” (MATOS 2005,
p.121), é grande o número de canções escritas por autores como Herivelto Martins,
Antônio Maria e outros. Ainda um aspecto interessante a ser observado na cenografia
dessas canções é que a sua interpretação, via de regra, é marcada por uma impostação
vocal peculiar, com alongamento das vogais, reiterando o efeito dramático que se
coaduna à temática em geral aí desenvolvida. O acompanhamento, marcado por
orquestrações com incidência marcante de instrumentos de corda (violinos, violoncelos,
82
violas) na estruturação harmônica, completa a cena dramática, com forte influência do
bolero e da balada (MATOS 2005, p.121)
Outros exemplos interessantes da importância da cena enunciativa são apresentados
por Costa (2009) em relação ao Tropicalismo. Ele ressalta que, em várias canções, os
tropicalistas põem em evidência a cena englobante, “gerando um efeito de
estranhamento junto ao ouvinte habituado com o esquema tradicional da canção”, que
ele denomina de “narrativo”. Canções como Tropicália e Irene - ambas de Caetano
Veloso -, por exemplo, apresentam sequências em que se percebe o ambiente da
gravação, criando um efeito de sentido que permite ao ouvinte capturar um pouco do
contexto de produção da obra, evidenciando na enunciação a cena englobante que
caracteriza o discurso literomusical. A advertência feita por Costa (2009) é crucial para
a compreensão desse processo:
Atenção: a cena englobante não é esse contexto empírico e situacional em si
mesmos, mas o discurso que possibilita esse contexto e que esse contexto
evoca. Trata-se do mundo discursivo da música popular, que institui autoria,
obras, competências; legitima e/ou consagra enunciadores, modos midiáticos
de enunciação e de recepção; prestigia ou não gêneros e temáticas, timbres e
dicções; funda tradições e elabora uma memória (COSTA 2009, p.5)
Essas considerações bem podem ser lidas em consonância com a interpretação de
Naves (2010) sobre a proposta tropicalista de “desconstrução da canção”, baseada em
dois movimentos básicos, a saber, a ruptura com os padrões composicionais da estética
bossanovista e a articulação com outras manifestações artísticas. Conforme Naves,
a canção tropicalista não é mais o artefato completo, totalmente contido na
unidade música-letra, que fora a canção bossa-nova, pois ela só se completa
com elementos externos – arranjo, interpretação, até mesmo capa de disco.
(NAVES 2010, p.98)
Retirado do nosso corpus, um exemplo interessante de elaboração criativa da
cenografia na canção é Selo do Frevo, composição de Nelson Ferreira, lançada em
1976, que assume a cenografia de uma carta convite para conhecer o carnaval de
Pernambuco, endereçada a um destinatário indefinido (“Sr. Fulano de tal”):
SELO DO FREVO (Nelson Ferreira, 1976)
Ilustríssimo senhor
Fulano de Tal
Residência mundo inteiro
Onde exista Carnaval
Nestas mal traçadas linhas
Desculpe-as por favor
Receba o convite
83
Que lhe faço com ardor
Venha ver o Carnaval Brasileiro
Especialmente o de Pernambuco
Sim, senhor!
Pernambuco do frevo sensacional
Dança de valor
No mundo sem igual
Venha, você vai gostar
De na rua com o povo engrenar
E ao som de um frevo danado
Mergulhar na onda do passo
Sem mais para sua resposta
Com um forte abraço
Segue um selo do frevo
Meu endereço, com todo apreço
Nelson Ferreira, Capital do Frevo
2.3 Delimitando e caracterizando o objeto
Situar o Frevo no campo do discurso literomusical brasileiro é uma tarefa
desafiadora. Trata-se de uma música cuja trajetória é marcada, há mais de um século,
por um traço original de fundamental importância para qualquer tentativa de
interpretação: ela é imediata e inconfundivelmente associada à terra onde nasceu – o
estado de Pernambuco. Qualquer análise do Frevo deve, portanto, dar conta de sua
dimensão simbólica enquanto marca da identidade cultural, não apenas dos
pernambucanos, mas de todo o Nordeste, se considerarmos a presença do Frevo no rico
panorama do carnaval brasileiro, diante das muitas variadas formas constituintes da
maior festa popular do país.
Assim como outras formas musicais, o Frevo nasceu da confluência de diferentes
gêneros, em um processo de configuração cujos momentos iniciais é difícil de precisar,
mas cujo período determinante pode ser localizado a partir de meados do século XIX,
quando se acentua o desenvolvimento urbano nas principais cidades do país. Assim
como o samba, para no Rio de Janeiro, o Frevo tem uma contribuição seminal para
moldar as feições do carnaval de Pernambuco, além de ter exercido grande influência
para o desenvolvimento da festa em outro centro carnavalesco importante: a Bahia.
Apesar disso, percebe-se que ele não recebe atenção à altura de sua importância, seja
nos espaços midiáticos, seja como objeto de estudo acadêmico, sobretudo nas principais
84
áreas das ciências humanas – nas publicações de caráter histórico, ou de análise
sociológica sobre a produção musical brasileira, por exemplo, em geral o Frevo aparece
pouco. Analisar as razões para esse problema foge ao escopo do presente trabalho, que
desenvolvemos como uma contribuição para suprimir a lacuna, numa perspectiva de
estudos linguístico-discursivos com fundamentação teórica na Análise do Discurso
(AD) e nas concepções de Mikhail Bakhtin acerca da concepção dialógica e da teoria
dos gêneros do discurso.
A consolidação da AD como área de estudos acadêmicos no Brasil é constatada pela
atuação de grupos estabelecidos em diferentes centros, pela quantidade de títulos
publicados e pela realização de eventos de grande porte, em todo o país. Entre as razões
geralmente apresentadas para explicar o desenvolvimento da área, está a de que “ela
trouxe, para nosso contexto acadêmico, um novo e instigante olhar para a compreensão
da linguagem”, conforme salienta Faraco (in COSTA 2005, p.9). Compreendemos que
esse olhar, voltado para as relações entre língua, cultura e sociedade, definitivamente
imbricadas no desenvolvimento da atividade discursiva nas diferentes instâncias da vida
humana, tem ampliado seu alcance e profundidade quando se detém sobre
manifestações da cultura popular, com a seleção de objetos de estudo que favoreçam a
compreensão da cultura brasileira.
No caso da canção popular, uma natural inquietação pode emergir devido à relação
passional que ela pode suscitar, enquanto objeto de estudo, colocando em risco a
validade da pesquisa. Costa (2007) aponta uma solução para o problema, apresentada
por Amorim36, que consiste no gesto de estranhamento diante do objeto, um
estranhamento paradoxalmente considerado como “a própria condição de possibilidade
de conhecimento desse objeto” e concebido como “sentimento de perplexidade, de
interrogação, de suspensão da evidência do objeto” (AMORIM 2002, apud COSTA
2007, p.29). No caso da canção, tal estranhamento corresponderia, segundo Costa, a
uma “despassionalização provisória da relação pesquisador-objeto de pesquisa”, através
de, por um lado, “um processo de desconstrução da canção (separação
letra/melodia/outras semióticas)” e, por outro lado, pelo trabalho de “reaudição, que
torna momentaneamente a escuta desprazerosa, pela superação do limite em que a
repetição deixa de ser gozosa para se situar no plano da cognição” (COSTA 2007, p.30)
36
Costa (2007) cita dois trabalhos de Marília Amorim: O texto de pesquisa como objeto cultural e
polifônico, publicado em Arquivos Brasileiros de Psicologia. V. 50, n.4, Instituto de Psicologia,
UFRJ/Imago/CNPq (1998); e Vozes e silêncio no texto de pesquisa em ciências humanas, publicado
em Cadernos de Pesquisa da Fund. Carlos Chagas. São Paulo: Autores Associados, n.116. (2002)
85
O autor ressalta, ainda, a importância da teoria dialógica de Bakhtin, para que não se
deixe de contemplar o caráter polifônico do objeto de pesquisa em ciências humanas,
sem o controle higienizador das “técnicas quantitativas, [...] e de tratamentos estatísticos
que convertem sujeitos-objetos em dados, expurgam o aleatório, o imprevisível, o
assistemático” - procedimentos típicos da “maneira positivista de pensar a relação
sujeito-objeto na pesquisa científica em ciências humanas” (COSTA 2007, p.24). O
autor alude à posição de Amorim (1998), segundo a qual, por essa concepção, a palavra
do outro é desprovida de caráter enunciativo: “ela é de tal modo enquadrada e
desmembrada pelos questionários, pelas grades e pelas escalas de medida que se torna
comportamento e deixa de ser enunciação dirigida a alguém” (AMORIM 1998 apud
COSTA 2007, p.24).
A pesquisa em AD permite encarar o objeto em sua dimensão polifônica, levando em
conta a perspectiva bakhtiniana que explica a relação entre pesquisador e sujeito
pesquisado como uma relação dialógica. Nesse sentido, explica o autor, “mesmo o
produto material da cultura assume, diante do pesquisador, uma posição ativa” (COSTA
2007, p.24). No caso da canção, o termo polifonia, em seu sentido musical mesmo,
explica apenas uma das maneiras – “a mais óbvia”, como ele salienta – de apreender o
caráter polifônico desse objeto. Para Costa, a canção é polifônica
sobretudo por ser uma produção coletiva. Em uma única canção popular
ouve-se de uma só vez uma torrente de vozes que advêm seja do(s) autor(es),
do cantor, dos personagens figurados na canção, do arranjador, dos
instrumentistas, do produtor musical, da gravadora, do meio de comunicação
que a veicula etc. (COSTA 2007, p.25)
A decisão de enfocar o Frevo como objeto de estudo foi norteada pela convicção de
que estamos enveredando por duas áreas de especial interesse cultural: a canção popular
e o carnaval. De fato, uma olhada no percurso histórico da canção popular no Brasil
revela a força enunciativa de vozes que ao longo do tempo se foram configurando em
breves registros da alma brasileira, incorporando diversos elementos constitutivos da
nossa identidade – incluindo, evidentemente, as vozes que cantam o carnaval.
Nosso esforço descritivo-analítico sobre a organização discursiva do Frevo será
direcionado ao Frevo-Canção, que se caracteriza pela presença da palavra cantada, em
oposição à forma instrumental do Frevo-de-Rua. Nossa opção justifica-se por três
razões básicas, que atestam sua importância como objeto de estudo:
86
1 . O Frevo-Canção é a música vinculada às primeiras agremiações do carnaval
do Recife – os clubes carnavalescos;
2 . O Frevo-Canção é a música que introduz o Frevo no cenário musical
brasileiro, através do registro em disco, em gravações realizadas no sudeste
do país, por alguns dos maiores intérpretes da música brasileira, a partir dos
anos 1930;
3 . O Frevo-Canção acompanha a dinâmica da evolução do carnaval nos
diferentes espaços da festa. Aparece, primeiro, no espaço público das ruas, no
vinculado aos clubes carnavalescos, a partir da segunda metade do século
XIX; depois, sem deixar de ter a rua como espaço fundamental de circulação,
passa a dominar também os salões dos clubes, a partir de meados do século
XX; e, por fim, ocupa também os palcos, nos pólos oficiais que compõem a
programação organizada pelas instâncias de poder (secretarias de cultura de
municípios e do governo do Estado), incluindo também os palcos móveis,
como a Frevioca e os trios elétricos.
Quanto à estruturação musical, sua principal característica é a interpretação por uma
voz solo, com acompanhamento de orquestra de metais. É uma música originada do
Frevo-de-Rua (puramente instrumental), e suas primeiras manifestações encontram-se
nas letras elaboradas de improviso pelo povo acompanhando a execução das bandas
militares, a partir da segunda metade do século XIX. Como é o gênero do Frevo que
“tem maior interface com o mundo do espetáculo e da indústria fonográfica”
(SANDRONI 2001, p. 41), seu acompanhamento musical é também feito com
instrumentos eletrônicos – teclados, contrabaixo, guitarras.
Consideramos que a análise das canções selecionadas em nosso corpus favorece a
compreensão da identidade discursiva do Frevo, em relação a outras manifestações
concorrentes no campo do discurso literomusical. Aqui, empregamos a noção de
“concorrência” no sentido amplo advogado por Maingueneau (2008), incluindo “tanto o
confronto aberto quanto a aliança, a neutralidade aparente etc...” (MAINGUENEAU
2008, p.34). Buscamos ressaltar que a constituição da identidade discursiva do Frevo,
através de seu posicionamento, dá-se por meio de um conjunto de práticas que incluem
não apenas o domínio estritamente musical (no caso do Frevo-de-Rua, instrumental) e
literomusical (letras, comentários, análises, interpretações), mas também outras
87
estruturas semióticas. Essa percepção nos leva a tomar como válida a proposta de
Maingueneau (2008), para um procedimento de interpretação na perspectiva de uma
semântica global, que “não apreende o discurso privilegiando este ou aqueles dentre
seus ‘planos’, mas integrando-os todos ao mesmo tempo”. (MAINGUENEAU 2008,
p.75)
2.4. Definindo objetivos e anunciando hipóteses
Nosso objetivo geral é analisar a organização linguístico-discursiva das obras
selecionadas, com vistas à definição do posicionamento do Frevo no campo do discurso
literomusical brasileiro. Considerando, conforme Maingueneau (2008a, pp. 43-46), que
a definição de posicionamento implica a existência de comunidades discursivas, a
compreensão do posicionamento do Frevo no campo do discurso literomusical
brasileiro interessa-nos enquanto construção de sentidos para a afirmação de uma
comunidade cuja identidade constitui-se, dentre outras formas, pelos modos de dizer do
Frevo.
Para a realização desse objetivo, tomamos como base o referencial teóricometodológico da AD, bem como as contribuições advindas da teoria dialógica de
Bakhtin, incluindo suas formulações sobre os gêneros do discurso, conforme já
assinalamos. A opção pelo enfoque sobre os gêneros revela-se coerente com a posição
do próprio Maingueneau, ao observar que “há um consenso entre analistas do discurso
de que a noção de gênero ocupa papel central na disciplina” (MAINGUENEAU 2008,
p. 151)
Definimos um recorte histórico que compreende o período entre os anos de 1930 até
o final dos anos de 1970. Como salientamos na introdução do trabalho, trata-se de um
período de reconhecida importância para a música popular brasileira, de um modo geral
– com o florescimento da indústria fonográfica e a grande popularização do rádio – e
para o Frevo, especificamente, com a atuação da Fábrica de discos Rozenblit, no Recife.
A partir da definição desse recorte, levantamos a hipótese de que o posicionamento do
Frevo no discurso literomusical brasileiro se define, basicamente, por:
1. Canções que cumprem um papel de demarcação no terreno da música popular
brasileira, ou seja, empreendem um gesto de afirmação identitária do Frevo no campo
do discurso literomusical. Esse gesto afirmativo é definido, discursivamente, a partir da
88
elaboração dos planos (vocabulário, dêixis enunciativa, temas etc.) que integram a
perspectiva de apreensão do discurso através de uma semântica global, conforme
proposta de Maingueneau acima;
2. Canções que se constituem por um caráter descritivo-narrativo, cuja organização
discursiva permite-nos identificar traços de uma relação intergenérica com o gênero
literário-jornalístico da crônica, definido por Moisés (1998, p.133) como “expressão
literária híbrida, ou múltipla [...] lugar geográfico entre a poesia (lírica) e o conto.” Esse
aspecto do posicionamento do Frevo diz respeito às peculiaridades da obra dos
diferentes compositores abordados, e é um traço característico de outros
posicionamentos no campo do discurso literomusical brasileiro.
Partindo das considerações de Maingueneau acerca da cena enunciativa (constituída
pela subdivisão cena englobante, cena genérica e cenografia), argumentamos que, no
primeiro caso acima definido, as canções põem em evidência a cena genérica, em que o
discurso é elaborado a partir das referências ao universo estritamente musical do Frevo.
Porém, os gestos enunciativos de marcação identitária extrapolam os limites do registro
cancional, e são fortemente baseados numa perspectiva integradora de outras
manifestações, sobretudo da dança do Frevo. Assim, reconhecemos um posicionamento
elaborado a partir de uma semântica global, pela qual o discurso do Frevo se organiza,
por exemplo, na elaboração de um ethos discursivo fortemente marcado, por exemplo,
pelos movimentos da dança, através do processo de incorporação. Assim, na análise das
obras, buscamos contemplar a elaboração do plano do vocabulário e da dêixis
enunciativa para uma caracterização do posicionamento do Frevo através dos diferentes
nomes de suas manifestações na música e na dança; e através da identificação explícita
de uma topografia validada, para a reiteração dos traços identitários do Frevo.
No segundo caso, analisamos canções elaboradas com base em cenografias que
articulam diferentes aspectos sócio-históricos do período enfocado na pesquisa. Os
exemplos de canções cujo projeto enunciativo assume uma feição de crônica incluem
obras que se destacam pela abordagem de costumes, fatos históricos e manifestações
linguísticas captadas do cotidiano da vida brasileira, fenômeno comum a outras
manifestações do campo literomusical, na música carnavalesca do mesmo período,
como o samba e a marchinha carioca, por exemplo.
Aspectos da inter-relação genérica, conforme proposta por Bakhtin (2000), foram
tomados como base para a análise dessas obras, a partir da hipótese de que dois gêneros
secundários, ou seja, gêneros que “aparecem em circunstâncias de uma comunicação
89
cultural, mais complexa e relativamente mais evoluída” (BAKHTIN 2000, p.281) –
neste caso a canção e a crônica -, se aproximam, tanto pela incorporação de gêneros
primários, como pela definição de seus propósitos comunicativos.
Tais considerações sobre a relação intergenérica são relevantes para uma
compreensão da canção num quadro geral da enunciação, ou seja, em sua dimensão
discursiva. Para abordar a canção enquanto enunciado, como unidade fundamental da
comunicação, conforme o autor russo, duas observações de Tatit (2004) se revelam
esclarecedoras: 1) “o canto sempre foi uma dimensão potencializada da fala”; e 2) “a
prática musical brasileira sempre esteve associada à mobilização melódica e rítmica de
palavras, frases e pequenas narrativas ou cenas cotidianas.“ (TATIT 2004, p.69).
Percebe-se, então, a partir dessas ponderações, que o caráter narrativo/descritivo das
letras é um traço genérico constitutivo da canção.
A definição das opções teórico-metodológicas do trabalho - com a articulação entre
a AD e contribuições das teorias de gêneros -, bem como as limitações de conhecimento
técnico da linguagem musical, de nossa parte, impuseram-nos um direcionamento
voltado mais à análise da materialidade linguística das canções, em busca das
configurações de sentido que nos permitam identificar alguns aspectos do
posicionamento do Frevo. Isso não significa, porém, que a configuração musical do
Frevo foi deixada de lado. Afinal, o caráter híbrido da canção, em sua materialidade
verbo-musical, pressupõe um olhar analítico que busque a integralidade da obra, para a
sua compreensão. A fim de cumprir essa parte do objetivo do trabalho, lançamos mão
das contribuições de Tatit (1986, 1996, 1997) para a compreensão de processos de
elaboração de sentido como a reiteração melódica e a passionalização, observados em
algumas obras.
Levando em consideração que a finalidade do trabalho não é uma descrição
exaustiva de todos os aspectos do posicionamento do Frevo no campo do discurso
literomusical brasileiro, optamos pelo critério de ordenação cronológica para a seleção
do corpus, formado por 64 (sessenta e quatro) canções que contemplam as diferentes
fases de produção do Frevo-Canção, ao longo das cinco décadas definidas como recorte
histórico da pesquisa. Após a audição de cerca de 600 obras, buscamos oferecer, na
seleção do corpus, um panorama geral dessa produção, a partir dos registros
fonográficos iniciados na década de 1930, quando o Frevo teve inúmeras gravações, no
formato 78 rotações por minuto (rpm) por algumas das vozes mais importantes da
música brasileira, no período conhecido como Era de Ouro do rádio.
90
Na seleção das obras, buscamos contemplar o processo de nomeação do gênero, pela
sua inscrição nos selos dos discos, até a década de 1930, quando a denominação FrevoCanção passa a ser utilizada na identificação dos discos e partituras. Assim, foram
incluídas canções que sinalizam esse processo, em uma variedade de denominações,
desde “marcha”, “marcha do norte”, “marcha pernambucana” até “frevo”, simplesmente
e, finalmente, “frevo-canção” Trata-se de importante aspecto de constituição de sua
identidade genérica, ao avaliarmos que esse registro impresso marca simbolicamente a
inserção do gênero no domínio da língua escrita, nos momentos iniciais da história do
registro fonográfico no Brasil.
As fontes discográficas e bibliográficas foram selecionadas a partir de acervos
pessoais (inclusive arquivos gentilmente disponibilizados por colaboradores da
pesquisa, através de meio eletrônico, via internet, de gravações em formato original 78
rpm, digitalizados) e acervos institucionais (Rádio Universitária FM, Arquivo Público
Estadual e Casa do Carnaval) (cf. anexos). Catálogos contendo a lista das gravações em
diferentes formatos (78 rpm, LP e CD), a exemplo de Carnaval: textos, imagens e sons
(SOUTO MAIOR, CÂMARA e SPENCE, 2011), disponibilizado no site da FUNDAJ
(cf. bibliografia) e 100 Anos de Frevo (CÂMARA 2007) , bem como encartes de LPs e
CDs foram também utilizados para a composição do corpus.
Disponibilizamos, ainda, dos CD-roms Memória do Frevo – Acervo de Partituras,
publicado pela Casa do Carnaval (Prefeitura do Recife); e História do Carnaval –
Século XIX e Século XX, pelo Arquivo Público Estadual, para a consulta a periódicos
carnavalescos.
A título de ilustração da análise empreendida neste trabalho, disponibilizamos em
compact disc as gravações de 12 canções que fazem parte do corpus da pesquisa, (v. 6.3
anexo, página 218).
91
3. O FREVO NO DISCURSO LITEROMUSICAL BRASILEIRO
3.1. Primeiros movimentos
Ao lado das manifestações culturais dos diversos povos indígenas, primeiros
habitantes do Brasil, e dos grupos de origem africana trazidos para cá sob o jugo da
escravidão, o processo de desenvolvimento da atividade musical no período colonial
está ligado aos ciclos econômicos da colônia, com destaque para as cidades do Recife,
Salvador e Rio de Janeiro, além das cidades históricas de Minas Gerais. Conforme
Cardoso (2008), essa atividade musical, inicialmente a cargo dos padres - com destaque
para a figura do mestre-de-capela - teve um significativo impulso com o
desenvolvimento econômico do ciclo do açúcar, fazendo surgir “com destaque na Bahia
e em Pernambuco, aquilo que podemos identificar como os primeiros sinais de vida
musical organizada no Brasil colonial” (CARDOSO, 2008, p. 36), tendo como palco
principal as igrejas. No caso de Minas, a intensa atividade musical nas principais
cidades é “fruto da grande preocupação com o ensino de música” (MIRANDA, 2007, p.
471) durante o desenvolvimento do ciclo do ouro.
Além dos grupos formados a partir do trabalho nas igrejas, destacam-se também
as bandas de música, que terão atuação importante na vida social brasileira do período
colonial. Saldanha (2008) aponta a presença, ainda no século XVII, de formações
musicais de caráter militar, denominadas Charamelas37, desde o período da ocupação
holandesa em Pernambuco. Diferentemente do que ocorre no resto do país, segundo o
autor, todas as corporações militares do Recife, Olinda e Goiana já tinham bandas
militares “formadas e mantidas pelo poder público” na metade do século XVIII,
“durante o governo de D. Tomás José de Melo [...] (1787-1798)” (SALDANHA 2008,
p.33).
Segundo Cardoso (2008), data também do século XVIII a organização das bandas
de música em Portugal, com a criação da Brigada Real da Marinha, que veio
acompanhando a família real para o Brasil, em 1808. A partir daí, cresce a importância
das bandas, que se apresentam em ocasiões como, por exemplo, “desfiles, procissões,
37
Denominação para grupo de instrumentos de que faz parte o chalumeau, instrumento francês antecessor
do clarinete (cf. DOURADO 2004, p.75)
92
casamentos e batizados” (CARDOSO, 2008, p. 132). Na verdade, num primeiro
momento, a ausência de músicos de qualidade, sobretudo de instrumentistas de sopro,
representava grande dificuldade na formação das bandas militares, o que resultou, no
futuro, numa situação de privilégio dos músicos dentro das corporações, como analisa
Tinhorão (2005). O autor lembra que, por conta de sua rara formação, músicos civis
eram atraídos para os quadros militares, “vestiam a farda e passavam a fazer parte do
corpo da tropa levando muitas vezes os próprios instrumentos, e passando a comportarse como simples funcionários, aos quais se davam frequentemente a vantagem do
pagamento do soldo de oficial.” (TINHORÃO, 2005, p.109)
A situação melhora após a proclamação da Independência, quando, além das
bandas dos regimentos de Primeira Linha, surgem também as bandas da Guarda
Nacional38, que foram “as primeiras a incluir em seu repertório, além das marchas e
dobrados de estilo, números de música clássica e popular” (TINHORÃO, 2005, p. 111).
A valorização dessas bandas garantiu a centenas de músicos de origem popular a
oportunidade de viver de sua arte e talento, conforme analisa o autor.
Destaca-se também o papel das bandas nos primeiros momentos da história do
disco no Brasil, dada a qualidade das gravações por elas realizadas, em discos de cera à
base de carnaúba, na primeira década do século XX39, no Rio de Janeiro. Conforme
Franceschi (2002), Fred Figner (tcheco de nascimento, pioneiro da indústria fonográfica
no Brasil, fundador da Casa Edison) acertou em cheio ao confiar às bandas militares a
gravação dos maiores sucessos da época. O autor descreve assim o percurso geralmente
traçado para a divulgação das composições:
As composições, editadas em partitura para piano, ao atingirem sucesso de
vendagem eram solicitadas para apresentação em público. Exigiam
orquestração que, em alguns casos, chegava a 50 figuras ou mais,
especialmente nas grandes apresentações em teatro. Figner, na posse dos
direitos de gravação fonográfica de todas as músicas, e dispondo de várias
bandas militares, confiou a elas a execução de grande parte da gravação dos
seus discos. (FRANCESCHI, 2002, p. 117)
Franceschi (2002) salienta que nessa época o Rio de Janeiro contava com o
melhor e mais numeroso conjunto de bandas militares do Brasil, com destaque para a
Banda do Corpo de Bombeiros, criada em 1896. Contava com o maestro Anacleto de
38
A Guarda Nacional era uma organização paramilitar de responsabilidade de grandes proprietários,
criada por lei em 18 de agosto de 1831, conforme Tinhorão (2005, p.111)
39
Os discos de cera eram remetidos à Alemanha para receberem tratamento que resultava em masters
negativos em cobre para posterior prensagem dos discos postos à venda (cf. FRANCESCHI, 2002)
93
Medeiros como regente e incluía em seu corpo vários chorões talentosos, a exemplo do
trompetista Casemiro Rocha – autor da polca Rato Rato, sucesso em 1904 – e do
trombonista Irineu de Almeida, que era conhecido como Irineu Batina e que foi o único
professor de Pixiguinha. Segundo o autor, essa banda “soava com uma maciez de
interpretação inesperada para uma banda militar e, ao contrário das outras, com
surpreendente rendimento técnico”, tendo suas gravações um resultado “melhor do que
as gravações feitas com cantores acompanhados de piano e conjuntos de flauta, violões
e cavaquinho” (FRANCESCHI, 2002, p.118)
A importância das bandas militares para o Frevo é notória, reafirmada por
inúmeros estudiosos, como Tinhorão (2005), que o faz de forma inequívoca: “No que se
refere à música popular brasileira, a maior contribuição das bandas militares foi,
inegavelmente, a criação do frevo em Pernambuco” (TINHORÃO, 2005, p. 113).
Outros autores salientam também o papel das bandas civis - a exemplo da Charanga do
Recife, Matias Lima e Afogadense -, citadas por Silva (1991). Juntamente com as
bandas militares, essas bandas civis “eram a força do carnaval de rua do Recife. Sem
elas não havia animação nos coretos e nenhum dos grandes clubes, ou mesmo pequenas
troças, não se aventuravam a vir às ruas” (SILVA, 1991, p. XLVIII).
É ainda um militar, o Capitão Zuzinha (José Lourenço da Silva, 1889-1952)40, o
músico reconhecido como o artista que completou a transição entre as formas musicais
amalgamadoras do Frevo – em especial a polca, música de enorme popularidade nos
centros urbanos do Brasil, em fins do século XIX – e a marcha-frevo, como passou a se
chamar inicialmente. De acordo com Melo (1991), havia as polcas “saltitantes e as de
ritmo muito violento. Às últimas davam o nome de marcha-polca ou de polca-marcha.
[...] E os clubes pedestres começaram a adotar a marcha-polca e esta foi-se tornando
independente.” (MELO, 1991, p. 256). A distinção entre a polca-marcha e a marchafrevo consiste, segundo Silva (1991), no fato de que a primeira tinha uma segunda parte
em andamento mais lento, destinada ao canto, enquanto na marcha-frevo essa segunda
parte era também instrumental e mantinha o andamento rápido da primeira parte. Mário
Melo relembra composição que ouvira nos primeiros anos do século XX, cuja autoria
equivocadamente atribuíra a Benedito Lacerda - mas que, em conversa com o Capitão
40
Segundo o jornalista Mário Melo, o Capitão Zuzinha, vindo de Paudalho, “onde era mestre da banda de
música”, chegou ao Recife “como regente da banda do 40º Batalhão de Infantaria aquartelado nas [no
Forte das] Cinco Pontas [...]” e assumira a função de “ensaiador da Brigada Militar do Estado” (MELO,
Mário. Origem e Significado do Frevo, in SOUTO MAIOR, M. e SILVA, Leonardo D. Antologia do
Carnaval do Recife, Massangana, 1991, originalmente publicado em Anuário do Carnaval Pernambucano.
Recife, 1938)
94
Zuzinha, certificou-se de que era este mesmo o seu autor. Para Melo, trata-se do mais
antigo frevo, a obra que estabelece “a linha divisória entre o que depois passou a
chamar-se frevo e a marcha-polca” (MELO, 1991, p. 256), embora essa conclusão seja
contestada por autores como, por exemplo, o musicólogo e compositor Samuel Valente
(2007). Segundo Valente, foi o próprio Mário Melo que, tendo esquecido o título da
referida obra, sugeriu batizá-la de Divisor de Águas, sendo incluída pelo maestro Nelson
Ferreira no repertório da coletânea Carnaval do Recife Antigo, lançada pelo selo
Mocambo (LP n. 10021), da Gravadora Rozenblit, em 1957.
Saldanha (2008) assinala ainda que a marcha-frevo escrita por Zuzinha tinha
uma característica importante, que viria a definir o formato do Frevo instrumental
(posteriormente denominado Frevo-de-rua): a segunda parte, chamada de resposta,
configurava, na elaboração musical da obra, um diálogo “de perguntas e respostas, entre
metais (trompetes, trombones e tubas) e palhetas (clarinetes, requinta e saxofones)”
(SALDANHA, 2008, p. 47).
É fato que a presença das bandas militares na evolução histórica do Frevo não se
resume a esse período inicial, mas se prolonga até o século XXI. Uma evidência disso é
a participação da Banda da Polícia Militar de Pernambuco nas gravações dos discos da
série O Tema É Frevo, coordenada pelo radialista Hugo Martins, que comanda o
programa homônimo desde 1967, na Rádio Universitária, emissora da Universidade
Federal de Pernambuco. A série de discos, originalmente lançada em LP, em dez
volumes (de 1977 a 1999), é também apoiada pelo CEMCAPE (Centro da Música
Carnavalesca de Pernambuco), entidade fundada em 1986, que funciona numa sala da
Casa da Cultura, antiga Casa de Detenção, no centro do Recife. Dentro do programa de
ações comemorativas pelo centenário do Frevo, em 2007, a Prefeitura do Recife editou
uma caixa com os dez discos da série em formato CD (compact disc).
Também é notória a contribuição de militares para o Frevo tocado nas ruas, nos
dias de hoje, mesmo que as corporações militares não se apresentem no carnaval.
Conforme salienta o maestro Ivan do Espírito Santo, arranjador da Banda da
Aeronáutica e maestro da orquestra Henrique Dias (civil), em entrevista realizada em
25/09/2006 e publicada no volume História do Frevo, Acervo de Partituras - trabalho
realizado como ação do plano integrado de salvaguarda do Frevo, após a elevação do
Frevo à condição de patrimônio cultural imaterial do Brasil -, “quase todos os músicos
das orquestras de frevo que tocam principalmente no Recife e em Olinda são militares, é
95
muito normal eles estarem nas orquestras de frevo, além de um prazer é um rendimento
extra”. (RECIFE, 2010, p. 23)
3.2. A marcha rumo ao Frevo
Claro está, portanto, que o processo de configuração do Frevo, como gênero
musical, é tributário da atuação das bandas, ainda no século XIX. A música – assim
como as formas de dança - executada então nas apresentações das agremiações variava
bastante, incluindo desde a valsa até a quadrilha, o scottish, o galope, o dobrado e a
polca. É o que se vê, por exemplo, nesta notícia publicada no Diario de Pernambuco, já
no início do século XX (em 4 de fevereiro de 1906), anunciando a estréia da Troça
Carnavalesca dos Acendedores, com o seguinte programa:
Overture, pelo grande corpo de profanos Zé Pereira e seu rancho. [...] o
bailado ‘Meu Bem vai dá’ [...] o tanguinho Maria [...] a cançoneta Vacina
Obrigatória [...] Finalmente, será organizada uma quadrilha em que tomarão
parte toda companhia. (in RABELLO, 2004, p.117, grifo nosso)
Entretanto, na evolução das formas musicais incorporadas pelas agremiações
destaca-se a marcha, gênero embrionário de boa parte da música carnavalesca no Brasil,
em geral – e do Frevo, em particular. A marcha é, por exemplo, matriz da música
levada às ruas pelos ranchos, no Rio de Janeiro, e pelos clubes, no Recife. Também dela
originou-se a marchinha, gênero inicialmente consagrado nos salões de bailes de
carnaval do Rio, depois levada para outras partes do país. Conforme definição de
Dourado (2004, p. 194), a marcha é uma música apropriada ao acompanhamento de
desfiles, “em compasso binário ou quaternário, fortemente acentuado”. A esta liga-se o
dobrado, designação genérica para a música das bandas militares41. A marcha
consolidou-se definitivamente a partir do Barroco, sobretudo entre os franceses,
“tradicionalmente seus grandes cultores” (o autor lembra, inclusive, que a Marseillaise
“não é exatamente um hino, mas uma marcha.”) (DOURADO, 2004, p. 194).
Após o período em que se verifica maior influência do carnaval europeu no
Brasil – até meados do século XIX, aproximadamente - com a realização de bailes em
teatros e salões fechados, além das mascaradas a cavalo, os grupos carnavalescos no
Recife, sobretudo clubes e troças, tomam definitivamente as ruas, a partir da década de
1880, caracterizando-se suas apresentações pela execução de manobras e coreografias
41
O termo advém da utilização do dobramento, ou seja, a execução de uma mesma parte musical em
uníssono ou em oitava, por mais de um instrumento, para melhor projeção do som do conjunto, conforme
definição do Dicionário de Termos Musicais (DOURADO 2004)
96
ensaiadas. Segundo Araújo (1996), algumas dessas manobras, as mais elaboradas,
“exigiam semanas de ensaios [e] representavam temas” (ARAÚJO, 1994, p. 338).
Notícia do extinto Jornal do Recife sobre o Clube Caiadores traz, por exemplo, a
programação para o domingo e a terça-feira do carnaval de 1890, com a denominação
dos passos e manobras:
O Clube Carnavalesco Caiadores sairá em passeata amanhã e terça-feira
dançando em pontos indeterminados os seguintes passos: Evolução, Águas de
Beberibe, Como porque Gosto, Torneio das Flores, Canção do Amor, Ai
Caiador e fazendo as seguintes manobras: Viagens ao Pólo Norte, Parafuso.
Zig-zag, Ao Redor do Mundo,Jardim Botânico e 15 de Novembro.
(RABELLO, 2004, p. 144)
A popularização da marcha e a sua transmutação nas primeiras formas do Frevo
coincide, então, com a mudança do tipo de exibição dos clubes e troças, já nos primeiros
anos do século XX. Se a execução das manobras e passos ensaiados requeria a
disposição dos dançarinos em círculo, como analisa Silva (2000), o surgimento do
Frevo fez com que a dinâmica das apresentações se caracterizasse então por um
“movimento único de toda uma massa em desfile, trazendo os passistas numa só onda, a
invadir as ruas como se fizessem parte de um mesmo rio caudaloso” (SILVA, 2000, p.
105).
Constata-se, portanto, que o surgimento do Frevo dá-se no contexto de formação
das primeiras agremiações do carnaval do Recife, com a redefinição de sua forma de
apresentação pública. A descrição e análise da formação e da atuação desses grupos, por
autores como Araújo (1996), revelam também a complexidade das relações sociais aí
estabelecidas, no mundo do carnaval, refletindo a própria complexidade de uma
sociedade marcada por tensões e contradições, recém-saída de um longo período de
escravidão. Em resumo, esse contexto sócio-histórico é definido assim pela autora:
Desse mundo em ebulição, perpassado por transformações econômicas,
políticas e sociais, de reformulação do espaço e do modo de vida urbanos, em
que formas de associações e de manifestações coletivas antigas e tradicionais
conviviam e, até mesmo, geravam outras novas, em meio a tudo isso,
nasceram os clubes carnavalescos pedestres e, junto com eles, o frevo.
(ARAÚJO, 1996, p. 335)
Em linhas gerais, a autora destaca os seguintes aspectos pertinentes à formação e
à atuação dos clubes carnavalescos:
1. São herdeiros de tradições variadas, “mantenedoras de costumes, elementos e
formas de organização e de manifestação pública e coletiva de longa existência
97
histórica”, dentre as quais se destacam as corporações militares – dos quais
incorporaram a música e as manobras (incorporaram, por exemplo, a figura da
“baliza puxante”) - e as corporações religiosas, das quais assimilaram a
formação processional dos desfiles, percorrendo um mesmo itinerário e tendo à
frente um estandarte42;
2. São organizados nos moldes de outras associações civis – sociedades religiosas,
beneficentes, dramáticas, literárias, artísticas e recreativas -, regidas sob um
estatuto que define uma hierarquia rígida, sendo eleita periodicamente uma
diretoria que comandava um corpo de associados dividido em várias categorias.
3. Seus integrantes têm afinidades de diferentes ordens, seja a origem nacional
(como o Canna Verde e os Immigrantes Contractados, formados por
portugueses), sejam as relações de parentesco ou de vizinhança, seja ainda o
pertencimento a uma mesma categoria profissional.
Analisando a formação desses últimos grupos, constituídos por profissionais de uma
mesma categoria, a autora pondera que “as associações carnavalescas funcionavam,
enfim, como um canal de expressão e de acesso da classe trabalhadora ao mundo da
ordem constituída”, valendo como um mecanismo de “fortalecimento de uma identidade
social e cultural para os membros da classe trabalhadora” (ARAÚJO, 1996, p. 347),
num momento de profundas mudanças, que incluíam a emancipação dos escravos, o
crescimento do fluxo migratório para a capital e a consequente proletarização do
homem do campo, além da expansão das atividades e serviços urbanos. Como evidência
dessas mudanças, nos termos do crescimento populacional da capital, Araújo lembra
que, no período entre 1872 e 1920 “a população da cidade mais que duplicou, passando
de um total de 116.671 para 238.843 habitantes.” (ARAÚJO, 1996, p. 312).
Até as primeiras décadas do século XX, a música das agremiações passa por um
processo intenso de reconfiguração, vindo a sofrer várias influências. Trata-se de um
fenômeno comum no panorama da música brasileira, analisada por inúmeros autores
(cf. TATIT, 2004; NAPOLITANO, 2007) e reconhecido como um traço delineador da
originalidade e da riqueza de nossa música popular, considerando-se, por exemplo, a
riquíssima contribuição africana, além das manifestações dos povos indígenas e da
42
No caso dos blocos carnavalescos, cuja música característica é o Frevo-de-bloco (ou marcha de bloco),
o símbolo conduzido à frente do grupo chama-se flabelo, espécie de leque ou ventarola usada em antigas
celebrações litúrgicas. Além disso, trata-se de um tipo de agremiação influenciada, em sua formação e no
tipo de música, pelas jornadas de pastoril.
98
influência europeia – no Recife, por exemplo, destacam-se as contribuições portuguesas
e italianas para a música carnavalesca (cf. SILVA, 2000; ARAÚJO, 1994). Enfocando o
século XX, período de consolidação e disseminação da canção enquanto prática artística
de reconhecida relevância na cultura brasileira, Tatit (2004) ressalta que, ao longo desse
período, nossa canção incorporou
uma grande variedade de fisionomias que, embora não trouxesse qualquer
obstáculo para o pronto reconhecimento da maioria dos ouvintes, tornou
trabalhosa sua definição artística e, acima de tudo, sua apreciação crítica
(TATIT, 2004, p. 11)
Como veremos adiante, é a partir desse momento que a música das bandas passa
a receber letras, configurando o que posteriormente – na década de 1930 – seria
denominado Frevo-canção. Nesse processo, a música recebeu designações diversas, nos
registros impressos (nas partituras vendidas nas casas especializadas e nos selos dos
discos) desde as primeiras gravações. A partir de 1923, quando a primeira canção
carnavalesca pernambucana é gravada (Borboleta Não é Ave, parceria de Nelson
Ferreira e J. Borges Diniz, interpretada por Baiano e identificada como marcha no selo
do disco Odeon, nº 122.384) os nomes empregados para identificar o gênero musical
variavam de simplesmente marcha a marcha pernambucana, marcha nortista e marcha
carnavalesca pernambucana, dentre outros. Era, na verdade, o Frevo, ainda sem o seu
nome de batismo musical, empregado àquele momento para designar a folia nas ruas43.
A compreensão desse processo interessa-nos para uma tentativa de definição dos
primeiros aspectos do posicionamento do Frevo no campo do discurso literomusical
brasileiro. Reconhecendo a complexidade do fenômeno caracterizado pela hibridização
das formas musicais, nesse momento, marcado, no caso do Frevo, pela transformação
nos desenhos rítmicos dos arranjos e orquestrações, consideramos como Frevos-canção,
em nosso corpus, inclusive as obras desse período identificadas por outros nomes, tais
como aqueles acima referidos.
De fato, as primeiras ocorrências do nome Frevo na história do disco no Brasil
são do início dos anos de 1930. Primeiro, na letra de Sá Zeferina Tá de Vorta, de
Valdemar de Oliveira (sob pseudônimo e José Capibaribe), disco Victor 78 rpm nº
43
Em biografia recente do Maestro Nelson Ferreira (Nelson Ferreira, o Dono da Música, lançado em
2009), a autora, Ângela Belfort, afirma que “uma música de Nelson foi o primeiro frevo gravado em
disco, Borboleta não é Ave” (BELFORT 2009, p.33, grifo nosso)
99
50160, de 18 de janeiro de 1930, com interpretação de Mário Pessoa44; depois, no título
de uma parceria de Luperce Miranda e Osvaldo Santiago, Frevo Pernambucano, de
1931, interpretada por Francisco Alves e Orquestra Copacabana, (disco Odeon 78 rpm
nº 10.757-A), gravada sob a classificação de “marcha carnavalesca”, segundo inscrição
no selo do disco. Além disso, conforme salienta Samuel Valente (2007, p. 11), outras
composições famosas do mesmo período, reconhecidamente frevos, “aparecem nos
selos dos discos como marchinhas”, a exemplo de Dobradiça (de Nelson Ferreira,
interpretada pela Orquestra Diabos do Céu, pela gravadora Victor) e É de Amargar (de
Capiba, interpretada por Mário Reis, também pela Victor).
Ainda em termos estritamente musicais, a comparação entre o desenvolvimento
da marcha no Sudeste do país – especialmente no Rio de Janeiro – e no Recife, onde
culminaria no Frevo, é estabelecida assim pelo alagoano Diegues Jr. (1991):
Nas marchas dos clubes carnavalescos o ritmo do frevo, ritmo
verdadeiramente do Nordeste, está melhor acentuado. É preciso antes de tudo
frisar um ponto: a diferença entre a marcha do Sul e a do Nordeste. A do Sul
se marca por [ser] quase sempre descendente, coisa, aliás, muito notada na
música brasileira. A do Nordeste é mais vibrante (quando falo em marcha do
Nordeste me refiro, em particular, ao frevo). Mais sensual. Animada de um
sabor tropical. (DIEGUES JR., M.1991, p.241)
3.3. A música no disco, o Frevo na música popular
A importância desse período na história da música, especialmente da música
popular, com o surgimento da tecnologia de gravação, é analisada sob diferentes
enfoques por autores como Heloísa Valente (2007) e Tatit (2004). A primeira,
remetendo-se ao conceito de performance, definido por Zumthor, salienta que “a
midiatização técnica da música é responsável pela multiplicação das possibilidades da
performance”. Noção inicialmente aplicada à poesia oral, a performance é definida
como “o ato pelo qual um discurso poético é comunicado por meio da voz e, portanto,
percebido pelo ouvido” (ZUMTHOR, 2005, p. 86). Assim, a performance musical
compreende não apenas o ato de cantar e tocar os instrumentos, mas “todos os
elementos que participam da ação cênica, ou seja, os gestos, o teatro, a reação da
44
A informação é um achado do pesquisador Renato Phaelante, da FUNDAJ (Fundação Joaquim
Nabuco) publicado em 19 de maio de 2011 em http://artepesquisa.blogspot.com/2011/05/o-frevo-nadiscografia-brasileira.html <acesso em 30 de julho de 2011>
100
audiência” (VALENTE, 2007, p. 81). A partir do desenvolvimento da tecnologia de
gravação, portanto, as possibilidades de performance ampliam-se significativamente,
através do suporte do disco e, quase concomitantemente, através das ondas sonoras do
rádio. Antes disso, como salienta a autora, “a única relação que um ouvinte tinha com a
música dava-se através da performance ao vivo” (VALENTE, p. 81).
Tatit (2004), por sua vez, recorre à semiótica para explicar não apenas esse
momento, mas todo o percurso criativo da música popular brasileira no século XX,
através da oposição dos conceitos de mistura – caracterizada pelo processo de
assimilação, em geral tomado como fenômeno de enriquecimento da cultura brasileira –
e de triagem, esta marcada pelo processo de extração, que, ao contrário da assimilação,
“contínua e gradativa, tem caráter de intervenção cultural e, portanto, de demarcação
histórica.” (TATIT, 2004, p. 92). Segundo o autor, a extração se manifesta
por uma operação simultânea de eliminação e seleção de valores,
considerados respectivamente como indesejáveis e desejáveis, de acordo com
a visão de mundo de um grupo social num período histórico determinado.
(TATIT, 2004, p. 93)
Ele argumenta, então, que a chegada da tecnologia de gravação no país marca a
ocorrência de uma triagem “de ordem técnica, que deixou de fora toda a sonoridade
refratária aos novos recursos” (TATIT, 2004, p. 93), incluindo aí os gêneros musicais
associados, por exemplo, à dança (congada, lundu etc.), às procissões e à luta (como a
capoeira), já que eles “pouco tinham a oferecer à nova técnica uma vez que sua
sonoridade dependia diretamente da expressão do corpo e da elaboração cênica”
(TATIT, 2004, p. 93). Da mesma forma, a batucada teria sido eliminada nesse processo
de triagem, devido ao alto volume percussivo, muito além da capacidade de captação
das precárias máquinas de gravação do começo do século. O autor aponta, então, o
samba cantado, em sua forma de partido alto, como o gênero selecionado para figurar
como objeto privilegiado da nova tecnologia, que já se mostrara eficaz no registro da
voz humana.
A esse respeito, aproximamos a análise de Tatit (2004) às considerações de
Cabral (1996), que destaca algum avanço nas condições técnicas de registro da
produção musical do período, no Rio de Janeiro, apenas a partir da década de 1930.
Desse ano mesmo, ele aponta como exemplo os sambas Na Pavuna (Almirante e
Candoca da Anunciação) e Dá Nela (Ari Barroso), observando que Na Pavuna foi o
primeiro samba gravado com acompanhamento dos instrumentos de percussão
101
tipicamente usados nas execuções ao vivo, uma verdadeira façanha que, “para ser
levada a termo, levou Almirante a discutir muito tempo com o técnico de gravação, um
alemão que considerava impossível ser levado para o disco o som do surdo, do
tamborim e do pandeiro.” (CABRAL, 1996, p. 25). Já o samba Dá Nela “inaugurou
uma nova era para a marcha carnavalesca, dando-lhe, com o emprego de instrumentos
de sopro [...] um vigor que Ari Barroso classificou de ‘militar’” (CABRAL, 1996, p. 25)
Cabral vê aí, nessa declaração de Ari Barroso, uma influência da “dinâmica do
frevo - música e dança que começava a se espalhar pelo país“ (CABRAL, 1996, p. 26).
A observação revela-se interessante, considerando que, em geral, a presença do Frevo –
ou da marcha pernambucana, como ainda era denominada – no cenário musical do
período é geralmente negligenciada na bibliografia sobre a história da nossa música
popular, que toma como referência o que se produzia na então capital federal, onde veio
a florescer a indústria fonográfica do país. Não obstante a ausência de um olhar crítico
mais aprofundado sobre a importância da música carnavalesca pernambucana no
panorama da música brasileira desse período, é grande a lista de intérpretes consagrados
em cuja obra se encontram gravações de Frevo (especialmente o Frevo-canção),
sobretudo a partir do desenvolvimento do rádio como fenômeno de comunicação de
massa, constituindo-se como fator determinante para a consolidação de uma tradição
cultural com base na canção popular, como veremos adiante.
A popularização do rádio, a partir da década de 1930, juntamente com a
institucionalização do carnaval como nossa maior festa popular, são os dois eventos
apontados como marcos referenciais do que Tatit (2004) chama de segunda triagem na
nossa música popular. Para o autor, essa segunda triagem “delineou de uma vez por
todas a linguagem da canção popular brasileira”, com o desenvolvimento das principais
formas de compatibilização entre melodia e letra, baseadas numa fórmula “que previa
sempre um refrão como primeira parte e uma variação melódica (sobre a qual se
dispunham as diferentes estrofes da canção) como segunda.” (TATIT, 2004, p. 97) Até
então, as experiências de registro em disco incluíam, em geral, canções que se
desdobravam “em três ou quatro partes com ritmos distintos, mais sintonizadas com a
instabilidade das brincadeiras de roda do que com as soluções bem definidas das
canções de consumo” (TATIT, 2004, p. 96). Um exemplo desse tipo de canção é Pelo
Telefone, considerado como primeiro samba gravado, em 1916, originalmente uma
criação coletiva dos músicos e boêmios frequentadores da casa Tia Ciata (Hilária de
Almeida, baiana fundadora do Rancho Rosa Branca), registrado na Biblioteca Nacional
102
pelo compositor Ernesto dos Santos (o Donga) como obra sua em parceria com Mauro
de Almeida.
Por esse tempo, as possibilidades de gravação em disco haviam se estendido a
gêneros populares provenientes do meio rural e folclórico, a canções de Catulo da
Paixão Cearense e Cândido das Neves e a grupos regionais como os Turunas da
Mauricéia, que haviam saído do Recife para conquistar o Rio de Janeiro, fazendo
grande sucesso. Concomitantemente, seguia nas ruas o processo de consolidação dos
dois grandes gêneros da música carnavalesca brasileira: a marcha e o samba.
Em relação à marcha carnavalesca, esse processo é marcado por significativas
diferenças verificadas nos dois principais centros carnavalescos do país, o Rio de
Janeiro e o Recife. Embora a música tenha servido, nos dois contextos, para definir uma
nova dinâmica da festa na rua - com os clubes no Recife e os ranchos, que, “ao
adotarem a formação das procissões religiosas, instituíram um mínimo de disciplina em
meio ao caos do carnaval”, no Rio de Janeiro, segundo Tinhorão (1991, p. 119), as
configurações de ordem musical são bastante distintas. No Recife, como já vimos, o
desenvolvimento da marcha dá-se a partir da música das bandas militares, contando
com ferrenhos seguidores em seus desfiles pelas ruas, ensaiando os primeiros
movimentos da dança do Frevo, com nítida influência da capoeira como veremos
adiante. Já no Rio de Janeiro, a marcha é caracterizada inicialmente como música da
classe média, com “influências rítmicas do final da Primeira Grande Guerra [...] o
sentimentalismo da modinha brasileira, a alegria dos rimos americanos do charleston e
do one-step e muito das marchas das revistas portuguesas” (FRANCESCHI, 2002, p.
269). Segundo Tinhorão (1991) a marcha, “criada cerebrinamente por uma compositora
de classe média [Chiquinha Gonzaga] em 1899” (TINHORÃO, 1991, p. 119), teria que
esperar pelo menos duas décadas para se vulgarizar. Aqui, o autor analisa o processo de
“curiosa ascensão social” dos ranchos, que aos poucos deixou de ser “coisa exclusiva de
negros para admitir a mestiçagem e o semi-eruditismo de músicos que os
transformariam em verdadeiras orquestras ambulantes” (TINHORÃO, 1991, p. 119).
Enquanto no Recife a marcha - já designada no sudeste como marcha pernambucana evoluiria para o Frevo, no Rio de Janeiro ela evoluiu para “uma forma de marcha
cadenciada e dolente, mais tarde fixada como gênero sob o nome de marcha-rancho.”
(TINHORÃO, 1991, p. 121).
No mundo incipiente do disco, então, a marcha carioca, que depois evoluiria
para a marcha-rancho e também para a marchinha, é tomada como referencial do
103
gênero, nos registros fonográficos. Ainda que se reconheça, conforme vimos acima, de
acordo com Cabral (1994), a influência do Frevo - materializada sobretudo na presença
de instrumentos de sopro, principalmente o trompete, em algumas gravações - , é
verdade também que o resultado do Frevo gravado no Rio de Janeiro não agradava aos
compositores pernambucanos, dadas as particularidades do seu registro no disco - as
configurações harmônicas de sua orquestração, o andamento etc. A questão é analisada
sob diferentes perspectivas, ora numa visão determinista, por Oliveira (1985), por
exemplo, ao avaliar que, para atender às expectativas de seus autores, o Frevo só
poderia ser executado por músicos pernambucanos (“Reclama, a execução do frevo,
sangue pernambucano nas veias.” OLIVEIRA 1985, p. 54); ora numa percepção da
exploração mercadológica das gravadoras, conforme avalia Tinhorão (1991):
É verdade que, ao serem lançados em Pernambuco esses frevos gravados nas
fábricas estrangeiras com filiais no Rio de Janeiro – principalmente a RCAVictor, pioneira da tentativa da conquista dos mercados regionais usando
matéria-prima musical local -, o público reagiu desfavoravelmente ante a
contrafação rítmica que os cariocas lhes mandavam. O descontentamento se
refletiu na aceitação dos discos, o que foi resolvido de uma maneira bastante
exemplificativa do imperialismo econômico-cultural exercido pelo sul do
Brasil em relação ao nordeste, no plano da música popular: um maestro
pernambucano foi enviado ao Rio de Janeiro para ensinar aos músicos
cariocas como deveriam usar, de maneira exata, a matéria-prima musical que
logo, transformada em produto industrial sob a forma de discos, seria enviada
para colher lucros no seu mercado (TINHORÃO 1991, p.145)
É assim que, diante da insatisfação gerada pelas gravações realizadas no Rio de
Janeiro, a Federação Carnavalesca envia àquela cidade o Capitão Zuzinha, responsável
por ensaiar e orientar os músicos nas gravações dos frevos vencedores do concurso
anual promovido pela entidade, já nos anos de 1930. Conforme analisa Oliveira (1985),
antes disso o que chegava do Rio de Janeiro tinha qualidade sofrível, “as notas
certinhas, sim, mas o andamento, errado, o ritmo, frouxo. Foi necessário reescrever as
instrumentações, controlar a execução, encrespar os músicos.” (OLIVEIRA 1985, p. 54)
É ainda ao longo das duas primeiras décadas do século XX que se inicia o
processo de consolidação do samba como gênero da nossa música popular a que se
vinculará de maneira mais efetiva uma certa ideia de nacionalidade, instaurando na
música popular brasileira uma tradição cultural que se desdobrará em novas formas dele
derivadas ao longo do século, incluindo, por exemplo, o samba-canção, o samba-enredo
e a bossa nova. A possibilidade de gravação em disco constitui um fator decisivo para
104
esse processo, sobretudo a partir de 1927, quando é introduzido o sistema de gravação
elétrica no país, melhorando a qualidade dos registros fonográficos.
A consagração do samba como música representativa da brasilidade é explicada,
numa perspectiva sociocultural, como resultado de um duplo movimento: “por um lado,
das elites e das camadas médias escolarizadas, em processo de afirmação de valores
nacionalistas [...]; por outro lado, das classes populares, em busca de reconhecimento
cultural e ascensão social.” (NAPOLITANO, 2007, p. 27) Em termos estéticos, a
valorização do samba ia ao encontro do projeto modernista de valorização das
manifestações mais autenticamente brasileiras, das quais o novo gênero musical era uma
boa tradução. Evidentemente, porém, esse processo não se desenvolve sem conflitos.
Para Tinhorão (1991), por exemplo, a história do samba nesse momento é marcada por
um certo amaciamento do gênero, em termos musicais, para atender ao gosto das
camadas médias da sociedade carioca, já que a sonoridade ainda muito vinculada aos
requebrados do maxixe revelava-se “um pouco rude ao ouvido” desse público, mais
afeito “à tradição melódica européia das valsas, schottisches, polcas e mazurcas do que
à complicação rítmica herdada dos negros africanos, através dos seus filhos e netos”
(TINHORÃO, 1991, p. 126). O autor argumenta ainda que processo semelhante teria se
dado com o Frevo, no Recife, como maneira de controlar a ebulição do frevedouro na
rua, refreando também a atuação dos capoeiristas que acompanhavam as bandas e
fanfarras em desfile. Citando Oliveira (1985) e outros autores, Tinhorão aponta como
evidências desse refreamento da música a criação dos blocos, as dificuldades técnicas
para a consolidação de uma produção maior do frevo instrumental, devido ao
virtuosismo que o caracteriza, e a emergência de um novo gênero, o Frevo-canção.
Conforme veremos adiante, sua argumentação apresenta lacunas que suscitam alguns
questionamentos.
De toda forma, a inserção do samba no panorama cultural do país é um
acontecimento definitivo que marca o estabelecimento de uma linha mestra no
desenvolvimento da tradição musical brasileira, cuja importância pode ser
compreendida simbolicamente através da própria designação do novo gênero, em torno
do qual será elaborada toda uma prática discursiva, a partir de então. Conforme analisa
Tatit (2004):
a palavra samba congregava sonoridade e significados africanos, práticas
corporais (batuque e umbigada) dos ritos negros dos séculos anteriores,
ambientes rural e urbano, gêneros como choro e maxixe e, ao mesmo tempo,
libertava a canção da métrica tradicional, cedendo espaço à voz que fala com
seus acentos imprevisíveis (TATIT 2004, p.147)
105
O início da consolidação do samba é simbolicamente marcado, então, pela
inscrição do gênero musical desde a primeira gravação, no selo do disco Pelo Telefone,
em 1916. Na análise desse período inicial da nossa música popular, considerando a
afirmação dos gêneros que definirão os diversos posicionamentos no campo do discurso
literomusical brasileiro, ressaltamos a importância desse registro impresso, contendo
informações básicas sobre a gravação (título da obra, gênero, autoria), por duas razões:
em primeiro lugar, ele configura um gesto inicial de inserção de uma manifestação
artística essencialmente circunscrita à oralidade – a música popular - no universo da
cultura letrada (a identificação do gênero era feita também nas partituras
comercializadas nas lojas de instrumentos e de discos). Posteriormente, na era dos
discos em formato LP, essa inserção será ampliada com a confecção de álbuns contendo
informações escritas sobre todos os indivíduos envolvidos na produção da obra (ou seja,
sua ficha técnica), além das letras, fotografias etc.; em segundo lugar, ele revela a maior
complexidade do processo de consolidação do Frevo como gênero musical - em relação
ao próprio samba, por exemplo -, dada a variedade de termos pelos quais a música
pernambucana foi inicialmente designada, até finalmente estabelecer-se com os seus
nomes definitivos (Frevo-de-rua, Frevo-de-bloco e Frevo-canção), a partir dos anos de
1930.
Para compreender o seu posicionamento no campo do discurso literomusical
brasileiro, consideraremos as práticas discursivas elaboradas em torno do Frevo, a partir
do Frevo-Canção, desde os momentos iniciais, quando a música ainda era denominada
marcha pernambucana (e suas variantes, como marcha nortista, por exemplo), no
contexto sociocultural de desenvolvimento do carnaval pernambucano, desde fins do
século XIX. Consoante a proposta de Maingueneau (2008) de apreender um discurso
tendo em vista uma semântica global, contemplamos, assim, o plano do vocabulário,
dentre outros planos discursivos (temas, modos de enunciação etc.), de forma a integrálos em nossa análise, numa tentativa de descrever alguns aspectos de uma semântica
global do Frevo, elaborada a partir do ethos discursivo desenvolvido nas canções, ao
longo do século XX.
Diante da grande diversidade que sempre caracterizou a produção do campo
discursivo literomusical, na história de nossa música popular, marcada, como lembra
Costa (2001), por “conflitos e congraçamentos entre a grande variedade de ritmos e
tradições poéticas, melódicas e harmônicas”, claro está que o samba “tomou a cena e foi
106
eleito ‘ritmo oficial’ do Brasil” (COSTA, 2001, p. 132). Essa posição, porém, não se dá
sem o devido reconhecimento das múltiplas influências exercidas no processo de
configuração de nossa música popular, como um todo, marcado pela pluralidade de suas
formas artísticas e de seus posicionamentos estéticos, políticos e ideológicos. Na
interpretação de Napolitano (2007):
O fio da tradição da música popular brasileira construía-se a partir de nós
múltiplos, pontos de contato que iam sendo reunidos conforme os influxos e
as demandas do presente. Nos anos 1930, o samba passou a ser a categoriachave desse alinhavo. (NAPOLITANO 2007, p.31)
Se, como afirma o autor, o samba é a categoria-chave desse alinhavo, o Frevo é,
sem dúvida, um dos nós fundamentais de que se compõe o tecido multifacetado da
música popular brasileira. A identificação de diferentes aspectos de seu posicionamento
no campo do discurso literomusical, através da análise de canções produzidas ao longo
da evolução do gênero, permite-nos dimensionar a sua importância para a cultura
brasileira. A análise das configurações de sentido elaboradas a partir da cena
enunciativa e do ethos construído nessas obras possibilitará, por exemplo, a
compreensão do caráter identitário que subjaz à produção do Frevo.
3.4. Frevo e Identidade Cultural
Autores como Shuker (1998) apontam a música popular como um aspecto
relevante na tentativa de definição da identidade, em diferentes níveis: identidade
individual, ou subjetividade, identidade comunitária e identidade nacional. Noções
como as de sons locais e cena local, referidas pelo autor, bem como a promoção de
políticas culturais com vistas à valorização da produção local, embasam a compreensão
da música popular na definição de identidade comunitária. Considerando a noção de
identidade nacional como um constructo social associado a um espaço físico, Shuker
(1998) lembra a associação entre territórios nacionais e determinados gêneros musicais
– por exemplo, a salsa para os países do Caribe -, mas salienta, retomando Anderson
(1983), que as comunidades nacionais, construídas ou imaginadas, “são mobilizadas por
interesses particulares e emergem parcialmente em relação às diferenças de ‘outras’
[identidades]” (SHUKER, 1998, p. 169)
107
Hall (2004) também postula a compreensão da identidade a partir do
reconhecimento das diferenças. Para ele, “em vez de pensar as culturas nacionais como
unificadas, deveríamos pensá-las como constituindo um dispositivo discursivo que
representa a diferença como unidade ou identidade.” (HALL, 2004, p. 61, grifo do
autor). No caso do Frevo, a rede de significações que se estabelece a partir do seu
surgimento, no século XIX - inicialmente como fenômeno festivo de mobilização e
aglutinação popular -, ao lado de outras manifestações que vieram a compor o panorama
multifacetado do carnaval brasileiro, aos poucos o elevará à condição de fenômeno
característico da identidade cultural pernambucana. Conforme salienta Hall (2004) a
noção de identidade cultural diz respeito aos aspectos de nossas identidades que
“surgem de nosso ‘pertencimento’ a culturas étnicas, raciais, lingüísticas, religiosas e,
acima de tudo, nacionais.” (HALL, 2004, p. 8, grifo do autor).
Com a consolidação da música e da dança, associadas a outras manifestações
(indumentária, filmografia, pintura, estatuária), essa marca identitária do Frevo será
efetivamente consolidada e empregada, por exemplo, em ações governamentais do
Estado de Pernambuco para a área de turismo, com exposição de imagens alusivas ao
Frevo e veiculação de peças publicitárias com trilha sonora incluindo a música em suas
diferentes configurações (Frevo-de-rua, Frevo-de-bloco, Fravo-canção). No campo do
discurso literomusical, a noção de identidade cultural relacionada ao Frevo é ressaltada,
por exemplo, através do processo de validação da topografia, na elaboração da
cenografia de inúmeras canções analisadas neste trabalho. Numa canção como, por
exemplo, Pernambuco Você é Meu (Nelson Ferreira e Aldemar Paiva, 1955), a
cenografia é elaborada a partir da ênfase valorativa da topografia, corroborando o
sentido identitário do Frevo, ao lado de outros aspectos da cultura pernambucana (a
paisagem do rio Beberibe, a manifestação do maracatu, os sabores :
PERNAMBUCO, VOCÊ É MEU
(Nelson Ferreira e Aldemar Paiva, 1955)
Terra boa, meu Pernambuco
Que faz frevo bom e maracatu
Tem mais: banho em Beberibe
Cachaça gostosa, mangaba cheirosa ai, ai, ai
Tudo isso minha terra tem
[...]
108
De acordo com o documento do IPHAN que acompanha o parecer45 referente à
solicitação de registro do Frevo no Livro das Formas de Expressão como Patrimônio
Cultural Brasileiro, encaminhada pela Secretaria de Cultura da Prefeitura do Recife ao
Ministério da Cultura em 20 de fevereiro de 2006, uma compreensão do caráter
identitário do Frevo deve contemplar
[...] transformações e continuidade histórica; suas diferentes modalidades
musicais, instrumentais, rítmicas; seus emblemas e iconografias; seus
compositores, músicos e poetas; suas bandas e orquestras; seus dançarinos,
coreógrafos e brincantes; seus passos, gestos, danças, coreografias; os
sentidos atribuídos pelos sujeitos, apreciadores e estudiosos do frevo às suas
diferentes expressões; os conflitos e tensões que também constituem o frevo,
e/ou são constituídos por ele [...] (BRASIL. Ministério da Cultura.)
Ao recomendar “vivamente a inscrição do frevo no Livro de Registro das
Formas de Expressão e seu reconhecimento como Patrimônio Cultural do Brasil”, o
documento do IPHAN ressalta “a força do frevo enquanto símbolo identitário – não de
um grupo étnico específico, mas como símbolo de ‘pernambucanidade’, e, num sentido
mais amplo, de ‘brasilidade’”, concluindo que “conhecer o frevo é conhecer um pouco
mais
do
Brasil”
(BRASIL,
Ministério
da
Cultura,
disponível
em
http://www.iphan.gov.br/portal/montarDetalheConteudo.do?id=13515&sigla=Institucional&ret
orno=detalheInstitucional, <acesso em 26/08/2010>)
3.5. Frevedouro, Frevolência: a experiência sinestésica do Frevo nas ruas
“Não se pode fazer ideia do que era o povo do Recife, solto nas ruas do
Recife, após a declaração irreversível do carnaval. Faziam parte da corte
imperial mulheres morenas, que suavam, em bolinhas, na boca e no nariz.
Mulheres de olhos ansiosos, presas de todos os atavismos de religião e de
dor, a dançar a mais verdadeira de todas as danças – o frevo.”
(Antônio Maria, Carnaval Antigo...Recife)
O reconhecimento do Frevo como marca identitária da cultura pernambucana e
como traço de brasilidade dá-se a partir de uma rede complexa de significações, que
45
Parecer nº 007/06, emitido pela Gerência de Registro do Departamento de Patrimônio Imaterial do
IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) do Ministério da Cultura, referente ao
processo nº 01450.002621/2009-96 (disponível em
http://www.iphan.gov.br/portal/montarDetalheConteudo.do?id=13515&sigla=Institucional&retorno=detal
heInstitucional, acesso em 26/08/2010)
109
inclui a compreensão do contexto sócio-histórico de desenvolvimento da música, em
articulação com a dinâmica de evolução da festa nas ruas do Recife e de Olinda. No
plano discursivo, a análise de canções produzidas em diferentes momentos históricos
nos permite identificar a construção de um ethos revelador dessa identidade, a partir da
elaboração das letras, contemplando, por exemplo, a noção de incorporação, que diz
respeito à presença de um corpo físico investido dos valores culturais pertinentes à
dança e à música do Frevo. Além da canção, outros gêneros somam-se nessa rede
complexa de significações, através da qual o Frevo assume papel de destaque no cenário
da cultura brasileira.
Para enfocar o plano do vocabulário, conforme proposta de Maingueneau (2008)
referida acima, desenvolvemos algumas reflexões acerca da importância dos nomes que
definem a presença do Frevo no campo do discurso literomusical. Incorporamos um
aspecto fundamental da concepção bakhtiniana de linguagem, que é a compreensão do
seu caráter sócio-ideológico, base da teoria do dialogismo. Trata-se da necessária
vinculação entre a palavra - a língua - e a situação concreta em que se dá a sua
emergência, no discurso. Em resumo, Bakhtin postula que a compreensão do fenômeno
linguístico só é possível a partir da interação verbal, que é “a realidade fundamental da
língua” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992, p. 123), em sua dimensão histórica, social e
cultural. Ou seja, o estudo da língua deve contemplar
o estudo das relações entre a interação concreta e a situação extralingüística –
não só a situação imediata, mas também, através dela o contexto social mais
amplo. [...] A comunicação verbal não poderá jamais ser compreendida e
explicada fora desse vínculo com a situação concreta. (BAKHTIN;
VOLOCHINOV, 1992, p. 124)
Nessa perspectiva, a palavra ganha uma importância fundamental, porque não é
mais enfocada apenas a partir da análise gramatical ou filológica, tal como no século
XIX e início do século XX. Conforme assinala Stella (2005), na visão bakhtiniana de
linguagem a palavra deixa de ser encarada como um elemento abstrato, “desvinculada
de sua realidade de circulação e posta como centro imanente de significados captados
pelo olhar/ouvido fixo do observador” (STELLA, 2005, p. 177). Ela é reposicionada
“em relação às concepções tradicionais, passando a ser encarada como um elemento
concreto de feitura ideológica.” (STELLA, 2005, p. 178).
Para isso, a palavra deve ser apreendida em sua relação direta com a vida,
considerando o contexto extraverbal do enunciado, que compreende três fatores: “1) o
110
horizonte espacial comum dos interlocutores [...], 2) o conhecimento e a compreensão
comum da situação por parte dos interlocutores, e 3) sua avaliação comum dessa
situação”
(BAKHTIN;
VOLOCHINOV,
1929).
Assim,
conforme
Bakhtin
(Volochinov), a situação extraverbal “se integra ao enunciado como uma parte
constitutiva essencial da estrutura de sua significação.” (BAKHTIN/ VOLOCHINOV
1929).
O estabelecimento desse vínculo, com a diluição das fronteiras entre a palavra e
a vida - o mundo extraverbal, o contexto sócio-ideológico que a engendra -, é percebido
de maneira mais evidente através da entoação. Para Volochinov/ Bakhtin (1929),
A entoação estabelece um elo firme entre o discurso verbal e o contexto
extraverbal – a entoação genuína, viva, transporta o discurso verbal para
além das fronteiras do verbal. [...] Na entoação, o discurso entra diretamente
em contato coma vida. E é na entoação sobretudo que o falante entra em
contato com o interlocutor ou interlocutores – a entoação é social por
excelência. Ela é especialmente sensível a todas as vibrações da atmosfera
social que envolve o falante. (VOLOCHINOV/BAKHTIN 1929, mimeo)”
À luz dessas considerações, a emergência do Frevo na cultura brasileira pode ser
compreendida a partir das vozes que começam a tecer uma rede de significações que
emerge no espaço da rua, consolidando-se depois por meio de diversos gêneros do
discurso. Em geral, essas vozes assumem um tom exclamativo, de exaltação diante da
onda frenética que evolui ao som da música, numa mistura dos sentidos do corpo em
movimento, como veremos adiante. Elas são recuperadas em diversos registros na
forma escrita, em artigos, poemas, textos em prosa, letras de canção.
“Olha o Frevo!” é um enunciado que traduz o significado dessas vozes, numa
entoação exclamativa que recupera a impressão de eufórica exaltação diante do novo
fenômeno cultural vivido nas ruas do Recife. Aos poucos, o enunciado assume também
a forma de registro verbal impresso, transformado, por exemplo, em título de música
(música nº. 4 do repertório do Clube Lanceiros Camaragibenses, publicado na edição de
21 de fevereiro de 1909 do Jornal O Lanceiro – órgão do Club Carnavalesco Lanceiros
Camaragibenses ) e de poema, assinado por um certo Máscaras Avulsos:
Olha o Frevo!...
Lá vem a Troça desenfreada
Por entre guizos. Jasmins e rosas
Fazendo versos, deitando prosas
Ao som gostoso da Gargalhada!
111
(O Fantoche – órgão do Clube Fantoches do Recife, Carnaval de 1913. In:
PERNAMBUCO 2004)
A mesma exclamação está também no início do texto intitulado simplesmente O Frêvo,
publicado no Jornal O Sapato e assinado por Vitopolis:
- Olha o frêvo! Olha o frêvo!
Que balbúrdia infernal. Que vozerio ensurdecedor! Que endiabrada
mixórdia!
[...]
E lá surge, na esquina de uma rua toda engalanada de bandeiras e
folhagens, o ‘cordão’ [...]
(O Sapato, orgam [sic] da Troça Carnavalesca Sapateiros, Recife, 2, 3 e 4
de fevereiro de 1913, nº 2. In: PERNAMBUCO 2004)
Uma análise do contexto sociocultural que define o processo de configuração do
Frevo revela, porém, que a exclamação destacada assume outras significações, além do
mero sentido de exaltação à folia. A complexidade do momento de transição por que
passa a sociedade brasileira, na segunda metade do século XIX, também se reflete
nessas vozes, revelando tensões e conflitos. Assim, “Olha o Frevo!” também
significará, em determinado momento da história, um sinal de advertência, um alerta
das classes dominantes frente ao crescimento de um carnaval popular, que ganhará as
ruas com força incontrolável.
De fato, mudanças significativas ocorrem no século XIX, sobretudo nas décadas
que se seguem à proclamação da Independência. Aos poucos, a brincadeira do Entrudo,
vivenciada “entre famílias nas moradas senhoriais ou nas ruas e nos largos onde
geralmente se divertiam os escravos e os homens livres pobres” (ARAÚJO, 2008, p.
85), que atiravam entre si limões e limas de cheiros46, pós, vasilhames d’água e de
outros líquidos, dava lugar a um carnaval que “passou a agregar diferentes sujeitos
sociais e a promover diversificados modos de convívio entre eles: pacíficos, de disputas
ou de confronto” (ARAÚJO, 2008, p. 85). A brincadeira do Entrudo, vista pelos
segmentos dominantes da sociedade como sinal de atraso, costume pouco civilizado
ligado ao passado colonial, passa a ser reprimida pelo governo Imperial. As elites
urbanas do país buscam, então, um modelo europeu para o carnaval, que é vivenciado
nos desfiles de mascarados a cavalo e nos bailes realizados em espaços fechados, como
os teatros e os salões dos clubes, enquanto nas ruas o povo se diverte brincando “nos
46
Duarte (1968) esclarece que as limas de cheiro eram um costume português trazido para o Brasil.
Consistia num espécie de ovo, confeccionado com cera, cheio de água perfumada que era atirado nas
pessoas. [...] Com o correr dos tempos, tais limas passaram a ser cheias de água-forte e outras drogas
venenosas, constituindo seu emprego em grande perigo” (DUARTE 1968, p.14)
112
sambas, maracatus, cambindas, fandangos, caboclinhos, nos bumba-meu-boi, grupos de
Zé Pereira e máscaras improvisadas.” (ARAÚJO, 2008, p. 86)
A partir da Abolição da escravatura, como vimos acima, o surgimento de
inúmeras agremiações, com destaque para os clubes pedestres, formados por indivíduos
pertencentes a uma mesma categoria profissional, resultará no expressivo aumento da
popularidade da festa. Apesar da intolerância dos segmentos dominantes da sociedade,
inclusive com gestos de repressão violenta, esses clubes, acompanhados de suas bandas,
arrastam cada vez mais pessoas, e é nesse contexto de ebulição da festa, ao som das
marchas e dobrados, que se moldam os primeiros gestos do Frevo, cujos protagonistas
incluem as pessoas comuns que acompanham essas agremiações, a gente pobre das
classes desfavorecidas, “desocupados, vadios, moleques de rua, capoeiras” (ARAÚJO,
2008, p. 86).
É esse, enfim, o contexto de surgimento da palavra Frevo no panorama da
cultura brasileira, empregada para designar precisamente o movimento frenético da
onda humana ao som da música das bandas. Compreendemos, assim, que a experiência
cultural elaborada a partir das manifestações do Frevo, desde o seu aparecimento no
cenário musical no carnaval brasileiro, tem um caráter sinestésico, porquanto se define,
nos estudos literários, o conceito de sinestesia, a saber, “a transferência de percepção de
um sentido para outro, isto é, a fusão, num só ato perceptivo, de dois sentidos ou mais.”
(MOISÉS, 1988, p. 478). Quanto a isso, são exemplares algumas descrições,
encontradas em obras como, por exemplo, o romance Seu Candinho da Farmácia, de
Mário Sette, publicado em 1933 e destacado por Tinhorão (1991, p.151). A citação é
consideravelmente longa, mas exemplar:
Aquela massa de corpos e de almas vinha numa obediência absoluta e gostosa à
cadência voluptuosa, ardente e volúvel da marcha. A cada vez que a orquestra
repetia num enfarofado de acordes a introdução todo o povo redemoinhava,
refervia nas atitudes mais caprichosas, mais cômicas, mais delirantes. Dir-se-ia
que tentavam misturar, confundir, trocar os membros, os troncos, as cabeças,
para depois ir procurá-los de novo. E no soerguimento da música lá se iam todos
na impetuosidade da ‘onda’ no esbandalhamento do ‘passo’, de pernas abertas
em tesouras, de cócoras em saca-rolhas, de bustos empinados para a frente em
rapidez, de nádegas oferecidas ao alto, de mãos trançadas nas nucas, de narizes a
farejar os cangotes femininos, de braços dados em cordões, de barrigas coladas,
caras rentes, de bocas grudadas...
[...]
De súbito uma rápida e brusca estacada da música. A multidão empaca,
endurece, espera. Cada um guardando a posição em que foi recolhido. Numa
esplêndida mostra de modelos. Dentes de fora, risos escancarados, testas suadas,
lábios abertos, olhos esbugalhados...
Segundos apenas. Vence-se a síncope dos instrumentos. A orquestra recomeça
num renovado empurrão de marcha. E de novo todos se movimentam, se
113
esfregam, se torcem, se enlaçam, se verticalizam, se cheiram, se beijam, se
apalpam, se agacham, como se a música lhes penetrasse veias adentro para ir
fazer-lhes cócegas no sangue.
E seguem rua afora, dançando e cantando, na confusão carnavalesca dos
coloridos, dos trajes, dos azougues, dos olhares, das quenturas dos contatos, dos
hálitos de lascívia, dos cheiros de suores, das escalas das risadas, das
tonalidades das peles, dos contrastes das posições, das harmonias das canções,
dos mistérios dos sentimentos. (SETTE, Mário. Seu Candinho da Farmácia,
1933, p. 61 in TINHORÃO,J.R. 1991, p.151)
Nesse fragmento, observa-se como o autor percebe a experiência vivida pelas
suas personagens no fulgor da “onda” que o Frevo embala, numa mistura de elementos
sensoriais que conjugam estímulos auditivos, visuais, tácteis, olfativos – “harmonias”,
“tonalidades de pele”, “quenturas”, “cheiros” – em clima de sensualidade que se
manifesta nos movimentos da dança e nos gestos daqueles que “se esfregam, se torcem,
se enlaçam, se verticalizam, se cheiram, se beijam, se apalpam.”
A descrição apresenta, com detalhes, o clima de intensa euforia vivido nas ruas
durante o carnaval, e ajuda a compreender o sentido do termo Frevo, em sua origem,
como variação do verbo ferver47 para designar o rebuliço do povo nas ruas, durante o
carnaval. Silva (2000, p. 102) lembra a definição de Luís da Câmara Cascudo48, para
quem o Frevo indica “confusão, movimentação desusada, rebuliço, agitação popular”.
Há, portanto, uma motivação sinestésica na etimologia do Frevo (e de seus
derivados frevolência, frevedouro etc.), de início associada claramente à imagem da
movimentação do povo nas ruas e ao calor dos corpos em movimento, ainda no século
XIX, num momento em que a palavra não designa propriamente a dança, nem a música,
mas sim o frevedouro que se verificava nos desfiles dos clubes, conforme destaca Silva:
“Naquela confusão e rebuliço, efervescência de sons e vozes, apertões de corpos suados,
estava surgindo aquilo que, anos depois, a sabedoria popular veio sintetizar num só
vocábulo: frevo.“ (SILVA, 1991, p.XL, grifo do autor). Ao longo de sua história,
consolidando-se
enquanto
manifestação
poético-musical,
através
da
indústria
fonográfica e do rádio, a palavra também subsumirá a música e a dança.
Como já anunciamos acima, buscamos identificar, a partir da análise do FrevoCanção, alguns elementos delineadores de uma semântica global do Frevo, que deve
integrar, conforme a proposta de Maingueneau (2008), diferentes planos discursivos,
imbricados, por exemplo, na elaboração do ethos discursivo em diferentes aspectos do
47
O Dicionário do Frevo registra que é “forma metatética de fervo, deverbal regressivo de ferver” (in
CARVALHO, MOTA e BARRETO, 2000, p. 56)
48
CASCUDO, C. Locuções Tradicionais no Brasil, 1977
114
posicionamento no campo do discurso literomusical. Um desses planos é o do
vocabulário, que, nesse caso, organiza-se a partir da consolidação da palavra Frevo na
cultura brasileira.
É no calor da onda frevolenta que as melodias das marchas e dobrados
executados pelas bandas aos poucos vão recebendo letras, ainda no século XIX. De
início sem autoria definida, elas surgiam da criatividade popular, motivada por questões
diversas, como a rivalidade entre os entusiastas seguidores das bandas, ou a sátira sobre
situações quotidianas. Nos seus desfiles, executando dobrados e arrastando a multidão,
as bandas traziam à frente os capoeiristas abrindo caminho e não raro protagonizando
cenas de violência, motivadas pela rivalidade. De acordo com os registros históricos (cf.
TINHORÃO, 1991; ARAÚJO, 1996; SILVA, 2000; SALDANHA, 2008 e outros), as
mais famosas eram a do Quarto Batalhão de Artilharia (ou simplesmente O Quarto) e a
do Corpo da Guarda Nacional, conhecida como Espanha, porque seu mestre regente era
o espanhol Pedro Garrido. Entre alguns dos versos anotados neste período, Silva (2000)
cita os seguintes, marcados por um forte sentido de desafio e confronto:
Não venha!
Chapéu de lenha
Partiu, caiu
Morreu, fedeu”
ou ainda estes:
Viva o Quarto
Morra Espanha
Cabeça seca
É quem apanha.
(In SILVA 2000, p. 98)
Acerca desses últimos versos, Tinhorão (1991) esclarece que a expressão cabeça
seca “era uma injúria para os assim alcunhados, porque equivalia ao mesmo que chamálos de escravos”, já que, ao toque do sino da Matriz de Santo Antônio, “os escravos
eram obrigados a correrem para a casa dos seus senhores às nove horas da noite, não
podendo assim gozar do sereno, e por isso jamais podendo ter a cabeça molhada.”
(TINHORÃO, 1991, p.139)
Da mesma época são os versos atribuídos pelo povo ao dobrado intitulado
Banha Cheirosa, anotados por Francisco Augusto Pereira da Costa (1851-1923).
Segundo esse autor
Levavam os capoeiras partidários de música o seu entusiasmo por certas
peças, a ponto de comporem versos apropriados ao canto de alguns passos
115
dobrados [...] E estes outros, cantados no trio de um dobrado do 4º Batalhão
de Artilharia, a quem denominavam de Banha Cheirosa, dobrado que levava
ao delírio os partidários do Quarto, principalmente quando chegava a parte de
uma pancada em falso dada pelo bombo no trio da peça (in SOUTO MAIOR;
SILVA 1991, p.195)
Percebe-se nos versos o espírito inventivo da população, revestidos de um teor
de propaganda do produto anunciado, em tom jocoso e irreverente:
Quem quiser
Comprar banha cheirosa
Vá na casa
Do Doutor Feitosa.
Quem quiser
comprar banha de cheiro
vá na casa do Doutor Teixeira.
Banha cheirosa
Para o cabelo
Banha de cheiro
Pro corpo inteiro
(in SOUTO MAIOR e SILVA 1991, p.196)
Aos poucos, essa música cantada, que em breve será levada ao sudeste do país e
entrará no mundo fonográfico com o nome de marcha pernambucana, espraia-se por
todos os segmentos sociais representados no carnaval, através dos clubes carnavalescos
das elites (chamados de clubes de alegorias e críticas) ou dos clubes pedestres, formados
por pessoas das camadas subalternas e vinculados ao mundo do trabalho, como vimos
acima49.
O Frevo mais conhecido do carnaval pernambucano, até hoje, está vinculado a
um desses clubes pedestres. É Vassourinhas, de Matias da Rocha e Joana Batista,
composta em 1909, originalmente uma marcha cantada, com esta letra, que aproveita
um motivo folclórico:
Se esta rua fosse minha
Eu mandava ladrilhar
Com pedrinhas de brilhantes
Pra Vassourinhas passar
Ah! Reparem meus senhores
O Pai deste pessoal
Que nos faz sair às ruas
Dando viva ao carnaval
Somos nós os Vassourinhas
Todos nós em borbotão
Vamos varrer a cidade
49
Notícia do Jornal Pequeno, de 7 de fevereiro de 1906, anuncia, por exemplo, a realização do primeiro
ensaio da “Troça Verdureiros em Greve” (In RABELLO 2004, p.164)
116
Com cuidado e precisão
Bem sabeis do compromisso
Que nos leva a assim fazer:
E mostrar nossas insígnias
E a cidade se varrer
O Clube Carnavalesco Misto Vassourinhas foi fundado em 1889. A canção,
batizada de Marcha n. 1 do Vassourinhas, exalta o símbolo da agremiação (“nossas
insígnias”) com o qual os integrantes assumem o compromisso de varrer a cidade. De
acordo com Araújo (1996), a vassoura, assim como os símbolos de outras agremiações,
tinham valor polissêmico. Nomes como, por exemplo, “vassoura, pá, espanador,
abanador, vasculhador, ciscador”, usados para batizar alguns clubes pedestres,
pertencem a uma mesma categoria de “utensílios cuja função principal era a de limpar,
varrer, lustrar, assear, clarear etc.” e que, além de evocarem a realidade do trabalho,
“eram utilizados com o sentido de fazer a crítica à moral e aos costumes”, no contexto
carnavalesco da Primeira República. Nesse aspecto, continua Araújo, “os clubes
pedestres,
formados
por
indivíduos
pertencentes
aos
segmentos
populares,
demonstravam partilhar, a seu modo, valores e práticas especialmente cultivados pelas
camadas dominantes” (ARAÚJO, 1996, p. 352). Na prática, a crítica elaborada por
esses grupos se dirigia, em geral, às esferas de atuação da própria comunidade,
raramente extrapolando esse limite para atingir, por exemplo, figuras públicas e
autoridades políticas50. No final das contas, conforme analisa a autora, os clubes
terminavam por reproduzir, em grande parte, um discurso moralizante subjacente à ação
de disciplinamento empreendida pelo Estado, como veremos adiante.
A referência ao “pai desse pessoal” pode ser explicada a partir da descrição feita
por Silva (1991) acerca da formação típica e das apresentações dos clubes pedestres:
[...] essas associações profissionais vinham às ruas do Recife com suas
dezenas de morcegos [fantasia muito popular à época], abrindo frente na
multidão, seus cordões vestidos com camisas de seda japonesa e calça de
flanela, liderados por dois balizas encarregados da evolução, seus portaestandartes [...], quatro balizas ‘serra-filas’ abrindo alas para a apresentação
dos estandartes, sócios mais graduados trajando fina seda, com sobrinhas
cobertas pelo mesmo tecido [...] trazendo ao centro o Papai do Clube – um
tipo gordo, fantasiado de palhaço de circo, com um ‘buquet’ numa mão e na
outro um grosso bastão, fazendo graça para o povo (SILVA, Leonardo D.
1991, p.XXXVII, grifo do autor)
50
Araújo aponta apenas três clubes como exceções: Vasculhadores, Caiadores e Emboca (ARAÚJO
1996, p.353)
117
O processo de configuração do Frevo-canção é, portanto, marcado pela
complexidade de um período rico em transformações na sociedade brasileira. Como
todo gênero cancional, ele incorpora a voz à estruturação harmônica e melódica de um
determinado gênero musical – no caso do Frevo, investido de reconhecido valor
identitário. “Olha o Frevo!” é, como dissemos acima, o enunciado que sintetiza a reação
popular diante da força do novo fenômeno cultural. Trata-se de um enunciado revestido
de caráter eminentemente social, que exemplifica ainda a noção bakhtiniana de
acabamento, pelo qual se confere a todo enunciado a força de uma atitude resposiva
ativa:
A compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre
acompanhada de uma atitude responsiva ativa. [...] O locutor postula esta
compreensão responsiva ativa: o que ele espera, não é uma compreensão
passiva [...] o que espera é uma resposta, uma concordância, uma adesão,
uma objeção, uma execução etc. (BAKHTIN, 2000, pp.290-291)
A noção de acabamento do enunciado é o que possibilita, então, essa atitude
responsiva: “o acabamento do enunciado é de certo modo a alternância dos sujeitos
falantes vista do interior” (BAKHTIN, 2000, p. 299). Essas considerações de Bakhtin
fundamentam a sua teoria do dialogismo. Em certa medida, essa visão da língua como
fenômeno eminentemente social é ressaltada por Zumthor (2005), ao analisar a
importância da voz para a cultura. Ao chamar a atenção para o enunciado destacado
acima, reiteramos a sua posição, resumida na afirmação de que “as diversas sociedades,
em
vários
momentos
no
curso
da
História,
valorizaram
esta
existência
fundamentalmente social da voz.” (ZUMTHOR, 2005, p.66)
A seguir, analisamos canções gravadas a partir dos anos de 1930 para a
descrição de alguns aspectos do posicionamento do Frevo, com base na elaboração da
cenografia e do ethos discursivo nessas obras. É a partir desse momento, como veremos,
que o Frevo-canção será registrado por algumas das vozes mais importantes da história
da música popular brasileira.
118
3.6. Encontros, confrontos e gingados: a dança dos nomes e o aspecto guerreiro do
Frevo
As canções Sá Zeferina Tá de Vorta e Frevo Pernambucano têm a importância
histórica dos primeiros registros da palavra Frevo no mundo do disco. A primeira,
composição de Valdemar de Oliveira (sob pseudônimo de José Capibaribe) lançada em
1930 pela gravadora Victor, com interpretação de Mário Pessoa, traz pela primeira vez
o nome do Frevo numa letra. A segunda, uma parceria de Luperce Miranda e Oswaldo
Santiago, lançada um ano depois, ou seja, em 1931, pela Odeon, com interpretação de
Francisco Alves, é o registro pioneiro da palavra Frevo no título de uma obra musical
gravada51. Além da importância histórica, nesse momento de inserção do novo gênero
no panorama da música brasileira, as obras se destacam por revelarem, na análise das
cenas enunciativas, alguns aspectos delineadores do posicionamento do Frevo no campo
do discurso literomusical brasileiro a partir de um projeto enunciativo comum de
afirmação identitária – gesto de demarcação de terreno no campo literomusical
brasileiro –, de que trataremos a seguir.
A propósito da definição da noção de posicionamento, lembramos, com
Maingueneau (2006), que ela trata da “construção de uma identidade enunciativa que é
tanto ‘tomada de posição’ como recorte de um território cujas fronteiras devem ser
incessantemente redefinidas” (MAINGUENEAU, 2006, p. 151). Essa definição de
posicionamento está de acordo com a posição de Costa (2001), para quem
posicionamentos devem ser encarados como “momentos de um percurso”. O autor
salienta, ainda, que
Posicionamentos implicam não apenas idéias, mas a existência de
comunidades discursivas, que partilham um conjunto de ritos, normas e
modos de ser correspondentes a uma série de papéis sócio-discursivos, que
produzem, reproduzem, consomem, fazem circular textos. (COSTA, 2001, p.
166, grifo do autor)
Claro está, portanto, que a identificação de diferentes aspectos do
posicionamento do Frevo no discurso literomusical brasileiro, a partir da análise do
Frevo-Canção, levará em conta também a produção de outros textos – além das letras
51
A primeira referência ao Frevo como gênero musical aparece em janeiro de 1931, no selo do disco com
a gravação de Vamos se acabá, de Nelson Ferreira. Trata-se de um Frevo-de-rua, ou seja, uma obra
instrumental, com interpretação da Orquestra Guanabara (disco 78 rpm, Parlophon nº 13.259)
119
das canções - que circulam entre os membros da comunidade discursiva do Frevo, e que
incluem, por exemplo, notícias, comentários, análises.
O primeiro aspecto que incide na delimitação desse novo território no campo do
discurso literomusical brasileiro diz respeito à inserção do Frevo e a sua afirmação a
partir da sua forma na dança, considerando as configurações de sentido elaboradas com
base no caráter polissêmico do binômio Frevo/passo. Embora a dança do Frevo seja
recorrentemente referida como passo, observamos um conjunto de canções cujo projeto
enunciativo empreende um gesto afirmativo a partir da reafirmação do nome Frevo,
inclusive para designar a sua coreografia. Consideramos que tais canções contribuem,
com seu gesto afirmativo, para a consolidação da identidade discursiva do Frevo como
fenômeno cultural fortemente baseado na imagem do corpo em movimento. Como
vimos acima, a palavra Frevo é empregada inicialmente – desde os fins do século XIX –
como sinônimo da movimentação frenética da multidão em festa. Ela não designa
propriamente a música, nem a dança especificamente. É somente a partir de 1936 que se
dá a categorização da música, com a identificação dos três tipos de Frevo (de rua, de
bloco e canção) que passa a ser inscrita nos selos dos discos, no lugar das antigas
denominações – marcha nortista, marcha pernambucana etc. Belfort (2009) assinala que
essa definição foi resultado do trabalho de uma comissão formada, dentre outros, pelo
jornalista Mário Melo e pelo compositor Nelson Ferreira, que, na condição de diretor
artístico da Rádio Clube de Pernambuco, teve uma contribuição fundamental para a
ascensão do Frevo no mundo do disco. Saldanha (2008) ressalta a importância desse
momento, como reflexo, por um lado, das exigências da mídia e, por outro, dos anseios
dos próprios artistas pernambucanos:
Como produto de exportação divulgado através da grande mídia da época – o
rádio –, esse gênero musical requeria nomenclatura própria e distintiva, que
facilmente o identificasse entre os demais [...]. Isso, não só, já era um anseio
por parte dos pernambucanos, principalmente entre os músicos que,
naturalmente percebiam na sua música as nuances distintivas de gênero, se
tornando alguns compositores prediletos nessa ou aquela especialidade, como
também, era uma necessidade mercadológica. A indústria fonográfica e a
mídia radiofônica precisavam de rótulos para melhor identificar esses
produtos, fato que também aconteceu a outros gêneros musicais por todo o
Brasil, como por exemplo, no caso do samba que se tornou de Breque,
Exaltação, Partido Alto, etc... (SALDANHA, 2008, p. 167)
Para a dança, costumava-se empregar – como, aliás, ainda hoje, em grande parte
– o nome de passo, de acordo com a definição de Valdemar de Oliveira, feita de forma
categórica: “O passo é a dança que se dança com o frevo.” (OLIVEIRA, 1985, p. 99).
120
O segundo aspecto da inserção do Frevo no campo do discurso literomusical a
partir do Frevo-canção relaciona-se à sua caracterização como manifestação de
excessiva virilidade e força, como resultado do ambiente de acirrada disputa em que
surgiu, marcado pelo confronto entre partidários das bandas militares responsáveis pela
música, como acima referido. Trata-se de um aspecto abordado por diversos autores
(DUARTE, 1968; OLIVEIRA, 1985; ARAÚJO, 1994; SILVA, 2000, entre outros) e
registrado na imprensa do Recife, desde os fins do século XIX até os primeiros anos do
século XX (v. RABELLO, 2004), com o relato de confrontos sangrentos, com feridos e
mortos. Em geral, a explicação apresentada para o fenômeno está na atuação dos
praticantes da capoeira, motivados, como analisa Duarte (1968), pela rivalidade pura e
simples entre integrantes de agremiações distintas ou, ainda, por um sentimento de
aversão à figura do português, sentimento construído ao longo de séculos de resistência.
Esse autor considera, em resumo, que a violência é uma característica seminal do Frevo:
O frevo foi feito para ferir. E foi mesmo. Tudo nele denuncia esse atavismo
sangrento, a música marcial, os símbolos estranhos, se prestando, como
nenhuma outra coisa, como eles, aparentemente inocentes, para a agressão,
para a briga, como arma de ataque, a dança, uma caricatura da capoeira,
enfatizando a parte ofensiva dessa arte de defesa pessoal. (DUARTE, 1968,
p. 53)
Embora não seja um trabalho de cunho científico, e algumas de suas posições
sejam passíveis de contestação, a obra de Duarte representa um válido esforço
interpretativo sobre esse aspecto do Frevo, enraizado na memória coletiva do povo
pernambucano. De acordo com Araújo (1996), esses traços “violentos, guerreiros e
belicosos” do Frevo remetem, na interpretação de Duarte (1968), ao “passado de lutas e
guerras, rebeliões e revoluções em que esteve mergulhada a província, desde os tempos
coloniais até a primeira metade do século XIX.” (ARAÚJO, 1996, p. 39) De acordo
com essa interpretação, portanto, o Frevo traz em si uma marca de resistência, que é
negada por outros autores, como veremos adiante.
A canção Frevo Pernambucano exemplifica, assim, a construção de um ethos
viril e belicoso, caracterizado pela imagem da violência dos confrontos em pleno
movimento frenético da folia. Trata-se, na verdade, de uma configuração de sentidos
poucas vezes registrada nas letras do Frevo-canção, embora encontrada em diversos
títulos de Frevos-de-rua. Aos poucos, ela vai sendo redefinida, restringindo-se ao caráter
vigoroso e à energia do movimento da dança, em um contexto de ação política de
121
ordenação, regulação e controle da atividade carnavalesca das agremiações, já a partir
de meados dos anos de 1930, com a criação da Federação Carnavalesca Pernambuca.
Apresentamos, a seguir, uma breve análise das duas obras, a fim de observar esse
segundo aspecto do posicionamento do Frevo. Começamos por Sá Zeferina Tá de Volta
(Valdemar de Oliveira) e, mais adiante, em 3.6.2 (página 141), enfocamos Frevo
Pernambucano (Luperce Miranda e Oswaldo Santiago).
3.6.1. O nome da música na dança: Frevo festa, folia e coreografia
SÁ ZEFERINA TÁ DE VORTA
(Valdemar de Oliveira, sob pseudônimo de José Capibaribe)_1930
No carnaval buscando alguém
De vorta está
Sá Zeferina meu bem
O passo faz como ninguém
E sempre é
Sá Zeferina meu bem
Vem cá dançar que o Frevo já começou
E o meu amor ainda não se acabou
Aguenta o passo e trata bem
No carnaval
Sá Zeferina meu bem
A sua graça ninguém tem
E podes crer
Sá Zeferina meu bem
Vem cá dançar que o Frevo já começou
E o meu amor ainda não se acabou
O carnaval só graça tem
Se nele está
Sá Zeferina meu bem
E quando se sabe que ela vem
A gente diz
Sá Zeferina meu bem
Vem cá dançar que o Frevo já começou
E o meu amor ainda não se acabou
Sá Zeferina Tá de Vorta ilustra a complexidade do processo de nomeação do
novo fenômeno cultural do carnaval brasileiro, com a dupla designação – Frevo e passo
– empregada para referir diferentes aspectos da sua emergência no campo do discurso
literomusical, como se vê na letra. No primeiro verso do refrão (“vem cá dançar que o
122
Frevo já começou”), “Frevo” tanto pode indicar o ajuntamento, a onda humana também
denominada popularmente de frevedouro, como pode também indicar a música ou a
dança. No verso “o passo faz como ninguém”, passo indica a coreografia do frevo, a
dança. Mas em “aguenta o passo e trata bem”, a palavra passo designa também o vigor
físico e a resistência necessários para acompanhar o ritmo frenético que caracteriza a
festa.
Destacando a presença de uma personagem feminina, Sá Zeferina, a cenografia
da canção é elaborada no sentido de valorizar o aspecto festivo da dança, através da
qualificação da personagem (“a sua graça ninguém tem”) e da exaltação a sua
habilidade (“o passo faz como ninguém”). Em resumo, o enunciador associa a presença
da personagem ao sentimento de alegria e à promessa de amor, conforme se depreende
da leitura do segundo verso do refrão (“E o meu amor ainda não se acabou”). A canção
tem uma introdução elaborada, com estruturação harmônica baseada num sincopado
vigoroso, mas é, de fato, uma canção bastante simples, a qual inserimos na categoria
canção de encontro, definida por Tatit (2004) como aquela “com melodia contendo
termos recorrentes, centrada no refrão e com letra celebrando a união do enunciador ou
dos personagens com seus objetos e seus valores” (TATIT, 2004, p. 97). De modo geral,
as canções carnavalescas inserem-se nessa categoria, que é exemplificada pelo autor
com as marchinhas e os sambas carnavalescos.
Assim como em outras obras, interessam-nos, nessa canção, as ocorrências de
Frevo e passo, palavras-chave na elaboração da rede de significações em torno do novo
gênero de música e dança, para uma tentativa de definição de uma semântica global do
Frevo. Ao longo da evolução do gênero na história da música brasileira, observamos
que elas incidem sobre os vários planos de elaboração discursiva - quais sejam: o
vocabulário, os temas e a dêixis enunciativa, por exemplo - conforme proposta de
Maingueneau (2008). A dupla designação, empregada sobretudo a partir dos anos de
193052, serve para distinguir as peculiaridades da música – o Frevo – e da dança – o
passo –, cuja emergência no cenário cultural brasileiro é abordada assim pelo próprio
autor da canção, Valdemar de Oliveira:
52
De acordo com Maria Goretti de Oliveira (in Danças Populares como espetáculo público no Recife –
1970-1988, Recife, Ed. do autor, 1991), o primeiro registro impresso do termo passo identificando a
dança do Frevo foi publicado por Valdemar de Oliveira em 1947 (OLIVEIRA ,M.G. 1991 apud LÉLIS,
Carmen 2011, p.19)
123
foi, de fato, no Recife [...] dos fins do século XIX, começos deste [século
XX], que a música foi aparecendo, conduzindo a dança, ou a dança foi
tomando corpo, sugerindo a música. É impossível distinguir bem: se o frevo,
que é a música, trouxe o passo ou se o passo, que é a dança, trouxe o frevo.
As duas coisas se foram inspirando uma na outra – e complementaram-se.
(OLIVEIRA, 1985, p.11)
Desde então, essa dupla designação tem sido aceita e reproduzida em diversas
instâncias discursivas – por exemplo, na imprensa, na própria produção literomusical e
na esfera oficial de promoção e divulgação do carnaval (a Prefeitura do Recife promove
anualmente, por exemplo, concurso de passistas para eleger os melhores dançarinos de
Frevo). Entretanto, a complexidade da questão suscita polêmica dentro da própria
comunidade discursiva do Frevo, como se depreende, por exemplo, das posições de
Valéria Vicente (2009), artista e estudiosa da dança Frevo – a autora prefere essa
denominação em lugar de passo. Para ela, o nome passo restringe a compreensão da
dança do Frevo, em sua riqueza coreográfica, haja vista o uso corrente da palavra como
“nomeação comum a várias danças populares” (VICENTE, 2009, p.48). Como
exemplo, lembra-nos que “no samba [...], os dançarinos que se desenvolvem com
destreza também são chamados de passistas.” (VICENTE, 2009, p. 48). Essa posição,
em favor da atribuição do nome Frevo também à dança, é reiterada por Walmir Chagas,
músico, ator e dançarino, ex-integrante do Balé Popular do Recife. Em entrevista
publicada em Lélis (2011), ele afirma: “O que ficou como frevo foi a música e o passo
dividiu-se como o que dança, só que na verdade frevo é a música e a dança juntos”
(LÉLIS, 2011, p. 19)
Outro problema apontado por Vicente (2009) diz respeito à restrição da
conceituação da dança Frevo como manifestação folclórica – compreendida como
criação anônima, nascida espontaneamente nas ruas do Recife, em oposição ao caráter
de Cultura Popular conferido à música. Essa compreensão, encerrada na distinção entre
passo e Frevo, é apresentada, dentre outros autores, pelo próprio Valdemar de Oliveira,
quando escreve sobre a música: “o frevo foi invenção dos compositores de música
ligeira, feita para o carnaval, enquanto o passo brotou mesmo do povo, sem regra nem
mestre, como por geração espontânea.” (OLIVEIRA, 1985, p. 11) E complementa:
Ao encarar o frevo como obra musical, é bom considerá-lo, desde logo, em
sua verdadeira posição de música popular – e não folclórica , pois não revela
uma ascendência – ou um ‘passado’ a que esteja o povo ligado de qualquer
modo. [...] O autor do frevo não é anônimo e os elementos de que se serve
não se envolvem no anonimato, como sucede na música folclórica.
(OLIVEIRA, 1985, p. 41)
124
Para Vicente (2009), há aí uma contradição, que revela, ao mesmo tempo, uma
visão discriminatória sobre a população marginalizada a quem se atribuem as primeiras
manifestações da dança do Frevo, com influência direta da capoeira; e uma concepção
excludente de povo, que não considera como pertencentes a essa categoria os músicos
das bandas e as classes trabalhadoras ligadas aos clubes responsáveis pelos primeiros
movimentos da música do Frevo. Assim analisa a autora:
A dança do frevo, a destreza de ‘fazer o passo’, é oriunda das camadas
mais pobres e subversivas da sociedade recifense. [...] de forma
predominante, jogar capoeira e ‘fazer o passo’ eram práticas dos grupos
marginais, não aceitos socialmente. Assim, quando da teorização e
categorização do frevo, a música do frevo, composta pelos músicos das
bandas e integrantes de clubes, foi considerada parte da Cultura Popular, e a
dança do Frevo, batizada como Passo, foi considerada Folclore. [...] Segundo
Valdemar de Oliveira, para uma expressão cultural ser considerada folclore,
deve revelar ‘uma ascendência – ou um passado a que o povo esteja ligado de
qualquer modo’. Como para ele a música do frevo não está ligada ao povo,
concluímos que ele não considera como povo as camadas trabalhadoras
pobres e os músicos das bandas. (VICENTE, 2009, p.47)
O ponto central do questionamento da autora sobre a posição de Valdemar de
Oliveira é a ausência de uma perspectiva evolutiva na abordagem da questão. Para a
compreensão desse questionamento é necessário considerar, contudo, a diferença dos
contextos de produção das duas obras, separadas por mais de meio século. Frevo,
Capoeira e Passo, de Valdemar de Oliveira, cuja primeira edição foi publicada em livro
em 1971, é um texto baseado em seu estudo sobre o Frevo originalmente publicado em
194653, período em que estão em voga os estudos folclóricos, de caráter eminentemente
tradicionalista.
De fato, a compreensão do Frevo limitada à concepção da dança como
manifestação folclórica, como criação anônima, deixa de considerar importantes
contribuições de artistas que tiveram atuação reconhecida ao longo da história. A esse
respeito, a autora destaca o depoimento de Nascimento do Passo, um dos mais famosos
passistas de Frevo do Recife, segundo o qual a autoria de muitos passos do Frevo era
certa e sabida, “referindo-se a Egídio Bezerra, passista famoso na década de 40”
(VICENTE, 2009, p. 47). Curiosamente, o próprio Valdemar de Oliveira reconhece o
papel de Egídio para o enriquecimento da dança. Entretanto, a maneira como ele aborda
53
O texto original, conforme apresentação do autor, (OLIVEIRA, 1985, p. 5), foi publicado no Boletim
Latino Americano de Música. Rio de Janeiro; Montevidéu, Instituto Interamericano de Musicologia,
1946,
ano
6,
v.6,
p.157-192,
e
pode
ser
encontrado
em
http://www.jangadabrasil.com.br/realejo/artigos/frevo.asp <acesso em 25 de agosto de 2011>
125
as “criações momentâneas” ou “nascidas da cachola dos dançarinos” e, por fim, o
questionamento da validade do trabalho pedagógico do artista, atestam a posição
restritiva do autor:
À proporção que surgem novos passistas, com eles surgem [...] criações
momentâneas, umas provocadas pelos atritos imprevisíveis dos corpos em
promiscuidade, outras nascidas da cachola dos dançarinos, um deles, Egídio
Bezerra tendo, há poucos anos passados, introduzido, no passo recifense, um
série de figurações que decerto enriqueceram a sua coreografia, embora aqui
e ali a desvirtuassem. Não foi útil que algumas de suas novidades se tivessem
difundido entre alunos de um curso por ele mesmo fundado (OLIVEIRA,
1985, p. 103)
Por um lado, é impossível negar a configuração do Frevo como amálgama das
contribuições individuais de centenas, milhares de foliões anônimos na ação de
extravasamento de sua criatividade em gestos transfigurados nos passos frenéticos da
dança. Para essa população, a dança do Frevo reveste-se de significados que exprimem
a sua condição e a sua inserção no mundo da cultura. A esse respeito, Araújo (1994)
observa que
Os segmentos populares, sobrevivendo do trabalho de suas mãos e de sua
força física, desenvolveram uma cultura que se impôs, antes de tudo, pelo
gesto, pelo corpo, pelo movimento, associados, quase sempre, ao ritmo
musical e ao canto. [...] Poder-se-ia dizer que, para o povo comum, para a
arraia-miúda, o Carnaval estava mais próximo da carne e do corpo, enquanto
que, para a elite, o Carnaval era, idealmente, um exercício do espírito e da
razão (ARAÚJO, 1994, p. 364)
Por outro lado, a limitação dessa compreensão da dança do Frevo como
manifestação folclórica, conforme visto acima, desconsidera importantes contribuições
de frevistas54 reconhecidos para a sua evolução coreográfica. O estudo de Vicente
(2009) cumpre, então, a relevante tarefa de documentar parte significativa desse
trabalho, desenvolvido, por exemplo, por várias companhias de dança em Pernambuco a
partir dos anos de 1970.
Compreendemos a importância da discussão proposta pela autora como
contribuição para a construção de uma rede de significações e para identificação de um
aspecto fundamental da semântica global do Frevo, que é a própria atribuição dos
nomes que o definem. Evidenciam-se aí pelo menos dois planos discursivos, dentre
aqueles descritos por Maingueneau (2008): o plano do vocabulário e o plano da dêixis
enunciativa. Ao considerar o primeiro, o autor ressalta que “além de seu estrito valor
semântico, as unidades lexicais tendem a adquirir o estatuto de signos de
54
Frevista é o termo usado por Carmela Cárdenas no lugar de passista, em O uso do folclore na
educação: o frevo na didática pré-escolar (CÁRDENAS 1981, p.53)
126
pertencimento” (MAINGUENEAU, 2008, p. 80), lembrando que o enunciador, diante
de várias opções equivalentes, elegerá aquela que marca sua posição no campo
discursivo. Daí porque a opção pela designação de Frevo para a dança reveste-se de um
caráter afirmativo da identidade do novo gênero. Ao enfocar o segundo plano, o da
dêixis enunciativa, o autor refere-se à delimitação espaço-temporal da enunciação,
instaurando, na cenografia de uma obra, o locutor e o destinatário discursivos, a
cronografia e a topografia. A propósito da importância desses dois planos discursivos,
particularmente no tocante à definição da topografia, na dêixis, é ilustrativa a polêmica,
iniciada a partir dos anos de 1960, sobre a produção do Frevo fora de Pernambuco,
especialmente entre os baianos, integrantes do movimento Tropicalista. Além de
questões estéticas pertinentes à concepção musical das canções produzidas, sobretudo,
por Caetano Veloso, a polêmica girava em torno mesmo da validade da caracterização
dessa produção enquanto Frevo, pelo fato de não estar situada em Pernambuco.
Conforme destaca Teles (2008):
o que mais irritava compositores como Capiba, Nelson Ferreira, Valdemar de
Oliveira, era chamar o frevo eletrizado de Caetano Veloso de ‘frevo baiano’.
Para eles não havia ‘frevo baiano’, ‘frevo carioca’, o que existia era o frevo, e
este era de Pernambuco. (TELES 2008, p.74)
Compreendemos, enfim, que a opção da autora por atribuir a palavra Frevo à
manifestação da dança, no lugar de passo, configura uma ação afirmativa da identidade
discursiva do Frevo, respaldada, por exemplo, na certidão conferida pelo Departamento
do Patrimônio Imaterial do IPHAN, na conclusão do processo de homologação do
Frevo como patrimônio imaterial da cultura brasileira. No documento, lê-se que “o
Frevo é uma forma de expressão musical, coreográfica e poética densamente enraizada
em Recife e Olinda, no Estado de Pernambuco” (BRASIL, 2007, p.1, grifo nosso)55,
definição que engloba, sob o mesmo nome, a música, a dança e a produção discursiva
em torno do Frevo.
O reconhecimento dos traços delineadores da identidade discursiva do Frevo dáse, portanto, na esfera da produção literomusical, a partir de canções cujo projeto
enunciativo define um posicionamento de afirmação identitária – como gesto de
demarcação de terreno no campo literomusical brasileiro. A escolha do nome Frevo, em
55
disponível em http://www.iphan.gov.br/portal/montarDetalheConteudo.do?id=13515&sigla=Institucional&retorno=detalheInst
itucional, <acesso em 27 de agosto de 2011>
127
detrimento de passo, para designar a dança que acompanha a música, é reveladora de tal
projeto enunciativo. A reafirmação do emprego dessa palavra-chave está, portanto, na
base da constituição de uma coerência global sobre a qual se estabelecem as práticas
discursivas desenvolvidas pelos enunciadores, no processo de consolidação da
identidade do Frevo. Duas das principais obras que exemplificam esse gesto são os
Frevos-canção O Frevo é Assim (Nelson ferreira e Nestor de Holanda) e É Frevo, Meu
Bem! (Capiba), apresentadas a seguir.
Consideramos, com Maingueneau (2008), que “a identidade de um discurso não é
somente uma questão de vocabulário ou de sentenças, [e] que ela depende de fato de
uma coerência global que integra múltiplas dimensões textuais” (MAINGUENEAU
2008, p. 18). Essa coerência global se desenvolve através de um sistema de restrições
semânticas que “fixa os critérios em virtude dos quais certos textos de distinguem do
conjunto de textos possíveis como pertencendo a uma formação discursiva
determinada.” (p. 48). Tal sistema de restrições não privilegia nenhum aspecto
particular do discurso, mas se elabora sobre “um princípio dinâmico que rege o
conjunto dos planos de uma língua” (p.76), incluindo, além do vocabulário, as relações
intertextuais, a definição do estatuto do enunciador e do destinatário, a dêixis
enunciativa, o modo de coesão – a “maneira pela qual um discurso constrói sua rede de
remissões internas” (MAINGUENEAU, 2008, p. 94) e os modos de enunciação, que
dizem respeito a “uma maneira de dizer específica”, ou à construção de um ethos
definido pelo gênero discursivo, pelo tom, pelo caráter e pela corporalidade do
enunciador (MAINGUENEAU, 2001, 2005, 2008)
Observamos, nas canções a seguir, que o ethos discursivo é definido por meio de
uma cenografia que apresenta uma caracterização valorizadora do Frevo dança, através
da enunciação de outras manifestações simbólicas. A noção de incorporação,
desenvolvida por Maingugeneau (2001, 2005, 2008, 2008a), é especialmente relevante
para uma interpretação da cenografia elaborada nas canções, ressaltando a importância
dessas obras para uma definição do posicionamento do Frevo no campo discursivo
literomusical brasileiro.
O FREVO É ASSIM (Nelson Ferreira e Nestor de Holanda, 1945)
Eu danço tango, danço conga e danço samba
Danço boogie-woogie danço até na corda bamba
Mas o tal frevo original de Pernambuco
Fui tentar dançar e fiquei maluco
128
É uma dança bem quente, oi!
que remexe com a gente, oi!
E faz a cintura girar
Joga as pernas pra frente, oi!
Mexe feito serpente, oi!
E a cabeça fica fora do lugar
Eu danço tango, danço conga e danço samba
Danço boogie-woogie danço até na corda bamba
Mas o tal frevo original de Pernambuco
Fui tentar dançar e fiquei maluco
É FREVO, MEU BEM! (Capiba,1951)
Pernambuco tem uma dança
Que nenhuma terra tem
Quando a gente entra na dança
Não se lembra de ninguém
É maracatu?
Não, mas podia ser
É bumba-meu-boi?
Não, mas podia ser
Não será o baião?
Não, mas podia ser
É dança de roda?
Quero ver dizer!
É uma dança que vai e que vem
Que mexe com a gente
É frevo, meu bem!
Lançada pela gravadora Victor (disco nº 80.0353-A), em 78 rpm (rotações por
minuto), em dezembro de 1945, a canção O Frevo é Assim foi gravada por um dos
nomes mais importantes da Era de Ouro do rádio, o cantor Carlos Galhardo (19131985), acompanhado por Zacarias e sua Orquestra, artistas reconhecidos por extensa
produção musical. Galhardo, nascido em São Paulo, atuou em diversas rádios do
sudeste, e participou também de produções cinematográficas nas décadas de 1940 e
1950. Zacarias teve carreira de sucesso, inclusive com excursões internacionais. Ambos
gravaram diversos gêneros musicais (além de frevos, também sambas, boleros, valsas
etc.)
É Frevo, Meu Bem! foi lançada originalmente em 1951, pela gravadora
Continental. Além dessa gravação com a cantora Carmélia Alves, outro nome
importante da Era de Ouro do Rádio, a canção tem pelo menos três regravações: pelo
cantor Claudionor Germano, em 1978 (LP Carnaval Capiba II – Carnaval começa com
C de Capiba, pela Rozenblit) e em 2002 (CD Mestre Capiba, por Raphael Rabello e
129
Convidados, BMG Brasil Acari Records); e pelo cantor Expedito Baracho, em 1980 (LP
Carnaval do Nordeste nº 2, Rozenblit);.
Para ressaltar a importância das duas canções na definição dos posicionamentos
do Frevo no discurso literomusical brasileiro, analisamos brevemente como se elabora a
cena enunciativa das obras, recorrendo a considerações de Costa (2001) e Maingueneau
(1997, 2001, 2005, 2008, 2008a) acerca da cenografia e do ethos, a partir da noção de
incorporação, desenvolvida pelo autor francês.
No desenvolvimento de sua tese de doutoramento, que discute a configuração do
discurso literomusical brasileiro como discurso constituinte, Costa (2001) aponta os
elementos da estrutura enunciativa, que, de acordo com Maingueneau (1997, p. 41),
constitui-se pela definição de um enunciador, um co-enunciador, uma topografia e uma
cronografia, como já referido acima. Sabemos, ainda conforme Maingueneau, que a
cena da enunciação inclui a cena englobante (que corresponde ao tipo de discurso em
questão), a cena genérica (correspondendo ao gênero discursivo em que se elabora o
discurso) e a cenografia, que é “construída pelo próprio texto [...] é a cena de fala que o
discurso pressupõe para poder ser enunciado e que, por sua vez, deve validar através de
sua própria enunciação.” (MAINGUENEAU, 2008a, p. 70).
A cenografia é, pois, a instância sobre a qual nos debruçamos para compreender
melhor como se engendra a definição dos posicionamentos do Frevo. Nas duas canções,
o gesto afirmativo de posicionamento do Frevo dá-se a partir da ênfase na dança,
apresentada em oposição a outras formas simbólicas dessa arte. No primeiro caso, são
elencadas algumas manifestações de origem estrangeira (tango, conga, boogie-woogie),
além do samba. No segundo caso, a oposição, que dá relevo ao Frevo, faz-se pela
menção a outras manifestações culturais do Nordeste brasileiro. Nas duas canções,
destaca-se o aspecto empolgante e inebriante na caracterização da dança: “...é uma
dança [...] que mexe com a gente” (É Frevo, Meu Bem!); “...é uma dança bem quente /
que remexe com a gente”[...] “...e a cabeça fica fora do lugar” (O Frevo é Assim).
As duas canções empreendem, em relação ao Frevo, um gesto de inserção no
campo do discurso literomusical brasileiro comparável ao que ocorre, por exemplo, com
as canções Baião (Luiz Gonzaga, 1946) e Desafinado (Newton Mendonça e Tom
Jobim, 1958). Essas canções cumprem o papel de “apresentar” no cenário da música
popular, respectivamente, o baião e a bossa nova, contribuindo para situar os dois
gêneros musicais no campo do discurso literomusical brasileiro.
130
Em É Frevo, Meu Bem! esse gesto afirmativo está presente já no título,
exclamativo, que é reiterado no final da canção, como resposta à série de indagações
apresentadas anteriormente. O texto é elaborado numa sequência de perguntas e
respostas, criando um efeito retórico, no sentido estrito do termo56, de modo a
evidenciar o traço de diversidade que marca a cultura pernambucana e nordestina,
através dos nomes de algumas manifestações da dança, de modo geral, e do carnaval,
particularmente (baião, dança de roda, bumba-meu-boi, maracatu).
Em ambas as canções, o ethos discursivo do enunciador se constitui a partir de
uma cenografia valorizadora da identidade cultural pernambucana, com uma topografia
marcada explicitamente já no primeiro verso de É Frevo, meu Bem! (“Pernambuco tem
uma dança que nenhuma terra tem”). Em O Frevo é Assim, a topografia é associada à
característica de originalidade do Frevo (“...o tal frevo original de Pernambuco”). Em
sua abordagem sobre o ethos, Maingueneau propõe extrapolar a noção retórica,
associada à argumentação, ao afirmar que “além da persuasão por argumentos, a noção
de ethos permite, de fato, refletir sobre o processo mais geral da adesão de sujeitos a
uma certa posição discursiva.” (MAINGUENEAU 2005, p. 69). O autor desenvolve,
então, o conceito de incorporação, através do qual o discurso assume um caráter e uma
corporalidade, configurados a partir de um tom, de uma vocalidade específica do
enunciador (que não deve ser confundido com o autor efetivo da obra), como vimos no
capítulo 2.
O ethos discursivo constitui-se a partir de um conjunto de representações que
configuram uma corporalidade, com a qual o co-enunciador se identifica no espaço
social, “através da iconografia [...], da música, da estatutária, do cinema, da
fotografia...” (MAINGUENEAU, 2001, p. 140)
O gesto afirmativo das canções enfocadas integra essa dimensão do ethos, baseada
na incorporação, ou na “movimentação de um corpo investido de valores historicamente
especificados” (MAINGUENEAU, 2005, p.73), representados pelas formas simbólicas
da dança do Frevo. Mesmo que as obras analisadas apenas vagamente definam como se
dá essa movimentação (“é uma dança que vai e que vem” / “Joga as pernas pra frente
[...] Mexe feito serpente [...]”), há um componente persuasivo (“que mexe com a gente”,
“que remexe com a gente”) a suscitar a adesão do ouvinte a partir de um ethos
dançarino (em O Frevo é Assim). Já em É Frevo, meu Bem!, o tom exclamativo que
56
Como “emprego ornamental ou eloquente da palavra”, segundo Massaud Moisés (1988, p.430)
131
fecha a série de perguntas retóricas põe em evidência o projeto enunciativo de
valorização do Frevo enquanto manifestação carnavalesca destacada entre outras
presentes no cenário cultural pernambucano e brasileiro.
Em conjunto, as cenografias das duas canções evidenciam a figura de um corpo
que se movimenta, reiterando sua presença a “mover-se no espaço social”, podendo ser
identificado através de “um conjunto difuso de representações” (MAINGUENEAU,
2008a, p. 65) às quais se associam a manifestação musical do Frevo. Considerando,
ainda com Maingueneau (2008a), que a definição de uma identidade discursiva se dá
numa relação interdiscursiva - ou seja, a identidade discursiva é construída na relação
com o outro - observamos que, ao longo dos momentos iniciais de desenvolvimento da
música popular brasileira, o processo de fixação e formalização do Frevo é marcado por
uma maior complexidade se comparado, por exemplo, do samba - gênero tomado como
referencial para a análise do período, a partir da gravação de Pelo Telefone (1917), e já
identificado pelo nome, para designar a música e a dança, desde então. Considerando,
nesse processo, a importância do registro impresso nos selos dos discos, sabemos que a
definição do Frevo levou mais tempo, tendo ocorrido somente na década de 1930, como
assinalamos acima.
São ainda dessa época – anos 1930 - os registros da chegada do Frevo no
carnaval do Rio de Janeiro, com a criação de agremiações por iniciativa de
pernambucanos residentes na capital do país, contando com o incentivo do prefeito,
Pedro Ernesto do Rego Batista, nascido no Recife57. A primeira foi o Clube Misto
Vassourinhas, fundado em 1934, no bairro da Saúde. Eneida Moraes (1987) lembra que,
já na década de 1950, além do Vassourinhas, “desfilam na Avenida nos dias de carnaval
[...] o Pás Douradas, Lenhadores, Batutas da Cidade Maravilhosa, Misto Toureiros e
Brasil Frevo.” (MORAES, 1987, p. 234) Além disso, de acordo com Alencar (1979), há
influência do Frevo na reconfiguração do samba dançado no carnaval do Rio de Janeiro
no mesmo período: “A chegada do frevo pernambucano, com a realização dos
chamados ‘bailes de frevo’, é outra contribuição que consolida a nova coreografia
carnavalesca.” (ALENCAR, 1979, p. 226). Segundo ele, a partir dos anos de 1930 o
samba deixa de ser uma “dança comum, dos pares enlaçados” e passa a exibir uma
coreografia mais individualizada, em que os dançarinos “se soltam as mãos [...] e
passam a sambar, simplesmente”. O autor vê aí a influência do carnaval de rua trazido
57
cf. SILVA, Leonardo Dantas. O frevo exportação. In SILVA, L. Dantas. Carnaval do Recife. Fundação
de Cultura Cidade do Recife, 2000.
132
aos salões dos clubes, avaliando que “para a nova coreografia, por vezes exagerada com
pulos, contribui também a grande freqüência dos bailes.” (ALENCAR, 1979, p. 226)
As canções aqui enfocadas cumprem papel afirmativo da identidade do Frevo no
campo
literomusical
brasileiro,
num
momento
significativo para a música
pernambucana e brasileira. A opção pela palavra Frevo para designar a dança atesta esse
gesto afirmativo, já que a denominação de uso corrente para a dança do Frevo é passo,
seja no domínio do próprio discurso literomusical (inclusive em outras composições dos
próprios autores, Nelson Ferreira e Capiba), seja na imprensa em geral ou nas esferas da
comunicação oficial, como vimos acima. Conforme assinala Maingueneau, “Entre
vários termos a priori equivalentes, os enunciadores serão levados a utilizar aqueles que
marcam sua posição no campo discursivo.” (MAINGUENEAU, 2008, p. 81). Já que a
distinção entre Frevo e passo é objeto de discussão dentro da própria comunidade
discursiva, consideramos que a importância de O Frevo é Assim e É Frevo, Meu Bem!
está num projeto enunciativo comum, que se baseia na ênfase dada à palavra Frevo,
contribuindo significativamente para marcar posição no campo discursivo literomusical
brasileiro.
Outra canção que exemplifica esse gesto afirmativo do Frevo por oposição a
outros gêneros musicais é a composição Ai, Como Sufro! (1949), também de Nelson
Ferreira, interpretada pela cantora Marlene (Vitória Bonaiutti De Martino), artista de
grande popularidade, eleita Rainha do Rádio no mesmo ano do lançamento da canção,
em concurso promovido pela Associação Brasileira de Rádio (ABR). O título da obra
faz referência ao bordão (frase de efeito repetida por uma personagem de programa de
rádio ou televisão) de Cuquita Carballo, cantora cubana de rumba, música de raízes
africanas que se popularizou internacionalmente a partir da década de 1940, com grande
sucesso no Brasil.
De acordo com Samuel Valente58, a cantora apresentou-se no Recife, na Rádio
Jornal do Commercio, pouco tempo depois da inauguração da emissora. A artista
também atuou em produções cinematográficas brasileiras, como as comédias musicais
Aviso aos Navegantes (1950) e Carnaval Atlântida (1952). A canção foi gravada com
acompanhamento da orquestra da Copacabana, para o carnaval de 1949. Eis a letra:
58
(Samuel Valente, in encarte do CD Nelson Ferreira – Carnaval, sua História, sua Glória, volume 28,
CD 6. Curitiba: Gravadora Revivendo)
133
AI, COMO SUFRO!
(Nelson Ferreira, 1949)
Depois que eu voltei de Cuba
Ai, ai, ai, como sufro!
Tenho saudade da rumba
Até parece macumba
Ai, como sufro!
Mas agora que ao meu Brasil eu voltei
Bem na hora do frevo gostoso cheguei
Remelexo, não quero mais!
Muita rumba assim faz mal!
Eu quero, quero, quero é Carnaval!
Assim como nas duas canções analisadas acima, a cenografia de Ai, como sufro!
evidencia as qualidades do Frevo em oposição a outro gênero musical, a rumba, que é
também o nome da dança, caracterizada na letra pelo “remelexo” : “remelexo não quero
mais! / muita rumba assim faz mal!”. Aqui, observa-se o uso polissêmico da palavra
Frevo, que em “bem na hora do frevo gostoso cheguei”, tanto pode significar a festa
quanto a música ou a dança.
Da mesma forma, outras canções apresentam cenografias valorizadoras do Frevo
em oposição a outros gêneros musicais. As duas canções abaixo, ambas gravadas na
década de 1960, constituem bons exemplos do projeto enunciativo de exaltação ao
Frevo em meio à profusão de ritmos que caracterizou o cenário musical brasileiro do
período, com importantes influências internacionais, sobretudo da música dos Estados
Unidos e da Inglaterra.
A TURMA DA PEDRA LASCADA (Capiba, 1963)
No carnaval é tudo alegria
Na pracinha ou na rua ou no clube elegante
Todos dançam, todos cantam
Para bossa nova transviado ou não
Dançar twist é uma devoção
Mas quem é da turma da pedra lascada
Não resiste a Vassourinhas não
E cai de corpo e alma no salão
Pula, pula, pula
Dança dança dança
Até quando o sol desponta
FREV-IÊ-IÊ (Nelson Ferreira, 1966)
Iê, iê, iê, iê moçada!
Iê, iê, iê e frevo pra você, que tal?
Com os braços pra lá e pra cá
134
Com a cabeça faz que vai faz que vem
Com as palmas assim, assim
O iê, iê, iê vai indo muito bem
Mas agora prepara o corpo todo
Que do frevo está chegando a hora
Iê, iê, iê azeite nas canelas
Porque o frevo também é brasa viva
Para!
Ao longo do período enfocado neste trabalho, muitas outras canções se destacam
por caracterizarem esse gesto afirmativo do Frevo, a partir da opção de seus autores pela
reiteração do emprego da palavra para recobrir diferentes aspectos do fenômeno
cultural, além da dança. É o caso, por exemplo, de Sonhei que Estava em Pernambuco,
do compositor paulista (da cidade de Santa Cruz do Rio Pardo) Clóvis Mamede, lançada
em 1949, gravada com a orquestra comandada pelo próprio autor - tendo como líder
vocal o cantor Roberto Amaral - e depois também por Carmem Costa (Carmelita
Madriaga, 1920-2007). A partir dos anos 1990, a obra foi regravada por artistas
pernambucanos como Alceu Valença, Lenine e Antônio Carlos Nóbrega, o que
demonstra a sua perenidade ao longo de um período marcado pelo registro de
memoráveis criações do cancioneiro carnavalesco de Pernambuco e de todo o país. A
canção foi escolhida para abrir o segundo CD da série Recifrevoé, em 1999, meio século
depois do seu lançamento original. Os discos dessa série foram produzidos pela
Prefeitura do Recife, com a proposta de reunir numa mesma obra canções do passado,
regravadas por artistas em evidência no cenário artístico nacional naquele momento
(neste caso, a gravação é de Lenine, nos vocais), e composições vencedoras do
Concurso de Músicas Carnavalescas promovido anualmente na cidade:
SONHEI QUE ESTAVA EM PERNAMBUCO
(Clóvis Mamede, 1949)
Sonhei que estava em Pernambuco
Fiquei maluco
Quando o frevo passou
Mas, quando estava no melhor da festa
Ora essa, alguém me despertou
Quando acordei, ai, ai
Até chorei. ai, ai
Tudo mentira, ai, ai
O que sonhei
Mas agora vou brincar
O Frevo eu vou cantar
135
O Frevo eu vou dançar
Para me consolar
As três ocorrências da palavra Frevo na letra da canção recobrem diferentes
significados: primeiro, como festa, ajuntamento, frevolência inebriante (“fiquei maluco
quando o frevo passou”, na primeira estrofe), depois como música, especificamente
caracterizada como canção (“o frevo eu vou cantar”) e, por fim, como dança (“o frevo
eu vou dançar”), na última estrofe.
Considerando a elaboração da cena enunciativa, a obra exemplifica aquilo que
Costa (2009a) chama de cenografia encaixada, que ocorre quando, “no âmbito da
cenografia são relatados fatos do passado, narrativas imaginárias, sonhos, versões de
fatos etc.” (COSTA, 2009a, p. 9). O projeto narrativo da canção é dividido em três
partes, graficamente marcadas pela disposição das estrofes. A cenografia encaixada
corresponde ao relato de um sonho, interrompido no momento em que enunciador
afirma que “alguém me despertou”, na primeira estrofe. Na segunda, elaborada ainda no
tempo pretérito, o enunciador relata o sentimento de desencanto pela interrupção do
sonho (“até chorei”). A última estrofe da letra manifesta a disposição do enunciador em
superar a decepção, a partir de uma decisão indicada pelo dêitico “agora”, que sinaliza a
mudança de perspectiva, para o futuro (“[...] vou brincar / o frevo eu vou cantar / o
frevo eu vou dançar”), atualizando o discurso e marcando a determinação de buscar no
Frevo, afinal, o alívio para sua tristeza (“para me consolar”).
A respeito do encaixamento de cenografias, Costa (2009a) lembra que se trata de
um procedimento bastante comum, por exemplo, na publicidade, em que se busca
desviar a atenção do leitor em relação às outras cenas (genérica e englobante), “que
põem o enunciador na constrangedora situação de estar, no fim das contas, em busca do
dinheiro do consumidor.” (COSTA, 2009a, p. 9). O autor argumenta ainda que o
fenômeno é também recorrente no âmbito da literatura e do discurso literomusical, que
lidam com o imaginário, conferindo legitimação estética e contribuindo para a definição
de posicionamentos. Na canção de Clóvis Mamede, o percurso narrativo desenvolvido
pelo enunciador a partir de uma cenografia inicial, de sonho, que é interrompido
gerando insatisfação, configura um projeto enunciativo de vinculação do Frevo a um
sentimento de superação diante de frustrações e dificuldades sentimentais e existenciais,
já que é através dele que o enunciador afirma buscar consolo. Um significativo conjunto
de canções, do qual enfocaremos alguns exemplos, adiante, enquadra-se nessa proposta
136
de valorização do Frevo com base em seu caráter festivo, efusivo e revigorante,
colaborando para sua caracterização como antídoto para a melancolia e a tristeza.
Como afirmamos acima, a mudança de atitude do enunciador, em busca de
superar seu desconsolo pela interrupção do sonho, é marcada textualmente pelo dêitico
“agora”, em Sonhei que Estava em Pernambuco. Ressaltamos que a dêixis enunciativa é
um dos planos que integram a semântica global de um discurso, segundo Maingueneau
(2008, 2008a). Trata-se, em resumo, de um conjunto de coordenadas espaciotemporais
instituído no ato da enunciação, elaborado em função de uma dada formação discursiva
– ou, para usar a noção desenvolvida por Maingueneau, em função de um dado
posicionamento. Para o autor, “essa dêixis, em sua dupla modalidade espacial e
temporal, define de fato uma instância de enunciação legítima, delimita a cena e a
cronologia que o discurso constrói para autorizar sua própria enunciação.”
(MAINGUENEAU, 2008, p. 89)
A configuração da cenografia de uma obra dá-se, com efeito, pela definição de
um enunciador, um co-enunciador, uma topografia e uma cronografia da enunciação,
que validam as mesmas instâncias responsáveis por sua existência. Costa (2001) ressalta
que “a topografia e a cronografia se constituem respectivamente pela representação de
um espaço e de um tempo validados, onde se desenrola a enunciação construída pelo
texto.” (COSTA 2001, p. 75), lembrando que “validado” – da mesma forma que
“legitimado” – significa, conforme Maingueneau (2001), “já instalado no universo de
saber e de valores do público” (MAINGUENEAU, 2001, p. 126).
No conjunto de canções analisadas aqui, gravadas nesse período inicial de
inserção do Frevo no campo do discurso literomusical brasileiro, em geral observa-se
uma dêixis enunciativa com identificação explícita da topografia em Pernambuco (em É
Frevo, Meu Bem!, O Frevo É Assim e Sonhei que Estava em Pernambuco, por
exemplo59) e no Brasil (em Ai, Como Sufro!), o que ressalta o caráter identitário do
Frevo, “como símbolo de ‘pernambucanidade’, e, num sentido mais amplo, de
‘brasilidade’”, conforme o documento do IPHAN que acompanha o parecer da
instituição confirmando o registro do Frevo no Livro das Formas de Expressão como
Patrimônio Cultural Brasileiro (conferir 4.5 Frevo e Identidade Cultural, acima).
59
Incluem-se ainda Frevo Pernambucano (Luperce Miranda/Oswaldo Santiago, 1931), Vou Pra
Pernambuco (Nássara/ Frazão, 1945), Conhece o Recife? (Gildo Moreno, 1950), Frevo nº 1 do Recife
(Antônio Maria, 1951), Micróbio do Frevo (Genival Macedo, 1954), entre outros.
137
Passamos a enfocar agora uma canção de Nelson Ferreira que sintetiza a
proposta de inserção do Frevo no campo do discurso literomusical a partir da ênfase no
plano do vocabulário. Lançada em 1967, já no contexto de consolidação da televisão
como meio de comunicação de massa, ao lado do rádio, A Palavra é... faz alusão ao
famoso programa Esta Noite se Improvisa, comandado pelo apresentador José Blota Jr.
na TV Record, São Paulo, nos anos de 1960. Eis a letra da canção:
A PALAVRA É...
(Nelson Ferreira, 1967)
A palavra é...
FREVO!
E a turma foi ligeiro no botão!
Todo mundo quis mostrar
Que sabia frevar
Fechou-se o tempo
Deu a louca no salão
Frevo...Passo...
Bloco...Momo...
Riso...Alegria...
No delírio da folia
São palavras fáceis
Pra se improvisar...
Portanto seu Blota
Vencemos de barbada...
Se a palavra é FREVO
Vamos “se esbaldar!”
A letra da canção estabelece uma rede semântica em torno da palavra-chave
Frevo, formada pela sequência nominal “passo-bloco-Momo-riso-alegria-delírio-folia”,
que busca dar conta do caráter festivo da manifestação cultural do Frevo, com especial
relevo para a dança, identifica na forma verbal derivada do nome, na primeira estrofe
(“todo mundo quis mostrar que sabia frevar”) e na primeira palavra da série acima
descrita (“passo”). A escuta da canção revela, ainda, uma interessante elaboração da
cenografia da obra quando, logo após a introdução instrumental, a melodia é
interrompida por uma pausa ao final do primeiro verso, que dá título à canção, criando
assim um efeito de suspense para a complementação da frase, revelando-se afinal a
resposta. Trata-se de uma representação da dinâmica do programa televisivo em que se
baseia a canção. Essa dinâmica é explicada pelo cantor e compositor Silvio César, em
seu blog:
[...] Era assim: o apresentador (Blota Jr.) propunha: "a palavra é..." e os
participantes tinham de apertar uma campainha, ir ao microfone e cantar uma
música que tivesse a palavra proposta. Se cantasse a música inteirinha,
138
marcava 6 pontos. Se não, ponteava conforme os critérios de uma comissão
julgadora.
(http://www.silviocesar.com/historias3.htm
<acesso
em
01/08/2010>)
A Palavra é... tem, assim, uma cenografia elaborada com base em um cenário
validado, o de um programa de auditório, muito em voga na televisão brasileira, a partir
da segunda metade dos anos 1950. Neste caso, um programa voltado ao entretenimento
baseado no próprio discurso literomusical. A observação desse contexto de produção da
obra traz-nos à reflexão de Costa (2009) acerca do caráter autoconstituinte do discurso
literomusical brasileiro. Segundo ele,
a MPB é uma instituição que se auto-constitui. Entendendo as práticas
discursivas como uma rede enunciativa, que formula seu discurso
heterogeneamente, isto é, não apenas através de um único gênero de discurso
(no caso, a canção), mas sob a forma de uma variedade de gêneros (crônicas,
artigos, livros), e mesmo através de ações ou de comportamentos, que
comentam, divulgam, citam, reverberam os textos primeiros, podemos
afirmar que o que se chama comumente de MPB não pode ser definida
essencialmente: trata-se de um discurso cotidianamente gerado pela própria
prática discursiva de artistas e consumidores. (COSTA, 2009, p. 4)
A Palavra é... merece destaque, assim, por situar um período de redefinição da
música popular brasileira, sob o ponto de vista da influência exercida pela televisão, que
ajuda a inaugurar, segundo Napolitano (2007), a “moderna indústria cultural brasileira”,
marcada, de início, pela aliança da “MPB engajada e nacionalista” com o novo veículo
de comunicação, implantado no Brasil em 1950. O autor lembra que, ao longo da sua
primeira década de existência em nosso país, a televisão “permaneceu como novidade,
extravagância, acessível às faixas mais ricas da população das grandes cidades”
(NAPOLITANO, 2006, p. 54), conquistando maior popularidade na década seguinte e
exercendo enorme influência no processo de massificação da música popular. Além dos
programas de auditório e de variedades, com significativo número atrações musicais60,
eram destaques de audiência programas como O Fino da Bossa (lançado em maio de
1965), Bossaudade (julho de 1965) e Jovem Guarda (setembro de 1965), que
contribuíram para definir uma segmentação do público telespectador consumidor de
música popular. Como lembra Napolitano (2006), os primeiros eram voltados “para um
60
Além de Esta Noite se Improvisa, de Blota Jr., fizeram muito sucesso também os programas Noite de
Gala (direção de Geraldo Casé e Carlos Thiré), O Céu é o Limite (apresentado por J. Silvestre), entre
outros, a partir da década de 1950. Em Pernambuco, são inauguradas, em junho de 1960, com intervalo de
apenas duas semanas, a TV Rádio Clube de Pernambuco, operando no canal 6, e a TV Jornal do
Commercio, canal 2. Nesta última, destacou-se, entre outros, o programa Você Faz o Show, apresentado
por Fernando Castelão, aos domingos, até o ano de 1967.
139
público mais adulto ou intelectualizado”, enquanto o Jovem Guarda para “o público
mais adolescente e descompromissado”, se bem que, como o autor salienta “também era
muito comum que houvesse pessoas assistindo aos dois programas, sem problemas.”
(NAPOLITANO, 2006, p. 55)
Até aqui, enfocamos uma amostragem das obras que definem, sobretudo a partir
do plano do vocabulário, um gesto de inserção do Frevo demarcando território no
campo do discurso literomusical com a ênfase no substantivo que o distingue de outros
gêneros musicais. Como vimos, esse gesto afirmativo define-se, inicialmente, pela
reiteração da dança como síntese do fenômeno cultural do Frevo, nascida a partir da
movimentação frenética que a distingue de outras formas simbólicas da mesma arte.
Além da caracterização de um ethos elaborado a partir da incorporação do movimento
inebriante, sugerido na cenografia das obras, ressaltamos a contextualização sóciohistórica evidenciada, por exemplo, na menção a algumas das agremiações mais antigas
do carnaval Pernambucano - como o Clube das Pás Douradas e o Clube Vassourinhas -,
assim como no emprego polissêmico do nome do Frevo, para dar conta de sua
emergência como rico fenômeno da cultura carnavalesca de Pernambuco e do Brasil.
Consideramos, ainda, que a configuração do plano do vocabulário, para a
definição de uma semântica global que nos possibilite compreender diferentes aspectos
do posicionamento do Frevo, deve incluir as obras instrumentais, pertencentes ao
gênero Frevo-de-rua, cujos títulos são, em grande parte, reveladores desse
posicionamento. Não obstante fugirem ao escopo deste trabalho, o caráter inebriante do
Frevo e o contexto sociocultural de seu aparecimento estão aí presentes, nesses títulos,
já a partir da obra Divisor de Águas (Capitão Zuzinha), que revela, como já observamos,
um momento de definição da estrutura musical do Frevo, após um processo de transição
marcado pelas influências da música produzida pelas bandas militares. Entre muitos
outros, são bastante significativos os Frevos-de-rua Fogão (Sérgio Lisboa), Tá
Esquentando (Zumba), Tá Fervendo (David Vasconcelos), Tá Pegando Fogo (Hermann
Barbosa), Tempo Quente (Edgard Moraes), Vamo se Acabá (Nelson ferreira), O
Caldeirão Está Fervendo (Jones Johnson), Espalha Brasa (Marambá), O Pau Cantou,
Satanás na Onda, Comendo Fogo, Aguenta o Cordão (todas de Levino Ferreira),
Aguenta a Virada (Edivaldo Pessoa) etc.
Da mesma forma importantes são os Frevos-canção que nomeiam a dança do
Frevo como passo. Em alguns casos, a especificação do termo é complementada pela
ocorrência do próprio nome Frevo, já que passo, como observamos acima, é usado para
140
designar os movimentos de outros gêneros de dança. A menção aos diferentes nomes
dos movimentos da coreografia do Frevo – tesoura, dobradiça, ferrolho, britadeira,
passeio na pracinha, chã-de-barriguinha etc. – e a compreensão dos seus significados
contribuem para a definição de uma rede semântica organizada em torno do fenômeno
cultural, já que, de acordo com Maingueneau (2008), “além de seu estrito valor
semântico, as unidades lexicais tendem a adquirir o estatuto de signos de
pertencimento” (MAINGUENEAU, 2008, p. 80).
Destacamos abaixo alguns exemplos:
DIARBUCO, ÓIA A VIRADA
(Nelson Ferreira, 1933)
Vira, vira, óia virada, ô!
Vem cair no passo moreninha do amô.
Lá em casa todo mundo
Virá pó no carnavá
Até mesmo a minha sogra
Se esfarinha de pulá
(...olha a curva...)
Vira, vira...
[...]
DOBRADIÇA (Nelson Ferreira, 1934)
Dobra! Dobra!
Vem pra dobradiça!
Caboquinha do amor
É o frevo que te atiça
Quando chega a folia
A gente fica que nem ioiô
Pra cá, pra lá
[...]
MICRÓBIO DO FREVO (Genival Macedo, 1954)
Eu só queria que um dia
O frevo chegasse a dominar
Em todo Brasil
O micróbio do frevo é de amargar
Quando entra no salão
É o que o povo prefere pra dançar
E cai na dobradiça
Não há quem faça parar
[...]
FREVO Nº 1 DO RECIFE (Antônio Maria, 1951)
[...]
Saudade que eu sinto
Do Clube das Pás, do Vassouras,
Passistas traçando tesouras
Nas ruas repletas de lá.
141
[...]
BOM DANADO (Luiz Bandeira)
Êita frevo bom danado,
Êita povo animado
Quando o frevo começa
Parece que o mundo
já vai se acabar,
Quem cai no passo
Não quer mais parar
[...]
A análise desses nomes indica, por exemplo, as múltiplas influências exercidas
por outras manifestações, para a configuração da dança. Lélis (2011) observa, por um
lado, a “influência dos musicais americanos, que inspiram o passeio na pracinha; e do
balé clássico, como os passos pontinha de pé, festival de bailarina e britadeira.”
(LÉLIS, 2011, p. 61, grifos da autora). A autora lembra, ainda, a identificação do
contexto de surgimento dos clubes pedestres, formados por trabalhadores de diferentes
categorias profissionais: “Curiosamente, instrumentos ou objetos presentes no cotidiano
do trabalho estão associados à denominação de muitos passos: dobradiça, alicate, chave
de cano, serrote, tesoura, ferrolho, parafuso, martelo e britadeira.” (LÉLIS, 2011, p.
62). Por fim, ressalta o papel de artistas que contribuíram para a evolução coreográfica
do Frevo, e cujo reconhecimento é reivindicado por Vicente (2009), ao negar a
caracterização da dança exclusivamente enquanto manifestação folclórica, conforme
analisamos acima. É Lélis quem continua:
Outros [passos] são batizados, devido à escolarização, por dançarinos,
pesquisadores e foliões que lhes davam nomes miméticos, como saci,
patinho, coice de burro, faz que vai mas não vai, banho de mar e grilo.
Egídio Bezerra, Nascimento do Passo e, posteriormente, o Balé Popular do
Recife são responsáveis pela criação, ‘batismo’ e releitura de vários passos.
(LÉLIS, 2011, p. 62)
É, no entanto, a influência da capoeira que tem maior destaque na configuração
da dança do Frevo. Trata-se, como veremos adiante, de uma das mais relevantes
contribuições das camadas mais pobres da sociedade recifense do século XIX – exescravos e excluídos em geral, desempregados e trabalhadores de diversas categorias do
proletariado – para a consolidação do Frevo como rica e vigorosa manifestação da
cultura carnavalesca pernambucana, para todo o Brasil.
142
3.6.2. Entre Saltos, Pernadas e Rasteiras, o Frevo que não é brincadeira
“Meteram uma peixeira no bucho de Colombina
que a pobre, coitada, a canela esticou!
Deram um rabo-de-arraia em Arlequim,
um clister de sebo quente em Pierrô!
“E somente ficaram os máscaras da terra :
Parafusos, Mateus e Papangus...
e as Bestas-Feras impertinentes,
os Cabeções e as Burras-Calus...
realizando, contentes, o carnaval do Recife,
o carnaval mulato do Recife,
o carnaval melhor do mundo !”
(Ascenso Ferreira, Carnaval do Recife.
In: Catimbó, 1927)
FREVO PERNAMBUCANO
(Luperce Miranda e Osvaldo Santiago, 1931)
Lá vem Catirina a sambá
Na frente do Clube das Pá
Lá vem Sá Chiquinha do angu
De braço com o Zé Papangu
Viva o frevo, a pagodeira
Viva a farra e o amô!
Viva o amô!
Dei um saco de confete
Para minha flô
A faca num cabra enterrei
Por que, não me lembro, não sei,
Só sei que no frevo caí
E dele aos pedaços saí
A canção Frevo Pernambucano exemplifica um relevante aspecto do
posicionamento do Frevo no campo do discurso literomusical brasileiro, observado em
um número reduzido de canções que constituem nosso corpus, mas que se manifesta,
por exemplo, em diversos títulos de Frevos-de-rua, como vimos acima. Trata-se da
elaboração de um ethos agressivo do enunciador, em meio aos excessos da folia. Esse
pequeno grupo de canções (além de Frevo Pernambucano, analisamos O Caminho é
Perigoso, de Capiba, e Vou Pra Pernambuco, de Nássara e Frazão) ilustra a
compreensão do fenômeno cultural do Frevo em seus momentos iniciais de
configuração da música e da dança, ainda no século XIX. Como enfatizamos acima, o
contexto sócio-histórico do período é marcado por intensas transformações em
Pernambuco e no Brasil como um todo, sobretudo a partir da Abolição da escravatura,
143
com o crescimento populacional nas cidades e o consequente aprofundamento das
contradições sociais.
A rede de significações que se estabelece na definição desse aspecto da
emergência do Frevo inclui dois elementos principais: o espírito de rivalidade que
marca a atuação das bandas militares e das primeiras agremiações de rua; e a influência
da capoeira na configuração da dança do Frevo, a partir da movimentação do gingado
daqueles que se exibiam à frente das bandas, abrindo caminho para sua passagem. A
respeito do primeiro, Oliveira (1985) lembra que a rivalidade entre as bandas sempre foi
bastante comum não apenas no Recife, mas também nas cidades do interior, a exemplo
de Nazaré da Mata, onde se destacam as bandas Revoltosa e Capa-Bode, e Goiana, com
a Saboeira e a Curica. Duarte (1968), por sua vez, vai buscar no passado de revoltas,
rebeliões e revoluções que marcam a História de Pernambuco uma explicação para esse
espírito belicoso que perpassa as diferentes manifestações do Frevo, desde a escolha dos
nomes das agremiações até o uso da sombrinha (ou chapéu-de-sol, como prefere o
autor) como arma, apontando como motivação clara para o fenômeno o sentimento de
aversão contra o colonizador português.
De toda forma, o clima de acirramento dos ânimos e de predisposição para o
confronto é algo que caracteriza os primeiros momentos do Frevo, sucintamente
descritos por Câmara (2007, p. 14), assim:
O desfile desse pessoal era feito em moldes de verdadeiro delírio, pulando,
gingando, jogando capoeira, armados de cacetes e aos gritos, desfiando
adversários para a luta. Isso acontecia quando uma banda cruzava com outra.
[...] A confusão era o ponto alto do desfile. A música tocando, o pau
cantando e o frevedouro estourando.
A esse respeito, são ilustrativos os versos de Frevo Pernambucano. A cenografia
dessa canção situa o ouvinte no contexto de um desfile pelas ruas, de uma das mais
antigas agremiações do carnaval do Recife, o Clube das Pás Douradas61. O enunciador
descreve então o gesto violento de ataque (“a faca num cabra enterrei”), aparentemente
sem qualquer razão (“por que, não me lembro, nem sei”), e finaliza a canção referindo
sua condição física depois de sair da frevolência da folia (“só sei que no frevo caí / e
61
Conforme registra o Catálogo das Agremiações Carnavalescas do Recife e Região Metropolitana,
publicado pela Prefeitura do Recife em 2009, o Clube das Pás foi fundado em 19 de março de 1888, no
bairro de São José, por um grupo de carvoeiros que trabalhava no Porto do Recife. Inicialmente foi
batizada como Bloco das Pás de Carvão, em referência aos seus instrumentos de trabalho. Em 1890, muda
o nome para Clube Carnavalesco Misto Pás Douradas. (RECIFE 2009, p. 40)
144
dele aos pedaços saí”). A canção registra, portanto, cenas semelhantes às descritas nas
páginas dos jornais, desde o século XIX, quando eram frequentes as notícias de
confrontos sangrentos por ocasião do encontro das agremiações pelas ruas do Recife.
Esta, por exemplo, do Diario de Pernambuco, de 25 de fevereiro de 1909, dá conta dos
fatos ocorridos no confronto entre o próprio Clube das Pás e o Clube Lenhadores:
Assassinato
Mais uma lamentável cena de sangue veio por um momento turvar a alegria
das festas de carnaval, lançando uma nota de pesar no seio da população
desta cidade. [...]
De algum tempo é constatada visível divergência entre os Lenhadores e as
Pás, dois clubes cujas sedes se acham estabelecidas no bairro da Boa Vista
[...]
Quiz ante-ontem [sic] o acaso que os dois rivais se encontrassem no Pátio de
Santa Cruz às 5 1/2 horas da tarde travando logo violenta discussão as
respectivas orquestras.
Nesse local, não sabemos porque motivo se achava o popular de nome
Paizinho, barbeiro de profissão e residente no Pombal, brigando com uns
músicos desses referidos clubes que o espancaram a valer.
Daí a pouco o brigar tornou-se geral, sendo então exibidas muitas armas e
começando sério conflito da orquestra de Lenhadores composta de músicos
do 49º batalhão de caçadores, com os das Pás, constituída por músicos do 27º
batalhão de infantaria.
Foi nessa ocasião que o soldado do 1º corpo de polícia de nome Joaquim
Jerônimo Pessoa, destacado no distrito de Pombal, recebeu mortal ferimento
de punhal no baixo ventre, vibrado por mão traiçoeira e cobarde.
A notícia do sucedido correu veloz, chegando rapidamente ao conhecimento
das autoridades. [...]
(DIARIO DE PERNAMBUCO, 25/02/1909, in RABELLO, 2004, p. 118)
De fato, registros da violência da festa estão presentes na imprensa desde a
primeira metade do século XIX, pelo menos. A questão é analisada por diversos
autores, que a identificam em diferentes momentos da história, desde a época do
Entrudo, nome da festa em Portugal. SILVA (1991, p.XVI), por exemplo, reproduz
matéria do Diario de Pernambuco de 6 de fevereiro de 1837, que
trata dos ‘jogos de lima ou balas de cera, contendo águas odoríferas’,
ressaltando que ‘um abuso grosseiro e porco, vai porém aviltando o nosso
entrudo (que bom fora que fosse abandonado com todas as más galanterias)
introduzindo águas, tintas e pós a que chamam vapor [...] (SILVA, 1991, p.
XVI)
Esta outra notícia, também do Diario de Pernambuco, publicada em 1842, deixa
transparecer claramente o clima de animosidade motivado por diferenças sociais:
Os nossos bons camponeses, que nos trazem ao mercado os produtos de sua
agricultura, e que vem fazer o seu negócio são furiosamente acometidos até
por escravos, que os molham, que os enxuvalham de tintas, de lama etc.etc.
[...] são incalculáveis as desconfianças, os ódios as rixas e até os homicídios,
145
que se tem originado dos chamados brinquedos do entrudo. (in RABELLO
2004, p. 47)
A análise desses registros enseja uma reflexão acerca da validade de uma
compreensão, bastante recorrente, do carnaval como festa democrática de igualdade e
integração social, em diferentes contextos. O registro dos acontecimentos verificados no
carnaval da pequena cidade francesa de Romans, no século XVI, constituem um
exemplo de como a insatisfação política e as tensões sociais podem eclodir no carnaval,
sob diferentes formas, fazendo-nos lançar, portanto, um questionamento sobre essa
visão do carnaval como festa democrática. Os fatos, relatados por Ladurie (2002),
ocorreram em apenas duas semanas: “Mas que semanas! As do Carnaval de Romans,
em fevereiro de 1580, no decorrer do qual os participantes dos dois lados mascararamse, depois se mataram entre si.” (LADURIE, 2002, p. 9). O clima de revolta, motivado
por problemas econômicos, como a cobrança abusiva de impostos, ou pela violência da
nobreza contra artesãos e camponeses, resultou em derramamento de sangue. Medeiros
(2005), abordando a questão, esclarece que “Em 1580 há dois carnavais em Romans, o
dos plebeus e o dos notáveis, e a forte tensão desencadeará o pesadelo de mortos e
feridos.” (MEDEIROS, 2005, p. 17).
Em Pernambuco, as razões para as manifestações de violência são explicadas,
como já assinalamos, pela rivalidade entre partidários das bandas, inicialmente, e
posteriormente entre as próprias agremiações do nosso carnaval. Mas há também uma
motivação clara a partir das diferenças de classe, ao longo do período de transição entre
o declínio do carnaval organizado pelas elites, nos moldes do carnaval europeu, e a
emergência de um carnaval eminentemente popular. Araújo (1996) analisa que as
camadas dominantes – ou seja, “os proprietários de terra, os grandes comerciantes,
agentes financeiros e industriais”, aos quais estava ligada a classe média urbana, “por
laços de parentesco, dependência ou identidade sociocultural e ideológica” (ARAÚJO,
1996, p. 304) – viam com preocupação e até com certo temor o fortalecimento desse
carnaval criado pelas camadas subalternas:
A invasão das ruas pelo povo, pelo mísero habitante dos mangues e das
marés, era vista com apreensão pelos membros das camadas dominantes.
Intimidava-os, amedrontava-os e levava-os a abandonarem os espaços
públicos ou a refugiarem-se no interior dos carros e automóveis, divertindose no corso, entre famílias. Até aquele momento, a elite praticamente
ignorara a existência daquela gente que mourejava de sol a sol [...] A imagem
que vislumbrava ao ver passar aquela multidão ensandecida, recém-saída dos
mocambos e da lama, dos fornos das padarias, dos fundos das oficinas, das
mesas das tipografias, dos galpões insalubres das fábricas e detrás dos
146
balcões das lojas e boticas, era a de um verdadeiro monstro popular
(ARAÚJO, 1996, p. 302)62
A cenografia elaborada na canção Frevo Pernambucano recupera, assim, em
certa medida, o contexto social desse período de grande ebulição no carnaval, refletindo
conflitos da vida social da época.
A análise dos versos revela ainda um aspecto interessante, de caráter
propriamente linguístico, em ocorrências como “na frente do Clube das Pá”, “viva a
farra e o amô!” e “dei um saco de confete para minha flô”, que exemplificam, no
primeiro caso, um desvio de concordância nominal em relação à norma padrão da
gramática normativa e, nos outros dois, a supressão do fonema /r/ final nos substantivos
amor e flor, fenômeno comum também nas desinências de infinitivo63. Compreendemos
as ocorrências como opções dos compositores para caracterizar, na elaboração da cena
enunciativa da canção, o falar dos integrantes dessas camadas subalternas responsáveis
pela emergência do tal “monstro popular” no carnaval.
É importante assinalar que os trechos destacados exemplifiquem fenômenos
observados tanto entre falantes da cidade como das áreas rurais de várias regiões do
país64, e que ocorrências semelhantes aparecem também em canções de grupos como
Turunas da Mauricéia e Grupo de Caxangá, que saíram de Pernambuco e fizeram
sucesso no Rio de Janeiro a partir da primeira década do século XX, contribuindo muito
para a popularização de gêneros sertanejos do Nordeste, como o coco e a embolada. A
respeito do sucesso dos Turunas, Cabral (1996) observa: “Vestidos com roupas típicas e
cantando gêneros musicais tradicionais do sertão, como o coco e a embolada, os
músicos pernambucanos estrearam com grande sucesso no Teatro Lírico” (CABRAL,
1996, p. 23). Em novembro do mesmo ano, a gravadora Odeon lançaria dez discos do
Turunas da Mauricéia, com vinte músicas gravadas, ao todo. Do grupo fazia parte um
dos autores de Frevo Pernambucano, o bandolinista Luperce Miranda (1904-1977)
62
A autora cita os versos publicados no Jornal Pequeno, Recife, em 11 de fevereiro de 1907: “Aos saltos
por entre risos/ sem carros de alegorias, / pois symbolos são são precisos/ p’ra as cousas dos nossos dias, /
[...] / E o carnaval enorme,/ - parece imensa cobra/ quando a espiral desdobra/ é o ‘MONSTRO
POPULAR’,/ que o misero que dorme/ à sonho solto, após/ o diuturno lidar [...]” (ARAÚJO, 1996, p.
303)
63
Marroquim (2008) observa que o fenômeno ocorre em registros coloquiais da modalidade oral do
português falado em várias partes do mundo, assim como em outras línguas neolatinas, a exemplo do
romeno, que suprimiu o r em todos os infinitivos verbais. (v. MARROQUIM 2008, p.35)
64
Araújo (1996) assinala que boa parte dessa população chegava ao Recife como resultado do fluxo
migratório oriundo da zona rural de Pernambuco, “da área açucareira, sobretudo” (ARAÚJO, 1996,
p.313)
147
O sucesso dos grupos pernambucanos influenciou toda uma geração de músicos
cariocas de talento, dentre os quais se incluem Almirante (Henrique Foréis Domingues),
Braguinha (Carlos Alberto Ferreira Braga), Noel Rosa, Donga (Ernesto Joaquim Maria
dos Santos) e Pixinguinha (Alfredo da Rocha Vianna). Os três primeiros integraram o
grupo Flor do Tempo (grafado Frôr do Tempo), depois rebatizado de Bando de
Tangarás; os dois últimos participaram do Grupo de Caxangá, fundado pelo violonista
João Pernambuco (João Teixeira Guimarães, 1883-1947). Máximo e Didier (1990)
assinalam que Almirante, líder e fundador do Bando de Tangarás, “estabelece que seu
repertório será, basicamente, nordestino, [...] de preferência nos moldes dos turunas lá
de cima” (MÁXIMO; DIDIER, 1990, p. 108). Daí considerarmos que alguns títulos das
canções que integram esse repertório revelam a proposta de apresentar uma certa
caracterização geral do falar nordestino: Vamo Falá do Norte, Vaca Maiada, Mulata
Mal Inducada, Coisas da Roça, Pra Vancê (MÁXIMO; DIDIER, 1990, p. 108).
Levando em conta esse contexto histórico, marcado pelo sucesso dos referidos grupos,
compreendemos que semelhante proposta norteou as opções de Luperce Miranda e
Osvaldo Santiago - pernambucanos já há algum tempo radicados no Rio de Janeiro observadas na letra de Frevo Pernambucano.
Por fim, merece atenção ainda o primeiro verso de Frevo Pernambucano, (“Lá
vem Catirina a sambá”) que evidencia a importância dessa obra não apenas pelo registro
da inserção do Frevo no campo do discurso literomusical, mas também por sinalizar, em
seus versos, um momento do processo de afirmação do samba no cenário da música
urbana brasileira. Aqui, o verbo “sambá” (em “Lá vem Catirina a sambá”) designa a
movimentação eufórica da dança, remetendo o ouvinte a um período de transição no
processo de definição do samba como música e dança. A constatação baseia-se na
análise desse processo, tal como desenvolvida por Sandroni (2001), que menciona, na
edição de 3 de fevereiro de 1838 do jornal recifense O Carapuceiro, o registro a palavra
samba indicando a “‘dança do samba’, referida como diversão da gente da roça, por
contraste com a da capital (Recife)65” (SANDRONI, 2001, p. 86).
Assim, além dos aspectos especificamente relacionados à inserção do Frevo no
discurso literomusical brasileiro, os versos de Frevo Pernambucano remetem àquele
65
Em suas considerações acerca das configurações de sentido da palavra samba, ao lado de outras
designações de origem africana - semba, batuque, umbigada e especialmente lundu – o autor observa que
“já haveria, pois, em meados do século XIX, uma versão do lundu perfeitamente urbanizada e aceita pela
‘boa sociedade’, enquanto o samba era signo do atraso rural (era ‘tatamba’, como diz rimando o jornal)”
(SANDRONI, 2001, p. 86)
148
momento histórico já referido acima, na passagem do século XIX para o século XX,
marcado por uma redefinição da sociedade e da cultura brasileiras, quando também se
observa a sedimentação dos gêneros da nossa música popular, principalmente nos
centros urbanos, com múltiplas influências advindas também das áreas rurais do nosso
país. Nesse percurso, evidencia-se a importância da cultura africana na definição de
nossas manifestações culturais. No caso do Frevo, como já vimos, a configuração da
dança recebe decisiva influência da capoeira.
A influência da capoeira na dança do Frevo é abordada por todos os estudiosos
que veem nos movimentos daqueles partidários das bandas postados à frente das
mesmas, por ocasião dos desfiles na rua, o embrião dos passos da dança. As
demonstrações de ameaça e provocação são registradas, por exemplo, em forma de
canção, como esta, citada por Araújo (1996):
Se ouço na rua
Tocar a Charanga
Me ponho na frente
Alegre a saltar
Não conto desgraças
Quebrando cabeças
Virando moleques
De pernas p’ra o ar
( versos da cançoneta O Capadócio, publicada no jornal A Pimenta, 14 de
novembro de 1908. In ARAÚJO 1996, p.335)
Em seu livro de memórias, o compositor Lourenço da Fonseca Barbosa (Capiba)
(1985) relembra um funcionário do Banco do Brasil, no Recife, para onde o autor veio
trabalhar, a partir de 1930. Era um contínuo (office-boy), de nome João de Lima, que
vivera nas ruas esse período de rivalidade intensa entre as bandas. Assim Capiba se
refere ao colega:
Ensinou-me muita coisa a respeito do passo e do frevo do Recife de seu
tempo de rapaz. Fazia parte da turma da pesada. Da turma da capoeira, que
ficava toda assanhada quando alguém dava o grito de guerra diante das
bandas de música rivais. [...] Esse grito do qual me falava João de Lima era
‘Arriba Espanha!’ E a negrada entrava direta na capoeira, com pernadas de
feder a chifre queimado; peixeiradas, cacetadas, tiros e o diabo a quatro.
(BARBOSA, 1985, p.236, grifo do autor)
O autor relembra que nem ele nem o próprio João de Lima sabiam explicar o
porquê daquela expressão, vindo a ter conhecimento ele, Capiba, somente “depois de ler
muito sobre o frevo” (BARBOSA, 1985, p. 237), a respeito da rivalidade entre as
bandas do 4º Batalhão de Artilharia e da Guarda Nacional, comandada pelo regente
Pedro Garrido, espanhol de nascimento.
149
Se no Recife a presença dos capoeiristas é marcada por essa peculiaridade da
participação nos desfiles das bandas militares cuja música moldou as primeiras feições
do Frevo, era comum encontrá-los também noutras partes, em diferentes ocasiões,
conforme exemplifica Tinhorão (1991): “o costume dos valentões abrirem caminho de
desfiles gingando e aplicando rasteiras sempre fora comum em outros centros urbanos,
como o Rio de Janeiro e Salvador, principalmente nas saídas de procissões.”
(TINHORÃO 1991, p. 138)
Uma composição bastante peculiar de Capiba, possivelmente o compositor mais
importante do Frevo-canção (ao lado do maestro Nelson Ferreira), pelo conjunto de sua
obra no gênero, dá conta desse contexto de configuração da dança do Frevo, em meio
aos perigos da frevolência das ruas, no carnaval. A peculiaridade da canção diz respeito
à própria temática, pouco enfocada nas letras do Frevo-canção, de modo geral, e
particularmente na obra de Capiba, cujos principais eixos temáticos são o romantismo e
a exaltação à beleza da própria festa do carnaval do Recife. O título da obra, O Caminho
é Perigoso, sintetiza esse aspecto do posicionamento do Frevo no discurso literomusical
brasileiro.
O CAMINHO É PERIGOSO
(Capiba)_1932 (sem gravação)
Requebra a dobradiça
No chã de barriga
Pra frente e pra trás
Cuidado com a poliça
Se ela te pegar
Não te solta mais
Aguenta firme rapaziada
Que uma onda vem
O pirão é gostoso...
Mas toma cuidado repara bem mal
Não vai estrepar
Que o caminho é perigoso
Eu entro com a macacada
No rojão do frevo,
Para me arrasá
A turma que é da virada
Diz: ‘não tem é sopa, viva o Carnaval’
Na rua do Imperador
U’a morena fogo
Quase se acabou
Fiquei doido de amor
(CÂMARA e PAES BARRETO 1986, p.60)
150
De acordo com Paes Barreto e Câmara (1986), a canção, composta para o
carnaval de 1932, não chegou a ser gravada. Seu único provável registro está na edição
de 1º de fevereiro de 1932, “onde a marcha aparece de corpo inteiro, verso por verso,
ocupando o espaço de 17 cm por duas colunas, mostra de sua importância” (CÂMARA
e PAES BARRETO 1986, p.60):
A cenografia dessa canção é elaborada com base na advertência expressa no
título, que evoca o clima de acirramento, disputa e rivalidade vivenciado nas ruas
durante o carnaval, daí muitas vezes resultando confrontos violentos durante a festa,
sendo por isso reprimida (“cuidado com a poliça / se ela te pegar não te solta mais”). A
letra registra a efervescência do Frevo no calor da onda humana que se arrastava nas
ruas (o “rojão do frevo”), assim como o aspecto de sensualidade presente nos encontros
em meio à folia (“u’a morena fogo / quase se acabou / fiquei doido de amor”). A
primeira estrofe é particularmente interessante porque registra os nomes de alguns
passos da dança (“dobradiça”, “chã de barriga”) ressaltando a dinâmica do movimento
da onda (“pra frente e pra trás”).
Aí está, na definição dos passos do Frevo, a evidência da influência da capoeria. A
própria denominação da dança como passo, aliás, é explicada por essa influência. Lélis
(2011) observa que aspectos como a ginga, o vigor e o improviso são partilhados nas
duas manifestações. Os versos da canção de Capiba (“cuidado com a poliça, se ela te
pegar não te solta mais”) exemplificam as considerações da autora, quando afirma que
“a repressão da polícia faz o capoeira disfarçar seus golpes e criar uma coreografia de
modo a acompanhar a multidão, com movimentos que passam a ter denominações
específicas” (LÉLIS, 2011, p.61). A esperteza dos praticantes da capoeira para driblar a
repressão policial é descrita, então, como aspecto interessante da inspiração criadora dos
passos do Frevo. Segundo Araújo (1996, p. 363), por exemplo:
Havia passos que retratavam cenas do cotidiano, mas com a clara intenção de
dissimular, de enganar, de desviar a atenção do outro, que podia ser um
inimigo pessoal ou a polícia: Fiz um passo de quem vae ali e já volta...; ou
ainda: O camaradinha fez um passo, assim de quem vai comprar cigarros na
venda e entrou num concerto...Esses movimentos denunciavam a origem
social do passo e do passista: indivíduos pertencentes às camadas populares,
muitos afeitos à desordem e ao crime, para quem a perseguição policial era
uma constante e a dissimulação uma arma ou estratégia de sobrevivência.
O capoeirista é, portanto, frequentemente apontado como protagonista das cenas
de violência e distúrbios, segundo o olhar de cronistas e da imprensa em geral. Mario
151
Sette (1981), por exemplo, assinala, fazendo referência ao fenômeno também no Rio de
Janeiro:
A capoeiragem, no Recife, como no antigo Rio, criou tais raízes que se
julgava um herói sobrenatural quem tivesse forças de acabar com ela. Que
nada! Saísse uma música para uma parada ou uma festa e lá estariam
infalíveis os capoeiras à frente, gingando, piruetando, manobrando cacetes e
exibindo navalhas. (SETTE, 1981, p. 86)
Não obstante sua vinculação às camadas mais pobres da sociedade, Araújo
(1996) assinala que, mais tarde, “outros segmentos sociais aderiram à capoeira”, dentre
os quais incluíam-se “senadores, deputados, funcionários públicos, oficiais da marinha e
do exército e gente da polícia” (ARAÚJO, 1996, p. 332). A autora salienta, ainda, o
papel dos capoeiras como protegidos de pessoas influentes e abastadas, tais como
políticos e chefes de partido, no período entre o fim do Império e começo da República,
quando “tornaram-se elementos cruciais nos processos eleitorais, decidindo votações
por meio de fraudes e na ponta da faca” (ARAÚJO, 1996, p.333)
A capoeira é, porém, apenas um dos aspectos que definiriam, segundo a
interpretação de alguns autores - como Oliveira (1985) e Duarte (1968), por exemplo -,
o caráter viril e belicoso do Frevo. Para o primeiro, trata-se de uma marca original e
definitiva da música pernambucana, que ele procura explicar através da comparação
com a marchinha carioca. Falando especificamente do Frevo-de-rua, o autor escreve:
A marchinha carioca é assexuada. O frevo é viril. Ela convida a cantar, a
entrar no coro, a assobiar baixinho o estribilho contagioso, a fazer ‘cobra’ no
salão, de braços para cima. Ele não convida: arrasta. Sua efervescência tem
qualquer coisa de magnético, contra a qual é difícil resistir. (OLIVEIRA,
1985, p.37)
Duarte (1968), por sua vez, analisa a questão sob diferentes ângulos, e procura
explicar essa faceta do Frevo a partir da simbologia dos nomes e insígnias das
agremiações, bem como do uso da sombrinha. A respeito da fundação dos clubes
Vassourinhas (1889) e Lenhadores (1897), o autor afirma sua estranheza da escolha dos
respectivos símbolos das duas agremiações:
Vassourinhas tem como símbolo – seu nome está indicando – uma vassoura.
Fato estranho! Povo revolucionário, no auge de uma luta de quase um século,
inclusive com líderes fuzilados a todo momento pelas autoridades
constituídas [...] na hora de arranjar um símbolo para uma agremiação
popular, criada por gente sofredora da classes mais baixas da sociedade,
escolhe a vassoura, que lembra a mulher, que lembra o trabalho doméstico
[...]
152
Do outro lado as coisas não eram diferentes. O clube que reuniu os
adversários do Vassourinhas recebeu o nome de Lenhadores, com o símbolo
apropriado ao nome, ou seja, um machado.
É verdade que o recife nunca teve florestas nem, consequentemente, os
profissionais da derrubada de árvores, os lenhadores, como classe. E era
estranho que uma entidade se fundasse, pretendendo agrupar os lenhadores,
quando tais lenhadores não existiam. (DUARTE, 1968, p. 21-22)
Na interpretação do autor, as escolhas só se justificavam pela intenção de
disfarçar, nesses símbolos, as armas a serem usadas nos confrontos na rua – o cabo da
vassoura e o cabo do machado, respectivamente. Sobre a vassoura, ele assinala:
A moda era andar armado de cacete, os valentões descalços [...] Ora, o
símbolo do clube carnavalesco que andava fazendo exibições pelas ruas era
uma vassoura, isto é, o cabo dessa vassoura [...] exatamente o cacete, a arma
tradicional dos valentões [...] (DUARTE, 1968, p.22)
No capítulo intitulado O Chapéu-de-sol no Frevo, Duarte (1968) analisa a função do
chapéu-de-sol (ou guarda-chuva, ou sombrinha) como elemento constitutivo da
indumentária do Frevo. O autor conclui, então, que
Enquanto a bengala ou o cacete armavam os integrantes dos cordões dos
clubes, fantasiados, os que não pertenciam a esses mesmos cordões
permaneciam desarmados. Para resolver essa situação, valeram-se do chapéude-sol.(DUARTE, 1968, p. 38)
Em sua argumentação buscando explicar essa belicosidade inerente ao Frevo,
Duarte (1968) chega a equivocar-se quanto à letra da canção Vou Pra Pernambuco, dos
compositores cariocas Nássara e Frazão. Escreve assim o autor:
A sugestão belicosa é constante na palavra [Frevo]. Quando não lembra
briga, lembra valentia. Veja-se esta letra de Nássara, numa música que fez
sucesso no Rio de Janeiro nos últimos dez anos:
“Eu vou embora
Vou pra Pernambuco,
Fiquei maluco
Sem saber porquê
Não sei se foi
Aquele frevo ardente
Que me fez valente
Ou se foi você
Não se sabe se foi o frevo que o fez valente!...
(DUARTE, 1968, p.51)
153
Na verdade, a canção citada, lançada para o carnaval de 1945, com interpretação
do cantor Deo, não tem o verso para o qual Duarte chama a atenção (destacado acima
em negrito). A letra diz o seguinte:
VOU PRA PERNAMBUCO (Nássara/Frazão, 1945) 66
Eu vou me embora
Vou pra Pernambuco
Eu fiquei maluco
Sem saber por que
Não sei se foi
Aquele frevo ardente
Que me pôs demente
Ou se foi você
Eu não aguento morena
Tanta ansiedade, morena
Ai, ai que tormento
Ai, ai que saudade
Pra Pernambuco
Tomara eu voltar já
Ai, ai, ai
Minha saudade morena
Ficou lá, ai !
O equívoco do autor quanto à transcrição da letra revela um descuido de sua
parte, na caracterização do Frevo como uma manifestação excessivamente violenta. Na
verdade, a análise da canção revela, mais do que a sugestão belicosa (a briga ou a
valentia), um ethos saudosista, comum a várias outras canções, como veremos adiante.
A cenografia é elaborada a partir de um enunciador tocado pelo efeito inebriante do
Frevo “ardente” que o faz ficar “maluco” e o põe “demente”. Trata-se de uma proposta
de caracterização do Frevo que se observa em outras canções, como esta, gravada por
Nelson Gonçalves em 1944:
NÃO AGUENTO MAIS (Capiba, 1944)
Morena que vem de outras terras
Porque tu não entra no frevo
É bom demais
E se tem bate-bate a onda
Começa pra frente, pra trás
Quando chega meia-noite
Não aguento mais!
66
Presente na trilha sonora do filme Não Adianta Chorar, uma comédia da produtora de cinema Atlântida
lançada em 1945 (com roteiro e direção de Watson Macedo, tendo Oscarito e Grande Otelo nos papéis
principais), a canção é interpretada nas telas por Marion e Moacir Ferreira, com participação do Clube das
Pás Douradas.
154
Não aguento mais
Frevo assim é bom
Mas já é demais
Quem quiser que eu fique
Nesta confusão
Me segure, me segure
Senão eu vou ao chão!
Aqui, a cena enunciativa da canção enfatiza a movimentação intensa da dança do
Frevo, até o limite da exaustão expressa no enunciado do título. Não há qualquer
indicação de ocorrências violentas em meio à folia, mesmo com o emprego do
substantivo “confusão”, comumente tomado como sinônimo de briga, mas neste caso
significando mesmo a agitação ruidosa da coreografia do Frevo, da multidão em festa.
Nesse caso, a descrição da “onda” movimentando-se “pra frente e pra trás” sugere a
localização do espaço físico do salão, sinalizando, portanto, o contexto de adoção do
Frevo pela classe média recifense, nos bailes de carnaval realizados nos clubes do
Recife, já a partir dos anos 1930.
O caráter belicoso do Frevo, conforme analisado por Duarte (1968), é uma
manifestação dos primeiros momentos da história do fenômeno, interpretado pelo autor
como fruto do espírito libertário do povo de Pernambuco contra os portugueses, como
uma forma subliminar de combate desenvolvida diante da repressão advinda das lutas
travadas ao longo da História. A respeito da revolução praieira, por exemplo, o autor
afirma:
Perdeu a guerra mas saiu para outra modalidade de luta. Passou a fazer
guerrilhas. A matar português com os ponteagudos canos de chapéu-de-sol
disfarçados em estandartes de blocos carnavalescos ou de grupos de
capoeiras gingando ao lado das bandas militares dos batalhões aquartelados
na cidade. Passou a combater o português de uma maneira clandestina,
subterrânea (DUARTE, 1968, p. 34)
Reconhecida a importância crucial da capoeira para a definição do Frevo, num
contexto social marcado pela forte repressão às manifestações populares, sobretudo
aquelas vinculadas à herança africana, é preciso considerar, na sua expressão corporal mistura de luta, jogo e dança -, o sentido de resistência e autoafirmação da cultura de
origem africana em nosso país. Conforme observa Lélis (2011), a capoeira é
uma criação dos negros, no Brasil, nascida como instinto natural de
preservação da vida, autodefesa e luta ela liberdade. Sendo uma linguagem
de dança, além da beleza e arte dos movimentos, não se pode desvinculá-la
do tempo, do espaço social e da relação íntima entre o homem, seu corpo e o
meio, ou seja, das suas várias maneiras de existir. (LÉLIS 2011, p.20)
155
Essa presença marcante da capoeira na configuração do Frevo contribui para
evidenciá-lo como espaço de resistência dessa parcela da população que dava corpo ao
carnaval popular do Recife, sob a vigilância das autoridades, muitas vezes transformada
em repressão violenta67. O processo de consolidação da forma musical e da coreografia
do Frevo exemplifica a complexidade das manifestações da cultura popular brasileira
que buscam legitimar-se em meio aos embates de caráter estético-ideológicos e aos
questionamentos acerca de sua validade, em geral promovidos, em diferentes momentos
históricos do país, por setores da assim chamada elite pensante, composta por críticos,
formadores de opinião e ideólogos da cultura.
É o que aconteceu também com o samba. Não obstante a sua consagração como
gênero popular mais caracteristicamente brasileiro, sendo inclusive reconhecido
oficialmente pelo Estado Novo,68 não ficou isento de violenta crítica, frequentemente
embasada numa visão preconceituosa de base racista. Napolitano (2007, p. 41) lembra
que
a maior parte dos detratores do samba lembrava não apenas o ar de malandro
e cafajeste de muitas letras, mas, sobretudo, as raízes africanas do gênero [...]
A crítica mais comum ao samba tinha fundo racista e estava ligada à sua
vinculação à tradição negra e africana
No caso do Frevo, há ainda quem o considere isento de qualquer sentido de
resistência ou de protesto, como Oliveira (1985), ao rejeitar a interpretação de Aydano
do Couto Ferraz, considerando inapropriada esta
“tecla batida por sociólogos: atribuir ao passo e ao frevo, aqui considerados
como forma individual e forma coletiva de dança, um extravasamento de
anseios longamente reprimidos [...] A praga do protesto ainda o não atingiu”
(OLIVEIRA, 1986, p. 125).
Atualmente, porém, o reconhecimento do Frevo como espaço de resistência das
camadas mais pobres e oprimidas da população, reunida em torno do interesse legítimo
de manifestar-se culturalmente para a afirmação de sua identidade, está claramente
67
Silva (2000) lembra que a prática da capoeira era classificada como crime pelo Código Penal do
Império e pelo Código Penal de 1890, “tratando, este último, em seu capítulo XIII Dos vadios e
capoeiras, sendo seus infratores condenados a cumprir penas no presídio da Ilha de Fernando de
Noronha” (SILVA 2000, p. 129)
68
Napolitano (2007) aponta como marco referencial desse reconhecimento a realização do Dia Nacional
da Música Popular Brasileira, em 4 de janeiro de 1939, como parte da Exposição Nacional do Estado
Novo. “A idéia era realizar um grande show ao vivo com Francisco Alves, Aracy de Almeida, Almirante,
Orlando Silva, Silvio Caldas, o Bando da Lua [...] culminando na escolha, por votação direta, do melhor
samba e da melhor marcha [...] Conforme o Correio da Manhã, compareceram cerca de 200 mil pessoas”
(NAPOLITANO 2007, p. 36)
156
definido no documento do IPHAN emitido em favor do reconhecimento do Frevo como
patrimônio imaterial da cultura brasileira:
“O parecer da Superintendência Regional afirma suas razões favoráveis ao
registro: [...] o caráter de resistência de um ritmo que surgiu das camadas
menos favorecidas, que “resistiam” ao poder das elites, e que hoje resiste aos
poderes do mercado, que não o privilegiam; a diversidade cultural
condensada no frevo, num processo dinâmico de diálogo entre várias
tradições, e mantendo-se um símbolo “vivo” da identidade cultural e da
história de um povo69”
Assim, ao longo de sua evolução, observamos que a história do Frevo é marcada
por diferentes facetas da resistência cultural, sendo hoje definida, por exemplo, como
luta contra a exclusão dos meios de comunicação – sobretudo o rádio, à exceção dos
poucos comunicadores que ainda o mantêm em sua programação – e mesmo contra a
falta de maior consistência dos poderes públicos nas ações relacionadas ao gênero
musical mais importante – há uma crítica permanente, por exemplo, sobre a realização
do Concurso de Músicas Carnavalescas promovido anualmente pela Prefeitura do
Recife, por conta da má divulgação e da falta de promoção do disco gravado com as
músicas vencedoras.
69
Parecer nº 007/06, emitido pela Gerência de Registro do Departamento de Patrimônio Imaterial do
IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) do Ministério da Cultura, referente ao
processo nº 01450.002621/2009-96 (disponível em
http://www.iphan.gov.br/portal/montarDetalheConteudo.do?id=13515&sigla=Institucional&retorno=detal
heInstitucional, acesso em 26/08/2010)
157
3.7. Vozes do Frevo nas Ondas do Rádio
“Devo ao rádio ter me interessado pelo gênero de música mais próprio
e mais querido de minha região, o frevo [...]
O frevo tem uma força mágica, diabólica! Fanatiza qualquer um.
Não serei só eu...Creio que dentro de pouco tempo,
o Brasil inteiro irá adotar o frevo. Música como essa
não é capaz de ficar regional a vida inteira.”
(Nelson Ferreira, entrevista à Revista Carioca, p.36, s/d
in BELFORT 2009, p.59)
A previsão otimista do maestro Nelson Ferreira acerca da propagação do Frevo pelo
Brasil afora, reproduzida na citação acima, não se cumpriu inteiramente, e as razões
para isso até hoje ensejam acaloradas discussões no Recife, entre músicos, produtores,
jornalistas, estudiosos e aficcionados do Frevo em geral. Os argumentos incluem desde
a elevada exigência técnica para a boa execução da música, difícil demais para as novas
gerações de instrumentistas e compositores, até a sua exclusão das grades de
programação das rádios, particularmente as FMs, cuja produção, em sua maior parte, é
centralizada no Sudeste. Em todo caso, as ponderações do maestro, diretor artístico da
Rádio Clube de Pernambuco (PRA-8) e um dos maiores responsáveis pela criação e
pela divulgação do Frevo a partir da década de 1930, foram embaladas pela euforia de
ver a música pernambucana ganhar as ondas do rádio brasileiro na voz dos maiores
intérpretes do país, àquela época.
No período compreendido entre as décadas de 1930 e 1950, conhecido como Era
de Ouro do Rádio, o processo de definição da identidade discursiva do Frevo passa por
um momento bastante significativo, com a elaboração de outros aspectos do
posicionamento do gênero pernambucano no cenário cultural do país. Enfocaremos a
seguir uma amostra dessa produção, que é marcada por uma profusão criativa
estimulada exatamente pela possibilidade de propagação através do rádio.
De acordo com Charaudeau (2006), o rádio é um exemplo de dispositivo que
“constitui o ambiente, o quadro, o suporte físico da mensagem” (CHARAUDEAU,
2006, p.104). Compreende um ou vários tipos de materiais (a voz e a sonoridade da
instrumentação nas canções, por exemplo) e se constitui como suporte (ondas sonoras)
com o auxílio de uma tecnologia (todo o equipamento utilizado nas transmissões e os
aparelhos receptores). As considerações do autor afastam-se do ponto de vista ingênuo
158
dos primeiros modelos de comunicação, baseados na alternância entre emissor e
receptor na transmissão de mensagens. O dispositivo, segundo ele, não é “um simples
vetor indiferente”, mas participa da configuração de sentidos daquilo que veicula, “da
mesma forma que uma peça de teatro não faria muito sentido sem o seu dispositivo
cênico” (CHARAUDEAU, 2006, p. 105),
Ainda segundo Charaudeau (2006), o rádio é, essencialmente, o dispositivo da
voz e da música, o que o faz inscrever-se “numa tradição oral, ainda mais que não é
acompanhada
de
nenhuma
imagem,
nenhuma
representação
figurada”
(CHARAUDEAU, 2006, p. 105). Para a compreensão das condições de produção do
discurso literomusical brasileiro, é necessário salientar, pois, a importância fundamental
do rádio, responsável pela propagação, em escala nacional, da música popular a partir
dos anos 1920. O desenvolvimento do rádio no Brasil contribuiu definitivamente para a
redefinição da música popular brasileira, em diferentes períodos da história, ao espalhar
a produção composicional de inúmeros artistas através das vozes de renomados cantores
e cantoras, muitos deles alçados à condição de ídolos populares.
De fato, o rádio constitui-se como elemento catalisador no processo de
sedimentação da música popular como manifestação cultural da brasilidade. O seu
aparecimento demarca uma etapa crucial no desenvolvimento de uma tradição cultural
erigida sobre a canção, que, segundo alguns autores, alcança um momento fundamental
a partir dos anos 1950 e chega ao seu ápice nos anos 1960. Para Naves (2010), por
exemplo, esse período marca o surgimento da canção crítica, categoria que a autora
define a partir da constatação de que a canção popular torna-se “o lócus por excelência
dos debates estéticos e culturais, suplantando o teatro, o cinema e as artes plásticas, que
constituíam, até então, o foro privilegiado dessas discussões” (NAVES, 2010, p. 19)
O surgimento da canção de protesto e a consolidação da MPB70, na década de
1960, corroboram o advento da canção crítica, ao mesmo tempo em que a figura do
compositor popular passa a ter importância maior na vida cultural do país. Para a autora,
é a partir daí que o compositor também passa a ser considerado como intelectual, como
70
COSTA assinala que a sigla MPB foi criada a partir da Bossa Nova para designar “um tipo de canção
urbana dotada de um certo nível de qualidade de difícil definição objetiva, consumida por uma faixa da
população normalmente de classe média (COTA 2001, p. 317). Para Naves (2010), a sigla reúne “músicos
de uma geração posterior à da bossa nova, [que] procuraram conciliar a veia experimental de
compositores e intérpretes como Tom Jobim e João Gilberto com as informações políticas e culturais de
um momento marcado pela busca de igualitarismo social, de liberdade política e pelo sentimento de
brasilidade. Mesmo que a inspiração musical viesse de Recife, como é o caso de Edu Lobo, familiarizado
com a cidade onde desde menino passava as férias de verão, não se tratava de uma proposta regionalista,
mas da criação de uma linguagem que expressasse o Brasil.” (NAVES 2010, p.40).
159
pensador da cultura. Em geral, a Bossa Nova e a MPB – além do samba – são os
gêneros considerados como marcos referenciais para a consolidação de uma tradição
cultural no campo da música popular. A exclusão de outras manifestações é explicada
por alguns autores pela própria natureza conflituosa do processo, entre “contradições e
mediações as mais diversas, que, em linhas gerais, acompanham a própria formação da
nossa moderna identidade nacional” (NAPOLITANO, 2007, p. 6). Não é difícil
considerar, ainda, que, além dos fatores estético-ideológicos e artísticos pertinentes aos
três gêneros, fatores externos como a localização geográfica nos centros econômicos
produtores da indústria fonográfica foram determinantes na definição dos três gêneros
como basilares na construção dessa tradição cultural.
Assim, para Napolitano (2007)
as convenções, os debates, as estéticas e as ideologias em torno desses três
gêneros acabaram por legar uma tradição que, obviamente, não faz jus à
riqueza e à diversidade de todas as manifestações musicais do Brasil. Por
isso mesmo, a hegemonia dessa tradição vem sendo cada vez mais
questionada, na busca de uma liberdade maior de criação e pesquisa
musicais por parte dos músicos. (NAPOLITANO 2007, p.6)
A despeito da importância dos três gêneros referidos por Napolitano como
“espinha dorsal da idéia de música popular brasileira” (NAPOLITANO, 2007, p. 6),
entre os anos 1930 e 1960, a produção literomusical é enriquecida pela emergência e
pelo desenvolvimento de outros gêneros, sobretudo a partir dos anos 1950. Destacamos,
nesse contexto, o surgimento do baião, ainda na década de 1940, e a evolução do Frevo,
cuja profusão criativa ensejará, ainda na década de 1950, a criação de uma gravadora no
Recife, a Rozenblit, para dar conta de sua numerosa produção.
Pernambuco tem um papel de destaque na história da radiofonia brasileira, desde
os seus primeiros momentos. De fato, o registro pioneiro da instalação do rádio no
Brasil está no Recife, com a criação da Associação Rádio Club (depois Rádio Clube de
Pernambuco), em 6 de abril de 1919, por um grupo de amadores entusiastas da
novidade, à época denominada TSF (telegrafia sem fio). A iniciativa em Pernambuco,
comandada pelo Sr. Augusto Joaquim Pereira, exemplificava a prática da radiodifusão
amadora pelo país afora, “na organização de tais experiências em caráter de clubes – os
famosos rádio clubes que acabariam dando nome a tantas difusoras em todo o Brasil”,
conforme esclarece Tinhorão (1981, p. 33). Em geral, os curiosos e interessados pela
novidade reuniam-se na casa de um dos sócios, com a aparelhagem extremamente
160
simples dos primeiros receptores, em buscar de captar alguma transmissão, de forma
aleatória.
Não obstante o pioneirismo do Rádio Clube de Pernambuco, lavrado nas páginas
da imprensa da época71, em geral considera-se como data oficial da chegada do rádio no
Brasil o 7 de setembro de 1922, na inauguração da Exposição do Centenário da
Independência, realizada no Rio de Janeiro. Na ocasião, conforme relata Cabral (1996)
foi transmitido o discurso do presidente Epitácio Pessoa, além das óperas realizadas no
Teatro Municipal e no Teatro Lírico, para “os cidadãos contemplados com 80 receptores
(alguns instalados em praça pública de São Paulo, Niterói e Petrópolis)” (CABRAL,
1996, p. 9).
O Recife, entretanto, já nas primeiras décadas do século XX, vivia um período
de destaque quanto à possibilidade de acesso aos novos meios e recursos da tecnologia
de comunicação da época. De acordo com Barreto (2009), a modernidade estava ao
alcance dos recifenses, com o telefone, o telégrafo, o rádio e o cinema, nesse período.
Escrevendo a respeito da história da propaganda em Pernambuco, o autor assinala que a
Rádio Clube foi “reorganizada em 18 de outubro de 1923, [mas] somente sete anos mais
tarde, a PRA-8 veicularia anúncios em sua programação.” (BARRETO, 2009, p. 45)
Em sua tese de doutoramento, Saldanha (2008) evidencia a importância do novo
veículo de comunicação – e em particular da Rádio Clube de Pernambuco – para a
propagação do Frevo:
Por intermédio desse veículo, alguns dos grandes nomes da marcha
pernambucana ficaram conhecidos e se tornaram ícones da música popular
brasileira. O período de surgimento, consolidação e apogeu do rádio em
Pernambuco se confunde com o palco da consolidação, ampla divulgação e
massificação do frevo como gênero popular urbano representativo da cultura
pernambucana. (SALDANHA, 2008, p. 52)
Nas décadas de 1940 e 1950, porém, o maior sucesso do país, a partir das
transmissões radiofônicas do Sudeste, é mesmo o samba-canção, gênero marcado por
71
Na edição do Jornal do Recife do dia 7 de abril de 1919, sob o título de Rádio Clube, a notícia da
fundação da nova associação é publicada assim: “Consoante convocação anterior, realizou-se ontem na
Escola Superior de eletricidade, a fundação do Rádio Clube de Pernambuco, sob os auspícios de uma
plêiade de moços que se dedicam ao estudo da eletricidade e da telegrafia sem fio. Ninguém desconhece a
utilidade e o proveito dessa agremiação, a primeira do gênero fundada no País. Foram tomadas diversas
medidas, como sejam, designações de comissões para se entenderem com as autoridades do Estado” (in
ALCIDES 1997, p.46). Além disso, os fundadores enviaram o seguinte telegrama ao ministro da Viação e
Obras do Governo Delfim Moreira, o Sr. Afrânio de Melo Franco: “Amadores telegrafia sem fio, hoje
reunidos na Escola Superior de eletricidade, fundaram Rádio Clube fim propagar conhecimentos técnicos
associados. Confiam vosso patriótico apoio. Augusto Pereira, presidente.” Segundo Alcides (1997), o
grupo obteve resposta do ministro: “sinceros votos de prosperidade”. (ALCIDES 1997, p.46)
161
um padrão musical de harmonias grandiloquentes e interpretações vocais com inflexão
melodramática, em geral versando sobre temas como a desilusão amorosa, a traição etc.
Posteriormente, com o advento da Bossa Nova (influenciada pelo jazz, com harmonias
consideradas sofisticadas e interpretações vocais intimistas), os excessos do sambacanção serão considerados, em geral, como mau gosto musical.
Embora saliente que “a cena musical dos anos 1950 era mais rica do que se pode
supor”, Napolitano (2007, p. 63) analisa que, em geral,
a década de 1950 foi relegada a uma espécie de entrelugar da história da
música popular brasileira [...] espécie de limbo entre os gloriosos anos 1930 e
a mítica década de 1960, os anos 1950 passaram a ser sinônimo de música de
baixa qualidade, representada por bolerões exagerados, sambas préfabricados e trilha sonora de quermesse
Devido a essa referência de escuta musical, definida em boa parte pelo viés
mercadológico, com a grande popularização do rádio – de que são evidência os
programas de auditório, a criação de fãs-clubes de vários artistas e a eleição da Rainha
do Rádio –, o espaço para os outros gêneros da nossa música nas rádios do Sudeste é
limitado. Entre as exceções, apontamos a realização do programa No Mundo do Baião,
lançado pela Rádio Nacional em 1951, na esteira do sucesso de Luiz Gonzaga entre os
imigrantes nordestinos, a partir da metade da década de 1940. Com a proximidade do
período de carnaval, o Frevo então disputa com o samba e com a marcha (marchinha e
marcha-rancho) a preferência dos ouvintes, através de algumas vozes destacadas nesse
cenário, a exemplo de Nelson Gonçalves:
SEGURE NO MEU BRAÇO (Capiba, 1945)
Nesse mundo quem não faz o passo
Não tem amor nem tem prazer na vida
Viver triste assim, pra quê viver
Pra quê, querida?
Vamos, morena, cantar e dançar
O frevo gostoso e ardente
Que bole com a alma da gente
Para você não sair do compasso
Segure, meu bem, no meu braço,
E vá repetindo o que eu faço
Segure meu bem, no meu braço,
E vá repetindo o que eu faço
A elaboração da cena enunciativa desta canção evidencia, de maneira
semelhante ao já observado em outras obras, o investimento em um ethos folião, que
tem no Frevo solução para a tristeza da vida. A noção de incorporação destaca-se pelo
162
caráter persuasivo da letra, sugerindo o envolvimento do corpo físico nos movimentos
da dança. A obra também se insere no conjunto de canções que corroboram a definição
de posicionamento do Frevo a partir do plano do vocabulário, integrando a dupla
designação Frevo e passo para a música (neste caso, em sua forma cancional) e a dança.
A canção exemplifica um processo de construção de sentidos, no âmbito do
discurso literomusical, que Tatit (1986) denomina de Tematização Melódica, e que
Costa (2001) analisa como “manifestação autoconstituinte da prática discursiva da
canção popular” (COSTA, 2011, p. 356), especialmente verificada em gêneros como o
samba, o frevo e o chorinho. A tematização melódica é o processo de reiteração de
sequências melódicas, ou seja, dos temas (caracterizados pelo ritmo, pelos intervalos
etc., que definem o desenho melódico da canção), de modo que a própria melodia ganha
relevo, destacando-se em relação à letra. Segundo Tatit (1986, p. 49):
O ritmo e as acentuações do componente melódico fundam os gêneros que
estamos acostumados a ouvir: samba, roque, bolero, baião, marcha etc. Os
arranjos instrumentais extraem sua pulsação, seu balanço e seus motivos
melódicos dos temas fornecidos pela melodia da canção (...). Assim sendo, o
processo intensivo de tematização conduz a uma supervalorização do gênero.
Por isso, não raro, a tematização cobre um texto exaltando o próprio gênero.
De acordo com o autor, em geral as letras das canções que se destacam pela
tematização melódica têm como característica básica a exaltação ao próprio gênero: “O
correspondente textual da tematização é a exaltação” (TATIT, 1986, p. 50). Essa
exaltação pode não se restringir aos valores do gênero musical, mas também englobar
“diversos aspectos referentes a seu universo”, segundo Costa (2001, p. 355), que
exemplifica com o samba, mencionando a dança, os aspectos étnicos, as formas
sensuais, o cotidiano dos músicos, o morro, a favela etc. como objetos de exaltação.
No exemplo destacado acima, sobretudo na segunda parte - o refrão -, a
exaltação ao Frevo é apresentada através da sua caracterização positiva (“gostoso e
ardente”) enquanto energia que ao mesmo tempo mobiliza o corpo e eleva o estado de
espírito (“bole com a alma da gente”). A tematização é, de fato, um processo de
significação recorrente na música carnavalesca em geral, fortemente baseada na
pulsação vibrante dos padrões rítmicos acelerados – no caso do Frevo, ainda mais, pela
sua própria configuração genérica de música ligeira, com influência direta da polca,
dentre outros gêneros. A reiteração dos temas resulta, afinal, na mobilização do corpo
físico em movimento, como explica Tatit (1996, p. 10):
Os contornos [melódicos] são, então, rapidamente transformados em motivos
e processados em cadeia. O centro da tensividade instala-se na ordenação
163
regular da articulação, na periodicidade dos acentos e na configuração de
saliências, muito bem identificadas como temas. A aceleração dessa
descontinuidade melódica, cristalizada em temas reiterativos, privilegia o
ritmo e sua sintonia natural com o corpo: de um lado, as pulsações orgânicas
de fundo (batimento cardíaco, inspiração/expiração) refletem de antemão a
periodicidade, de outro, a gestualidade física reproduz visualmente os pontos
demarcatórios sugeridos pelos acentos auditivos. Daí o tamborilar dos dedos,
a marcação do tempo com o pé, [...] o envolvimento integral da dança
espontânea ou projetada.
O processo de tematização melódica é empregado de maneira particularmente
criativa por Nelson Ferreira, em um conjunto de obras compostas por encomenda da
companhia Tecelagem Seda e Algodão de Pernambuco (TSAP). Nessas obras,
originalmente criadas como propaganda de produtos da TSAP (o brim Caroá, o brim
Carrapicho e o estampado Derby), a reiteração do tema musical está a serviço da
exaltação ao carnaval e particularmente à dança do Frevo, como se vê nos exemplos
abaixo:
O PASSO DO CAROÁ (Nelson Ferreira e Sebastião Lopes, 1941)
No passo do caroá, á á á á
Eu quero ver como é é é é é
É muito fácil, menina
Nada tem de encrencado
É só na ponta do pé
Do pé do pé do pé
Repare bem
Que não tem nada de Capote, nem de Fox
Minueto, nem Quadrilha
Nem Lanceiro, Pas de quatre
Pois é!
Pra dançar o passo do caroá
Basta um mexido no corpo
E um trançado
Sim senhor, muito bem!
DANÇA DO CARRAPICHO (Nelson Ferreira e Sebastião Lopes, 1942)
[...]
Agora vou mostrar pra você aprender
A dança do carrapicho
Um passo pra frente e outro pra trás
A mão na cabeça e o dedo na boca
E depois que começar a confusão
Você vai ver que coisa louca!
Nesse período de consolidação do rádio como fenômeno de comunicação de
massa, e sobretudo a partir da criação da Fábrica de Discos Rozenblit, no Recife, há
uma significativa ampliação da produção do Frevo, de que resultará uma diversidade de
abordagens temáticas caracterizadora do seu posicionamento no campo do discurso
164
literomusical brasileiro. Alguns aspectos se destacam, através da elaboração do ethos
discursivo, em inúmeras obras: primeiro, temos a incorporação de motivos passionais,
com a presença de um ethos sentimental; segundo, há um conjunto de canções que se
destacam pela constituição de um ethos saudosista, particularmente notável na obra de
alguns compositores cuja trajetória artística é marcada pela saída do Recife para o
sudeste; e terceiro, um significativo grupo de canções cuja cenografia revela o
interessante aspecto da relação intergenérica entre a canção e a crônica, com a
abordagem de fatos da vida social e da história de Pernambuco e do país. Trata-se, neste
caso, de um traço comum a diversos posicionamentos na história da música popular
brasileira, definido por uma predominância das letras narrativas curtas, versando sobre
temas de alcance internacional como, por exemplo, a Segunda Guerra Mundial, ou
ainda fatos políticos da vida brasileira, como a construção de Brasília, entre muitos
outros exemplos.
3.7.1. Passionalização da canção e regulação da folia
Sempre lançando mão do aparato teórico da semiótica, Tatit (1986, 1996, 1997,
2004, 2007) propõe que o trabalho do cancionista72 equivale ao de um malabarista, pela
habilidade que tem de equilibrar as tensões entre melodia e letra. Essa metáfora
corrobora a sua concepção de canção como uma forma especial de registro da fala
coloquial. Para Tatit (1996, p. 9), “cantar é uma gestualidade oral, ao mesmo tempo
contínua, articulada, tensa e natural, que exige um permanente equilíbrio entre os
elementos melódicos, linguísticos, os parâmetros musicais e a entoação coloquial.”
A complexidade dessa atuação de malabarista é analisada pelo autor em
diferentes momentos da história da canção brasileira, na obra de vários cancionistas (cf.
TATIT, 1997). Em síntese, a habilidade do cancionista no equilíbrio das tensões é
definida pelo autor nos termos de uma oposição entre continuidade e segmentação das
72
Cancionista é o termo utilizado pelo autor para designar o artista criador de canções, ou seja, o
compositor – que frequentemente também é o intérprete – cuja formação é, em grande parte, intuitiva e
não acadêmica (ou seja, não domina a escrita e a leitura de partituras). É o responsável pela configuração
da canção popular brasileira no século XX, graças ao trabalho criativo de reproduzir na canção, através de
um gesto entoativo específico, a voz que fala. O cancionista reelabora o domínio coloquial da oralidade
na canção, definindo “a entoação da linguagem oral como centro propulsor de todas as soluções
melódicas que resultaram nos gêneros e estilos até hoje praticados.” (TATIT, 2004, p.75)
165
sequências melódicas, “fundando um princípio de tensividade que a habilidade do
cancionista vai administrar e disseminar ao longo da obra.” (TATIT, 1996, p.10).
Por um lado, a noção de segmentação diz respeito ao processo de tematização
melódica, referido acima, caracterizado por uma maior aceleração do ritmo (pulsação),
em sintonia com o movimento do corpo – movimento frenético e contagiante, no caso
do Frevo, através do investimento num ethos definido pela incorporação, na imagem do
passista em ação. Por outro lado, a configuração de sentidos identificada com a noção
de continuidade diz respeito ao processo de passionalização, que se constitui,
basicamente, em termos linguístico-musicais, a partir do prolongamento das vogais,
geralmente com a exploração das regiões agudas da escala musical, conforme esclarece
o autor:
É a tensão que se expande em continuidade, explorando as frequências
agudas (aumento de vibrações das cordas vocais) e a capacidade de
sustentação de notas (fôlego e energia de emissão). É a tensão do perfil
melódico, em si, que alinhava as vogais. (TATIT, 1996, p.10)
O processo de passionalização é, por sua própria definição, característico de
gêneros musicais mais lentos. Analisando a canção romântica, no campo do discurso
literomusical brasileiro, Costa (2001) aponta, por exemplo, a balada, o blues, a valsa, o
bolero, além daqueles que são “resultantes de um processo de suavização de gêneros
ligeiros, como o samba-canção - abrandamento do samba; o rock-canção - rock lento;
etc.” (COSTA, 2001, p. 272). A configuração musical favorece, no plano discursivo, a
instauração de “um estado passional de solidão, esperança, frustração, ciúme, decepção,
indiferença etc., ou seja, de um estado interior, afetivo” (TATIT, 1997, p. 103), que se
afigura compatível com as tensões decorrentes da ampliação da duração, ou seja, da
continuidade melódica. Daí, então, que as letras em geral tenham conteúdo baseado em
pequenas narrativas elaboradas em torno de inúmeras variações a partir de um estado de
disjunção ou de conjunção afetiva, do enunciador em relação ao seu objeto.
Analisamos, com Tatit (1986), que a tensão composicional deve-se a “um
desequilíbrio narrativo e a uma necessidade de recobrança do equilíbrio, através de um
novo estado de conjunção” (TATIT 1986, p. 26), como, por exemplo, em Foi um rio
que passou em minha vida (Paulinho da Viola): “[...] Carregava uma tristeza, não
pensava em novo amor/ quando alguém que não me lembro anunciou/ Portela, Portela
[...] Ah, minha Portela, quando vi você passar/ senti meu coração apressado/ todo o
meu corpo tomado/ Minha alegria voltar”; ou, de outra forma, “o reequilíbrio narrativo
166
seria adquirido com a disjunção” (TATIT, 1986, p. 27), como, por exemplo, em Para
me livrar do mal (Ismael Silva, Noel Rosa e Francisco Alves): “Tô vivendo com você/
num martírio sem igual/ vou largar você de mão/ com razão/ para me livrar do mal”.
Embora tipicamente observado em gêneros de andamento mais lento – com
destaque para o samba-canção, ou samba de meio de ano, como também ficou
conhecido o gênero, devido às determinações mercadológicas –, o processo de
passionalização está disseminado em praticamente todas as formas musicais, porquanto
o tema das relações amorosas seja universal e atemporal. É ainda Tatit quem observa:
“A passionalização na canção funciona como um reduto emotivo da intersubjetividade.
Todas as épocas necessitaram dessas expressões individuais registradas na
especificidade da curva melódica” (TATIT, 1996, p. 23). Variam, evidentemente, as
dicções peculiares de cada cancionista, definidas pelo autor como a habilidade de cada
um em estabelecer “um revezamento das dominâncias desses dois processos” (TATIT,
1996, p. 24). Um exemplo por ele apresentado é a obra de Roberto Carlos, que iniciou a
carreira musical com a réplica nacional do iê-iê-iê dos Beatles, passando depois à
condição de maior cantor romântico do Brasil – os próprios Beatles, aliás, são
mencionados por Tatit como exemplos de um percurso pelo qual os artistas ingleses
iniciam “com os temas dançantes de I Wanto to Hold Your Hand para, bem depois, se
consagrarem como, talvez, os melhores melodistas e arranjadores da canção romântica
em todo o mundo (Girl, Something, Yesterday).” (TATIT, 1996, p.24)
Na música brasileira, o processo de passionalização também se verifica no
samba e na música carnavalesca em geral, como atestam os exemplos de sambistas
cariocas, apresentados acima. O autor aponta ainda a canção Agora é Cinza (Bide e
Marçal), grande sucesso do carnaval de 1934, no Rio de Janeiro, como exemplo de
canção que define a consolidação do estilo passional na música brasileira. Nessa obra,
observa-se a
melodia construída com alongamento das vogais e a consequente dilatação
dos motivos em nome da desaceleração geral do percurso musical [...] letra
versando sobre a desunião, o desencontro amoroso, enfim, o distanciamento
entre sujeito e objeto73 [...] A valorização da trajetória melódica corresponde,
em boa parte, à necessidade de restabelecimento do laço afetivo, da
continuidade rompida e do próprio equilíbrio interno do sujeito (o
personagem carente da canção) (TATIT, 2007, p. 154)
73
“Você partiu /saudade me deixou/ eu chorei/ o nosso amor foi uma chama/ que o sopro do passado
desfaz/ agora é cinza / tudo acabado e nada mais/ Você partiu de madrugada/ e não me disse nada / isso
não se faz/ me deixou cheio de saudade e ilusão/ não me conformo com a sua ingratidão (chorei porque)/
[...]” (Agora é Cinza, Bidê e Marçal, 1934, in ALENCAR, E. 1979, p.229)
167
No Frevo, analisamos a ocorrência da passionalização na definição de um
importante aspecto do seu posicionamento, marcado por um significado conjunto de
canções cuja organização discursiva é baseada em letras narrativas versando sobre
temas que incluem as relações amorosas, em que o Frevo e o carnaval frequentemente
aparecem como elementos de equilíbrio para a resolução do estado de tensão.
Interessante exemplo é o desta canção de Nelson Ferreira, gravada ainda na década de
1930:
QUE FIM VOCÊ LEVOU ? (Nelson Ferreira, 1937)
Olá, como vai você?
Nunca mais lhe vi
E que fim levou?
A última vez que falei com você
Foi na terça-feira
Do carnaval que passou
Eu bem me lembro como se hoje fosse
Era de cor verde a sua fantasia
Tão bonita como a esperança
Que em meu coração vive
De você ser meu um dia
E agora volta louco o carnaval
O seu ruído já domina o espaço
Vamos unir os nossos corações
E de braço com a ilusão
Amar com o frevo e com o passo
Observa-se aqui o desenvolvimento de um estado inicial de tensão, provocado
pela ausência do co-enunciador, numa cenografia baseada em um simulacro de diálogo,
marcado textualmente nas interrogações sem resposta, na primeira estrofe. A
organização do texto em três estrofes revela um projeto narrativo simples, que tem
como fio condutor o carnaval. Ele representa o estado inicial de conjunção do
enunciador, cuja última lembrança do seu objeto de desejo é exatamente o carnaval
passado, mencionado já na primeira estrofe. Depois, já a imagem da fantasia verde (“tão
bonita como a esperança”) aparece como uma preparação para a solução do estado
disjuntivo, que não chega a efetivar-se, mas é sugerido na estrofe final, quando o
enunciador afirma a disposição de “unir nossos corações” e “amar com o frevo e com o
passo”.
O processo de passionalização é particularmente notável na obra do compositor
Lourenço da Fonseca Barbosa (Capiba) - que explora os temas românticos em profusão.
168
Também se identifica o mesmo processo em canções cuja cenografia é baseada na
elaboração de um ethos saudosista em relação ao carnaval do Recife, suas figuras,
paisagens e manifestações culturais, a partir da década de 1940, com destaque para
composições de Antônio Maria e Luiz Bandeira.
As análises desse período da música popular brasileira (TINHORÃO, 1990,
1991; CABRAL, 1996; NAPOLITANO, 2007; TATIT, 2004; ARAÚJO, 2008 e
outros), em que se destacam as obras elaboradas com base no processo de
passionalização, revelam um contexto histórico de importantes mudanças, motivadas
pela nova ordem sociopolítica instaurada com o Estado Novo, com evidentes
repercussões na vida cultural do país. A consolidação do rádio como fenômeno de
comunicação de massas favorecerá a confirmação do samba como gênero musical
símbolo de identidade nacional, como já mencionamos acima. Costuma-se ressaltar,
nesse processo, as influências exercidas pela ação direta do Estado, através da censura
da produção musical, pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), no sentido
de empreender a “higienização” do samba, produto das camadas marginalizadas da
sociedade do Rio de Janeiro. Na prática, isso consistia em desconstruir a imagem
positiva do malandro e da boemia, por exemplo, conforme analisa Tatit (2004, p. 77):
Percebendo a força enunciativa da canção popular no final da década de
1930, o Estado Novo de Getúlio Vargas chegou a encomendar aos
compositores temas mais ‘edificantes’ e, sobretudo, posturas mais
disciplinadas e pedagógicas para os personagens gerados na instância do
‘eu’. Seria útil ao regime ditatorial recém-instalado que os influentes
enuncidaores da canção trocassem o tema da orgia, do amor e do samba pelo
do trabalho e da vida regrada.
Na visão de Napolitano (2007), trata-se de um processo complexo que reflete, de
um lado, a incorporação dos valores do samba por uma parcela da classe média,
incluindo, por exemplo, compositores (Noel Rosa, Orestes Barbosa, Nássara, Mário
Lago, entre outros) e jornalistas ligados às manifestações populares; e, de outro lado, o
interesse do poder político no crescimento da música popular e do rádio, tomado como
eficiente veículo de propaganda oficial. Além disso, vislumbrava-se aí o
desenvolvimento de um grande mercado consumidor, em consonância com o projeto
nacionalista posto em prática na Era Vargas, conforme pondera Tinhorão (1990, p.
236):
Transformada, assim, em artigo de consumo nacional vendido sob a forma de
discos, e como atração indispensável para sustentação de programas de rádio
[...], a música popular brasileira ia dominar no mercado durante todo o
169
período de Getúlio Vargas – 1930-1945, em perfeita coincidência com a
política econômica nacionalista de incentivo à produção brasileira e à
ampliação do mercado interno.
Em suma, é esse o período em que se começa a desenhar os contornos iniciais de
uma tradição da canção popular na cultura brasileira, como define Napolitano (2007), a
partir da ideia de um “encontro sociocultural” em que figuram, como mediadores,
aqueles agentes acima citados. Assim, para o autor
É preciso reconhecer que o nacionalismo na música popular, principalmente
a partir de uma parte do samba e do Carnaval, não era produto apenas do
controle e da instrumentalização do Estado Novo, materializada através da
ação do DIP [...]. Também correspondia a uma estratégia de buscar
reconhecimento do samba como paradigma de música popular de ‘bom
gosto’, símbolo e síntese da brasilidade musical, desenvolvida tanto por
jornalistas entusiastas do Carnaval e da música popular como pelos próprios
sambistas. (NAPOLITANO, 2007, p. 38)
Evidentemente, esse embate não excluiria o samba da ação “civilizadora”
promovida por “muitos nomes da burocracia oficial da cultura”, em busca de
instrumentalizá-lo “para fins de pedagogia cívica e ideológica” (NAPOLITANO, 2007,
p. 28). Entre os exemplos mais conhecidos de canções produzidas nesse contexto estão
dois grandes sucessos do carnaval de 1941, com letras que exaltam o trabalho: O Bonde
de São Januário (Wilson Batista e Ataulfo Alves) e Eu Trabalhei (Roberto Roberti e
Jorge Faraj)74. Cabral (1996) destaca ainda o samba É negócio casar, da dupla Ataulfo
Alves e Felisberto Martins (gravado também em 1941, por Orlando Silva), pela
exaltação explícita ao Estado Novo: “Vejam só a minha vida como está mudada/ não
sou mais aquele/ que entrava em casa alta madrugada/ [...] O Estado Novo veio para nos
orientar/ No Brasil não falta nada/ mas precisa trabalhar”.
Notório resultado desse contexto é também a emergência do samba-exaltação,
decantando em tom grandiloquente e ufanista as belezas da Pátria. A obra referencial
desse gênero de samba é Aquarela do Brasil (Ary Barroso, gravada pela primeira vez
em 1939, na voz de Francisco Alves), aos quais se somam outros: Onde o céu é mais
azul (Alcir Pires Vermelho, João de Barro e Alberto Ribeiro) e Brasil (Benedito
Lacerda e Aldo Cabral), por exemplo.
Em Pernambuco, assim como no Rio de Janeiro, os anos 1930 são marcados por
ações oficiais de ordenação da festa do Carnaval. No Rio, é criada a UES (União das
74
“Quem trabalha é quem tem razão/ eu digo e não tenho medo de errar/ O bonde São Januário leva mais
um operário/ sou eu que vou trabalhar/ [...]” (O Bonde de São Januário); “Eu hoje tenho tudo, tudo que
um homem quer/ tenho dinheiro, automóvel e uma mulher/ Mas, pra chegar até o ponto em que eu
cheguei/ Eu trabalhei, trabalhei, trabalhei” (Eu Trabalhei)
170
Escolas de Samba), em 1934. No ano seguinte, no Recife, é fundada a Federação
Carnavalesca de Pernambuco (FECAPE), cuja ação política de regulamentação
repercutirá na produção literomusical.
A nova entidade tem o papel de organizar uma festa que, até então, desenvolviase de maneira espontânea, cabendo ao Estado a manutenção da ordem - para isso não
raramente empregando a força da repressão75. Não era, entretanto, uma iniciativa
pioneira, porque em 1911 já ocorrera o Primeiro Congresso Carnavalesco em
Pernambuco. Notícia publicada na edição de 14 de janeiro de 1911 anuncia a ideia de
realização do evento, ressaltando que a finalidade maior seria coibir as práticas do
Entrudo, essencialmente vinculadas, de acordo com a opinião expressa nos jornais, às
agremiações menos organizadas, responsáveis pelo carnaval popular espontaneamente
levado às ruas, geralmente formadas pelas camadas marginalizadas da sociedade.
Segundo as vozes dominantes na imprensa, essas agremiações faziam um tipo de
brincadeira considerada como exemplo de atraso e de mau gosto, sendo por isso
execradas sob a classificação de
’papa-angus’ esfarrapados, emporcalhando transeuntes, [...] troças
destroçadas, sem bandeira e sem destino, zombando dos nossos créditos de
progressistas. O ‘Congresso Carnavalesco’ veio de certo modo, formar um
dique a umas tantas velharias observadas entre cordões carnavalescos, e
acabar de uma vez para sempre com intrigas soeses e pequeninas que davam
em resultado lutas sangrentas. (Jornal Pequeno, 14/01/1911, in RABELLO
2004, p.174)
O evento seria realizado em maio, com a participação de representantes de
agremiações como Lenhadores, Clube das Pás, Clube Filhos de Candinha e Clube
Dezoito de Março, que prestaram, ao final, a devida reverência ao “ilustre dr. Ulysses
Costa, digno chefe de segurança pública” presenteando-o com um retrato em ampliação
fotográfica e um cartão de prata, entregues pelos participantes na Chefatura de Polícia,
conforme notícia do Jornal Pequeno, edição de 15 de maio de 1911 (v. RABELLO,
2004, p.175). Mas o resultado dos seus trabalhos não teria efeito prolongado. Araújo
(2008, p. 89) assinala que:
o Carnaval do Recife seguia seu rumo: a burguesia divertindo-se nos salões e
no corso em automóveis [...]; o frevo vibrando e arrastando a massa popular;
75
Araújo (2008) lembra que as autoridades “proibiam os jogos do Entrudo; regulamentavam o uso de
máscaras, definindo o horário e as categorias sociais que poderiam, usar o disfarce, como também o
horário e itinerário dos cavaleiros; usavam e abusavam da força policial para reprimir comportamentos e
diversões considerados excessivos ou ameaçadores à ordem pública.” (ARAÚJO 2008, p.87)
171
a cavalaria da polícia no meio dos cordões [...] quase sempre deixando um
folião pisado e esbordoado.
Somente com a criação da FECAPE76 é que o poder público efetivamente
passará a atuar na regulamentação da festa, seja através da distribuição de recursos às
agremiações filiadas, seja através da promoção dos desfiles oficiais e da divulgação do
Carnaval no interior e nos Estados vizinhos; ou, ainda, através de uma proposta de
orientação ideológica, resumida no artigo 5º do seu estatuto, que define como um dos
objetivos da entidade “moldar o carnaval no sentido do tradicionalismo histórico e
educacional, fazendo reviver costumes nossos, tipos de nossa História, fatos que nos
eduquem” (SANTOS, 2010, p. 195). O discurso subjacente ao documento busca
evidenciar o caráter de identidade cultural do Frevo e do Carnaval de Pernambuco, com
a preocupação em ressaltar a festa como manifestação original e democrática, conforme
a mensagem enviada pelo presidente Joseph Prior Fish (também presidente da
Pernambuco Tramways) à Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco, em 26 de
agosto de 1936: “Finalmente clubes pedestres que representam a união dos três
elementos étnicos e tomaram caráter puramente pernambucano, com a criação do frevo,
que é tipicamente nosso.”77 (ARAÚJO, 2008, p. 93)
O papel “educativo” da FECAPE extrapolava os limites circunscritos à
organização da festa. Entre as suas atribuições está, de acordo com o mesmo documento
enviado à Assembléia Legislativa, a de “não permitir a propaganda política de qualquer
natureza [...], preservar os clubes filiados de ideologias exóticas, prejudiciais às
instituições” (ARAÚJO, 2008, p. 93). Na verdade, a direção da entidade, composta por
indivíduos da elite econômica e política do Estado, além de intelectuais e formadores de
opinião78, manifestava clara preocupação com a influência do comunismo no Carnaval
do Recife, justificada pelo fato de que grande parte das agremiações era formada por
indivíduos pertences às categorias do trabalho proletário. De fato, o ideário socialista
andava em grande evidência nesse período, graças à atuação do Partido Comunista do
76
Para a compreensão do contexto de fundação e das linhas de atuação da FECAPE, cf. Souto Maior e
Silva (1991), Araújo (2008) e Santos (2010), sobretudo o capítulo 3 (SANTOS 2010, pp. 189-226)
77
A FECAPE foi oficialmente reconhecida através da Lei Estadual nº 212, sancionada pelo governador
Carlos de Lima Cavalcanti em 3 de dezembro de 1936 (cf. SILVA 1991, p.LXXVI).
78
Além de J.P. Fish, compunham a direção da FECAPE os Srs. Arlindo Luz (superintendente da Great
Western), 1º vice-presidente; Pedro Allan Teixeira (deputado estadual), 2º vice-presidente; Mário Melo
(jornalista), 1º secretário; Samuel Campello (teatrólogo), 2º secretário; J. Pinheiro (engenheiro da
Tramways), 1º tesoureiro; e Renato Silveira (ex-presidente da Federação pernambucana de Desportos), 2º
tesoureiro. A Diretoria de Honra compunha-se do governador Carlos de Lima Cavalcanti e do prefeito do
Recife, Lima Castro, além de outras autoridades, como os comandantes militares da 7ª Região Militar e
da Brigada Militar do Estado (ARAÚJO 2008, p. 92)
172
Brasil nas lutas trabalhistas, e também graças à repercussão da Intentona Comunista, em
1935.
No plano musical, a ação da FECAPE é empreendida através do rádio e da
promoção dos concursos anuais de música carnavalesca, geralmente com o apoio dos
jornais e rádios da cidade. “Ouvia-se aquilo que o Estado queria e a FECAPE
selecionava” (SANTOS, 2010, p. 214). No concurso de 1938, o primeiro do Estado
Novo, foi escolhido o Hino do Carnaval de Pernambuco, canção de autoria de Marambá
e Aníbal Portela, com letra exaltando o Carnaval de Pernambuco e a própria Federação:
HINO DO CARNAVAL DE PERNAMBUCO (Marambá e Aníbal
Portela, 1937)
Foliões, viva o prazer!
Viva o frevo original!
O ideal é sorrir
E ao passo aderir
Aderindo ao Carnaval!
Evohé! Evohé!
O carnaval de Pernambuco
É vibração, é gozo, é o suco
Graças ao Frevo e à Federação (bis)
Carnaval como se faz
Nesta bela capital
Vale a pena se ver
Pois é bom de doer
É de fato Carnaval!
[...]
A canção ficou conhecida como “Evoé!”, mas não caiu no gosto popular, ao
ponto de a FECAPE determinar a sua execução obrigatória na abertura dos desfiles
oficiais, no palanque montado na Praça da Independência, em frente ao Diario de
Pernambuco. A postura autoritária da FECAPE, na organização do Carnaval, renderia
críticas à instituição (cf. SANTOS, 2010, p. 216 e ss.), como esta, do compositor
Capiba, anotada por Câmara e Paes Barreto (1986), a respeito da ação política de
organização do Carnaval: “um erro, pois as coisas do povo não se organizam de cima
para baixo” (CÂMARA e PAES BARRETO 1986, p.79). Os autores registram, ainda, o
único caso de censura à obra do compositor, o veto do DIP à canção Pergunte aos
canaviais, um maracatu, de 1936, por conta dos versos “quem quiser saber se eu
padeço/ pergunte aos canaviais” (cf. CÂMARA e PAES BARRTEO 1986, p.80).
Embora manifestando-se contrário à atuação da FECAPE - “Aquilo era mais
uma associação política do que mesmo incentivadora do carnaval”, disse ele
173
(BARBOSA, 1985, p. 296) -, Capiba se tornaria, juntamente com Nelson Ferreira, um
dos maiores vencedores dos concursos realizados pela entidade. O autor não enfrentaria
problemas posteriores com a censura, visto que a maior parte de sua obra seria
elaborada sobre temas que variam da própria celebração do Carnaval e do Frevo até as
alegrias e dissabores da experiência amorosa79.
3.7.2. Capiba, cancionista malabarista
Com uma trajetória musical marcada pela diversidade de gêneros nos quais
desenvolveu a sua técnica e talento (canções, sambas, choros, valsas, maracatus),
Capiba notabilizou-se mesmo como compositor de frevos-canção. A análise feita, ainda
no início da segunda metade do século XX, por Suassuna (1951), atesta a prevalência
desse gênero na obra de Capiba: “Sempre manifestou Capiba preferência por esta forma
[...] que é mais própria para o espírito romântico, não só da região, como do próprio
compositor.” (SUASSUNA, 1957, p. 46). Em seus 93 anos de vida (1904-1997), Capiba
destaca-se, também ao lado de Nelson Ferreira, como um dos nomes mais
representativos do Frevo no cenário artístico do país, gravado por alguns dos maiores
nomes da Era de Ouro do rádio. Abaixo, elencamos alguns desses registros fonográficos
que ganharam destaque em gravações feitas no Sudeste do país, ainda em 78rpm:
•
Mário Reis (É de amargar, 1934);
•
Almirante (Vou cair no frevo, 1935)
•
Francisco Alves (Júlia, 1938)
•
Araci de Almeida (Mande embora essa tristeza, 1936)
•
Carlos Galhardo (Casinha Pequenina, 1939; Teus olhos, 1943; O tocador de
trombone, 1946; Quando se vai um amor, 1950)
•
Ciro Monteiro (Quem tem amor não dorme, 1939; Quero Essa, 1940; Gosto de
te ver cantando, 1940; Linda flor da madrugada, 1941; Quem me dera, 1942;
Dance Comigo, 1942)
79
Além dessas duas principais vertentes temáticas, canções como Casinha pequenina (1939), Quero essa
(1940), Linda flor da madrugada (1941) e O anel que tu me deste (1965) revelam o interesse do autor por
alguns “temas apanhados na mais popular poesia folclórica” (CÂMARA E PAES BARRETO 1986,
p.89), a exemplo das cantigas de roda.
174
•
Nelson Gonçalves (Não aguento mais, 1944; Que bom vai ser, 1944; Quando é
noite de lua, 1945; Segure no meu braço, 1945; Que será de nós, 1947; Morena
cor de canela, 1947; O que é que eu vou dizer, 1955)
•
Carmélia Alves (É frevo, meu bem!, 1951; Deixa o homem se virar, 1952; A
pisada é essa, 1953; Ninguém é de ferro, 1954; Vamos pra casa de Noca, 1954;
Amanhã eu chego lá, 1956; Nem que chova canivete, 1957)
Posteriormente, na era dos discos long-playing (LP), a obra de Capiba provomeu a
ascensão de vozes consagradas na música do Nordeste, a exemplo de Claudionor
Germano, Expedito Baracho e Mêves Gama, dentre outros, em gravações realizadas
pela Rozenblit. Até hoje, desde a consolidação da tecnologia do compact disc (CD), a
obra do artista vem sendo regravada com reiterado sucesso, executada em todos os
carnavais em Pernambuco.
Desse rico universo cancional, enfocamos apenas uma pequena parte dos frevoscanção que exemplificam as principais linhas temáticas de sua obra. No primeiro caso,
destacam-se canções que exaltam o Frevo e o Carnaval, algumas delas com uma
configuração melódica baseada no processo de tematização. Além de Não aguento mais
(1944), Segure no meu braço (1945) e É frevo, meu bem! (1951), já mencionadas,
apresentamos a seguir outras duas, cuja elaboração das cenas enunciativas apontam para
uma contextualização do Frevo em momentos distintos, com uma preocupação acerca
da manutenção da sua vitalidade e originalidade no panorama da música brasileira:
A TURMA DA PEDRA LASCADA (Capiba, 1963)
No carnaval é tudo alegria
Na pracinha e na rua ou no clube elegante
Todos dançam, todos cantam
Para bossa nova transviado ou não
Dançar twist é uma devoção
Mas quem é da turma da pedra lascada
Não resiste a vassourinhas não
E cai de corpo e alma no salão
Pula, pula, pula
Dança dança dança
Até quando o sol desponta
TROMBONE DE PRATA (Capiba, 1979)
Ouvi dizer que o mundo vai-se acabar
Que tudo vai pra cucuia
Que o sol não mais brilhará
175
Mas se deixarem um bombo e uma mulata
E um trombone de prata
O frevo bom viverá
Pode acabar o petróleo
Pode acabar a vergonha
Pode acabar tudo enfim
Mas deixem o frevo pra mim
Na primeira, já abordada acima, o Frevo é destacado frente à bossa nova e ao
twist, gênero norteamericano estreitamente vinculado ao rock’n’roll, que já dera seus
passos iniciais para conquistar definitivamente um espaço na cultura ocidental,
sobretudo entre os jovens, no final da década de 1950. A cena enunciativa da obra põe
em evidência a ideia de uma oposição de interesses culturais, na música e na dança, por
dois grupos etários: de um lado a bossa nova e o twist, pela juventude – “transviado ou
não” remete o ouvinte à expressão “juventude transviada”, tradução brasileira para o
título do filme norteamericano Rebel Without a Cause (1955); de outro lado, o Frevo,
ironicamente vinculado à “turma da pedra lascada” que, apesar de colocada em
oposição aos jovens, tem disposição e energia para pular e dançar “até quando o sol
desponta”.
Pouco mais de dez anos depois do lançamento da canção, Capiba reconsiderará
essa oposição, com o Frevo-canção Juventude Dourada (1976), propondo a superação
do preconceito quanto a essa vinculação do Frevo a uma camada da população adulta de
idade mais avançada:
JUVENTUDE DOURADA (Capiba, 1976)
Eu quero ver este ano a juventude dourada
Na rua que é do povo, camisa aberta no peito
Fazendo o que seus avós
Fizeram em tempos passados
Ao som de um frevo bem quente
O passo sem preconceito
Estou aqui para ver a juventude dourada
Nessa alegria de novo
Entrando na madrugada
A manifestação do desejo do enunciador, de ver a “juventude dourada” fazendo
o passo da mesma forma que seus avós, reflete a discussão travada então, ao longo de
mais de uma década, acerca da perda de espaços do Frevo nas manifestações do
Carnaval do Recife, a partir dos anos de 1960, quando se verifica, por exemplo, notável
crescimento do número de escolas de samba - estudo da antropóloga Katarina Real
publicado em 1967 revelava, na primeira metade da década de 1960, a presença de 40
176
escolas de samba, contra apenas 11 clubes de Frevo (REAL, 1967, p.150), com a
consideração de que “as Escolas de Samba são hoje uma força crescente, até o ponto de
causar preocupações às agremiações mais tradicionais e aos defensores dum carnaval
estritamente pernambucano” (REAL, 1967, p. 59).80
O período é marcado também por um sensível declínio da força do carnaval de
rua, concomitantemente ao crescimento do prestígio do Carnaval realizado nos salões
dos clubes sociais. Na letra de A turma da pedra lascada ainda se observa o tratamento
indistinto quanto à importância dos espaços em que se vive a alegria do Carnaval –“na
pracinha e na rua ou no clube elegante” –, mas a questão do esmorecimento do Carnaval
de rua suscitou acalorado debate nesse período, levado a público pelos jornais, e ensejou
a criação de novas agremiações, motivada por essa preocupação, a exemplo do Bloco da
Saudade (1973) e do Clube de Máscaras Galo da Madrugada (1978), entre outros.
A letra de Trombone de prata também manifesta preocupação quanto ao futuro
do Frevo. Na cenografia desta canção, o enunciador elege o Frevo como prioridade em
relação à “vergonha”, “o petróleo” e a “tudo, enfim” que está ameaçado de acabar,
contextualizando um momento de crise internacional no escoamento da produção de
petróleo pelos países árabes produtores, ao longo da década de 1970.81
São, entretanto, os Frevos-canção cuja temática inclui as relações amorosas, suas
alegrias e dissabores, os que se destacam na obra de Capiba, revelando ao mesmo tempo
a força criativa do compositor e caracterizando um aspecto do posicionamento do Frevo
comum a outros gêneros musicais. Esse numeroso conjunto de canções, em que se
verifica a elaboração de um ethos romântico e amoroso – que às vezes sofre as dores da
separação ou da não realização do encontro com o seu objeto de desejo – será dividido
em dois grupos, para uma breve análise: o primeiro é composto pelos frevos cuja cena
enunciativa é marcada por uma tensão narrativa provocada pelo sentimento de
disjunção, em que o enunciador elege o Frevo e o carnaval como instâncias de
superação desse estado, provocado pela desilusão e tristeza. Trata-se de uma estratégia
de reiteração que consiste em decantar os valores do próprio gênero, a partir da
80
Para uma compreensão dessa discussão, cf. também Teles (2008). SILVA (1991) analisa o
arrefecimento do carnaval de rua (“carnaval participação”) como decorrência das ações oficiais de
regulação da festa, incluindo a promoção do “carnaval espetáculo”, a partir dos anos de 1950 (SILVA
1991, p. LXXXIV)
81
Do mesmo ano é a canção O Frevo é imortal, de autoria de Reinaldo Tenório, enfocando a mesma
questão a respeito da valorização do Frevo e revelando elementos intertextuais, sobretudo na primeira
estrofe, em relação a Trombone de Prata, de Capiba: “Enquanto houver um bombo/ Ninguém segura o
frevo/ Enquanto houver trombone/ O frevo não vai morrer/ [...]”
177
elaboração de um ethos investido de um caráter e de uma corporalidade característicos
do corpo físico que se movimenta, nesse caso, para alcançar um estado de superação da
dor e do sofrimento, num plano emocional e afetivo. O Frevo é, então, o lugar da
euforia que representa o alívio e a restauração82.
A primeira canção que ilustra essa configuração de sentidos é exatamente o
primeiro grande sucesso de Capiba, É de Amargar, escrita em 1933 e vencedora do
concurso promovido pelo Diario de Pernambuco, para o carnaval de 1934, gravada em
seguida por um dos grandes nomes da Era de Ouro do Rádio, o cantor carioca Mário
Reis:
É DE AMARGAR (Capiba)_ 1934
Eu bem sabia que esse amor um dia
Também tinha seu fim, essa vida é mesmo assim
Não penses que estou triste nem que vou chorar
Eu vou cair no frevo que é de amargar
Eu já arranjei outra morena bonita
Anda bem vestida cheia de laço de fita
Gosta de mim com toda emoção
E já se diz a dona do meu coração
Minha morena sempre diz quando me vê
Gosto de você não sei como nem por quê
Me faz carinho a todo momento
Porém eu tenho medo do seu juramento
Os versos “Não penses que estou triste nem que vou chorar/ Eu vou cair no frevo
que é de amargar” sintetizam a decisão de encontrar na folia do Frevo a solução de
alívio para o sentimento de desamparo provocado pela perda do amor. Na segunda
estrofe, o enunciador parece declarar a superação do seu estado inicial de desconsolo
(“já arranjei outra morena bonita”, mas o verso final da canção (“porém eu tenho medo
do seu juramento”) evidencia uma indefinição quanto à resolução do desequilíbrio. É
curioso observar que, embora a cenografia da canção apresente, em versos simples, as
circunstâncias do fim de um amor e a tentativa de encontrar alento em um novo objeto
82
Evidentemente, outros autores têm contribuição na definição desse aspecto dos posicionamentos do
Frevo. Dentre inúmeras outras, podem ser apontadas como exemplos as seguintes obras: Vamos cair no
Frevo (Marambá,1943): Já faz um ano que a Teresa desapareceu / Que foi-se embora então sem me dizer
adeus/ [...] / Agora é alegria muita alegria meu pessoal / Vamos cair no frevo / que a vida só é boa quando
chega o carnaval; Tá Faltando Alguém (José Menezes, 1960): Tá faltando alguém/ tá faltando, sim/ tá
faltando uma pessoa / pra gostar de mim/[...] / Com tanto frevo e tanta confusão / será que não encontro /
a quem dar meu coração; Quando se quer bem (Manoel Gilberto):Você me fez esperar demais/
Francamente, isso não se faz [...] eu gostava tanto de você/ mas não faz mal/ agora vou brincar meu
carnaval
178
de desejo passional, a primeira parte da obra na verdade foi inspirada numa perda
familiar vivida pelo autor - a morte de um irmão querido, com a infeliz coincidência de
ter acontecido no mesmo dia do aniversário do compositor. Discorrendo sobre a
excursão da Jazz-Band Acadêmica, orquestra comandada por Capiba, à cidade do Rio
de Janeiro, com reconhecido êxito para os jovens músicos, Câmara e Paes Barreto
(1986) escrevem:
1933, que começara com a vitoriosa temporada no Rio de Janeiro, iria
terminar amargamente. Tantão, o irmão-exemplo, amigo, ídolo e conselheiro,
destinatário das cartas mais íntimas e depositário das esperanças mais
sonhadas, morreria exatamente no dia em que Lourenço iria comemorar 29
anos de idade, vítima de uma injeção mal aplicada. Ainda hoje, o dia 28 de
outubro guarda um travo de amargura nas muitas festividades aniversárias de
Capiba. (CÂMARA e PAES BARRETO 1986, p. 71)
Outras canções elaboradas na mesma perspectiva de exaltação do Frevo a partir
da temática das relações amorosas estão presentes ao longo da extensa produção do
autor. Em geral, são obras que revelam o talento de Capiba no jogo das tensões
narrativas, ao mesmo tempo recorrendo à tematização melódica que ressalta os valores
positivos do gênero – procedimento típico da música de carnaval – e desenvolvendo
conteúdos passionais, mais característicos daquilo que ficou convencionado chamar de
música de-meio-de-ano. A imagem de equilibrista, empregada por Tatit (1996) para
definir a arte do cancionista, revela-se bastante apropriada, neste caso, para ressaltar a
qualidade do trabalho de Capiba.
Alguns outros exemplos, a destacar:
VOU CAIR NO FREVO (Capiba, 1935)
Eu gosto tanto de você
Mas você nem sequer
Me presta atenção porque
Talvez você não compreenda
O mal que está fazendo ao meu coração
[...]
No carnaval vou brincar de namorar
Vou cair no frevo desta vez vou me acabar
E sendo assim pra que amar em vão
O amor só traz para nós indecisão
MANDA EMBORA ESSA TRISTEZA (Capiba, 1936)
Manda embora essa tristeza, manda, por favor
Pode ser que essa tristeza mate nosso amor
[...]
Tu pensas que eu levo de inverno a verão
A dançar e cantar com meu violão
179
Mas não é verdade, te digo afinal
Eu só faço isso pelo carnaval
FREVO, ALEGRIA DA GENTE (Capiba, 1969)
O carnaval aparece
Da dor a gente se esquece
A cidade fica a vibrar
Todo mundo quer ver Vassourinhas passar
Lá vem Toureiros trazendo
Na frente seu estandarte
[...]
VOCÊ ESTÁ CHORANDO (Capiba, 1971)
Você parece que está amando
Você está chorando
Deixe esse choro para depois
Venha cá dançar o frevo
E esqueça por um momento
A tristeza
[...]
No segundo grupo de canções de Capiba versando sobre o tema do amor e suas
tramas, verifica-se, de modo geral, a elaboração de uma cena enunciativa pautada em
narrativas de caráter passional, mas sem qualquer referência ao Frevo ou ao carnaval.
Nestas obras, é ainda mais evidente um projeto de construção de sentidos baseado na
noção de passionalização referida acima, conforme as considerações de Tatit (1986,
1996, 1997, 2004, 2007), com sequências melódicas marcadas pelo alongamento das
vogais, em interpretações vocais expansivas, características de um padrão dominante
nesse período da canção brasileira, dos anos 1930 até a década de 1950.
TENHO UMA COISA PARA LHE DIZER (Capiba, 1935)
Tenho uma coisa para lhe dizer
Mas não digo não
Porque faz mal ao coração
Não confessarei o meu segredo
Só porque você é convencida
Pois seu eu lhe contar você vai rir
E sem querer eu vou chorar
Por você minha querida
Eu sei que você gosta de outro
Mas eu lhe queria mesmo assim
O meu coração eu lhe darei
Porém com uma condição
Se você disser que sim!
TEUS OLHOS (Capiba, 1943)
Intérprete: Carlos Galhardo
180
Acorda, minha querida
E vem ver o luar
Vem ver a lua que brilha no céu
Refletindo no mar
Vem, que eu quero também
Nos teus olhos olhar
E matar a saudade
Que vive a me atormentar
Não há nada mais belo que o teu olhar
Nem o céu, nem o mar
Se não fossem os teus olhos
Eu vivia na treva a vagar
VOCÊ FAZ QUE NÃO SABE (Capiba, 1950)
Eu tive na vida tantos amores
Que me fizeram sofrer
Porém, de todos eu esqueci
Só um não posso esquecer
Sabe quem é esse amor?
É você
Eu não devia dizer
Você faz que não sabe
Para me fazer sofrer
Outras canções de Capiba, que podem ser incluídas nessa perspectiva de
construção de sentidos a partir da passionalização como aspecto delineador do
posicionamento do Frevo, são: Quando se vai um amor (1949) e Os melhores dias de
minha vida (1951)83. Uma análise da elaboração discursiva dessas obras - todas grandes
sucessos carnavalescos, a maioria regravada a partir da década de 1960 - revela, em
grande parte, um percurso narrativo comum às canções conhecidas como música-demeio-de-ano, cuja referência maior do período era o samba-canção, como já
assinalamos. Analisando a configuração narrativa dessas canções em oposição às
músicas de carnaval, com base na oposição entre as noções de alteridade e identidade,
respectivamente, Tatit (2004) ressalta que os temas em geral tratam de
desencontros amorosos e de disjunções entre personagens. Trata-se sempre
de um sujeito que necessita do ‘outro’ para compor a própria identidade:
sente-se ligado a esse outro no plano temporal (recorda-se de alguém ou de
algo do passado ou mantém a esperança de um encontro futuro), mas
reconhece que dele se encontra afastado no plano espacial. Daí decorre o
conflito subjetivo e a tensão tipicamente passional: a relação entre o eu e o
outro é simultaneamente conjuntiva e disjuntiva. (TATIT, 2004, p. 185)
83
A vida é triste, seu moço/ cheia de dissabores/ caminho cheio de espinhos/ coberto às vezes de flores/
há tanta gente que chora/ quando um amor vai deixar [...] (Quando se vai um amor); Os melhores dias de
minha vida/ eu passei contigo, querida/ porém o tempo, que tudo destrói/ quis destruir nosso grande amor/
eu fiquei chorando quando foste embora/ quem sente saudade é quem chora (Os melhores dias de minha
vida)
181
É talvez essa habilidade com o manejo das diferentes possibilidades de criação,
o domínio criativo para a composição de melodias fortes, com boa estruturação
harmônica, elaborada sobre estruturas narrativas simples, mas eficazes, do ponto de
vista da abordagem de variados aspectos da experiência humana e da vida cultural de
sua gente, o que tenha conferido a Capiba lugar de destaque na produção literomusical
do Frevo, com uma obra até hoje amplamente executada no carnaval de Pernambuco.
3.8. A era da Rozenblit e outros passos do Frevo
O aperfeiçoamento da qualidade técnica dos registros fonográficos ao longo das
décadas de 1930, 1940 e 1950 repercutirá na redefinição dos padrões sonoros da música
popular, em geral, e do Frevo, em particular. O processo de consolidação do Frevocanção dá-se em meio à polêmica levantada, por exemplo, por Duarte (1968), a respeito
da própria legitimidade do gênero – para esse autor, seria uma degeneração do Frevode-rua, pela atribuição de letras, como resultado da ação de agentes externos ao meio
artístico de criação, como jornalistas e intelectuais (v. capítulo 2), responsáveis pela
organização dos concursos de música carnavalesca (cf. DUARTE 1968, p. 58). No
plano discursivo, o Frevo-canção teria sofrido uma ação “civilizatória”, para atender ao
gosto de camadas mais amplas da sociedade, que se constituíam como ouvintes e,
sobretudo, consumidores de música popular. A esse respeito, Saldanha (2008, p. 30)
observa:
Como produto da mídia, passa por um processo “civilizador”, de adequação a
grande exposição, divulgação e consumo obtidos através dos meios de
comunicação. O frevo perde a rusticidade advinda dos primeiros momentos,
assimila novos coloridos sonoros a sua estrutura instrumental e sofre um
abrandamento no conteúdo jocoso de suas letras, se tornando mais romântico,
saudosista e fortemente auto-referente.
Esse processo de “abrandamento” ocorre de forma distinta, menos incisiva do que se
observa com o samba, no tocante à ação institucional dos órgãos responsáveis pela
182
censura, no Estado Novo84. A esse respeito, a obra de Capiba serve como parâmetro
para uma observação dos eixos temáticos mais recorrentes na produção literomusical do
Frevo, sobretudo a partir dos anos 1950, confirmando a observação de Saldanha, acima,
acerca de uma feição mais romântica e auto-referente – não obstante as canções de
caráter jocoso e irreverente também se fazerem presentes, embora com menos destaque
do que a marchinha carioca, por exemplo – nesse sentido, destaca-se o compositor
Bráulio de Castro, que lançou, para o carnaval de 1964, o Frevo-canção Maria Tereza85,
em alusão à primeira-dama, reconhecida pela sua beleza. Ao longo de sua produção de
músicas carnavalescas, o compositor se notabiliza pelos Frevos-canção com letras no
mesmo espírito irreverente, sobretudo a partir dos anos 1990. Alguns exemplos:
Viagramol (Bráulio de Castro e Ricardo Testão), O Tubarão Pedófilo (B. de Castro e
Maestro Forró), Guaiamun Treloso, As Virgens do Bairro Novo e A Pomba (B. de
Castro e Fátima de Castro)
Para Tinhorão (1991), a emergência do Frevo-canção – assim como do Frevo-debloco, cuja configuração musical sofre influência das manifestações culturais do ciclo
natalino, como o pastoril – é explicada como um “enfraquecimento” do gênero, por
duas razões principais: a dificuldade técnica para a composição, que exige qualidade
musical elevada, e o crescimento da participação da classe média no carnaval. Assim
analisa o autor:
Esse caráter virtuosista do frevo de rua, puramente orquestral, ia ser de certa
maneira responsável pelo enfraquecimento do gênero, através da criação de
um produto híbrido: a marcha-frevo, ou frevo-canção. [...] Foi, pois, para
atender à necessidade de um ritmo mais acessível, destinado às delicadezas
desses novos grupos de carnavalescos da classe média, que se criaram os
frevos de ritmo marchado e com parte de canto. (TINHORÃO 1991, p. 144)
Essa interpretação se aproxima das considerações de Duarte (1968), citado, aliás,
pelo autor, para evidenciar as semelhanças entre essa “forma híbrida” – o Frevo-canção
– e a marchinha carioca, como parte desse processo de “amaciamento” do Frevo, para
que pudesse adentrar o espaço dos salões dos clubes da classe média. Entretanto, à parte
84
Cf. Silva (2008) para um aprofundamento do tema, inclusive com interessantes considerações acerca da
ação de cooptação de artistas pelo Estado, exemplificada pela adesão da SBAT (Sociedade Brasileira de
Autores Teatrais, que tinha um Departamento de Compositores), em reconhecimento pela regulamentação
do direito autoral, dentre outras razões. O autor analisa ainda a atuação do DIP, órgão inspirado no
Ministério da Propaganda na Alemanha Nazista, concluindo que “muito mais do que no papel repressivo,
o Estado Novo investiu recursos, intelectuais, equipamentos e instalações num intenso trabalho de
propaganda política como forma de obtenção da hegemonia.” (SILVA 2008. P. 91)
85
“Maria Tereza vai ser uma beleza/ não bote o seu biquíni/ já achei a solução/ vou sair de Adão e você
de monoquíni/ de monoquíni, ai que beleza/ de monoquíni vai ser legal/ quero ver a Maria Tereza/
abafando neste carnaval (Bráulio de Castro, 1964)
183
a relação genética comum dos dois gêneros, derivados da marcha, como já observado
em 4.2, as diferenças já haviam sido assinaladas por Oliveira (1985):
O frevo-canção ou marcha-canção se parece com a marchinha carioca: uma
parte introdutória, outra cantada, começando ou acabando por estribilho.
Duas coisas, porém, as diferenciam. Primeira: a parte introdutória tem todas
as características do frevo autenticamente pernambucano, rasgado, desabrido,
furioso. Depois, ameniza, abrindo passagem ao canto. Segunda: o andamento
da marchinha carioca é moderado; o do frevo-canção, bem mais vivo.
(OLIVEIRA 1985, p. 36)
Se, de fato, em determinado momento de sua evolução, o gênero sofreu adaptações
que viabilizaram a sua inserção noutros espaços, saindo do calor das ruas para o
contexto dos bailes nos clubes sociais, a avaliação de que isso resultou no seu
empobrecimento é bastante redutora, quando consideramos o seu percurso desde então.
De fato, em sua configuração musical, o gênero evolui a partir da obra de artistas que se
destacam no cenário nacional pelos traços inovadores, a exemplo de Jackson do
Pandeiro, intérprete de grandes sucessos de carnaval, nas décadas de 1950 e 1960, a
maioria com letras de caráter jocoso e irreverente: Naquela base, Me dá um cheirinho,
Papel crepom, Micróbio do frevo, Quem não chora não mama, entre outros. Uma
evidência da vitalidade dessa obra é que ela tem recebido releituras – as mais recentes,
em regravações de artistas como Lenine e Silvério Pessoa, por exemplo – em
reconhecimento do caráter inovador das interpretações vocais de Jackson, em diversos
gêneros (coco, baião e Frevo). Ressalta-se, em especial, o deslocamento dos acentos
rítmicos nos frevos cantados por ele, reiterando o sincopado, que é uma das marcas
distintivas do gênero, em relação à marchinha carioca.
A obra inovadora de compositores como, por exemplo, Genival Macedo, também
tem grande importância para a consolidação do Frevo-canção a partir dos anos 1960.
Acerca de sua obra, Câmara (2010) observa que o compositor
colocou um molho diferente no frevo, cujos versos, não obedecendo à
métrica tradicional, tornaram-se verdadeira inovação e caíram como uma
luva no gogó ritmado e personalizado de Jackson do Pandeiro. Genival é,
sem dúvida, um dos precursores da modernidade na música pernambucana, o
frevo. (CÂMARA 2010)
A sua canção Micróbio do Frevo é referendada como exemplo de melodia de difícil
execução, com a energia vibrante e compasso acelerado do Frevo-de-rua, a que se
184
conjuga uma letra de exaltação ao gênero, manifestando o desejo de vê-lo alçado ao
merecido lugar no cenário da música brasileira.86
A esse respeito, merece destaque o trabalho de artistas pernambucanos radicados no
Rio de Janeiro, como Antônio Maria e Luiz Bandeira, que tiveram sua obra marcada por
Frevos-canção elaborados a partir de um ethos saudosista, que canta os carnavais do
Recife, suas figuras e manifestações culturais. São canções que receberam também
inúmeras regravações, ajudando a manter o Frevo em evidência no panorama da música
brasileira, ao longo da década de 1950. Algumas delas são executadas ainda hoje no
carnaval do Recife, como os Frevos No. 1, No. 2 e No. 3 (Antônio Maria) e Voltei,
Recife (Luiz Bandeira), transcritas a seguir:
FREVO No. 1 DO RECIFE (Antônio Maria)_1951
Ô,ô,ô,ô,ô, saudade
Saudade tão grande
Saudade que eu sinto do Clube das Pás,
Do Vassouras,
Passistas traçando tesouras
Nas ruas repletas de lá
[...]
Que adianta, se o Recife está longe
A saudade é tão grande
Que eu até me embaraço
[...]
FREVO Nº. 2 (Antônio Maria, 1954)
Ai que saudade tenho do meu Recife
Da minha gente que ficou por lá
Quando eu pensava, chorava, falava
Contava vantagem, marcava viagem
Mas não resolvia se ia
Vou-me embora
Vou-me embora
Vou-me embora
Pra lá
Mas tem que ser depressa
Tem que ser pra já
Eu quero sem demora
O que ficou por lá
Vou ver a Rua Nova,
Imperatriz, Imperador
Vou ver, se possível
Meu amor.
FREVO Nº3 DO RECIFE (Antônio Maria, 1957)
86
Reconhece-se, ainda, na obra de Genival Macedo, influência sobre o trabalho de compositores como J.
Michiles, reconhecido como um dos melhores do gênero na atualidade, tendo sua obra gravada pelo
cantor Alceu Valença, a partir dos anos 1980, com sucesso nacional.
185
Sou do Recife
Com orgulho e com saudade
Sou do Recife
Com vontade de chorar
E o rio passa
Levando barcaça
Pro alto do mar
[...]
Rua antiga da Harmonia
Da Amizade, da Saudade e da União
São lembranças noite e dia
Nelson Ferreira toque aquela introdução
VOLTEI, RECIFE (Luiz Bandeira, 1958)
Voltei, Recife
Foi a saudade que me trouxe pelo braço
Quero ver novamente Batutas na rua abafando
Tomar umas e outras e cair no passo
Cadê Toureiros, cadê Bola de Ouro,
As Pás e os Lenhadores
E o Bloco Batutas de São José?
Quero sentir a embriaguez do frevo
Que entra na cabeça depois toma o corpo
E acaba no pé
Essas canções assemelham-se não apenas pela elaboração discursiva sobre o tema da
saudade, mas também por uma configuração melódica que revela a conjugação dos
processos de tematização e passionalização, conforme descritos acima. A respeito desse
último aspecto, a regravação do Frevo No. 1 por Maria Bethania87 constitui uma
releitura que evidencia mais explicitamente o processo de passionalização,
caracterizado, como vimos acima, pelo alongamento das vogais e pela continuidade
melódica, em andamento mais lento. Em todas elas, a cenografia é elaborada com base
em um ethos saudosista, que é bastante recorrente na música carnavalesca em geral,
dada a efemeridade da celebração. Na música pernambucana, o tema é enfocado em
inúmeras obras do gênero Frevo-de-bloco, especialmente nas marchas-regresso, canções
entoadas pelos blocos carnavalescos líricos quando se despedem da jornada pelas ruas.
As canções em destaque também se destacam pela reiteração de uma topografia
validada, para ressaltar a exaltação ao fenômeno cultural do Frevo e do carnaval, às
vezes identificada pelos topônimos de ruas da cidade do Recife, recuperando, assim,
uma tradição poética que remonta à obra modernista de Manuel Bandeira, Evocação do
Recife, e outras vezes identificada, por um processo metonímico, nas denominações de
87
Recife Frevoé, CD Virgin/ Prefeitura da Cidade do Recife (disco nº 841.402.2), 1996.
186
algumas agremiações representativas do Carnaval (os clubes Toureiros, Pás,
Lenhadoures, Vassourinhas, Bola de Ouro, além do Bloco Batutas de São José).
O grande impulso do Frevo, a partir do final dos anos 1950 é dado, sem dúvida,
pela criação da Fábrica de Discos Rozenblit, inaugurada no Recife em 11 de junho de
1954, e que teve o já consagrado Maestro Nelson Ferreira como diretor artístico.
Idealizada pelo empresário José Rozenblit, juntamente com os irmãos Isaac e Adolfo, a
Rozenblit surge num contexto de incentivo à consolidação da indústria nacional,
iniciada no período Pós-1930 e levada adiante no governo de Juscelino Kubitschek.
Segundo Valadares (2007), o empreendimento resulta também, em certa medida, de
uma “ideologia regionalista inspirada nas teorias de Gilberto Freyre, que salvaguardava
os valores de uma ‘pernambucanidade’ cultural” (VALADARES 2007, p. 86)
A motivação maior para a criação da Rozenblit foi, segundo o seu fundador88, a
injustiça do esquema de seleção das músicas de carnaval adotado pelas gravadoras do
sudeste, no Recife: os representantes das lojas comerciais da cidade (Rozenblit era
proprietário das Lojas Bom Gosto) eram convocados para uma audição, realizada
geralmente no início do último trimestre do ano pela Banda da Polícia Militar, na sede
da instituição, no bairro do Derby. A partir daí, os lojistas escolhiam as preferidas, que
entretanto só eram gravadas se os pedidos alcançassem o número mínimo de três mil
cópias.
Indignado com o procedimento, que era garantia de lucro certo às gravadoras, sem
nenhum risco, Rozenblit decidiu-se pelo empreendimento, dando preferência ao registro
de ritmos regionais – com destaque para o Frevo. Conforme observa Valadares (2007),
a Rozenblit tornou-se
a indústria fonográfica mais completa de sua época, por possuir fábrica de
discos, um imenso estúdio de gravação que comportava uma orquestra, o
maior parque gráfico do Nordeste e uma oficina mecânica para manutenção
das máquinas (VALADARES 2007, p.84)
Esses dados revelam a ousadia do empreendimento, com a intenção de deter o
controle de todo o processo de produção dos discos, o que em breve garantiria à
Rozenblit um papel de destaque no cenário nacional. Assim, na década de 1960,
considerado o período áureo da gravadora, ela detinha “22% da produção de discos do
mercado nacional e 50% do mercado regional (Nordeste)” (VALADARES 2007, p.85),
contando com escritórios em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Porto Alegre, e
88
Cf. Valadares (2007), entrevista com José Rozenblit
187
incluindo em seus lançamentos desde nomes internacionais do jazz e do blues
(Thelonious Monk, Brownie McGee, Lightnin’ Hopkins) e da música latina
(Bienvenido Granda, Célia Cruz, Trio Ypacaraí, Trio Los Panchos, entre outros), até
artistas de renome nacional (Ismael Silva, Herivelto Martins, Claudete Soares, Zé Kéti).
O maior filão comercial da Rozenblit, porém, foi mesmo a música carnavalesca,
especialmente o Frevo. Em 1957, o Frevo-de-bloco Evocação, de Nelson Ferreira, com
gravação do Coral do Bloco Batutas de São José, estoura como sucesso nacional. A
partir de 1959, a Rozenblit reedita velhos sucessos de Capiba e Nelson Ferreira (os LPs
Capiba 25 anos de Frevo e O que eu fiz e você gostou, respectivamente) consagrados na
voz de cantores do Sudeste, desta vez registrados com o jovem cantor Claudionor
Germano. A proposta se repete em 1961, com os LPs Carnaval começa com C de
Capiba e O que faltou e você pediu (Nelson Ferreira). Conforme avalia Teles (2008), o
sucesso de vendagem desses discos despertou o interesse das gravadoras do Sudeste
a atentar para o efervescente mercado do frevo não mais como um fenômeno
limitado a uma única cidade, e sim a uma região inteira. Em 1961, por
exemplo, a RCA lançou o LP Na onda do frevo e Frevo 40 graus, com
Zaccarias e sua Orquestra. (TELES 2008, p.55)
O complexo de fatores que desencadeiam o declínio da Rozenblit, a partir da
segunda metade da década de 1960, inclui desde a catástrofe natural das enchentes que
atingem o Recife, a partir de 1966, até as mudanças radicais no cenário cultural do país,
sobretudo na cena musical redefinida pela avassaladora influência do rock (com os
interesses das gravadoras multinacionais), assimilada pelo Tropicalismo, mas não
acompanhada pela direção da empresa. Sobre a questão, assim discorre Belfort (2009):
A Rozenblit começou a definhar...numa tentativa de soerguer o seu negócio,
José Rozenblit deu entrada, em fevereiro de 1967, num pedido de ampliação
na Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) que previa
um investimento de Cr$ 1,5 bilhão com recursos emprestados pela autarquia.
No meio do caminho da Rozenblit, havia muitas pedras e vários interesses
em jogo...Até hoje, há quem diga que a gravadora incomodava muito às
multinacionais que também fabricavam discos no Sudeste do País...Junto
com todo esse cenário, o rock explodiu a partir de 1966 em todo o
Brasil...Em 1968, um novo movimento musical estourava no cenário
tupiniquim: o tropicalismo [...] (BELFORT 2009, p.113)89
A Rozenblit ainda atravessaria toda a década de 1970, enfrentando dificuldades, até
fechar definitivamente as portas em 1983. Ao longo de sua trajetória de três décadas
89
Para outras abordagens, cf. Valadares (2007), Teles (2000, 2008) e Lélis (2011)
188
está registrada uma intensa produção discográfica do Frevo, com significativo número
de canções que definem novos aspectos do seu posicionamento a partir da elaboração de
diferentes cenas enunciativas, das quais enfocaremos uma pequena parte, para
exemplificar a riqueza do Frevo-canção no cenário da música carnavalesca brasileira.
Enfatizamos, sobretudo, as obras cuja cenografia extrapola o universo cancional
típico da música carnavalesca, em geral definido pelo processo de reiteração e exaltação
ao próprio gênero, a ponto de colocar “o texto (letra) em situação secundária e
subordinada” conforme assinala Costa (2001, p.300). Corroborando a definição da
música popular como prática discursiva de grande importância na cultura brasileira, em
geral as letras dessas obras versam sobre temas relacionados à vida social e política, à
mudança de costumes etc., configurando, como vimos no capítulo 2, um aspecto da
relação intergenérica entre a canção e a crônica, definida numa perspectiva
sociocomunicativa de compreensão dos gêneros discursivos. Observamos, assim, que a
produção literomusical do Frevo também se constitui como espaço para o embate de
ideias, situado em relação a outros posicionamentos característicos dos variados estilos,
propostas estéticas e posições ideológicas definidoras da heterogeneidade do campo, em
diferentes momentos da história do país.
Particularmente interessante é este período que marca, a partir da segunda metade
dos anos 1950, o declínio do samba-canção como maior referência de escuta da canção
nacional, concomitantemente ao surgimento da Bossa Nova. A análise de Tinhorão
(1990) aponta aí a influência do bolero para a descaracterização do samba-canção, com–
“chegando-se à tentativa de criação de um hibridismo chamado de sambolero”
(TINHORÃO 1990, p.245), bem como a exclusão do autêntico samba do morro pelas
gravadoras – à exceção do samba-enredo – como fatores de mobilização de um grupo de
artistas emergentes na zona sul carioca, a partir de Copacabana, para a definição de uma
nova proposta musical. A localização geográfica, aliás, constitui um dado importante na
definição geral do ethos privilegiado nas canções do movimento. Conforme avalia
Costa (2001), é um ethos marcado por uma certa fragilidade emocional e por uma
sensibilidade que oscila facilmente entre a tristeza e a alegria. Assim:
os bossanovistas privilegiarão, como lugar de pré-difusão, o aconchego dos
apartamentos da zona sul carioca e, como espaços de difusão, a intimidade
dos pequenos ambientes, bares e boates em que houvesse condições de
entoação de um canto falado, quase sussurrado, acompanhado de um
pequeno grupo musical ou apenas de um violão tocando ‘baixinho’ (COSTA
2001, p. 179)
189
Para Tinhorão (1990), essa proposta resultava de um rompimento com a herança do
samba popular, “para modificar o que lhes restava de original, ou seja, o próprio ritmo”
(TINHORÃO 1990, p.246) – a novidade da batida do violão bossanovista, marcada por
uma descontinuidade do acento rítmico, foi “apelidada de violão gago”, observa o autor.
De fato, a emergência da Bossa Nova traz como marca distintiva “a estilização do
samba através de informações provenientes do cool jazz e de outros gêneros” como
resume Naves, para concluir que “evidentemente, a bossa nova dividiu a crítica”
(NAVES 2010, p.11). Se, por um lado, o movimento é associado à modernidade e à
possibilidade de inserção da música brasileira no mercado internacional, por outro lado
é concebido como um desvirtuamento do samba em sua originalidade.
Paralelamente, no contexto sociopolítico, há de um lado o clima de entusiasmo pela
perspectiva de crescimento da economia, com base num impulso de industrialização,
aliada a um cenário positivo, por exemplo, nos esportes, com a conquista do primeiro
título mundial de futebol, em 1958; e do outro as críticas da oposição ao governo e à
própria figura de JK, cuja imagem pública era associada a um certo espírito de
modernidade (recebia artistas e atletas no palácio, tinha aula de violão com Dilermano
Reis e era reconhecidamente carismático), mas era atacado, por exemplo, pelo fato de
dividir o seu tempo em voos entre o Rio de Janeiro e Brasília, após a inauguração da
capital (a “Nova Cap”).
Essas questões se elaboram discursivamente na canção popular. Se na obra de João
Gilberto, Tom Jobim, Newton Mendonça, dentre outros, estão as diretrizes da proposta
cultural bossanovista, interpretada como símbolo de modernidade – ou como
degeneração da tradição do samba, conforme a perspectiva adotada – e associada ao
presidente JK, apelidado de “Presidente Bossa Nova”, a crítica irreverente aparece, por
exemplo, na canção homônima, de Juca Chaves, lançada em 1957.90 Ou ainda num
samba como Não Vou pra Brasília, do compositor Billy Blanco (Willian Trindade,
1924-2011), lançada em 195891:
90
“Bossa nova mesmo é ser presidente/ desta terra descoberta por Cabral/ Para tanto, basta ser tao
simplesmente/ Simpático, risonho, original/ [...] voar da Velha Cap pra Brasília/ ver Alvorada e voar de
volta ao Rio/ voar, voar, voar pra bem distante/ [...]/ mandar parente a jato pro dentista/ [...] Isso é viver
como se aprova/ É ser um presidente Bossa [...]” (Presidente Bossa Nova, Juca Chaves, 1957)
91
“Eu não sou índio nem nada/ não tenho orelha furada/ nem uso argola dependurada no nariz/ [...] Não
vou, não vou pra Brasília/ nem eu nem minha família/ mesmo que seja pra ficar cheio de grana/ a vida
não se compara/ mesmo difícil e tão cara/ quero ser pobre sem deixar Copacabana” (Não Vou pra
Brasília, Billy Blanco, 1958)
190
No Frevo-canção, duas canções de Sebastião Lopes, lançadas no início da década de
1960, marcam posição favorável à ideia de progresso representada pela construção da
nova capital. A canção reverencia, ainda, a Miss Brasil Emília Correa Lima:
Adeus, Emília (Sebastião Lopes, 1960)
Adeus, adeus Emília,
O JK me mandou para Brasília.
Brasília não tem carnaval
Nem é Cidade Maravilhosa,
Não tem praia de Copacabana
Com a garota tão bacana
Não tem o Cristo Redentor
A Guanabara com seu esplendor
Não tem o Colosso do Maracanã
Mas será o Brasil de amanhã
O verso final da canção exalta a nova capital, símbolo do “Brasil de amanhã”, mas a
cenografia da obra, elaborada com base numa sequência de enunciados negativos,
evidencia o descontentamento de uma parcela da população – políticos e funcionários
públicos, principalmente – que teria de deixar a Cidade Maravilhosa para viver no
centro-oeste do país. O contexto de criação da obra é esclarecido por Gayoso (2007).
Segundo a autora, o compositor foi
influenciado pelo êxodo de milhares de nordestinos que foram trabalhar na
construção da nova capital do Brasil abrindo estradas, tudo sob os olhares
desconfiados dos brasileiros e a revolta dos políticos que iriam perder a
mordomia de morarem na Cidade Maravilhosa, do Rio de Janeiro, Estado da
Guanabara. (GAYOSO 2007, p.30)
Em Palácio da Alvorada, o tom de exaltação é ainda mais expressivo:
Palácio da Alvorada (Sebastião Lopes, 1961)
Ai, ai, meu JK
Brasília é o futuro
E eu preciso ir pra lá
Eu sou o José
O irmão da Emília
E Quero trabalhar lá em Brasília,
No Palácio da Alvorada
Todo cheio de esplendor
Brasília é um sonho encantador.
Parabéns meu presidente
Do José e da Emília
Vamos já, já para Brasília
191
Aqui, podemos reconhecer o José da canção como representante da leva de
nordestinos que migraram para o Centro-oeste em busca das oportunidades de trabalho,
lá empregando sua força de trabalho para a construção da nova capital.
192
4. CONCLUSÕES
A articulação entre o referencial teórico da Análise do Discurso e os estudos sobre
gêneros tem se constituído como um caminho interessante para a pesquisa da produção
discursiva em nossa sociedade. As contribuições oferecidas por Dominique
Maingueneau e incorporadas à investigação do discurso literomusical brasileiro são um
exemplo disso. Trata-se, como assinalamos no início deste trabalho, de uma área de
investigação relativamente recente, no âmbito da produção acadêmica e, como tal, ainda
em processo inicial de definição dos seus contornos.
Evidentemente, esse é um processo permanente, em constante e criativa
reconfiguração, a partir das inter-relações estabelecidas no seio da cultura. Essas
incluem a multiplicação das formas de comunicação, a emergência de novos gêneros
discursivos a moldar as nossas interações e a definir outras possibilidades de construção
de sentido, fenômenos explicados a partir da concepção bakhtiniana de língua e da
teoria dos gêneros elaborada no Círculo, sempre aberta a novas leituras. A canção está
aí situada, como instigante espaço de produção discursiva, entre a oralidade e escrita,
reinventando-se como tradição cultural de inegável importância em nosso país,
possibilitando a ouvintes e leitores a inserção em um mundo de criação artística através
da palavra e do som, conjugando essas duas materialidades em composições, em geral,
bastante curtas, com a duração de alguns minutos, mas dotadas de uma força
enunciativa capaz de perenizá-las ao longo da História.
Como gênero de grande circulação na sociedade, a canção está em toda parte, dando
contornos estéticos às vozes que se elaboram nos espaços da vida privada ou da vida
pública. No Brasil, como noutras partes, a canção dá corpo a grandes mobilizações
populares, de caráter político ou religioso, por exemplo, em diferentes momentos da
vida sociocultural.
Nosso propósito, ao escolher o Frevo-Canção como objeto de estudo, foi o de
empreender um esforço de compreensão desse gênero, intrinsecamente vinculado ao
Carnaval do Recife, a partir do século XIX, quando o Frevo surge como fenômeno
arrebatador, no contexto do Carnaval, legitimando-se depois como forte marca
identitária da cultura pernambucana.
193
Inicialmente associado aos primeiros clubes carnavalescos da capital, o FrevoCanção é o gênero do Carnaval pernambucano que teve maior circulação nos espaços
midiáticos do rádio, em todo país, nas primeiras décadas do século XX, cantado por
algumas das vozes mais importantes da música brasileira.
A partir dos anos 1950, com a criação da Fábrica de Discos Rozenblit, teve
significativa ampliação de espaços para divulgação, numa época em que o samba e a
marcha eram os gêneros dominantes da canção carnavalesca. Como forma de produção
discursiva, imbricada nas relações sociais, também sofreu – embora de maneira menos
direta do que o samba, por exemplo - ação regulatória das instâncias de poder, a partir
da instauração do Estado Novo. A criação da Federação Carnavalesca de Pernambuco,
nos anos 1930, com o projeto de ordenação da festa popular, repercutiu na atividade de
criação, estimulada pela promoção dos concursos de música.
Ao longo de sua evolução, o Frevo-Canção acompanha a mobilidade do Carnaval,
ocupando inicialmente o espaço da rua e dos salões dos clubes, e depois se
consolidando também como gênero predominante nos palcos. Nesse percurso,
procuramos identificar alguns aspectos que definem o posicionamento do Frevo no
discurso literomusical brasileiro, através de um esforço de análise das configurações de
sentidos elaboradas na junção da letra com a melodia.
Em geral, a música carnavalesca é tomada como exemplo do que Tatit (1986, 1996)
chama de processo de reiteração, baseado num esquema de repetição da melodia,
concentrada em duas partes e, no plano textual, numa elaboração metadiscursiva, em
que há uma tendência à exaltação ao próprio gênero. Costa (2001) argumenta que,
tipicamente, nesse caso, o texto (a letra) é colocado em situação secundária e
subordinada: “É tanta a sedução do gênero musical (melodia e ritmo) que [...] se pode
prescindir da letra, sendo que esta, para existir, parece se obrigar a decantar os valores
da música.” (COTA 2001, p. 300)
A análise que empreendemos neste trabalho revela, entretanto, que a elaboração
discursiva do Frevo-Canção em muitos casos ultrapassa esse esquema, de resto bastante
presente, de fato, na produção musical do Carnaval brasileiro. As exceções se destacam
particularmente na obra de alguns compositores, como é o caso de Capiba e Luiz
Bandeira, que extrapolam aquele esquema mínimo de refrão e segunda parte, em que se
baseia o processo de reiteração, como procuramos mostrar.
Há que se destacar, ainda, a parte da produção discursiva do Frevo-Canção que
procuramos aproximar, levando em consideração propósitos comunicativos comuns, do
194
gênero literário da crônica, marcado por um hibridismo peculiar e pela grande
circulação na sociedade, através dos jornais. Enfocamos algumas canções que se
destacam por se organizarem discursivamente como narrativas de onde emergem vozes
que dialogam acerca de fatos da vida cotidiana, da mudança de costumes etc. Esses são
alguns exemplos da habilidade dos cancionistas do Frevo na elaboração de variadas
cenografias em canções que instauram, na cena da enunciação, diferentes aspectos da
inserção do Frevo na cultura brasileira.
Procuramos abordar também a complexidade dos momentos iniciais do processo de
nomeação do gênero musical, a partir da dança, com o nome inicialmente designando
propriamente a movimentação frenética do povo nas ruas, a acompanhar as bandas de
música, muitas vezes com excessiva e desmedida empolgação. Esse processo é
enfocado a partir da proposta de compreensão do discurso na perspectiva de uma
semântica global, integrando diferentes planos discursivos na análise, conforme postula
Maingueneau (2008). Considerando, por exemplo, o plano do vocabulário, observamos
como a emergência do nome Frevo no universo carnavalesco da cultura brasileira está
associado a um momento de ebulição social, marcado por confrontos e lutas, trazidas do
mundo cotidiano para o cenário da festa.
A partir da consolidação do nome para identificar também a música, nos anos 1930,
diferentes aspectos do posicionamento do Frevo são elaborados, em oposição a outras
formas simbólicas, para ressaltar, na definição de sua identidade, as qualidades da
dança, da música, do seu espírito inebriante no panorama multifacetado do Carnaval
brasileiro.
Assim, pensamos ter cumprido uma pequena parte da tarefa desafiadora de situar o
Frevo no campo do discurso literomusical brasileiro, compreendendo a importância
desse gênero para a compreensão da dinâmica sócio-histórica do Carnaval
pernambucano e brasileiro, articulando a produção discursiva da canção a diferentes
discursos em circulação na sociedade, ao longo do período histórico enfocado.
195
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204
6. ANEXOS
6.1. Canções analisadas
O quadro-resumo abaixo apresenta o título de cada obra, o ano de gravação, a autoria e
o intérprete.
Na transcrição das letras, logo após o título, com indicação da autoria e do ano de
gravação, entre parênteses, há as seguintes especificações sobre a gravação:
- o gênero, conforme registro no selo do disco (marcha, frevo-canção etc.);
- o formato da gravação: 78 rpm (rotações por minuto) ou LP (long-playing);
- a empresa gravadora;
- o título do disco (no caso dos LPs);
- o número de série do disco
Os títulos indicados com (*) abaixo indicam as obras gravadas no CD ilustrativo que
acompanha este trabalho (v. 6.3 abaixo).
TÍTULO
ANO DA
GRAVAÇÃO
AUTOR(ES)
INTÉRPRETE(S)
Sá Zeferina Tá de Vorta
1930
Valdemar de Oliveira
Mário Pessoa
* Frevo Pernambucano
1931
Luperce Miranda e
Francisco Alves
Osvaldo Santiago
O Caminho é Perigoso
1932
Capiba
SEM GRAVAÇÃO
Diarbuco, Óia a Virada
1933
Nelson Ferreira
Breno Ferreira
É de amargar
1934
Capiba
Mário Reis
Dobradiça
1934
Nelson Ferreira
Almirante
Vou Cair no Frevo
1935
Capiba
Almirante
Tenho uma Coisa para lhe
1935
Capiba
Leda Baltar
Já Faz um Ano
1936
Nelson ferreira
Aracy de Almeida
Mande embora Essa Tristeza
1936
Capiba
Aracy de Almeida
Hino do Carnaval de
1937
Marambá e Aníbal
Coro e Orquestra
Portela
Columbia
Dizer
Pernambuco
Que Fim Você Levou?
1937
Nelson Ferreira
Neide Martins
Vivo Cantando
1938
Felinto Nunes
Almirante
* O Passo do Caroá
1941
Nelson Ferreira e
Joel e Gaúcho
Sebastião Lopes
Dança do Carrapicho
1942
Nelson Ferreira e
Joel e Gaúcho
Sebastião Lopes
205
Lá no Derby
1943
Nelson Ferreira e
Carlos Galhardo
Sebastião Lopes
Vamos Cair no Frevo
1943
Marambá
Carlos Galhardo
* Bye Bye My Baby
1943
Nelson Ferreira
Carlos Galhardo
Cai-Cai
1943
Marambá
Carlos Galhardo
* Teus Olhos
1943
Capiba
Carlos Galhardo
Não Aguento Mais
1944
Capiba
Nelson Gonçalves
Nelson Ferreira e
Carlos Galhardo c/
Nestor de Holanda
Zacarias e sua
* O Frevo é Assim
1945
Orquestra
Vou Pra Pernambuco
1945
Nássara e Frazão
Deo
Segure no meu Braço
1945
Capiba
Nelson Gonçalves
Qué Matá Papai, Oião?
1945
Sebastião Lopes e
GilbertoAlves
Nelson Ferreira
Quebrou-se a Mola do Eixo
1945
Sebastião Lopes e
SEM GRAVAÇÃO
Nelson Ferreira
Ai, Como Sufro!
1949
Nelson Ferreira
Marlene
* Sonhei que Estava em
1949
Clóvis Mamede
Clóvis Mamede e
Orquestra
Pernambuco
Conhece o Recife?
1950
Gildo Moreno
Carlos Galhardo e
Orquestra Zacarias
Você faz que não Sabe
1950
Capiba
Francisco Carlos
* É Frevo, Meu Bem!
1951
Capiba
Carmélia Alves
Frevo nº 1 do Recife
1951
Antônio Maria
Trio de Ouro
* Micróbio do Frevo
1954
Genival Macedo
Claudionor Germano
Frevo nº 2 do Recife
1954
Antônio Maria
Pernambuco, você é meu
1955
Nelson Ferreira e
Raimundo Santos
Aldemar Paiva
To Sentindo uma Coisa
1955
Sebastião Lopes
Nelson Gonçalves e
Orquestra Zaccarias
É de Fazer Chorar
1957
Luiz Bandeira
Carmélia Alves
Voltei, Recife
1958
Luiz Bandeira
Luiz Bandeira
206
Frevo nº 3
1958
Antônio Maria
Claudionor Germano
À procura de Alguém
1958
Capiba
Expedito Baracho
Short ou Baby-Doll
1959
Carnera
Os Três Boêmios
Qual é o Pó?
1959
Sebastião Lopes
Marize Paiva
Adeus Emília
1960
Sebastião Lopes
* Menina de Hoje
1960
Manoel Gilberto
Óia a Virada
1960
* Palácio da Alvorada
1961
Sebastião Lopes
Edilásio Lopes
A Lua Disse
1962
Gildo Branco
Evaldo França
Amor de Hoje
1962
Carnera
Meves Gama
A Turma da Pedra Lascada
1963
Capiba
Ângela Maria
Garota Vedete
1964
Carnera
Maria Tereza
1964
Bráulio de Castro
Milton Arruda
Frev-iê-iê
1966
Nelson Ferreira
Claudionor Germano
A Palavra é...
1967
Nelson Ferreira
Otávio Santiago
Novamente
1967
Luiz Bandeira
Dóris Sandra
Vão me Levando
1969
Genival Macedo e
Marlene
Nelson Ferreira
Raimundo Santos
Claudionor Germano
Dozinho
Frevo, Alegria da Gente
1969
Capiba
Claudionor Germano
Hino do Ceroula
1969
Milton Bezerra de
Orquestra e Coral
Alencar
Maestro Duda
5 -4 -3 -2 -1 - FREVO
1970
Capiba
Claudionor Germano
Você Está Chorando
1971
Capiba
Claudionor Germano
* Selo do Frevo
1976
Nelson Ferreira
Claudionor Germano
Juventude Dourada
1976
Capiba
Claudionor Germano
Trombone de Prata
1979
Capiba
Expedito Baracho
Mulata Imitada
1979
J. Raul Valença e
Cezar Bismarck
Manoel Valença
* Frevotheque
1979
Inaldo Vilarim /
Ray Miranda
Duda
Hino do Elefante
1980
Clídio Nigro/ Clóvis
Coral Mocambo
Vieira
207
LETRAS
1. SÁ ZEFERINA TÁ DE VORTA
(Valdemar de Oliveira, sob pseudônimo de
José Capibaribe , 1930)
Intérprete: Mário Pessoa
(78rpm Victor disco nº 50160 )
Só sei que no frevo caí
E dele aos pedaços saí
No carnaval buscando alguém
De vorta está
Sá Zeferina meu bem
O passo faz como ninguém
E sempre é
Sá Zeferina meu bem
Requebra a dobradiça
No chã de barriga
Pra frente e pra trás
Cuidado com a poliça
Se ela te pegar
Não te solta mais
Vem cá dançar que o Frevo já começou
E o meu amor ainda não se acabou
Aguenta firme rapaziada
Que uma onda vem
O pirão é gostoso...
Mas toma cuidado repara bem mal
Não vai estrepar
Que o caminho é perigoso
Eu entro com a macacada
No rojão do frevo,
Para me arrasá
A turma que é da virada
Diz: ‘não tem é sopa, viva o Carnaval’
Aguenta o passo e trata bem
No carnaval
Sá Zeferina meu bem
A sua graça ninguém tem
E podes crer
Sá Zeferina meu bem
Vem cá dançar que o Frevo já começou
E o meu amor ainda não se acabou
O carnaval só graça tem
Se nele está
Sá Zeferina meu bem
E quando se sabe que ela vem
A gente diz
Sá Zeferina meu bem
3. O CAMINHO É PERIGOSO (Capiba,
1932)
(sem gravação)
Na rua do Imperador
U’a morena fogo
Quase se acabou
Fiquei doido de amor
(letra publicada no Diário de Pernambuco em 1º
de fevereiro de 1932.
In: CÂMARA e PAES BARRETO 1986, p.60)
Vem cá dançar que o Frevo já começou
E o meu amor ainda não se acabou
2. FREVO PERNAMBUCANO *
(Luperce Miranda e Osvaldo Santiago, 1931)
Intérprete: Francisco Alves
(Marcha, 78 rpm Odeon disco n. 10757-A
Lá vem Catirina a sambá
Na frente do Clube das Pá
Lá vem Sá Chiquinha do angu
De braço com o Zé Papangu
Viva o frevo, a pagodeira
Viva a farra e o amô!
Viva o amô!
Dei um saco de confete
Para minha flô
A faca num cabra enterrei
Por que, não me lembro, não sei,
4. DIARBUCO, ÓIA A VIRADA (Nelson
Ferreira, 1933)
Intérprete: Breno Ferreira e Orchestra
Columbia
(Marcha do Norte, Columbia 78rpm, disco nº
22.201-B
1, 2 e 3, vira, vira!
Oia a virada, ô!
Vem cair no passo
Moreninha do amo
(V-A, V-E, V-I!) oia a curva!
(Tira o cisco do olho , morena!)
Não respeito nem o cão
Quando chega o Carnavá
Saio de casa no domingo
Só na cinza vô vortá
208
Lá em casa todo mundo
Vira pó no Carnavá
Até mesmo a minha sogra
Se esfarinha de pulá
Carnavá só tem três dia
Valha-me São Salvadô!
Carnavá nasceu no céu
Foi os anjo que inventô!
5. DOBRADIÇA (Nelson Ferreira, 1934)
Intérprete: Almirante
(Marcha pernambucana, Victor 78 rpm,
disco nº 33.754-A)
Dobra! Dobra!
Vem pra dobradiça!
Caboquinha do amor
É o frevo que te atiça
Quando chega a folia
A gente fica que nem ioiô
Pra cá, pra lá
E sobe e desce e se atrapalha
E se embaraça todo
No cordão do Carnavá
Caboquinha do outro mundo
Pra lá do céu
Olha pra mim, não sê tão má!
E pelo menos no Carnavá
Dá aqui teu corta-jaca
Um tiquinho desse olhar
6. É DE AMARGAR (Capiba, 1934)
Intérprete: Mário Reis
(Victor 78 rpm disco nº 33.752)
Eu bem sabia que esse amor, um dia
Também tinha seu fim, essa vida é mesmo
assim
Não penses que estou triste nem que vou chorar
Eu vou cair no frevo que é de amargar
Eu já arranjei outra morena bonita
Anda bem vestida cheia de laço de fita
Gosta de mim
Com toda emoção
E já se diz a dona do meu coração
Minha morena sempre diz quando me vê
Gosto de você não sei como e o porquê
Me faz carinho a todo momento
Porém eu tenho medo do seu juramento
7. VOU CAIR NO FREVO (Capiba, 1935)
Intérprete: Almirante
(Marcha Pernambucana, 78rpm Victor disco
nº 33.910-A)
Eu gosto tanto de você
Mas você nem sequer
Me presta atenção porque
Talvez você não compreenda
O mal que está fazendo ao meu coração
Eu já não sei nesta vida o que fazer
Pra você meu bem novamente me querer
Não me conformo com essa ingratidão
Porque faz mal muito mal ao coração
No carnaval vou brincar de namorar
Vou cair no frevo desta vez vou me acabar
E sendo assim pra que amar em vão
O amor só traz para nós indecisão
8. TENHO UMA COISA PARA LHE DIZER
(Capiba, 1935)
Intérprete: Jazz Band Acadêmica
(Frevo-Canção, gravação particular/ CD
Revivendo Capiba o Poeta do Frevo
Tenho uma coisa para lhe dizer
Mas não digo não
Porque faz mal ao coração
Não confessarei o meu segredo
Só porque voce é convencida
Pois seu eu lhe contar você vai rir
E sem querer eu vou chorar
Por você minha querida
Eu sei que você gosta de outro
Mas eu lhe queria mesmo assim
O meu coração eu lhe darei
Porém com uma condição
Se você disser que sim!
9. JÁ FAZ UM ANO (Nelson Ferreira, 1936)
Intérprete: Aracy de Almeida e Conjunto
Diabos do Céu
(Frevo-Canção, Victor 78rpm nº. 34.019)
Já faz um ano que eu conheci você
Foi pelo Carnaval, foi pelo Carnaval
E desde então fiquei sabendo o porquê
De todo o meu mal, de todo o meu mal
Ao som de guizos, estalar de serpentina
Foi que nasceu a ilusão de um grande amor
Foi ilusão, foi sonho que passou
E hoje mascarada trago a minha dor
Os dias passam tão ligeiro, vão voando
E do destino, tudo passa afinal!
Temos três dias de loucura intensa
209
Assim vou lhe esquecer, chegou o Carnaval
10. MANDA EMBORA ESSA TRISTEZA
(Capiba, 1936)
Intérprete: Aracy de Almeida
(Frevo-Canção, Victor 78 rpm disco nº.
34019)
Manda embora essa tristeza, manda por favor
Pode ser que essa tristeza mate nosso amor
Era de cor verde a sua fantasia
Tão bonita como a esperança
Que em meu coração vive
De você ser meu um dia
E agora volta louco o carnaval
O seu ruído já domina o espaço
Vamos unir os nossos corações
E de braço com a ilusão
Amar com o frevo e com o passo
Tu andas tão triste, somente a chorar
Mas por isso eu não vou me privar de dançar
Tu sabes que eu faço o passo na rua
Mas é pensando na imagem tua
13. VIVO CANTANDO (Felinto Nunes, 1938)
Intérprete: Almirante
(Frevo-Canção, Odeon 78 rpm disco
Nº11.699-B)
Tu pensas que eu levo de inverno a verão
A dançar e cantar com meu violão
Mas não é verdade, te digo afinal
Eu só faço isso pelo carnaval
Antigamente eu era triste
Não sabia onde encontrar felicidade
Mas hoje vivo assim cantando
Só porque já conquistei sua amizade
11. HINO DO CARNAVAL DE
PERNAMBUCO (Marambá e Aníbal
Portela, 1937)
Intérprete: Coro e Orquestra Columbia
(Frevo-Canção,
Cemcape/Prefeitura
Recife CD O Tema é Frevo Vol.2)
do
Foliões, viva o prazer!
Viva o frevo original!
O ideal é sorrir
E ao passo aderir
Aderindo ao Carnaval!
Porém um dia tudo mudou
Senti-me transformado
Ri do meu passado, sorri para o futuro
Porque você estava ao meu lado
Evohé! Evohé!
O carnaval de Pernambuco
É vibração, é gozo, é o suco
Graças ao Frevo e à Federação (bis)
14. O PASSO DO CAROÁ * (Nelson
Ferreira e Sebastião Lopes, 1941)
Intérprete: Joel e Gaúcho
(Frevo, Odeon 78rpm disco nº12.100-B)
Carnaval como se faz
Nesta bela capital
Vale a pena se ver
Pois é bom de doer
É de fato Carnaval!
12. QUE FIM VOCÊ LEVOU ?
Ferreira, 1937)
Intérprete: Neide Martins
Olá, como vai você?
Nunca mais lhe vi
E que fim levou?
A última vez que falei com você
Foi na terça-feira
Do carnaval que passou
Eu bem me lembro como se hoje fosse
Quando vivia só sem você
Longe do seu carinho
Tudo me faltava
Faltavam-me seus olhos
Pra vir iluminar o meu caminho
Antigamente eu era triste
Não sabia onde encontrar felicidade
Mas hoje vivo assim cantando
Só porque já conquistei sua amizade
(Nelson
No passo do caroá, á á á á
Eu quero ver como é é é é é
É muito fácil, menina
Nada tem de encrencado
É só na ponta do pé
Do pé do pé do pé
Repare bem
Que não tem nada de Capote, nem de Fox
Minueto, nem Quadrilha
Nem Lanceiro, Pas de quatre
Pois é!
Pra dançar o passo do caroá
Basta um mexido no corpo
E um trançado
Sim senhor, muito bem!
210
15. TEUS OLHOS * (Capiba, 1943)
Intérprete: Carlos Galhardo
(Frevo-canção, Victor 78 rpm
n.80.0056-B)
disco
Acorda, minha querida
E vem ver o luar
Vem ver a lua que brilha no céu
Refletindo no mar
Vem, que eu quero também
Nos teus olhos olhar
E matar a saudade
Que vive a me atormentar
Não há nada mais belo que o teu olhar
Nem o céu, nem o mar
Se não fossem os teus olhos
Eu vivia na treva a vagar
16. DANÇA DO CARRAPICHO (Nelson
Ferreira e Sebastião Lopes, 1942)
Intérprete(s): Joel e Gaúcho
(Frevo, Odeon 78rpm disco nº 12.100-A)
Morena eu já sei! Me largue, me solte!
Deixa eu me espalhar, ei, no Carnaval!
Eu quero virar bicho, uh, uh
Agora vou mostrar pra você aprender
A dança do carrapicho
Um passo pra frente e outro pra trás
A Mao na cabeça e o dedo na boca
E depois que começar a confusão
Você vai ver que coisa louca!
17. LÁ NO DERBY (Nelson Ferreira e
Sebastião Lopes, 1943)
Intérprete: Carlos Galhardo
(Frevo-Canção, 78rpm RCA Victor, disco nº
P-275-A)
Mandei parar o bonde lá na Praça do Derby
Saltei e dei o braço a Maria das Dores
Com a minha Maria vai ser meu Carnaval
Escondido entre as flores
Lá na ilha dos amores
Com a Das Dores a correr pra lá, pra cá
E a água em redor chuá chuá chuá chuá
Que bom! Minha folia vai ser bem original
Estampado lá no Derby vai ficar meu carnaval
Já faz um ano que a Teresa desapareceu
Que foi-se embora então sem me dizer adeus
Hoje porém arrependida chora pra voltar
Mas eu não posso por enquanto concordar
Agora é alegria muita alegria meu pessoal
Vamos cair no frevo
que a vida só é boa quando chega o carnaval
19. CAI- CAI (Marambá, 1943)
Intérprete: Carlos Galhardo
(Frevo-Canção, Victor 78rpm disco no. 800140/3)
Cai, cai, valentão
Assim não vai não
À procura da vitória
O Seu Fritz padeceu
Foi à França, foi à Grécia,
Foi até ao Mar Egeu
Mas Seu Fritz não tem sorte
E por isso agora vai
Descansar na geladeira
Vai, vai, vai, vai
Cai, cai, valentão
Assim não vai não
20. BYE, BYE MY BABY *
(Nelson Ferreira, 1944)
Intérpretes: Carlos Galhardo e Zacarias e
sua Orquestra
(Frevo-Canção, Victor, 78rpm disco nº
80.142-B)
Amor, eu vou-me embora
Aí vem o teu papai
Só te vejo amanhã
My baby, bye bye!
Atualmente só se fala o inglês
Tudo está tão diferente
Diferente pra chuchu
É yes, kiss me okey
Até eu só sei dizer I love you
Amor, eu vou-me embora
Aí vem o teu papai
Só te vejo amanhã
My darling, bye bye!
18. VAMOS CAIR NO FREVO (Marambá,
1943)
Intérprete: Carlos Galhardo
(Frevo Canção, 78rpm Victor disco nº
80.0056-A)
211
21. NÃO AGUENTO MAIS (Capiba, 1944)
Intérprete: Nelson Gonçalves
(Frevo-Canção, Victor, 78 rpm disco nº
80.0234-A)
Morena que vem de outras terras
Porque tu não entra no frevo
É bom demais
E se tem bate-bate a onda
Começa pra frente, pra trás
Quando chega meia-noite
Não aguento mais!
Não aguento mais
Frevo assim é bom
Mas já é demais
Quem quiser que eu fique
Nesta confusão
Me segure, me segure
Senão eu vou ao chão!
22.O FREVO É ASSIM (Nelson Ferreira e
Nestor de Holanda, 1945)
Intérprete: Carlos Galhardo
(Frevo Canção, 78rpm Victor disco nº
80.0353-A)
Eu danço tango, danço conga e danço samba
Danço boogie-woogie danço até na corda
bamba
Mas o tal frevo original de Pernambuco
Fui tentar dançar e fiquei maluco
É uma dança bem quente, oi!
que remexe com a gente, oi!
E faz a cintura girar
Joga as pernas pra frente, oi!
Mexe feito serpente, oi!
E a cabeça fica fora do lugar
Eu danço tango, danço conga e danço samba
Danço boogie-woogie danço até na corda
bamba
Mas o tal frevo original de Pernambuco
Fui tentar dançar e fiquei maluco
23. VOU PRA PERNAMBUCO
(Nássara/Frazão, 1945)
Intérprete: Déo
(Frevo, 78rpm Continental disco nº 15.247-A)
Eu vou me embora
Vou pra Pernambuco
Eu fiquei maluco
Sem saber porque
Não sei se foi
Aquele frevo ardente
Que me pôs demente
Ou se foi você
Eu não aguento morena
Tanta ansiedade, morena
Ai, ai que tormento
Ai, ai que saudade
Pra Pernanbuco
Tomara eu voltar já
Ai, ai, ai
Minha saudade morena
Ficou lá, ai !
24. SEGURE NO MEU BRAÇO (Capiba,
1945)
Intérprete: Nelson Gonçalves
(Frevo-Canção, RCA 78rpm disco nº 800351)
Nesse mundo quem não faz o passo
Não tem amor nem tem prazer na vida
Viver triste assim, pra quê viver
Pra quê, querida?
Vamos, morena, cantar e dançar
O frevo gostoso e ardente
Que bole com a alma da gente
Para você não sair do compasso
Segure meu bem, no meu braço,
E vá repetindo o que eu faço
Segure meu bem, no meu braço,
E vá repetindo o que eu faço
25. QUÉ MATÁ PAPAI, OIÃO? (Nelson
Ferreira/ Sebastião Lopes, 1945)
Intérprete: Gilberto Alves
(Frevo-Canção, Odeon 78rpm disco nº 12538A, CD Revivendo Nelson Ferreira, CD 6)
E foi assim, e foi assim
Que preparam a invasão de Berlim
Começou na Sicília, a história diz
Entraram em Roma e depois Paris
Seu Bigodinho, isso é que é façanha!
Com mais um salto nós entramos na Alemanha
Fazendo meu passo com satisfação
E tratando de acabar coma goga do alemão
Qué matá papai, oião?
26. QUEBROU-SE A MOLA DO EIXO
(Nelson Ferreira e Sebastião Lopes, 1945)
SEM GRAVAÇÃO
(fonte: OLIVEIRA, W. 1985, p.268)
Nações unidas
Marquem firme o compasso
Que o Hiroito já perdeu o passo
É dente ou beiço
É língua ou queixo
212
Ai, seu Adolfo
Quebrou-se a mola do eixo
Ai, ai , ai seu Adolfo
Quebrou-se a mola do eixo
29. CONHECE O RECIFE ? (GildoMoreno,
1950)
Intérprete: Carlos Galhardo
(Frevo-Canção, Victor 78rpm no. 80-0608-A)
Lá na Europa
O bigodinho está sumindo
E o Benito de fantoche
Está servindo
Mas Tio Sam, John Bull
E o grande Vargas
Aceraram uma escrita
Pra acabar de uma vez
Com a salsicha do alemão
E o arroz do japonês.
Quem não conhece o Recife
Ainda não brincou o carnaval
Não sabe o quanto o frevo é bom
E o povo como é igual
27. AI, COMO SUFRO! (Nelson Ferreira,
1949)
Intérprete: Marlene
(Frevo-Canção, 78rpm Star disco nº 75-A)
Depois que eu voltei de Cuba
Ai, ai, ai, como sufro!
Tenho saudade da rumba
Até parece macumba
Ai, como sufro!
Mas agora que ao meu Brasil eu voltei
Bem na hora do frevo gostoso cheguei
Remelexo, não quero mais!
Muita rumba assim faz mal!
Eu quero, quero, quero é Carnaval!
28.
SONHEI
QUE
ESTAVA
EM
PERNAMBUCO * (Clóvis Mamede, 1949)
Intérprete: Clovis Mamede e orquestra, com
cantor Roberto Amaral
(Frevo-canção, 78rpm Elite Special N-1001-B)
Sonhei que estava em Pernambuco
Fiquei maluco
Quando o frevo passou
Mas, quando estava no melhor da festa
Ora, esta alguém me despertou
Quando acordei, ai, ai
Até chorei. ai, ai
Tudo mentira, ai, ai
O que sonhei
Mas agora vou brincar
O Frevo eu vou cantar
O Frevo eu vou dançar
Para me consolar
Algum dia você há de ver
Se é verdade ou não
E se fizer o passo com a turma
Verá que eu tenho razão
30. VOCÊ FAZ QUE NÃO SABE (Capiba,
1950)
Intérprete: Francisco Carlos
(Frevo-canção, RCA Victor 78 rpm, disco n.
800.708)
Eu tive na vida tantos amores
Que me fizeram sofrer
Porém, de todos eu esqueci
Só um não posso esquecer
Sabe quem é esse amor?
É você
Eu não devia dizer
Você faz que não sabe
Para me fazer sofrer
31. É FREVO, MEU BEM! * (Capiba, 1951)
Intérprete: Carmélia Alves
(Frevo-Canção, 78rpm Continental disco nº
16.322-A)
Pernambuco tem uma dança
Que nenhuma terra tem
Quando a gente entra na dança
Não se lembra de ninguém
É maracatu?
Não, mas podia ser
É bumba-meu-boi?
Não, mas podia ser
Não será o baião?
Não, mas podia ser
É dança de roda?
Quero ver dizer!
É uma dança que vai e que vem
Que mexe com a gente
É frevo, meu bem!
32. FREVO Nº 1 DO RECIFE (Antônio
Maria, 1951)
Intérprete: Trio de Ouro
213
Ô ô ô saudade
Saudade tão grande
Saudade que eu sinto
Do Clube das Pás, do Vassouras
Passistas traçando tesouras
Nas ruas repletas de lá
Batidas de bombos
São maracatus retardados
Chegando à cidade, cansados,
Com seus estandartes no ar.
Que adianta se o Recife está longe
E a saudade é tão grande
Que eu até me embaraço
Parece que eu vejo
Valfrido Cebola no passo
Haroldo Fatias, Colaço
Recife está perto de mim.
33. MICRÓBIO DO FREVO *
(Genival Macedo, 1954)
Intérprete: Jackson do Pandeiro
(Frevo-Canção, Copacabana 78rpm disco Nº
5.331-A)
Eu só queria que um dia
O frevo chegasse a dominar
Em todo Brasil
O micróbio do frevo é de amargar
Quando entra no salão
É o que o povo prefere pra dançar
E cai na dobradiça
Não há quem faça parar
Vou-me embora
Vou-me embora
Pra lá
Mas tem que ser depressa
Tem que ser pra já
Eu quero sem demora
O que ficou por lá
Vou ver a Rua Nova,
Imperatriz, Imperador
Vou ver, se possível
Meu amor.
35. PERNAMBUCO, VOCÊ É MEU (Nelson
Ferreira e Aldemar Paiva, 1955)
Intérprete: Raimundo Santos
(Frevo-Canção, Rozemblit/Mocambo 78rpm
disco nº 15.207-B)
Terra boa, meu Pernambuco
Que faz
Frevo bom e maracatu,
Tem mais
Banho em Beberibe,
Cachaça gostosa,
Mangaba cheirosa,
Ai! Ai! Ai!
Tudo isso minha terra tem!
Tem rede macia
Pra gente sonhar,
Buchada, peixada,
Bate-bate pra enganchar.
Eu queria
Que você um dia
Fosse a Pernambuco
Pra ver
Como é feito o passo
Ao som de uma orquestra
Pra valer
Empunhamos um chapéu de sol
E botamos uma dona de lado
E daí começamos a fazer
O passo rasgado
Tem morena formosa
Que seu coração não me deu...
Mas por isso, não choro porque,
Pernambuco, você é meu!
.
36. TÔ SENTINDO UMA COISA (Sebastião
Lopes, 1955)
Intérprete: Nelson Gonçalves e Orquestra de
Zacarias
34. FREVO Nº 2 DO RECIFE (Antônio
Maria, 1954)
Intérprete: Luiz Bandeira
(Frevo-canção, Continental 78rpm disco no.
16.881)
Pegue a sua vez
Pra mim não tem mais hora
Ai que saudade tenho do meu Recife
Da minha gente que ficou por lá
Quando eu pensava, chorava, falava
Contava vantagem, marcava viagem
Mas não resolvia se ia
Eu já vou, você quer ir,
Vamos pro Frevo, morena
Vamos embora
To sentindo uma coisa eu vou me acabar
Ou virar o copo
Pra poder esquentar
Mas depois do arrasta pé
Quero sombra e água fresca
Carinho e cafuné.
Vou-me embora
214
37. É DE FAZER CHORAR (Luiz Badeira,
1957)
Intérprete: Carmélia Alves
(Frevo-Canção. Copacabana 78rpm disco nº
5699-A)
É de fazer chorar
Quando o dia amanhece
E obriga o frevo a acabar
Oh, quarta-feira ingrata
Chega tão depressa
Só pra contrariar
Quem é de fato bom pernambucano
Espera um ano e se mete na brincadeira
Esquece tudo quando cai no frevo
E no melhor da festa vem a quarta-feira
38. VOLTEI, RECIFE (Luiz Bandeira, 1958)
Intérprete: Luiz Bandeira
(LP Voltei, Recife, Polydisc - disco nº
512.404.117 (s/d)
Voltei, Recife
Foi a saudade que me trouxe pelo braço
Quero ver novamente
Vassoura na rua abafando
Tomar umas e outras
E cair no passo
Cadê Toureiros? Cadê Bola de Ouro?
As Pás, os Lenhadores
E o Bloco Batutas de São José
Quero sentir
A embriaguez do frevo
Que entra na cabeça
Depois toma o corpo
E acaba no pé
39. FREVO Nº 3 DO RECIFE (Antônio
Maria, 1957)
Intérprete: Claudionor Germano
(Frevo-canção, Rozenblit/ Mocambo 78rpm
disco no. 15. 188)
Sou do Recife
Com orgulho e com saudade
Sou do Recife
Com vontade de chorar
E o rio passa
Levando barcaça
Pro alto do mar
E em mim não passa
Essa vontade de voltar
Recife mandou me chamar
Capiba e Zumba
Esta hora onde é que estão?
Inês e Rosa
Em que reinado reinarão?
Ascenso me mande um cartão
Rua antiga da Harmonia
Da Amizade, da Saudade e da União
São lembranças noite e dia
Nelson Ferreira toque aquela introdução
40. À PROCURA DE ALGUÉM (Capiba,
1958)
Intérprete: Expedito Baracho
(Frevo-Canção, RCA Victor 78rpm disco nº
802018)
Eu ando à procura de alguém
Que me queira bem
Mas que seja meu
Somente meu
E de mais ninguém
Quando isso acontecer
Eu nunca mais na vida
Hei de sofrer
Eu não quero um amor
Desses que vão e vêm
Quero um amor de verdade
Que me queira também
41. QUAL É O PÓ? (Sebastião Lopes, 1959)
Intérprete: Marize Paiva
(Frevo-canção, Rozenblit/ Mocambo disco
no. 15.265)
Qual é o pó? Qual é o pó?
É entrar na folia
É arranjar um xodó
Ai, essa não
Não sou de casamento
Nem dou meu coração
Cachaça eu só tomo na cuia
Meu fraco é namorar
Aquelas tulhas
42. MENINA DE HOJE *
(Manuel Gilberto, 1960)
Intérprete: Raimundo Santos
(Frevo-canção, Rozenblit/ Mocambo 78rpm
disco no. 15.288)
Menina de hoje não quer fantasia
só vai à escola pra fazer folia
a vida pra ela é sempre carnaval
e ainda acha que isso é muito natural
de calça comprida, cigarro e boné
já fez seu programa, vou dizer o que é
dar o braço ao seu playboy, entrar no Lunik
215
ir lá detrás da lua fazer piquenique
43. ÓIA A VIRADA (Nelson Ferreira, 1960)
Intérprete: Claudionor Germano
Frevo-Canção, Roznblit/ Mocambo)
Vira, vira, óia virada, ô!
Vem cair no passo moreninha do amô.
Lá em casa todo mundo
Virá pó no carnavá
Até mesmo a minha sogra
Se esfarinha de pulá
(...olha a curva...)
Vira, vira...
Carnavá só tem três dia
Valha-me São Sarvadô
carnaval nasceu no céu
Foi os anjos que inventou
(...tira o cisco do olho, morena...)
Vira, vira...
Não respeito nem o chão
Quando chega o carnavá
Saio de casa no domingo
Só nas cinzas vou vortá...
44. ADEUS, EMÍLIA (Sebastião Lopes, 1960)
Adeus, adeus Emília,
O JK me mandou para Brasília.
Brasília não tem carnaval
Nem é Cidade Maravilhosa,
Não tem praia de Copacabana
Com a garota tão bacana
Não tem o Cristo Redentor
A Guanabara com seu esplendor
Não tem o Colosso do Maracanã
Mas será o Brasil de amanhã
45. PALÁCIO DA ALVORADA *
(Sebastião Lopes, 1961)
Intérprete: Edilásio Lopes
(Frevo-canção, Rozenblit/ Mocambo disco
no. 15.251
Ai, ai, meu JK
Brasília é o futuro
E eu preciso ir pra lá
Eu sou o José
O irmão da Emília
E Quero trabalhar lá em Brasília,
No Palácio da Alvorada
Todo cheio de esplendor
Brasília é um sonho encantador.
Parabéns meu presidente
Do José e da Emília
Vamos já, já para Brasília
46. AMOR DE HOJE (Carnera, 1962)
Intérprete: Mêves Gama
(Frevo Canção, Mocambo 78 rpm disco nº
15.388-A
Amor de hoje,
Amor espacial...
Passa veloz como um foguete,
É amor de carnaval...
Primeiro dia,
Aperto de mão...
Segundo dia,
Abraço apertado
Terceiro dia
Um beijo no escuro...
Quarta-feira
Tudo terminado...
(Ta, como é que é!)
47. A LUA DISSE (Gildo Branco, 1962)
Intérprete: Evaldo França
(Frevo-canção, Rozenblit/Mocambo 78 rpm
disco no. 15.391)
Gagarin subiu, subiu, subiu
Foi até ao espaço sideral
Chegou perto da lua e sorriu
Vou embora pro Brasil
Que o negócio é carnaval
A lua disse ‘não vá, demore mais
Já ouvi que lá na Terra
querem me passar pra trás’
Mas o Gagá nada ligou e deu no pé
Vou mesmo pro Brasil
Eu quero é conhecer Pelé
48. A TURMA DA PEDRA LASCADA
(Capiba, 1963)
Intérprete: Ângela Maria
(Frevo Canção, RCA LP Zaccarias e Sua
Orquestra Frevos)
No carnaval é tudo alegria
Na pracinha e na rua ou no clube elegante
Todos dançam, todos cantam
Para bossa nova transviado ou não
Dançar twist é uma devoção
Mas quem é da turma da pedra lascada
Não resiste a vassourinhas não
E cai de corpo e alma no salão
Pula, pula, pula
Dança dança dança
Até quando o sol desponta
216
49. GAROTA VEDETE (Carnera, 1964)
Intérprete: Expedito Baracho
(Frevo Canção, Mocambo 78rpm disco nº
15.535-A)
Você é
Garota Vedete
Tem um corpo de abafar!
Quero ver você brilhando
Na passarela,
Você nasceu pra desfilar! (e rebolar!)
Você sai no Cruzeiro e na Manchete,
Seja Miss, Manequim ou Vedete...
Muita classe, pouca roupa
E todo mundo com água na boca!
(OBA!)
50. MARIA TEREZA (Bráulio de Castro,
1964)
Intérprete: Milton Arruda
(Frevo-Canção, RCA, compacto disco nº VCS
003)
Maria Tereza
Vai ser uma beleza
Não bote o seu biquíni
Já achei a solução
Vou sair de Adão
E você de monoquíni
De monoquíni, ai que beleza
De monoquíni vai ser legal
Quero ver a Maria Tereza
Abafando neste carnaval
51. FREV-IÊ-IÊ (Nelson Ferreira, 1966)
Intérprete: Claudionor Germano
(Frevo, RCA Victor, disco LC-6279-A, CD
Revivendo Nelson Ferreira CD5)
Iê, iê, iê, iê moçada!
Iê, iê, iê e frevo pra você, que tal?
Com os braços pra lá e pra cá
Com a cabeça faz que vai faz que vem
Com as palmas assim, assim
O iê, iê, iê vai indo muito bem
Mas agora prepara o corpo todo
Que do frevo está chegando a hora
Iê, iê, iê azeite nas canelas
Porque o frevo também é brasa viva
Para!
52. A PALAVRA É... (Nelson Ferreira, 1967)
Intérprete: Otávio Santiago
(Frevo Canção, Rozemblit compacto)
A palavra é...
FREVO
E a turma foi ligeiro no botão!
Todo mundo quis mostrar
Que sabia frevar
Fechou-se o tempo
Deu a louca no salão
Frevo...
“Passo”...
Bloco...
Momo...
Riso...
Alegria...
No delírio da folia
São palavras fáceis
Pra se improvisar...
Portanto seu Blota
Vencemos de barbada...
Se a palavra é FREVO
Vamos “se esbaldar!”
53. NOVAMENTE (Luiz Bandeira, 1967)
Intérprete: Dóris Sandra
(Frevo-Canção, Polydisc LP Voltei Recife
disco nº 512.404.117, coletânea lançada em
1985)
Meu Recife,
Voltei novamente
Alegre e contente
Revendo o meu povo de novo,
Andei maluco batendo cabeça
Pelo mundo afora
Até parece mentira
O que ouço agora,
Pelo som só pode ser Vassoura
Que vem rasgando um frevo
Fazendo a gente vibrar
Com licença vou fazer meu passo
Estou meio fora de forma
Vocês vão me desculpar...
Vou fazer serenata em Casa Amarela
Quero ver chegar à janela
Uma bela morena de lá
Vou lembrar ao Capiba,
Carnera e Nelson Ferreira
Que o frevo é nossa bandeira
Não vamos deixar ninguém rasgar...
217
54. VÃO ME LEVANDO (Genival Macedo e
Dozinho, 1969)
Intérprete: Marlene
(Frevo-Canção, CID, LP Carnaval dos 7
Grandes)
56. HINO DE CEROULA (Milton Bezerra de
Alencar, 1969)
Intérprete: Coral e Orquestra Maestro Duda
Frevo-Canção
LP
Olinda
Carnaval
Mocambo Rozemblit disco nº 20.000
Eu não vou, vão me levando
Vão me empurrando
Desse jeito eu tenho que ir
Se bato em um, se piso em outro
Vocês vão me desculpando
Eu não vou, vão me levando
Eu vou este ano à lua
Não é privilégio
Foguete já tem
Eu quero ver se o carnaval de rua
Collin, Aldrin, Armstrong
Falam que vai bem
Eu quero ver se tem troça que escolha
Como em Olinda, que tem a Ceroula
Mas se tiver, para mim é legal
Passarei lá na lua todo o carnaval
Não posso nem fugir
Não posso nem parar
Com tanta gente me empurrando
Pra dançar
Estou cansado
Estou bambeando
Eu não vou, vão me levando
55. FREVO, ALEGRIA DA GENTE
(Capiba)_1969
Intérprete: Claudionor Germano
(Frevo-Canção, Rozenblit/ Passarela – LP
Carnaval de Capiba III- Frevo, Alegria da
Gente, disco nº 60.060)
O carnaval aparece
Da dor a gente se esquece
A cidade fica a vibrar
Todo mundo quer ver Vassourinhas passar
Lá vem Toureiros trazendo
Na frente o seu estandarte
No meio da multidão
Eu não sei se sou Pedro, Joaquim ou João
Vejo passista passando
Na minha mente, no olhar
Eu carrego flores nas mãos
Procurando a quem ofertar
É para Maria?
Mariazinha de quê?
Se eu não tenho Maria
E nem tenho você!
Rouco de tanto gritar
Eu não posso mais nem falar
Caminhar eu já não me atrevo
Depois de três dias no passo, no frevo
Quando a manhã já vem vindo
Os cordões pra longe partindo
Eu vou deixando a cidade
Trazendo comigo somente a saudade
57. 5 – 4 – 3 – 2 – 1 – FREVO (Capiba,
1970)
Intérprete: Claudionor Germano
(Frevo-Canção, Rozenblit/ Passarela – LP
Carnaval de Capiba III- Frevo, Alegria da
Gente, disco nº 60.060)
Estão me convidando
Para eu ir dançar
Numa festa ao luar
Eu sei que nessa festa
não se dança o frevo
O que vou fazer lá?
Sair daqui não posso
Isso eu nem me atrevo
Vai começar
A contagem regressiva
Para entrar o frevo
5 – 4 – 3 – 2 – 1 – Frevo!
58. VOCÊ ESTÁ CHORANDO (Capiba,
1971)
Intérprete: Claudionor Germano
(Frevo Canção, Passarela, LP Capiba III,
Frevo Alegria da Gente, disco nº 60060)
Você parece que está amando
Você está chorando
Deixe esse choro para depois
Venha cá dançar o frevo
E esqueça por um momento
A tristeza
E quem fez você chorar tanto
Enxugue logo esse pranto
De amor se chora, eu bem sei
Eu também um dia chorei.
218
59. JUVENTUDE DOURADA
(Capiba)_1976
Intérprete: Claudionor Germano
(Frevo-Canção,
Eu quero ver este ano
A juventude dourada
Na rua que é do povo
Camisa aberta no peito
Fazendo o que seus avós
Fizeram em tempos passados
Ao som de um frevo bem quente
O passo sem preconceito
Estou aqui para ver
A juventude dourada
Nessa alegria de novo
Entrando na madrugada
60. SELO DO FREVO *
(Nelson Ferreira)_1976
Intérprete: Claudionor Germano
(Frevo-Canção, Rozenblit, Mocambo LP
60.075)
Ilustríssimo senhor
Fulano de Tal
Residência mundo inteiro
Onde exista Carnaval
Nestas mal traçadas linhas
Desculpe-as por favor
Receba o convite
Que lhe faço com ardor
Venha ver o Carnaval Brasileiro
Especialmente o de Pernambuco
Sim, senhor!
Pernambuco do frevo sensacional
Dança de valor
No mundo sem igual
Venha, você vai gostar
De na rua com o povo engrenar
E ao som de um frevo danado
Mergulhar na onda do passo
Sem mais para sua resposta
Com um forte abraço
Segue um selo do frevo
Meu endereço, com todo apreço
Nelson Ferreira, Capital do Frevo
61. MULATA IMITADA (J. Raul Valença/
Manoel Valença, 1979)
Intérprete: Cezar Bismarck
(Frevo-Canção, Rozenblit/ Passarela LP
Capital do Frevo 79, disco nº 60.117)
Mulata malvada
Mulata danada
Criada no norte
E no sul imitada
Mulata te encheram de fama e trama
Pois quem primeiro te viu partiu
Partiu alucinado, enfeitiçado por ti
Mulata igual nunca vi
Mulata malvada
Mulata danada
Criada no norte
E no sul imitada
Mulata és carnavalença, Valença
Grandeza nacional, sem igual
Levada ao tribunal
E o mundo inteiro cantou
Rainha do carnaval
Mulata malvada...
62. TROMBONE DE PRATA (Capiba)
1979
Intérprete: Expedito Baracho
(Frevo-Canção, Rozenblit LP Capital do
Frevo 79 nº 60.117)
Ouvi dizer que o mundo vai-se acabar
Que tudo vai pra cucuia
Que o sol não mais brilhará
Mas se deixarem um bombo e uma mulata
E um trombone de prata
O frevo bom viverá
Pode acabar o petróleo
Pode acabar a vergonha
Pode acabar tudo enfim
Mas deixem o frevo pra mim
63. FREVOTHEQUE *
(Inaldo Vilarim / Duda)_1979
Intérprete: Ray Miranda
(Frevo-canção, Rozenblit/Passarela, LP
Capital do Frevo 79, disco nº 60.117
Vou tomar o meu pileque
Eu não quero discotheque
O meu caso é carnaval
E vou dar um ade moleque
Vou fazer o passo
E mostrar que sou o tal
E nesse frevo pulo, bebo,
219
E com prazer
Estou nessa com você
64. HINO DO ELEFANTE (Clídio Nigro e
Clóvis Vieira, 1980)
Intérprete: Coral Mocambo
(Frevo-Canção, Rozenblit/ Mocambo, disco
nº 20.000
Ao som dos clarins de Momo
O povo aclama com todo ardor
O Elefante exaltando a sua tradição
E também seu esplendor
Olinda, esse meu canto
Foi inspirado em seu louvor
Entre confetes e serpentinas
Venho lhe oferecer
Com alegria, o meu amor
Olinda, quero cantar
A ti esta canção
Teus coqueirais, o teu sol, o teu mar
Faz vibrar meu coração de amor a sonhar
Minha Olinda sem igual
Salve o teu carnaval!
220
6.2. Fontes discográficas / CD-ROM
A. Long-Plays
1. CAPIBA 25 ANOS DE FREVO (Rozenblit) – Rozenblit disco nº. 40039 (1959)
2. O QUE EU FIZ...E VOCÊ GOSTOU (Nelson Ferreira) – Rozenblit disco
nº40040 – (1959)
3. NA TRANSA DO FREVO (Rozenblit) – Nº 60.039 (1973)
4. CARNAVAL RECIFE 1975 (Rozenblit) – disco n. 60.072 (1974)
5. BAILE DA SAUDADE – Orquestra de José Menezes e Coral Bandeirantes
disco nº BR 73.000 (1980)
6. CARNAVAL DE CAPIBA III – Frevo, Alegria da Gente 1934/1974 (Rozenblit)
disco nº 60.060 – (1974)
7. CARNAVAL PERNAMBUCANO (Rozenblit) (1974)
8. EVOLUÇÃO DO FREVO – Nunes e Orquestra (Rozenblit) (1978)
9. CARNAVAL RECIFE 1978 – (Cactus) – nº CPDF 006 1978
10. CARNAVAL COMEÇA COM C DE CAPIBA – Rozenblit – nº 60.106 – (197)8
11. VIVA O FREVO (Rozenblit) nº 60.020 - 1979
12. BRASIL – CARNAVAL DO NORDESTE (Rozenblit) nº 90.018 1979
13. NELSON FERREIRA – 50 ANOS EM 7 NOTAS – MEIO SÉCULO DE
FREVO-CANÇÃO (Rozenblit) nº 60.042 – (1980)
14. CAPITAL DO FREVO 79 (Rozenblit) 1979
15. OLINDA CARNAVAL (Rozenblit) disco Nº 20.000 – (1980)
16. II FREVANÇA – RGE – disco nº 306.3134 – (1980)
17. CAPITAL DO FREVO (Rozenblit) disco nº 20.017
18. CLAUDIONOR GERMANO O BOM DO CARNAVAL – RCA – nº 1070317 –
(1980)
19. CAPITAL DO FREVO 83 – Duda e Orquestra – (Rozenblit (1982)
20. CARNAVAL DO NORDESTE N. 2 (Mocambo) – nº 20.021 – (1982)
21.
22. CLAUDIONOR GERMANO O BOM DO CARNAVAL – Polydisc – nº 304058
(1985)
23. VOLTEI RECIFE Luiz Bandeira (Polydisc) disco nº 512.404.117 (s/d)
24. EVOÉ – Guedes Peixoto e Orquestra (Rozenblit) – nº 20.009 – (1981)
25. EVOÉ VOL. 2 (Rozenblit) (1982)
26. OLINDA CARNAVAL (Rozenblit) (1982)
B. Compact Disc (CD)
1. O BOM SEBASTIÃO – Coletânea de Canções de Sebastião Lopes
(independente), 2007
2. TRIBUTO A GENIVAL MACEDO – (Via Som), 2009
3. CENTENÁRIO DO FREVO – FESTA NA MPB (Cepe), 2007
4. HISTÓRIA DO CARNAVAL – FREVO CANÇÃO – 20 SUPERSUCESSOS
(Polydisc) 1996
5. RECIFE MANHÃ DE SOL – 20 SUPERSUCESSOS (Polydisc) s/d
6. PARANAMBUCO – CLAUDIONOR GERMANO FREVO-CANÇÃO
(Sonopress) s/d
7. CARNAVAL DE CAPIBA (Inter Records CD) s/d
8. MÚSICA POPULAR DO NORDESTE VOL.1 (Marcus Pereira) s/d
9. HISTÓRIA DO CARNAVAL – NELSON FERREIRA – 20
SUPERSUCESSOS (Polydisc) s/d
10. COLEÇÃO O TEMA É FREVO – 10 VOLUMES (Cemcape) – 2007
11. COLEÇÃO CARNAVAL, SUA HISTÓRIA SUA GLÓRIA – NELSON
FERREIRA – 6 volumes (Revivendo) 2002
12. DALVA TORRES CANTA ANTONIO MARIA (Sonopress) 2007
13. GALO DA MADRUGADA O MAIOR BLOCO DOMUNDO (Seleto) 1995
14. FREVO DO MUNDO (Candeeiro Records) 2007
15. 100 ANOS DE FREVO – É DE PERDER O SAPATO (Biscoito Fino) 2007
16. HISTÓRIA DO CARNAVAL CAPIBA - Polydisc, 1998
17. O POETA DO FREVO CAPIBA 100 ANOS VOL.33 – CD 1 – Revivendo,
2004
18. O POETA DO FREVO CAPIBA 100 ANOS VOL.34 – CD 2 – Revivendo,
2004
19. CLAUDIONOR GERMANO –FREVO CANÇÃO PARANAMBUCO ,
Funcultura S/D
20. O BOM SEBASTIÃO – produção independente, 2007
21. CARNAVAL DE CAPIBA – Claudionor Germano – Inter recordes CD, S/D
22. MÚSICA POPULAR DO NORDESTE 1- Discos Marcus Pereira S/D
23. CARNAVAL NÃO É BRINCADEIRA 1-Discos Marcus Pereira S/D
24. EVOCANDO NELSON FERREIRA – Prefeitura do Recife, 2000
25. AO AMOR, ONDE O AMOR FOI DEMAIS – Prefeitura do Recife, 2007
26. RECIFE FREVOÉ – Prefeitura do Recife, 1996
27. NELSON FERREIRA CARNAVAL SUA HISTÓRIA,SUA GLÓRIAVOL.24– CD 2 REVIVENDO, 2002
28. NELSON FERREIRA CARNAVAL SUA HISTÓRIA,SUA GLÓRIAVOL.25– CD 3-REVIVENDO, 2002
29. NELSON FERREIRA CARNAVAL SUA HISTÓRIA,SUA GLÓRIAVOL.26–CD 4-REVIVENDO, 2002
30. NELSON FERREIRA CARNAVAL SUA HISTÓRIA,SUA GLÓRIAVOL.27–CD 5-REVIVENDO, 2002
31. GRANDES CARNAVAIS – POLYDISC, S/D
32. ANTONIO NÓBREGA NA PANCADA DO GANZÁ- Brincante, 1996
33. ANTONIO NÓBREGA NOVE DE FREVEREIRO- Brincate, 2004
34. RECIFE MANHÃ DE SOL – polydisc, S/D
35. 20 SUPER SUCESSOS CLAUDIONOR GERMANO VOL 2 – POLYDISC,
S/D
222
C. CD/ROM
- SALVAGUARA DO FREVO – Acervo de Partituras. Prefeitura do Recife (s/d)
- HISTÓRIA DO CARNAVAL – Arquivo Público Estadual Séculos XIX / XX (2004)
6.3
ARQUIVOS DE ÁUDIO
Relação das músicas constantes do CD anexo para audição
1. O FREVO É ASSIM
(Nelson Ferreira e Nestor de Holanda, 1945)
Intérprete: Carlos Galhardo
(Frevo Canção, 78rpm Victor disco nº 80.0353-A)
2. MENINA DE HOJE (Manuel Gilberto, 1960)
Intérprete: Raimundo Santos
(Frevo-canção, Rozenblit/ Mocambo 78rpm disco no. 15.288
3. BYE, BYE MY BABY (Nelson Ferreira, 1944)
Intérpretes: As Frenéticas
(Frevo-Canção, CD Asas daAmérica vol.2)
4. SELO DO FREVO (Nelson Ferreira)_1976
Intérprete: Claudionor Germano
(Frevo-Canção, Rozenblit, Mocambo LP 60.075)
5. FREVOTHEQUE (Inaldo Vilarim / Duda)_1979
Intérprete: Ray Miranda
(Frevo-canção, Rozenblit/Passarela, LP Capital do Frevo 79, disco nº 60.117
6. É FREVO, MEU BEM! (Capiba, 1951)
Intérprete: Carmélia Alves
(Frevo-Canção, 78rpm Continental disco nº 16.322-A)
223
7. SONHEI QUE ESTAVA EM PERNAMBUCO (Clóvis Mamede, 1949)
Intérprete: Lenine
(Frevo-canção, CD RECIFE FREVOÉ – Prefeitura do Recife, 1996)
8. FREVO PERNAMBUCANO
(Luperce Miranda e Osvaldo Santiago, 1931)
Intérprete: Francisco Alves
(Marcha, 78 rpm Odeon disco n. 10757-A
9. O PASSO DO CAROÁ (Nelson Ferreira e Sebastião Lopes, 1941)
Intérprete: Joel e Gaúcho
(Frevo, Odeon 78rpm disco nº12.100-B)
10. TEUS OLHOS (Capiba, 1943)
Intérprete: Carlos Galhardo
(Frevo-Canção, Victor 78 rpm disco nº 80.0056-B)
11. MICRÓBIO DO FREVO (Genival Macedo, 1954)
Intérprete: Coral Feminino
(Frevo-Canção, CD TRIBUTO A GENIVAL MACEDO – (Via Som), 2009)
12. PALÁCIO DA ALVORADA (Sebastião Lopes, 1961)
Intérprete: Edilásio Lopes
(Frevo-canção, Rozenblit/ Mocambo disco no. 15.251
224
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