JOSÉ ROBERTO SILVEIRA
RENATO RUSSO E CAZUZA:
A POÉTICA DA TRAVESSIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS:
TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA
DEPARTAMENTO DE LETRAS, ARTES E CULTURA
Junho de 2007
JOSÉ ROBERTO SILVEIRA
RENATO RUSSO E CAZUZA:
A POÉTICA DA TRAVESSIA
Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em Letras da Universidade Federal de
São João del-Rei, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Letras.
Área de Concentração: Teoria Literária e Crítica
da Cultura
Linha de Pesquisa: Literatura e Memória
Cultural
Orientadora: Profa. Dra. Suely da Fonseca
Quintana
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS:
TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA
DEPARTAMENTO DE LETRAS, ARTES E CULTURA
Junho de 2007
JOSÉ ROBERTO SILVEIRA
RENATO RUSSO E CAZUZA:
A POÉTICA DA TRAVESSIA
Banca Examinadora:
Profa. Dra. Suely da Fonseca Quintana – UFSJ
Orientadora
Prof. Dr. Raimundo Nonato Gurgel Soares – UFRJ
Profa. Dra. Magda Velloso Fernandes de Tolentino – UFSJ
Prof. Dr. Antônio Luiz Assunção
Coordenador do Programa de Pós-graduação em Letras
Teoria Literária e Crítica da Cultura
Junho de 2007
A minha mãe, Madalena, fonte de força e ternura.
Ao Olívio M. Bandeira, o animal que logo sou.
AGRADECIMENTOS
À Profa. Suely Quintana, minha orientadora – pela dedicação, responsabilidade
e carinho: companheira fundamental desta travessia.
Ao professor Cláudio Leitão, por fazer parte da minha caminhada intelectual.
A toda a minha família, exemplo de união e amizade, pelo apoio constante.
À Ana da Consolação, amiga inestimável e companheira de outras travessias.
À Paula Malta, pela amizade criativa.
Ao Dirceu, pela afinidade eletiva.
À Laïs, pela compreensão e carinho.
À Elaine, pela amizade teórico-metodológica.
Aos amigos Júlio, Nildo e Amanda, sempre por perto.
Aos professores do Mestrado.
Aos amigos da turma do mestrado e afins.
À CAPES, pelo financiamento da pesquisa.
RESUMO
O trabalho propõe uma leitura da produção escrita das obras musicais de
Renato Russo e Cazuza como memórias-presentes, registro autobiográfico e
confessional. Busca-se o desvelamento do eu e de sua geração através do
registro “autobiográfico” das letras de rock que encenam a experiência da
travessia da década de 1980. A dissertação, estruturada em três capítulos,
parte da localização do sujeito no contexto sócio-histórico da redemocratização
do Brasil, o que permite apontar as características que permeiam as produções
artísticas e compreender as peculiaridades do rock desse período. Em seguida,
tem-se a discussão da relação entre música e poesia, que perpassa pelos
novos suportes tecnológicos para a arte na contemporaneidade. Analisam-se,
então, os modos de inscrição do sujeito na sociedade a partir de sua obra
poética e documental. As obras poético-musicais de Cazuza e Renato Russo
são lidas como escrita autobiográfica e confessional. Observa-se que culpa e
perdão se revelam e são buscados na materialidade da mesma palavra
poética. E, finalmente, procura-se ouvir quais vozes dialogam nesses textos e
perseguir os rastros na escrita polifônica do rock, na qual se entrecruzam
poéticas
e
culturas
diversas.
A
pesquisa
se
fundamenta
teórico-
metodologicamente em Jacques Derrida, Mikhail Bakhtin, Octavio Paz, Eneida
Maria de Souza e Michel Foucault. Os conceitos teóricos se diluem ao logo do
texto, aproximando o conceito do poético, permitindo assim a leitura de Renato
Russo e Cazuza como a poética da travessia.
Palavras-chave: Renato Russo; Cazuza; poética da travessia; autobiografia.
ABSTRACT
This work aims at a reading of the lyrics in the songs of Renato Russo and
Cazuza in the guise of present-memories, and as autobiographic and
confessional registers. We endeavour to uncover the self of their generation
through the autobiographic register of the rock lyrics which stage the experience
of the crossing of the 1980s. This dissertation, divided into three chapters,
starts by placing the individual in the social-historical context of the redemocratization in Brazil, something which will allow the realization of the
characteristics which permeate the artistic productions and the understanding of
the peculiarities of the rock music of the period. Then we present a discussion
on the relation between music and poetry, going through the new technological
devices contemporary art relies on. After that we analyze, through the study of
their poetic and documental works, the ways in which the individual is inscribed
in society. The poetic-musical works of Cazuza and Renato Russo are read as
autobiographical, confessional texts. Guilt and forgiveness are revealed and
searched for in the materiality of the poetic word itself. Finally, we try to hear the
voices that interact in these texts and go on to pursuing the remains in the
polyphonic lyrics of the rock music, in which different cultures and poetics are
intertwined. The research is theoretically and methodologically based on
Jacques Derrida, Mikhail Bakhtin, Octavio Paz, Eneida Maria de Souza and
Michel Foucault. The theoretical concepts are scattered throughout the text,
bringing the poetics close to the concepts, thus allowing for a reading of Renato
Russo and Cazuza as the poetics of the crossing.
Key-words: Renato Russo; Cazuza; poetics of the crossing; autobiography.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................
8
1. O SUJEITO DA TRAVESSIA E DO DESCONCERTO ............................ 18
1.1. Do “iê-iê-iê” ao rock dos anos 80 .......................................................... 19
1.2. A escrita e o consumo da geração “desmemoriada” ............................ 35
2. A ESCRITA E A INSCRIÇÃO DO EU: A POÉTICA CONFESSIONAL
DE RENATO RUSSO E CAZUZA ............................................................... 49
2.1. Novos suportes tecnológicos para o aedo............................................. 50
2.2. A inscrição do sujeito............................................................................. 60
2.3. A escrita autobiográfica do animal-poeta-fingidor ................................. 64
2.4. A escrita autobiográfica como confissão ............................................... 69
3. VOZES QUE COMPÕEM O ROCK DA TRAVESSIA.............................. 80
3.1. A escrita palimpsestuosa: polifonia, roubo e “outridade” ....................... 81
3.2. A “outra voz” de Renato Russo: amores de salvação ........................... 87
3.3. Os amores exagerados de Cazuza: amores de perdição ..................... 105
CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................... 130
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................ 140
DISCOGRAFIA DO CORPUS...................................................................... 145
REFERÊNCIAS DISCOGRÁFICAS............................................................. 145
BIBLIOGRAFIA GERAL .............................................................................. 146
INTRODUÇÃO
A
música
ocupa
Vem comigo/ no caminho eu te explico.
Cazuza
importante lugar na contemporaneidade. A
multiplicidade e diversidade de gêneros e estilos musicais, entre outros fatores,
como a fácil inserção no cotidiano, apontam essa expressão artística como
uma das formas de entretenimento mais difundida atualmente. Permeada pelas
questões de mercado e da reprodutibilidade técnica, a música comporta, na
complexidade de seus suportes midiáticos (principalmente o verbal e o
melódico), elementos que permitem audições distintas. Do local privilegiado
que a música hoje ocupa na sociedade, parte-se para discussões das
implicações e procedimentos composicionais e melódicos da canção. O que
permite pensar a construção estética e literária, e também a cultura, o social, e
o histórico.
O destaque e importância da abrangência da canção nas relações
sociais e culturais promovem o seu deslocamento para o campo acadêmico.
Como objeto de pesquisa, diversas abordagens teórico-metodológicas tentam
dar conta da riqueza e diversidade da nossa canção. Assim, a música tem sido
objeto de interesse de eruditos, como os pioneiros Sílvio Romero e Mário de
Andrade, e de historiadores, cientistas sociais, especialistas da comunicação,
críticos literários e da cultura, que, atualmente, sob um olhar múltiplo e
interdisciplinar se voltam com mais freqüência ao assunto. Na década de 1960,
quando quase nada se produzia academicamente sobre música no Brasil, o
literato e crítico Augusto de Campos publica O Balanço da Bossa (1968),
conjunto de textos, na maior parte de sua autoria, que discute a música
popular, principalmente, a bossa nova e o tropicalismo. A partir de então, com
mais regularidade, a música é instituída como objeto de pesquisa acadêmica,
ganhando atenção de estudiosos da literatura.1
Os procedimentos teórico-metodológicos atuais em estudos sobre
música acompanham o ritmo da crítica literária e cultural, e lançam um olhar
1
Para um levantamento de dados mais abrangente da história do estudo da música no Brasil
consultar o artigo “Pontos de escuta da música popular no Brasil”, de Elizabeth Travassos
(2005).
que extrapola o texto e ganha as dimensões dos vários pontos de leitura e
escuta. Dessa forma, abordagens literárias e culturalistas têm ido além do
simples debruçar sobre formas. A produção musical brasileira, composta pelos
mais diversos gêneros e ritmos, fornece, no mesmo leque de variedades,
elementos para análises, que se estendem sobre a forma e a composição, e
para abordagens atentas ao cruzamento de materiais semióticos, à inovação
tecnológica e à influência decisiva dos meios de (re)produção em massa.
Affonso Romano de Sant’Anna (2004), preocupado com o paralelo entre a
música popular e a poesia brasileira, empreende comparações entre formas
populares da canção e a poesia modernista brasileira. Por sua vez, Beatriz
Resende (2002), a intelectual que sai do gabinete da academia e vai à rua e
sobe os morros das favelas, dá o tom e o ritmo da música de grupos postos à
margem, mas que são capazes de fazer soar o grito de protesto, crítica e ironia
de uma população que se sente injustiçada e desprotegida. Autores como
Wander Melo Miranda, José Murilo de Carvalho, Eneida Maria de Souza, Luis
Werneck Viana, entre outros críticos de literatura e cientistas sociais,
propuseram decantar a república2 e, em meio ao processo de separação dos
resíduos de ruínas, contradições, injustiças, mazelas e querelas do Brasil,
põem em estudo o canto de celebração, exaltação e questionamento da nação.
Silviano Santiago (2004), em “A democratização no Brasil – cultura
versus arte”, nos lança algumas questões inquietantes que os cursos de pósgraduação no Brasil vêm repensando. Santiago discute o papel do intelectual,
pensador da literatura de uma minoria letrada, que agora desperta para a
cultura da maioria, e parte para uma compreensão da transformação social,
econômica e cultural da sociedade, através do ruído harmônico da música
popular-comercial presente no cotidiano da vida brasileira. O interesse pela
cultura pop nasce na academia quando o professor de Letras se volta para a
complexidade do fenômeno da música que nos envolve no dia-a-dia3. Santiago
2
Decantando a nação: inventário histórico e político da canção popular moderna (2004):
coletânea de três volumes que resultam do seminário de mesmo nome que reuniu, na
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em setembro de 2001, filósofos,
historiadores, sociólogos, cientistas políticos, psicanalistas, antropólogos e críticos literários de
diversas instituições do Brasil. O olhar trans-inter-disciplinar sobre os “jeitos da nossa canção”
talvez seja a marca maior deste trabalho (CAVALCANTI, B; STARLING, H. M. M.;
EISENBERG, J. (orgs.), 2004).
3
De acordo com Santiago, o primeiro grito de escuta desse fenômeno foi dado pelo jovem
intelectual com formação na Universidade de São Paulo, o professor de Letras e músico José
concebe, então, a música como um lugar privilegiado para se pensar a cultura,
a política, o social, o econômico e o histórico do país. O seu trabalho funciona
como uma resenha sobre as portas abertas para o estudo da música
comercial-popular no Brasil e entra na discussão a importância dos meios de
comunicação de massa, como a televisão, o rádio e a indústria fonográfica elementos que não podem se ausentar, caso se pretenda a compreensão da
abrangência e alcance da canção em nossas sociedades.
O intelectual da Universidade, como ressalta Santiago, desperta, então,
para a voz e poesia dos “letrados” da “MPB” e do “rock dos 80” ou dos que se
manifestam pelo rap, hip hop, funk e tantos outros gêneros, os quais se tocam
e se hibridizam. Da modinha ao rock, a música brasileira se caracteriza pela
variedade de formas e estilos, uma de suas características mais importantes,
que reflete a nossa diversidade cultural. A produção musical, ao lado da
literatura, é capaz de fazer vir à tona questionamentos que permitem re-pensar
questões imanentes ao ser humano e questões que perpassam a cultura e a
sociedade. Daí, a sintonia que Lucia Lippi Oliveira denota:
Olhando o elenco de canções ao longo da República, posso
levantar a hipótese de que os autores da música popular
brasileira são intelectuais que mantêm uma sintonia fina com
seu tempo. Sintonia muito mais rápida e aguda do que a dos
cientistas sociais. Os cancioneiros estão mais próximos às
transformações em curso na sociedade brasileira. Mas com isto
estarei apenas renovando a idéia formulada desde o
romantismo do século XIX de que os poetas têm maior
capacidade de ver antecipadamente4.
E será justamente a “sintonia fina” dos compositores e intérpretes da
música popular com o momento histórico que nos faz voltar a atenção para o
palco brasileiro da década de 1980. O desconcerto e sensibilidades íntimas e o
ritmo das transformações sociais, econômicas, políticas e culturais se fazem
ouvir em ecos, distorções, crítica, ironia, esperança e subjetividade, no vasto
repertório de canções que se espalham pelo Brasil afora, propiciado pelo
aumento das vendas de discos, pela difusão radiofônica e pelo grito, antes
sufocado pelos anos de repressão e censura.
Miguel Wisnik com o artigo “O minuto e o milênio ou Por favor, professor, uma década de cada
vez”, capítulo do livro Anos 70 – 1. Música Popular (SANTIAGO, 2004, p142).
4
OLIVEIRA, 2004, p.102.
O foco desta dissertação, portanto, recai sobre as particularidades do
rock na versão brasileira dos anos 80. Como objetivo principal o trabalho
propõe uma leitura da produção escrita das obras musicais de Renato Russo e
Cazuza como memórias-presentes e registro autobiográfico e confessional.
Tomam-se Renato Russo e Cazuza como companheiros viventes da travessia
da década de 80 que protagonizam na escrita poético-musical os percalços da
caminhada. Dessa forma, o teor autobiográfico e confessional da escrita dois
autores se estende para todos aqueles de sua geração.
O corpus da pesquisa compreende as letras de música compostas por
Renato Russo para a banda Legião Urbana, e as de Cazuza em carreira solo, a
partir de 1985. As composições de Cazuza trazidas para a pesquisa ainda
compreendem algumas interpretadas pelo grupo Barão Vermelho, do qual o
compositor foi vocalista até 1984.
A Legião Urbana marca oficialmente sua entrada no cenário nacional do
rock em 1984, em Brasília, palco fértil para o rock brasileiro. A origem do grupo,
formado por Renato Russo, letrista e vocalista, Dado Villa-Lobos, guitarrista, e
Marcelo Bonfá, baterista, vem da banda punk Aborto Elétrico, criada por
Renato Russo, no fim da década de 1970. A Legião Urbana se consolida no
mercado ao longo das décadas de 1980 e 1990 e é considerada pela crítica e
público como uma das melhores bandas de rock do Brasil. Assinadas e
interpretadas por Renato Russo, as canções da Legião Urbana mesclam um
lirismo altamente acentuado e a escrita autobiográfica de um eu capaz de
responder pelo momento histórico que o acolhe. A banda lançou, no período de
1984 a 1997, os álbuns Legião Urbana (1984), Dois (1986), Que país é este
(1987), As quatro estações (1989), V (1991), O descobrimento do Brasil (1993),
A Tempestade (1996) e Uma outra estação (lançado depois da morte de
Renato Russo, em 1997).
O material escrito da obra musical permite o
posicionamento crítico do autor, no diálogo da primeira pessoa do singular com
os acontecimentos que norteiam a sua época. A canção se instala, assim,
como memória cultural de um tempo, suplementando o processo de transição
de uma década.
As letras de Cazuza correspondem, nesse mesmo sentido, ao papel do
intelectual que pensa com e por seu tempo. Cazuza estréia sua carreira solo
com o lançamento de Exagerado, em 1985, depois de ter participado do grupo
Barão Vermelho, formado no início de 1980, no Rio de Janeiro. Até julho de
1990, ano da morte de Cazuza, sucederam-se os seguintes álbuns: Só se for a
dois (1987), Ideologia (1988), O tempo não pára (1988), Burguesia (1989) e o
póstumo, Por aí (1991). Ao lado de Renato Russo, Cazuza é considerado um
dos grandes letristas do rock brasileiro. Suas letras experimentam o tom
exagerado, marca da escrita do eu que luta contra o tempo que não pára e
deixa o registro, instintivo e confessional, capaz de extrapolar o traço biográfico
e responder, como a literatura – que também é intempestiva – por sua geração.
As letras das canções são tratadas aqui como poesia. O suporte
teórico-metodológico não abarca a parte sonora e performática da produção
musical. A relação entre letra de música e poesia é tratada na primeira parte do
segundo capítulo, quando, então, tem-se uma maior compreensão do diálogo e
das relações entre essas formas de expressão, que se aproximam ou se
afastam conforme os seus suportes. O recorte das canções analisadas seguiu
uma escolha temática que pôde estabelecer diálogo com o suporte teórico5.
Dessa forma, as canções passam a dialogar com os principais conceitos
teóricos da pesquisa: Jacques Derrida (2002, 2004), Mikhail Bakhtin (1981),
Eneida Maria de Souza (2002) e Octavio Paz (1978). Ao longo dos capítulos,
aproximam-se teoria e metáfora, conceito e poética. Dessa forma, a
dissertação não apresenta um capítulo apenas teórico: teoria e objeto se
diluem ao longo do texto. A diluição aponta uma contaminação de discursos,
que reflete parte da prática daqueles que protagonizam qualquer travessia.
A leitura assim sugerida – teórica e poética – procede do trabalho de
“arqueólogo” de Michel Foucault (1987) que propõe a substituição das grandes
sucessões lineares – a história dos longos períodos, das grandes bases
imóveis e das grandes narrativas tradicionais – pelo jogo das interrupções e
descontinuidades. Procedimento que permite operar nas rupturas especificas e
fazer aparecer vários passados e outras formas de encadeamento e
hierarquias históricas – e também de metodologias. Considerando-se esses
fatores metodológicos, a dissertação se organiza em três capítulos.
O primeiro capítulo parte de uma breve contextualização política,
econômica e cultural da década de 1980 para o entendimento do rock desse
5
A data da produção das canções e a referência aos álbuns nos quais elas se agrupam,
quando necessárias, são mencionadas no texto.
período no Brasil. A contextualização permitiu localizar o sujeito e sua
produção artística num momento em que o país se desvincula do autoritarismo
e repressão da ditadura militar e aponta para as possibilidades do exercício da
democracia. Com esse objetivo, busca-se informação histórica em Heloísa
Buarque de Hollanda (1981), quando, em Impressões de viagem, ao tratar da
produção artística das décadas de 60 e de 70, nos permite um confronto com o
artista e sua produção no contexto da década seguinte. O artista dos anos 80
se afasta da atuação política e do engajamento cultural e se volta para a
produção artística que protagoniza suas necessidades, anseios e desejos.
Dessa forma, temos um rock’n roll que toma o sotaque brasileiro e passa a ser
forma e veículo da expressão dessa geração. As letras, então, passam a
comportar o alto teor de subjetividade, voltando-se para a urgência do
presente, no qual convivem os sentimentos de impotência e esperança, de
encanto e culpa. Herdeira do lema “faça você mesmo”, a espontaneidade, a
necessidade de expressão, o subjetivismo, a força poética e musical da
juventude oitentista e, principalmente, o baixo custo de produção são
absorvidos pela indústria fonográfica. O rock alcança, a partir de meados dos
anos 80, uma grande visibilidade, mediada pelo LP e pela divulgação
radiofônica, e se torna artigo da indústria da cultura. Para entendimento desse
rock, buscamos apoio em pensadores da cultura como Walter Benjamin (1993),
Theodor Adorno (1985) e Silviano Santiago (2004). No que diz respeito à
história geral do gênero musical, recolhemos dados em Roberto Muggiati
(1973). Em Guilherme Bryan (2004) e em Ricardo Alexandre (2002),
localizamos informações históricas e citações sobre a cultura e o rock dos anos
80 no Brasil.
Silviano Santiago, ao se ater às questões, problemas e reflexões
inspirados pela democratização no Brasil, aponta uma sociedade do
espetáculo, dos produtos pasteurizados da indústria da cultura e da política de
globalização, que se harmonizam com o vazio, com a necessidade de
expressão e com o consumo do sujeito desse período. O rock configura-se,
neste
cenário,
como
arte
e
produto
de
venda,
assumindo,
assim,
características de hibridez, quando comunga, num rompimento de barreiras,
arranjos tradicionais e tecnológicos, subjetividade e valor comercial, rebeldia e
consumo, e ainda o diálogo entre culturas, que o constitui como um gênero
polifônico. Em Benjamin, ampliamos o entendimento da arte criada para ser
reproduzida. O “valor de exposição”, que afasta qualquer resquício de aura,
aproxima pela reprodução técnica a arte e o seu público consumidor. Por outro
lado, buscando o pensamento de Adorno, observa-se que o rock assume
características de arte pop, e não de gênero popular, entendido pelo teórico
como aquela arte em que produtor e consumidor são os mesmos. Como arte
pop, o rock responde por uma das características que define o pósmodernismo, de acordo com Frederic Jameson (1993).
Passa-se para o segundo capítulo que discute, num primeiro momento,
a relação antiga e íntima entre poesia e música, e como que esta última, na
contemporaneidade, ocupa o lugar antes reservado à primeira. As exposições
de Jacques Derrida, em Papel-máquina (2004), apontam os novos suportes
tecnológicos que deslocam a poesia do seu formato tradicional de livro para
incorporações eletrônicas e virtualizantes. Deslocamento que promove uma
inversão na hierarquia e no prestígio da palavra escrita, ao mesmo tempo em
que retoma a intimidade entre música e poesia.
Renato Russo e Cazuza ao tomarem o uso desses suportes para
veicular suas produções poéticas e melódicas se inscrevem no tempo e no
espaço que os concebem e os recebem. Os conceitos de crítica biográfica e de
relação entre autor e obra, de Eneida Maria de Souza (2002), permitem o
entendimento dos modos de inscrição do sujeito na sociedade, a partir de sua
obra poética e documental. Assim, a subjetividade da obra de Renato Russo e
Cazuza não é vista sob o ângulo da relação naturalista e factual entre vida e
obra, mas como encenação e representação da experiência dos seres viventes
da travessia.
Pode-se agora ler a escrita autobiográfica do animal-poeta-fingidor. O
conceito operacional de Jacques Derrida (2002) sobre a escrita do animal
autobiográfico é aplicado em nossos autores. Lemos, então, Cazuza e Renato
Russo como animais propensos à autobiografia, quando cedem instintivamente
ao registro da própria vida. Compreende-se, portanto, que o registro
autobiográfico que se dá pelas letras das canções de rock pressupõe o caráter
de encenação e representação do vivido – exercício de Renato Russo e
Cazuza que entra em consonância com a declaração de Fernando Pessoa que
aponta o poeta como fingidor.
Ao escrever, em nós se revela o outro: despimo-nos, confessamo-nos.
Assim, a partir de Derrida, que empreende uma escrita da genealogia da
escrita da confissão em Papel-máquina (2004) e em O animal que logo sou
(2002), lemos a obra de Renato Russo e Cazuza como o relato da confissão.
Ao confessar, ambos expõem a culpa e anseiam por perdão. Culpa e perdão
se revelam e são buscados na mesma palavra poética.
O terceiro capítulo abarca o caráter polifônico do rock. O gênero na
expressão brasileira dos anos 80 dialoga com tempos e culturas distantes,
trazendo para a poética roqueira diversos ecos literários, musicais e históricos.
Pelos conceitos de polifonia de Mikhail Bakhtin (1981), lemos Renato Russo e
Cazuza e percebe-se o suplemento das espessuras finas do palimpsesto, no
qual escritas se tocam, penetram-se, contaminam-se. Aproximam-se o caráter
do roubo da escrita proposto por Derrida, em Papel Máquina, e o conceito de
“outridade” de Octavio Paz (1982). Assim, questiona-se o lugar em que se
deixam perceber as marcas daquilo que não se apaga completamente na
espessura do palimpsesto. Quais os rastros, vestígios sobre vestígios, onde se
pode detectar o clandestino, o roubo, a confissão do roubo de escrita, na
escrita “que acusa e que se desculpa pelas citações e quase citações”6?
A partir de Bakhtin, compreendemos o sujeito e suas inúmeras formas
de expressão – práticas e artísticas – sempre comportando uma perspectiva de
vozes distintas, que em confronto ou harmonia, tecem o discurso, a literatura e
as artes. Há nesse processo de movimentação aquilo que renasce e se renova,
aquilo que se conserva e o que se acrescenta. A escrita polifônica ecoa, na
multiplicidade de vozes que tecem o texto do rock, rastros e vestígios de
poéticas diversas, que na espessura do palimpsesto se revela culpada. O
acontecimento textual e o diálogo entre escritas, como um ato de contrição,
buscam a salvação, ao mesmo tempo em que a própria escrita, que tenta
apagar a culpa, se fixa na profundidade do corte e do rastro e se lavra como a
própria condenação.
A poesia é apontada por Octavio Paz como uma revelação de nossa
condição. Ao nos revelarmos, criamos. Criamos ao nos revelarmos, deixando
vir à tona, pela poesia, que é uma “outra voz”, a “outra voz” que nos constitui.
6
DERRIDA, 2004, p.62.
Aproximando Derrida, Bakhtin e Paz, lê-se Renato Russo e Cazuza nos rastros
que compõem a escrita do animal autobiográfico, fragmentado, descentrado e
desconcertado, que ousa a travessia.
Sem a pretensão de uma visão totalizadora da obra de Renato Russo e
Cazuza, empreende-se uma leitura das escritas desses autores como a poética
da travessia. O caminho escolhido leva a uma escrita acadêmica que se situa
entre as citações – poéticas e teóricas – e se revela contaminada pelo discurso
do outro – poética e teoricamente.
1. O SUJEITO DA TRAVESSIA E DO DESCONCERTO
1.1.
O Homem se traduz no ritmo, cifra de sua temporalidade.
Octavio Paz
Do “iê-iê-iê” ao rock dos anos 80
Tentando se vestir com as roupas festivas da redemocratização, a década
de 1980, no Brasil, se inicia no ritmo da abertura democrática, depois de um
governo militar autoritário que regeu com mãos de ferro o país, desde o golpe
de 1964. Entre o colorido das novas vestes e os resquícios dos trapos do luto,
o cenário nacional abriga uma configuração política que, dando continuidade
ao processo de abertura “lenta, segura e gradual”, preconizada pelo governo
Geisel, mobiliza, em 1984, uma multidão em torno do dilema “Muda Brasil”,
entoando o grito pelas “Diretas Já”, emenda constitucional7 que garantiria, se
aprovada pelo Congresso Nacional, eleições diretas para presidente da
república. Entretanto, a mobilização, o grito e a luta não foram suficientes para
a aprovação da emenda Constitucional Dante de Oliveira. No entanto, ainda no
ritmo da vibração pela implantação de uma democracia no país, a candidatura
e vitória de Tancredo Neves, pelo colégio eleitoral, pareciam dar continuidade
ao tempo de esperança e luta do brasileiro. O encanto da população logo seria
tomado pelo medo, quando impossibilitado de assumir o cargo, o então eleito
presidente adoece profundamente e morre em 21 de abril de 1985, e, então,
assume seu vice, José Sarney. O fracasso de planos econômicos promove o
ritmo do desencanto do brasileiro. Em 1990, eleito diretamente pelo povo,
Fernando Collor parece dar outro tropeço na democracia e na liberdade do
brasileiro. A era Collor, obscura e desencantadora, dura até seu impeachment
em 1991, quando outro vice-presidente, Itamar Franco, assume o governo. No
release do disco dos Titãs de 1987, o escritor Paulo Leminski descarrega suas
palavras sobre um vice-país: “(...) Os Titãs é o que restou do rock, suas letras
são o que restou de um país falido, um vice-país, vice-governado, vice-feliz,
vice-versa”8.
O cenário cultural ensaia, entre tantos estilhaços e desencantos, a
diversidade e a liberdade, já que o país tenta se equilibrar e caminhar em
7
A emenda das “Diretas Já” permitiria, se aprovada pelo Congresso Nacional, eleição
presidencial direta já em 1984. A emenda que leva o nome do autor, o deputado federal matogrossense Dante de Oliveira, ganha um amplo apoio popular, de políticos da esquerda, de
artistas e de intelectuais. O movimento com o nome de “Diretas Já” se espalha pelo Brasil em
grandes comícios. No dia 16 de abril, pouco antes da votação da emenda pelo Congresso
Nacional, uma multidão estimada em mais de 1,5 milhões de pessoas tomou o vale do
Anhangabaú, em São Paulo. Foi uma das maiores manifestações políticas jamais vista no
Brasil. A votação aconteceu, em Brasília, no dia 25 de abril. A proposta foi rejeitada por falta de
22 votos (foram 298 votos a favor, 65 desfavoráveis e 113 abstenções).
8
LEMINSKI apud DAPIEVE, 2004, p.101.
direção à democracia plena, depois dos anos de chumbo do autoritarismo
militar. A geração 80 não herda a atuação política das décadas anteriores (60 e
70). Sem o cunho político ideológico e a participação engajada, as produções
dos jovens artistas são marcadas pelo alto teor de subjetividade, sem
compromissos diretos de atuação e contestação política. A palavra poética
tenta responder pelo eu e não aposta mais na eficácia revolucionária, como
acreditava o artista dos anos 60. “Nos anos 80, a meninada começa a falar o
que realmente interessa a ela de modo mais direto. De amores desgraçados,
sem ter que falar politicamente de cerceamento, de vamos tomar o poder! Para
fazer o que com ele?”9. As palavras de Ezequiel Neves, produtor musical, dão
o tom da produção poética de várias bandas de rock que surgem no início da
década e se fazem ouvir no país inteiro, por anos afora.
Heloísa Buarque de Hollanda, em Impressões de Viagens (1981) –
trabalho que examina como, a partir da década de 60, a literatura participa dos
debates mobilizados pelas propostas revolucionárias da produção populista e
do experimentalismo de vanguarda – observa como, no calor dos “incríveis
anos 60”, a produção cultural é marcada pela “necessidade de uma arte
participante, forjando o mito do alcance revolucionário da palavra poética”10. A
arte popular revolucionária correspondeu, portanto, a uma demanda colocada
pela efervescência político-cultural da época. Ainda que na prática, como
analisa Hollanda, a poesia populista não desempenhava, apesar de seu
propósito engajado, função revolucionária “enquanto palavra política e poética,
conseguiu, no contexto, um alto nível de mobilização das camadas mais jovens
de artistas e intelectuais a ponto de seus efeitos poderem ser sentidos até
hoje”11. Na agitação mundial que norteia o ano de 1968, quando surge a massa
atuante dos estudantes universitários, há a saída de cena da produção poética,
quando há o deslocamento da poesia para o teatro, para o cinema e para a
música. Tais manifestações ocupam o cenário cultural da época e chamam
atenção tanto dos produtores como dos receptores da cultura.
Em se tratando da mudança cultural para o campo da música popular,
esta é vista como uma forma de captar e transmitir sentimentos e valores
9
NEVES apud BRYAN, 2005, p.34.
HOLLANDA, 1981, p.17.
11
Ibid., p.28.
10
necessários para uma evolução social e ainda como forma de manter vivas
tradições de unidade e integrações nacionais. Porém, o mesmo problema
diagnosticado, o que leva ao fracasso da poesia como manifestação da voz do
povo, também acontece na música, quando há o distanciamento entre o
intelectual, que tenta se passar como porta-voz do povo oprimido, e a grande
massa, que não consegue ter em tais manifestações culturais o real registro de
seus anseios e a resposta para eles. Dessa forma, a produção cultural
engajada se restringe a um circuito fechado, consumida por um público de
intelectuais e estudantes da classe média, sem atingir, portanto, as classes
populares – fracassando em suas pretensões revolucionárias.
O engajamento experimentalista das vanguardas da década de 60
também acreditava nos aspectos revolucionários da palavra poética e queria
participar ativamente dos debates políticos. O intelectual também se colocava
ao lado do proletariado e se achava no direito de por ele falar. E sem lugar para
a intervenção da subjetividade do poeta,
diante do horizonte técnico da sociedade industrial, dos novos
padrões da comunicação não verbal, da linguagem publicitária,
do out-door, do cartaz, o poema deve se livrar da alienação
metafórica. Para ser projetado como um objeto em e por si
mesmo, não um intérprete de objetos exteriores e/ou
sensações mais ou menos subjetivas12.
A citação ilustra um pouco a proposta do concretismo, que ao lado de
dois outros movimentos de vanguardas – o poema-práxis e o poema-processo
– unem-se em uma mesma inclinação revolucionária, ainda que perpassando
caminhos diferentes para garantir sua eficácia. No entanto, conforme Hollanda,
a crença extremada no poder e onipotência da palavra reverte-se no contrário e
provoca a chamada “crise de vanguardas”, que pode desencadear cisões e
revisões dos movimentos e de seus integrantes.
Na virada da década de 60, o tropicalismo passa a desempenhar papel
importante para a música brasileira e para toda a cultura do momento.
Desconfiando dos projetos de tomada do poder e valorizando os meios de
comunicação em massa, o movimento adota, na construção das letras da
canção, uma base literária em que se percebe o fragmento, a alegoria, o
12
Ibid., p.61.
moderno e a crítica ao comportamento. Preocupa-se com o momento e
“começa a pensar a necessidade de revolucionar o corpo e o comportamento,
rompendo o tom grave da falta de flexibilidade prática da política vigente”13.
Obviamente, num contexto mais amplo, vários nomes e bandas tentam
se firmar ou pelo menos produzir um “som” no país regido pelos militares. No
Brasil, o rock registra, nas duas dezenas de anos de luta para firmar e
sobreviver, contraditoriamente ao seu tom de rebeldia, bons antecedentes: uma
letra ingênua-brega dos “banhos de lua” e dos “biquínis de bolinha amarelinha”
de Celly Campello e os iê-iê-iê inspirados nos “yeah, yeah, yeah” de “She loves
you”, dos Beatles, de 1963. Por essa época, o rock ainda é visto como um
artigo importado e supérfluo. No entanto, é nesse mesmo período que, no
Brasil, a contracultura, o desbunde, o underground, as drogas e mesmo o rock
dão seus sinais, funcionando como uma recusa ao atual projeto político e
econômico. Começa nesse tempo, um desinteresse pela política. Ainda
estamos na década de 70, mas esse tom será o da década seguinte, quando
de fato o rock recebe o sotaque brasileiro e carrega nas letras a subjetividade
do autor sem a preocupação e a necessidade de um engajamento político.
O rock se firma como estética do aqui e agora, já que é a expressão de
uma geração sem perspectivas, ainda que livre da repreensão, mas que vê o
passado repetir o futuro, sem grandes novidades: uma geração que aprendeu a
viver com o que possui, sem ideologia, sem expectativas de tomada de poder,
sem heróis, mortos por overdose, e com inimigos no poder14. O cenário político
permite a liberdade de expressão do artista que, depois de reprimido por anos
de censura, não se sente à vontade para colocar na pauta de suas produções a
dor, o sofrimento, a repressão e o sufocamento da ditadura militar dos anos
anteriores, que agora dá sinais claros de esgotamento. O artista opta, porque
não é dele exigido, falar do seu mundo e do seu tempo e, dessa forma,
configura-se uma poesia da momentaneidade, na qual transborda a
subjetividade, sem, no entanto, desembocar na poesia ingênua da rima fácil.
Órfão de um sistema político falho, o sujeito se desprende do engajamento
político, porque dele nada herda, daí a re-criação apenas do “seu mundo” na
poesia da música. E como música, essa poética se expande, parte de um
13
14
Ibid., p.61.
Referência aos versos de Cazuza, em “O tempo não pára”.
pequeno universo para um cenário nacional: ainda que Cazuza fale da zona sul
do Rio de Janeiro, consegue se comunicar com todo o país ao protagonizar na
voz do “poeta exagerado” toda escassez que marca o homem que atravessa
na corda bamba a “década perdida”.
Na irreverência e humor de João Penca e seus Miquinhos Amestrados,
parte do elenco que protagoniza a cena cultural dos anos 80 desfila na música
“Luau de arromba”15, paródia do ingênuo clássico da Jovem Guarda “Festa de
Arromba”16. A letra comporta, na aparente ingenuidade da brincadeira, a
capacidade de atualização da paródia e antecipa-nos uma importante
característica do rock, que será sua capacidade de diálogo, compondo-se,
muitas vezes, numa rede constante de comunicação com ritmos, autores,
gêneros e suportes diversos, de tempos e culturas próximas e distantes.
Percebe-se, assim, a mudança de comportamento de gerações que fizeram
parte da cena musical brasileira. A festa que virou luau tem todos como
convidados: a marca da diversidade se torna visível quando o país ensaia seus
primeiros passos rumo à redemocratização.
Como movimento musical, a Jovem Guarda surge em 1963, sendo a
primeira versão brasileira do rock mundial, conhecida também como iê-iê-iê.
Liderado pelo cantor e compositor Roberto Carlos, o movimento, com apoio
dos meios de comunicação em massa, tem programas em redes de TV e dura
até o surgimento do Tropicalismo, em 1968. Os cantores de destaque são
Eduardo Araújo, Martinha, Rosemary, Ronnie Von, Antônio Marcos, Deny e
Dino, Leno e Lílian, The Jordans, The Jet Blacks, Renato e seus Blues Caps,
Golden Boys, Os Incríveis, entre outros convidados para aquela “festa de
arromba”.
Para o “luau” os convidados são outros. Como som de base híbrida, o
rock se configura pela a mistura de gêneros e estilos que marca a década. Na
letra, Selvagem Big Abreu consegue pincelar algumas características do
período: a presença dos meios de comunicação de massa, o rádio, a televisão
15
JOÃO PENCA E SEUS MIQUINHOS AMESTRADOS. “Luau de arromba”. Selvagem Big
Abreu, Leandro [compositores]. In: –. Okay, my gay. São Paulo: RCA Vitor. p1986. 1LP. Faixa
1.
16
CARLOS, E. “A festa de arromba”. E. Carlos, R. Carlos [compositores]. In: –. A pescaria com
Erasmo Carlos. São Paulo: RGE, p.1965. 1LP. Faixa 3.
e o disco, cada vez mais presentes com o advento da tecnologia, na sociedade
globalizada do espetáculo:
No Luau dos micos amestrados
Todo mundo foi convidado
Cobertura pelo rádio e televisão
Transmitindo por satélite para o Japão
Logo na entrada fui barrado
Mas passei pros guarda uns trocado
Falei que era amigo do Léo Jaime e do Blues Boy
Que era guitarra solo de um grupo de rock’n roll17
Os versos das próximas estrofes elencam alguns dos artistas que
fizeram o som daquela geração. Aparecem Cazuza e Renato Russo: dois
personagens importantes para a construção da história da narrativa da
travessia. A letra não aborda, todavia, o lado negro que antecede e prossegue
à festa, como, por exemplo, a Aids, as drogas e a situação precária do país.
Como observamos, não há espaço para o engajamento e a atuação política. A
Aids, mal-do-século XX, envolta em polêmica, ignorância e preconceito, não
caberia num luau de celebração da alegria e da espontaneidade de uma
geração que foi aprendendo, a seu modo, a viver o seu próprio tempo:
Mas vejam quem chegou de repente
Cazuza com seu novo gatão
O Fruti e o Camisa batiam uma bola
Enquanto o Renato Russo tomava coca-cola18
Essa cultura, já bem distante de uma forma linear, configura-se cada vez
mais plural, quando há o rompimento de barreiras delineadas e os modos de
separar alta e baixa cultura se desfazem, incorporando manifestações
folclóricas tradicionais e formas eruditas restritas e elitistas. O folclórico e o
erudito se misturam recebendo um fator comum, quando a esse novo produto,
o valor comercial é acrescentado. Em se tratando do gênero musical rock –
híbrido por natureza – na versão brasileira dos anos 80, talvez seja mais fácil
categorizá-lo ao dizer “que certas proposições musicais são mais rock do que
17
JOÃO PENCA E SEUS MIQUINHOS AMESTRADOS. “Luau de arromba”. Selvagem Big
Abreu, Leandro [compositores]. In: –. Okay, my gay. São Paulo: RCA Vitor. P.1986. 1LP. Faixa
1.
18
Id., ibid.
outras, isto é, preenchem um número maior de características básicas”19.
Assim, o rock permite uma infinidade de nuances e insinuações que se
introduzem nos espaços restritos das batidas melódicas. O gênero importado
para o Brasil não se faz formatado dentro do compromisso de um movimento
como foi a bossa nova e a tropicália. A experimentação da diversidade de
estilos e a variedade de bandas que se proliferam na nova república fazem
com que o rock seja mais uma atitude do que uma escola. Para Renato Russo,
o que determina a qualidade do rock é a originalidade e a
sinceridade do artista. Se sua expressão pessoal for inédita e
criativa, se o artista consegue expressar o que todos os jovens
sentem, mas não conseguem dizer, aí então teremos rock, que
não é só um ritmo ou uma batida: é uma atitude20.
Veremos, todavia, que muitas vezes a sinceridade do artista é uma
confissão fingida, rastro do animal autobiográfico21, que compartilha a idéia do
poeta fingidor de Fernando Pessoa. Convivem na letra da música citada e na
prática da década estudada, a diversidade de nomes tais como Léo Jaime,
Lobão, Paula Toler, Herbert Viana, Roger, Fernandinha Abreu, Eduardo Dusek,
Cazuza, Renato Russo, as bandas Titãs, Camisa de Vênus e o próprio João
Penca e seus Miquinhos que, entre uma conotação às vezes punk, às vezes
mais emepebista ou irreverente, confirmam a característica da hibridez do rock
que lhe confere uma riqueza de significados. Por outro lado, devido à
diversidade de estilos musicais, culturais e políticos, não há a formação de uma
identidade fixa. A pluralidade da cultura se torna envolvente e se agrupa mais
pela atitude do que pela fixação de uma identidade. Assim, o rock atravessa a
geração oitenta como sendo o som e a poética desse tempo e permite-nos uma
leitura ampla, tal qual a amplitude do seu alcance e de sua diversidade.
O rock nasce do grito do negro ao pisar a América. Roberto Muggiati
(1973) escreve que o “primeiro grito negro cortou os céus americanos como
uma espécie de sonar, talvez a única maneira de fazer o reconhecimento do
ambiente novo e hostil que o cercava”22. Na medida em que o convívio com a
19
MUGGIATI, 1973, p.8.
RUSSO apud BRYAN, 2006, p.288.
21
O termo se refere aos conceitos de Jacques Derrida (2002), que serão discutidos no próximo
capítulo.
22
MUGGIATI, 1973, p.8.
20
cultura local acontecia, esse grito ia se alterando, assumindo novas formas e
acrescentando outras. Ao adentrar a década de 1980, a juventude brasileira,
recém-saída de um regime militar, entoa um berro, uma forma também de
reconhecimento da sua própria terra que se promete livre e pronta para ser
ocupada, seja pela forma de regê-la política e economicamente, seja pela
expressão das formas artísticas.
Os jovens brasileiros são herdeiros da atitude do movimento punk angloamericano “do-it-yourself”. Tal herança não vem simplesmente preencher a
falta de habilidade técnica do saber cantar e tocar, também reflete a atitude de
uma juventude filha da ditadura militar que deixa fortes marcas de abandono
nos filhos da “grande pátria desimportante”23. O sotaque brasileiro do rock
corresponde à necessidade de se fazer ouvir, na aparente simplicidade das
letras e pela batida também simples de seus acordes, a voz de uma geração
que foi aprendendo consigo mesma a lidar com o seu tempo, seus conflitos e
dores, registrando, assim, um processo de crescimento e maturação. O amor
(ou a busca e conseqüências dele), a ética, o sexo, o ritmo da cidade, as dores
e frustrações são sentimentos experimentados e versificados entre fragmentos,
citações e estilhaços do presente. A poética do rock se revela como o registro
urgente do agora, com um olhar atento ao momento e ao espaço, tomando, por
isso, uma forma literária que se aproxima do diário, ou seja, o registro
consonante ao calor dos acontecimentos. Acentua-se, assim, o comentário
sobre o presente e aponta para o futuro próximo, o que confere um caráter
peculiar às composições poéticas dessa época.
“Existe no ar uma urgência de renovação, uma aposta política no
inusitado, uma certeza de que nada será como antes”24, assinala Júlio Barroso,
na Veja, de 18 de fevereiro de 1981. Suas palavras entram em consonância
com as de Clemente Nascimento, ao apontar um direcionamento de ruptura da
estética e proposta da música brasileira no início da década de 80 com os
movimentos poéticos e musicais das décadas anteriores, principalmente a
MPB:
23
CAZUZA. “Brasil”. Cazuza [compositor]. In: –. Ideologia. Rio de Janeiro: Polygran, p.1988.
1CD. Faixa 6.
24
BARROSO apud BRYAN, 2006, p.49.
Nossos astros da MPB estão cada vez mais velhos e
cansados, e os novos astros que surgem apenas repetem tudo
o que já foi feito, tornando a música popular uma música
massificante e chata. (...) Nós, os punks, somos uma nova
face da música popular brasileira, com nossa música não
damos a ninguém uma idéia de falsa liberdade. Relatamos a
verdade sem disfarces, não queremos enganar ninguém.
Procuramos algo que a MPB já não tem mais e que ficou
perdido nos antigos festivais da Record e que nunca mais
poderá ser revivido por nenhuma produção da Rede Globo de
Televisão. Nós estamos aqui para revolucionar a música
popular brasileira, para dizer a verdade sem disfarces (e não
tornar bela a imunda realidade): para pintar de negro a asa
branca, atrasar o trem das onze, pisar sobre as flores de
Geraldo Vandré e fazer da Amélia uma mulher qualquer25.
Percebe-se, assim, que o engajamento cultural de luta contra o regime
político não encontra espaço nas composições e nem nas atitudes dessa
geração. A arte poética do rock reflete o desencanto da geração frente ao
poder político. Perdeu-se a esperança no mito da força revolucionária da
palavra, como acreditou o artista dos anos 60 e 70. Daí, então, pisar as flores
de Geraldo Vandré – referência à canção antológica de luta contra o regime
opressor de 60 – e transformar a Amélia em uma mulher qualquer, no sentido
ambíguo do termo e na confusão acelerada do ritmo anônimo da cidade
grande. Bem significativas são as palavras “dizer a verdade sem disfarces (e
não tornar bela a imunda realidade)”, porque na voz dessa geração não se
ouvirão metáforas e alegorias ao estilo de Chico Buarque – necessárias àquela
época para burlar o sistema de censura. Da letra velada, esperteza de uma
geração para denunciar as mazelas e abusos de um governo autoritário, partese para uma letra escrachada e bem humorada que ecoa entre as brechas do
abrandamento da censura. Duas bandas ilustrativas nesse sentido são os
Inimigos do Rei e Ultraje a Rigor. Quanto à última, a música-piada séria de
Roger Moreira, “Inútil”, transforma-se no hino da campanha das “Diretas Já”. A
primeira estrofe denuncia:
A gente não sabemos escolher presidente
A gente não sabemos tomar conta da gente
25
NASCIMENTO apud ALEXANDRE, 2002, p.60. A citação corresponde ao trecho final do
texto “Manifesto punk: fora com o mofo da MPB! Fim da falsa liberdade”, publicado
originalmente na edição de agosto de 1982 da Gallery Around.
A gente não sabemos nem escovar os dente
Tem gringo pensando que nóis é indigente26
Seguido do refrão de mesma construção sintática, que se une numa
discordância verbal, em uníssono, a música entoa o reflexo da situação que o
país vivia no momento. Daí poder se ouvir, entre o grito pelas “Diretas Já” da
multidão que tomou ruas e praças em comícios, o refrão: “Inútil!/ A gente
somos inútil!”27.
Ainda que não haja lugar para o engajamento político, o rock não se
configura como um amontoado de letras e de jovens preocupados com o
próprio umbigo. Algumas bandas se propuseram a pensar o Brasil, a
questionar o seu lugar e sua situação. No entanto, tal proposta se aproxima
mais do questionamento rebelde do rock do que de uma atuação política. A
exemplo, em 1987, quando, depois da não aprovação pelo Congresso Nacional
da emenda das “Diretas Já”, depois da morte de Tancredo Neves, presidente
civil eleito indiretamente como a “segunda” esperança do povo brasileiro, e com
o fracasso do plano Cruzado do vice-Sarney, o Brasil em crise e com altíssimo
índice de inflação ouve o disco que leva no título uma afirmação inquietante,
que reflete todo questionamento do jovem, do rock e do brasileiro: que país é
este.
Não há mais inocência e vai-se longe o tempo onde “Que país
é este” era um perigoso grito de rebeldia (1978): hoje resta a
lembrança nostálgica de um tempo que dificilmente vai
voltar.(...) Drummond estava vivo, John Lennon e Sid Viciuous
também. Nosso país iria crescer e mudar para melhor e todos
acreditaram.28
O título e as palavras são do encarte do terceiro álbum da Legião
Urbana, que a princípio levaria o nome de Mais do mesmo. O disco reúne
canções compostas entre os anos de 1978 e 1987 que, no entanto,
apresentavam-se mais do que atualizadas. Composta nos tempos do Aborto
Elétrico – conjunto punk do qual Renato Russo foi integrante –, “Que país é
26
ULTRAJE A RIGOR. “Inútil”. R. Moreira [compositor]. In. –. Nós Vamos invadir sua praia. Rio
de janeiro: WEA, p.1985. 1LP. Faixa 6.
27
Id., ibid.
28
RUSSO apud BRYAN, 2005, p.377.
este”29, canção que dá nome ao álbum, questiona um Brasil corrupto, atrasado,
desrespeitoso à constituição. “Mas todos acreditam no futuro da nação”30 soa,
ironicamente, um dos versos que aponta para a condição do Brasil como um
país do futuro à espera do eterno amanhã. Passada uma década, a canção se
mostrava tão atual quanto nos anos anteriores.
As palavras do encarte de Que país é este refletem a diferença do artista
do final da ditadura, quando o movimento punk dava suas caras e ainda havia
um teor de questionamento da situação política e econômica. O que justifica o
conteúdo do terceiro álbum da Legião Urbana que, lançado num momento
complicado para o Brasil (1987), questiona a nação sem, no entanto, soar
como possibilidade de mudança e transformação social. A palavra poética
cantada, nesse momento, ainda que possa levar o grito de protesto, não
encontra forças revolucionárias em seu eco: soa mais como nostalgia de
tempos passados do que como o grito de uma juventude que luta por um país
melhor. Se “Que país é este” questiona a nação, as palavras de Cazuza a
respeito de “Ideologia”, canção composta em 1987, conseguem, junto com sua
letra, refletir a geração 80, que nesse momento faz um balanço de seu próprio
tempo:
Essa música (...) fala da minha geração sem ideologia,
compactada entre os anos 60 e dos dias de hoje. Fui criado
em plena ditadura, quando não se podia dizer isso ou aquilo,
em que tudo era proibido. Uma geração muito desunida. Nos
anos 60, as pessoas se uniam pela ideologia: “Eu sou da
esquerda. Você é de esquerda? Então a gente é amigo”. A
minha geração se uniu pela droga: ele é careta, ele é doidão!
Droga não é ideologia. A garotada teve a sorte de pegar a
coisa pronta e aí poder decidir o que fazer pelo país. Embora,
do jeito que o Brasil está, haja muita desesperança.31
Cazuza consegue, entre os piores momentos de crise provocados pela
Aids, quando se tratava nos Estados Unidos, sintetizar em versos traços tristes
e pesados que retratam sua geração. E a escrita, como veremos mais adiante,
funcionaria como forma de manter-se vivo: amarras de sobrevivência do eu
debilitado que luta “contra o tempo que não pára”:
29
LEGIAO URBANA. “Que país é este”. R. Russo [compositor]. In: –. Que país é este –
1978/1987. Rio de Janeiro: EMI Odeon, p1987. 1LP. Faixa 1.
30
Id., ibid.
31
CAZUZA apud ECHEVERRIA, 2001, p.166.
Meu partido
É um coração partido
E as ilusões estão todas perdidas
Os meus sonhos foram todos vendidos
Tão barato que eu nem acredito
Ah, eu nem acredito
Que aquele garoto que ia mudar o mundo
(Mudar o mundo)
Freqüenta agora as festas do Grand Monde
Meus heróis morreram de overdose
Meus inimigos estão no poder
Ideologia
Eu quero uma pra viver
Ideologia
Eu quero uma pra viver
O meu prazer
Agora é risco de vida
Meu sex and drugs não tem nenhum rock 'n' roll
Eu vou pagar a conta do analista
Pra nunca mais ter que saber quem eu sou
Pois aquele garoto que ia mudar o mundo
(Mudar o mundo)
Agora assiste a tudo em cima do muro32
No mesmo sentido de questionar a coragem, a capacidade de mudar o
mundo, como acreditavam há tempos, Renato Russo escreve/ canta:
Até bem pouco tempo atrás
Poderíamos mudar o mundo
Quem roubou nossa coragem?
Tudo é dor
E toda dor vem do desejo de não sentirmos dor.33
Cazuza e Renato Russo, ao serem aproximados, tanto pelo tempo
quanto pela temática, conseguem pelo suplemento responder, no registro
ansioso do eu, por sua geração. Eles se suplementam no sentido que Jacques
Derrida (2001) emprega o termo, ou seja, pelo jogo da diferença e do rastro
que sugere um ato de acréscimo que não equivale à soma, mas que altera o
cálculo. Permite o “cruzamento histórico e sistemático reunindo em feixes
diferentes linhas de significação ou de forças, podendo sempre aliciar outras,
32
CAZUZA. “Ideologia”. Cazuza [compositor]. In: –. Ideologia. Rio de Janeiro: Polygran, p1988.
1CD. Faixa 1.
33
LEGIÃO URBANA. “Quando o sol bater na janela do teu quarto”. R. Russo [compositor]. In: –
. As quatro estações. Rio de Janeiro: EMI Odeon, p.1985. 1CD. Faixa 5.
constituindo uma rede cuja tessitura será impossível interromper ou nela traçar
uma margem”34. Tais aspectos se situam na tessitura do texto e na
performance da voz e do corpo. Ao tomarmos a definição de différance para
aproximar Cazuza e Renato Russo, antecipamos a leitura da poética desses
autores como a própria différance, ou seja, como “o jogo sistemático das
diferenças, dos rastros de diferenças, do espaçamento, pelo qual elementos se
remetem uns aos outros”35. Tendo o espaçamento como a produção, como
define Derrida, a aproximação dos dois autores se faz por aquilo que os
assemelha e os diferencia, atentando para o movimento da escrita que ensaia
os anseios, frustrações, descompassos, amores, angústias, confissão e
vivência.
O sentimento de impotência parece dominar a cena no final do século.
Não parece haver saída, não há como recuar e nem avançar. O que resta é a
vivência entre os estilhaços da repressão e da liberdade que acompanham o
processo de redemocratização do país. A primeira canção do álbum As quatro
estações (1989), da Legião Urbana, registra o descompasso da juventude que
procura o equilíbrio entre sonhos perdidos, cansaço, dor e desencanto:
Parece cocaína, mas é só tristeza, talvez tua cidade
Muitos temores nascem do cansaço e da solidão
E o descompasso e o desperdício herdeiros são
Agora da virtude que perdemos.
Há tempos tive um sonho
(...)
Os sonhos vêm
E os sonhos vão
O resto é imperfeito
(...)
Há tempos são os jovens que adoecem
Há tempos o encanto está ausente36
A letra termina com versos que remetem diretamente ao pensamento
ético e de esperança de Renato Russo:
Meu amor, disciplina é liberdade
Compaixão é fortaleza
Ter bondade é ter coragem
34
SANTIAGO, 1976, p.22.
DERRIDA, 2001, p.33.
36
LEGIÃO URBANA. “Há tempos”. R. Russo [compositor]. In: –. As quatro estações. Rio de
Janeiro: EMI Odeon, p1989. 1cd. Faixa 1.
35
Ela disse: lá em casa tem um poço, mas a água é muito
limpa.37
Entre os sentimentos de impotência e esperança, de encanto e
decepção, equilibra-se o sujeito da travessia que procura refugiar-se no seu
meio e encontra na expressão artística uma forma de se fazer ouvir. Há, nesse
sentido, um processo de identificação entre público e autor (intérprete e/ ou
compositor). Assim, a música se espalha e em seus vários pontos de escuta
ecoa a voz da geração, que mesmo podendo falar em alto e bom tom, encontra
no artista uma saída para o sufocamento. Russo e Cazuza se projetam, dessa
maneira, quando ensaiam pela escrita autobiográfica o reflexo dos homens do
seu tempo em suas letras.
Entre os sentimentos contraditórios que o próprio tempo faz o sujeito
experimentar, a canção muitas vezes encena a tentativa de equilíbrio do eu,
que entre a névoa e a luz, procura a saída:
Quando o sol bater na janela do teu quarto
Lembra e vê que o caminho é um só.
Por que esperar se podemos começar tudo de novo
Agora mesmo38
Esperança e desencantamento se alternam e promovem a harmonia do
homem desconcertado. Há uma necessidade de fazer a travessia, de se
afastar das perturbações sem, no entanto, o sujeito negar o seu tempo. Antes,
pelo contrário, o sujeito assume seu próprio tempo e não faz dele um elo
perdido entre a ditadura militar e a busca pelo gozo pleno da democracia. A
década de 80 é um tempo de caminhada e de vivência. Assim é possível dizer:
Veja o sol dessa manhã tão cinza:
A tempestade que chega é da cor dos teus
Olhos castanhos
Então me abraça forte
E diz mais uma vez
Que já estamos distantes de tudo:
Temos nosso próprio tempo.
(...)
37
Id., ibid.
LEGIÃO URBANA. “Quando o sol bater na janela do teu quarto”. R. Russo [compositor]. In: –
. As quatro estações. Rio de Janeiro: EMI Odeon, p1989. 1CD. Faixa 5.
38
Nem foi tempo perdido;
Somos tão jovens.39
A letra antecipa o balanço do retrato da geração 80 que, ao lado de
“Ideologia”, mapeia a juventude, a cultura e o país. A escrita que se estende de
um eu para um sentido coletivo abarca toda a juventude, e detecta o
desconcerto do sujeito que tenta se equilibrar entre os estilhaços do passado e
o presente em formação. “Tempo Perdido”, ao contrário do que o título sugere,
tenta reafirmar que a década de 80 não seria perdida, afinal “temos nosso
próprio tempo” e “somos tão jovens”. E qual seria o próprio tempo dessa
geração? A letra de “Ideologia”, de Cazuza, em parte responde: uma juventude
órfã do sistema político, sem ideologia que a una num mesmo propósito, como
aconteceu na década de 60. Sem grandes pretensões e com as ilusões
perdidas, os jovens e artistas já não pensam mais na possibilidade de mudar o
mundo. “Meus inimigos estão no poder”: o país no momento era governado por
um presidente que não fora eleito pelo povo, e dava sinais de grave
precariedade, com inflação acima dos 900% ao ano. Tanto Renato Russo
quanto Cazuza celebram a morte dos heróis mortos: de Janis Joplin a Carlos
Drummond de Andrade. Resta, além do tom nostálgico que Russo detecta em
Que país é este, o questionamento de um Brasil que Cazuza faria mostrar a
cara:
Não me convidaram pra essa festa pobre
Que os homens armaram pra me convencer
A pagar sem ver por toda essa droga
Que já vem malhada antes de eu nascer
(...)
Brasil
Mostra a tua cara
Eu quero ver quem paga
Pra gente ficar assim
Brasil
Qual é o teu negócio
O nome do teu sócio
Confia em mim
(...)
39
LEGIÃO URBANA. “Tempo Perdido”. R. Russo [compositor]. In: – Dois. Rio de Janeiro: EMI
Odeon, p1986. 1CD, Faixa 6.
Grande pátria desimportante
Em nenhum instante eu vou te trair,
Não vou te trair40
Cazuza, ao falar da composição, explica que
A letra de “Brasil” é como um cara pobre, normal, vê, sem
paternalismo, este 1% da população que está se dando bem – e da
qual eu faço parte. Sempre tive horror de política, mas tem coisas
que você nem precisa saber, qualquer um vê. “Brasil” é uma música
crítica, mas não tem nada a ver com uma fase política em minha
obra. Eu simplesmente passeio o não passado (1987) do lado de
dentro e, quando abri a janela, vi um país totalmente ridículo. O
(José) Sarney, que era o não-diretas, virou o rei da democracia. O
Brasil é triste trópico.41
O depoimento do autor reforça a leitura do rock dos anos 80 sem o
compromisso com o engajamento político e ressalta a distância entre poesia e
política nas letras da maioria das bandas de rock desse período. O teor social e
político dessa música de rock, que é uma espécie de “Aquarela do Brasil” às
avessas, se fixa mais pela necessidade de permanência do eu do que pela
simples denúncia dos problemas da nação. Ao insistir que o Brasil “mostre sua
cara”, o eu se instala com mais força e ganha a visibilidade de quem dá a cara
a bater, ao fazer vir à tona aquilo que se sedimenta e envergonha a nação e
registra, levando a assinatura de um único autor, o anseio e a denúncia
coletivos. São formas de manter-se vivo através do registro material do sujeito:
“Brasil” é uma das canções que compõem o álbum Ideologia, de 1988, época
em que Cazuza lutava contra a Aids. São registros de dor e angústia de um eu
fragilizado, que expande poeticamente sua fragilidade e faz da nação a
metonímia do seu corpo.
Dessa forma, deparamo-nos com uma geração que atravessa uma
década em crise. O sujeito desconcertado insiste na travessia. O desconcerto
se ouve na desarmonia do eu e do mundo, porém, há uma tentativa de se
harmonizar. O primeiro passo é a aceitação do seu próprio tempo. Aceitam-se
o aqui e o agora, e os registros artísticos e confessionais são entoados em uma
nota de momentaneidade e urgência.
40
CAZUZA. “Brasil”. Cazuza [compositor]. In: –. Ideologia. Rio de janeiro: polygran, p1988.
1CD. Faixa 6.
41
CAZUZA apud ECHEVERRIA, 2001, p.179.
1.2. A escrita e o consumo da geração “desmemoriada”
Silviano Santiago (2004), no artigo “A democratização no Brasil (19791981) – cultura versus artes”, faz um apanhado de como nos três anos finais da
ditadura militar a produção e a crítica se voltam para uma tentativa de
preencher o vazio deixado pelos mecanismos de repressão. Dessa forma,
observa o crítico que
Nesses três anos a que estaremos nos referindo, a luta das
esquerdas contra a ditadura militar deixa de ser questão
hegemônica no cenário cultural e artístico brasileiro, abrindo
espaço para novos problemas e reflexões inspirados pela
democratização no país (insisto: no país, e não do país). A
transição deste século para seu fim se define pelo luto dos que
saem, apoiados pelos companheiros de luta e pela lembrança
dos fatos políticos recentes, e, ao mesmo tempo, pela audácia
da nova geração que entra, arrombando a porta como
impotentes e desmemoriados radicais da atualidade. Ao luto
dos que saem opõe-se o vazio a ser povoado pelos atos e
palavras dos que estão entrando.42
Sem a memória da história recente do país, a nova geração dos 80 se
depara com o vazio que invade todos os sentimentos (do pessoal ao político)
do brasileiro. Os “narradores castrados pelos mecanismos de repressão”43
encontram no clima de abrandamento da censura e da anistia política a
disposição para o relato autobiográfico da experiência de guerrilha e do exílio,
enquanto a juventude, filha da ditadura, começa a escrever a sua própria
história. Com “passadas largas, precipitadas e prematuras”44 se fez a
passagem do luto para a democratização, pelo menos na forma de expressão
poética e no esvaziamento da história recente do país; pois, como se sabe a
abertura fora “lenta, segura e gradual”. A discrepância entre os passos da
democratização e a vontade de liberdade do cidadão redimensiona uma
memória histórica recente para um vazio que começa a ser preenchido com os
gestos que apontam para uma sociedade do espetáculo, dos produtos
pasteurizados da indústria cultural e da política de globalização. No momento
42
SANTIAGO, 2004, p.135.
Ibid., p.136.
44
Ibid., p.148.
43
em que essas portas estão sendo abertas, Renato Russo, concentrado na
atitude de denúncia do movimento punk, anuncia:
Quando nascemos fomos programados
A receber o que vocês nos empurraram
Com os enlatados dos USA, de 9 às 6.
Desde pequenos nós comemos lixo
Comercial e industrial.45
As passadas largas retomam também a necessidade de esvaziar a
memória do luto do regime opressor e de iniciar uma nova formação cultural,
na qual os versos seguintes de “Geração coca-cola” possam fazer sentindo:
Mas agora chegou nossa vez
Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês.
Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola.46
A interpretação desses versos pode ser lido nas palavras do ensaio de
Santiago da seguinte forma:
Ao
redimensionarem
o
passado
recente,
também
redimensionaram o gesto punitivo para a formação cultural do
Brasil, estabelecendo estratégias de busca e afirmação de
identidade para a maioria da população, que vinha sendo
marginalizada desde a Colônia.47
Os desmemoriados da geração 80 voltam às ruas e articulam pressões
populares que se recolhem em páginas fundamentais na escrita da história da
nova república. O grito e a música popular se farão ouvir em coro na campanha
pelas “Diretas Já” e na luta pela saída do poder do primeiro presidente eleito
diretamente pelo povo, depois de mais de 20 anos de regime ditatorial.
A leitura dessa nova produção se faz hoje com os mecanismos de
tratamento teórico-metodológico que começaram a despontar quando se tinha
ainda as páginas em branco pela frente. “Um certo mal-estar dos intelectuais
45
LEGIÃO URBANA. “Geração Coca-cola”. R. Russo [compositor]. In: –. Legião Urbana. Rio de
Janeiro: EMI Odeon, p1984. 1CD. Faixa 6.
46
Id., Ibid.
47
SANTIAGO, 2004, p.149
em relação à sua prática acadêmica”48 provoca uma inversão no tratamento
metodológico de textos tão díspares como uma entrevista e um poema, por
exemplo. Apropria-se do poema através de uma leitura que ultrapassa a mera
composição e se volta para a cultura, para o social, para o histórico e para o
antropológico. A leitura que extrapola o lingüístico só é possível quando o país
se desprende das amarras do autoritarismo, e outras abordagens críticas,
então, fornecem subsídios para uma análise que permite “esvaziar o discurso
poético da sua especificidade, liberá-lo do seu componente elevado e
atemporal, desprezando os jogos clássicos da ambigüidade que o diferenciava
dos outros discursos”49, como assinala Santiago.
A nova produção acadêmica tem agora o “interesse em estudar seu
próprio universo”50. Por sua vez, o próprio universo do artista, como dito, tornase material para sua produção e esta compreende, principalmente, a
subjetividade que encontra lugar para se manifestar e compor a narrativa e a
poética do seu tempo. Deixam-se de lado questões de cunho político e de
engajamento. O artista se engaja agora no seu próprio mundo e colhe de suas
vivências o material de que necessita para os versos e também para a teia da
narrativa. O sujeito da travessia dos anos 80 se insere na história ao contar sua
própria História. Essa História individual, que pode ser escrita com inicial
maiúscula, mesmo sendo construída com passadas largas e descompassadas,
compromete-se com o subjetivo e desvela, pelas bordas do eu, o
aprofundamento dos acontecimentos. Nesse trânsito, o sujeito busca o
equilíbrio e, antes, no confronto de forças adversas, tenta o caminhar. Entre os
escombros de um regime autoritário que se esgota e a mobilização para um
estado democrático, encontra-se o sujeito que, como agente da história,
experimenta a vivência que repercute no corpo e na escrita. Diante da
produção estética do sujeito que responde por seu tempo de travessia, indagase sobre a “singular existência”51 que vem à tona e atinge as esferas do espaço
público, constituindo-se como a atitude política do momento.
A política é a cultura rebelde de cada dia cujo perfume privado
exala no espaço público. Ela não é mais manifestação coesa e
48
HOLLANDA apud SANTIAGO, 2004, p. 137.
Ibid., p.138.
50
Id., ibid.
51
FOUCAULT, 1987, p.5.
49
coletiva de afronta ideológico-partidárias, como no auge da
repressão militar. Na medida em que me constituo no desejo
pelo outro, passamos nós a compor, num dado período
histórico, uma geração auto-referenciada e um universo autoreferenciável.52
As palavras de Santiago encontram ressonância na atitude do rock
brasileiro que abre alas para o grande número de compositores e intérpretes
que escrevem e cantam as questões do eu, exalando o “perfume privado no
espaço público”53. E será pelos rastros do perfume e da escrita, na mistura do
privado e do público, da rebeldia e do consumo, ao tomar a dor e alegria alheia
como própria, que o compositor consegue, com a escrita e com a performance
do cantor, inserir-se no social.
O poder de comunicação do rock, desde seu surgimento, deu-se
envolvido com a tecnologia, contatando cada vez mais novas técnicas de
(re)produção, além de se harmonizar com o próprio processo global de
comunicação acelerado das últimas décadas. Daí, a dinâmica de comunicação
e rebeldia que aciona as engrenagens da indústria da cultura mundial. O rock
sai das garagens e porões e entra agora pelas casas da classe média
brasileira, pelo disco e pelas rádios FM. O público e o privado se instauram na
audição e na repercussão da rebeldia das batidas simples desse gênero
musical. O nascimento das rádios FM nas cidades brasileiras coincide com o
florescimento do rock, reafirmando o caráter urbano e tecnológico destes.
Através das estações de rádio e das grandes gravadoras, o som dos garotos
rebeldes mostrará suas causas, confissões, culpas, transgressões e lirismo no
ritmo das freqüências moduladas e das 45 rotações por minuto dos discos de
vinil.
Num período de crise econômica para um país com altíssimo índice de
inflação, as gravadoras vêem no “som da garotada” um filão para as vendas.
“Seria o rock o som da Nova República?”, pergunta o Jornal do Brasil, de 3
junho de 1985:
Se depender da programação das rádios e das grandes
gravadoras, a resposta é afirmativa. Num processo que vem
se acelerando, a indústria fonográfica brasileira tem
52
53
SANTIAGO, 2004, p.138.
Ibid., p. 135.
aumentado seus investimentos na área e, de maldito, o rock
brasileiro parece ter-se tornado a saída para uma das piores
crises registradas no setor discográfico.54
O rock desponta no cenário mundial como música de consumo capaz de
ser, por isso, um termômetro para as mudanças sociais e históricas. É capaz
de um entrelaçamento da cultura mundial com culturas nacionais e regionais,
respondendo pela demanda do sistema orgânico que a música no Brasil, nas
últimas décadas, instaurou. Movimentado pela cultura jovem, o rock desperta o
interesse de gravadoras internacionais instaladas no país que já contabilizam
um crescimento significativo a partir da década de 70 e, com a implantação do
Plano Cruzado, em 1986, ampliam significativamente as vendas.
A música de consumo, urbana, produzida e consumida por jovens, numa
sociedade que se desvincula, aos poucos, do autoritarismo, apresenta-se como
a solução para a crise das gravadoras, ao mesmo tempo em que outros
aparelhos midiáticos também abarcam o profícuo negócio que soma liberdade
de expressão a um amplo mercado consumidor – a juventude. Dessa forma, o
registro da década da travessia se materializa através do medium LP e ganha a
visibilidade dos espetáculos de TV e a programação das rádios FM. A arte e do
consumo brasileiros misturam-se no nebuloso cenário político e econômico do
final do século.
No entanto, as vozes que concentram o processo criativo do rock são as
da classe média, no momento em que se tem a possibilidade e a necessidade
de falar e de se fazer ouvir. Corre-se o risco, como nas décadas anteriores, da
circulação restrita da produção cultural. Contudo, mais uma vez, o som e a
poesia de uma geração concentram-se na voz de uma minoria letrada que não
pensa mais a condição do proletariado, mas que, a partir do registro
autobiográfico e ficcional do seu mundo, consegue, pelo poder comunicativo da
música de consumo e de rebeldia, alcançar um público numeroso. O som dos
filhos de classes favorecidas economicamente, de uma sociedade em crise e
com grande desnível de renda, ecoa pelos canais de comunicação, tornandose um dos itens mais vendidos no mercado de bens culturais. Cerca de 30
milhões de consumidores são introjetados no mercado brasileiro e dispara,
assim, um consumo desenfreado, que em pouco tempo levaria ao
54
JORNAL DO BRASIL apud BRYAN, 2006, p.269.
desmoronamento do próprio plano econômico que tenta conter a inflação e a
recessão. A banda Ratos de Porão faz a leitura cruzada de um “Plano Furado”
no trocadilho que ecoa a frustração do país:
Planejaram Febrilmente
O Brasil ia mudar
Congelaram a pátria amada
botaram as coisas no lugar.
Todo mundo, o mundo inteiro
essa farsa engoliu
o povo se fudeu
e o Brasil faliu
Deu tudo errado
Plano Furado.55
Uma onda de desencanto cai novamente sobre a sociedade que podia
ouvir em casa, nos seus aparelhos fonográficos recém-adquiridos, versos como
estes que explicitam a fome do brasileiro em vários sentidos:
A gente não quer só comida
a gente quer comida, diversão e arte.
a gente não quer só comida,
a gente quer saída para qualquer parte.
a gente não quer só comida,
a gente quer bebida, diversão, balé.
a gente não quer só comida,
a gente quer a vida como a vida quer.56
Nesse momento de desencanto, algumas bandas propõem repensar o
Brasil em suas letras. Assim o fazem as bandas Inocentes, Ratos de Porão,
Titãs, entre outras (de modo mais isolado, como a Capital Inicial e até mesmo a
Legião Urbana). Mais uma vez, o grito soa mais como ruídos de rebeldia do
que como qualquer possibilidade de mudança social articulada pela palavra
poética:
Pátria Amada, é pra você esta canção
Desesperada, canção de desilusão
Não há mais nada entre eu e você
55
RATOS DE PORÃO. “Plano Furado”. RxDxPx [compositor]. In: –. Cada dia mais sujo e
agressivo. São Paulo: Cogumelo Records, p1987. 1CD. Faixa 2.
56
TITÃS. “Comida”. M. Fromer, S. Brito, A. Antunes [compositores]. In: –. Jesus não tem
dentes no país dos banguelas. São Paulo: WEA, p1987. 1CD. Faixa 8.
Eu fui traído e não fiz por merecer 57
Embora o artista e o povo sejam acometidos pelo desencanto, a letra e o
som das bandas tentam funcionar como uma espécie de “chamamento”, um
rufar de tambores que possa fazer com que a população atente para os
problemas que assolam o país:
Eu vou denunciar autoridades incompetentes
Eu quero antes te dizer
Ninguém sabe o que pode te acontecer
Ameaça aos privilégios
Você será detido e encostado na parede
É a ordem no progresso
Um jogo imoral
Que não mede conseqüências.58
O canto de desilusão que enumera as precariedades do país, num
momento de crise econômica, ganha um tom de participação engajada que
remete às décadas de 60 e 70, quando o intelectual reivindica um lugar ao lado
do povo59. Compositores e intérpretes ao acentuarem a denúncia e a mazela,
“evangelicamente, ele[s] mitifica[m] o poder de conversão da palavra e seu
movimento intencional passa ser o de comover e culpar: comover pela
denúncia da miséria, culpar pelo investimento na suposta consciência crítica e
revolucionária do intelectual60. Ao retomarmos as palavras de Heloísa Buarque
de Hollanda, que dão conta do engajamento intelectual na efervescência
político-cultural dos anos 60, provocamos um deslocamento do olhar para o
momento dos anos 80 que vivencia uma situação diferente daquela década,
mas que nos permite a remissão ao momento cultural anterior e ao
pensamento crítico da autora, e nos faz repensar ambos os momentos. Ainda
no rastro da escrita de Hollanda, cabe a compreensão de que essas bandas
que tratam do Brasil a partir dos meados dos anos 80, propondo estar ao lado
do povo, “compartilhando seus sofrimentos e acenando com a esperança de
57
INOCENTES. “Pátria Amada”. Clemente [compositor]. In: –. Adeus Carne. Rio de Janeiro:
WEA, p1987. 1CD. Faixa 1.
58
CAPITAL INICIAL. “Autoridades”. F. Lemos et all [compositores]. In: –. Independência. Rio de
Janeiro: Polydor, p1987. 1Cd. Faixa 2.
59
HOLLANDA, 1981, p.18.
60
Ibid., p.26.
um futuro promissor”, optam, como diz Walter Benjamin citado por Hollanda,
“por uma solidariedade ‘espiritual’ com o povo”61.
Os planos econômicos que tentam domar a inflação e incentivar as
vendas promovem a visibilidade dos grupos de rock. Dessa forma, a ponte
entre o som da classe média e o restante de milhões de ouvintes brasileiros se
faz pelo Plano Cruzado, cujo insucesso, no entanto, ameniza a euforia de
compras e leva um amontoado de artistas ao esquecimento. Nem todos
conseguem fazer a travessia. Apenas aqueles que já tinham alcançado um
lugar no mercado e no gosto do ouvinte conseguem prosseguir no registro e na
venda de suas músicas. Arthur Dapieve (2004), na relação entre Plano
Cruzado e o BRock – expressão forjada pelo autor para dar conta da
especificidade do rock brasileiro – assinala que:
O tempo se encarregaria de: primeiro, tirar os produtos das
prateleiras, consagrar a cobrança de ágio e reavivar a inflação,
ou seja, fazer desmoronar o Plano Cruzado; e , segundo,
separar o joio do trigo no BRock, redimensionando o
fenômeno. Assim como muita gente confundiu muita
quantidade com muita qualidade, muita gente confundiu pouca
quantidade com pouca qualidade. Uns e outros se enganaram
redondamente. As principais bandas do movimento não eram
melhores ou piores em função de suas vendas. Além disso,
elas vendiam bem antes e venderiam bem depois – apenas
venderam estupidamente enquanto durou a euforia do
Cruzado. De qualquer forma, o plano foi um pulo do gato na
transformação do rock num gênero realmente popular no
Brasil.62
No entanto, pensar o rock como um ritmo popular torna-se perigoso,
tanto quanto é perigosa a definição de “popular”. Não se deve confundir a
visibilidade e o sucesso momentâneo com o gosto “popular”, no sentido de ser
aceito e recebido por uma grande gama da sociedade. Ao enquadrar o rock
como popular, o terreno torna-se ainda mais arenoso se pensarmos que o
“popular”, muitas vezes, é visto como aquilo que fora produzido e consumido
pelo mesmo autor, ou seja, a própria massa. Theodor W. Adorno, em 1963,
defende a substituição da expressão “cultura de massas” por “indústria cultural”
com a intenção de desligar “a primeira expressão desde seu início do sentido
cômodo dado por seus defensores: o de que se trata de algo como uma cultura
61
62
Ibid., p.23.
DAPIEVE, 2004, p.201-202
que brota espontaneamente das próprias massas, da forma que assumiria,
atualmente, a arte popular”63. Dentro da concepção do co-autor da Dialética do
Esclarecimento, “a técnica da indústria cultural levou apenas à padronização e
à produção em série, sacrificando o que fazia a diferença entre a lógica da obra
e a do sistema social”64. O verdadeiro sentido de cultura de massas ou de arte
popular seria, então, aquela em que o produtor e consumidor são os mesmos,
e não aquilo que a indústria cultural promove: “a integração deliberada, pelo
alto, de seus consumidores”65. Tal apreensão do que é arte popular dada por
Adorno entra em harmonia com os versos que canta Jorge Aragão: “Arte
popular do nosso chão.../ é o povo que produz o show e assina a direção”
(grifos nossos).66
Por essa leitura, o rock se afasta da característica de popular e se define
como integrante da cena artística pop. Pop na definição de um mercado
altamente rotativo que engloba uma infinidade de bens simbólicos e forma seus
ícones e modismos. A arte pop pode ser vista, por isso, como uma forma de
arte alienante, efêmera e descartável, mas capaz, no entanto, de catalisar
mudanças e responder pela força de comportamento, principalmente daqueles
ligados à juventude e à cidade. O pop funciona como engrenagem fundamental
para o acionamento da indústria da cultura, no modo como concebe Adorno, ao
aspirar ao consumo em massa de produtos, determinando, assim, “do alto”, o
próprio consumo67. Concentra, ainda, em termos nacionais e regionais, o apelo
de uma era globalizada, no ritmo da novidade e do entretenimento. O pop
ainda permite o ensaio da diversidade, da convivência mútua, nem por isso
sem atritos, das mais diversas formas de vivência do presente.
63
Originalmente o "Résumé über Kulturindustrie" foi uma conferência radiofônica pronunciada
por Adorno na Internationalen Rundfunkuniversität des Hessischen Rundfunk de Frankfurt, de
28 de Março a 4 de Abril de 1963, depois incluído no livro Ohne Leitbild. Parva Aesthetica.
Frankfurt. Suhrkamp, 1967. Tradução de Carlos Eduardo Jordão Machado do original alemão e
cotejada com a tradução italiana (Parva Aesthetica. Milano. Einaudi, 1979). As citações aqui
são retiradas da mesma tradução, disponível em http://adorno.planetaclix.pt/tadorno17.htm,
captado em 25/02/2007.
64
ADORNO, Theodor W., HORKHEIMER, Max. 1985. p.114.
65
ADORNO,
Theodor
W.
Resumo
sobre
a
indústria
cultural.
http://adorno.planetaclix.pt/tadorno17. htm, captado em 25/02/2007.
66
JORGE ARAGÃO. “Coisa de Pele”. J. Aragão, A. Marques [compositores]. In: –. Coisa de
Pele. Rio de Janeiro: RGE, p1986. 1CD. Faixa 1.
67
Para Adorno, a indústria cultural “só se interessa pelos homens como clientes e
empregados”, reduzindo a humanidade à essas condições. Portadora de uma ideologia
dominante exerce as funções de perpetuação das características do mundo capitalista
moderno. (ADORNO, 1986, p.137).
A arte pop responde por uma das características que define o “pósmodernismo”. De acordo com Frederic Jameson (1993), o controvertido termo
“pós-modernismo” envolve uma infinidade de estilos e artes e engloba, desde a
arquitetura do Hotel Bonaventure, por exemplo, até a poesia falada, os filmes e
vídeos comerciais ou de ficção contemporâneos; e
na música, o peso de John Cage, mas também a síntese
posterior de estilos clássicos e “populares” encontrada em
compositores como Philip Glass e Terry Riley, e também o
punk e a nova onda do rock, com grupos como o Clash, os
Talking Heads e o Gang of Hour”.68
Visto como parte da cena pop do pós-modernismo, o rock ganha o
sotaque brasileiro e responde pela demanda exigida pela juventude no
momento em que as portas começam a se abrir para o exercício da
democracia. A demanda de uma poética e de uma melodia, que fale por essa
juventude, encontra a oferta no seio da própria juventude herdeira do lema
“faça você mesmo”. A espontaneidade, a necessidade da expressão, o
subjetivismo, a força lírica e musical e, principalmente, o baixo custo de
produção configuram-se como ingredientes fundamentais para o preparo de
produtos altamente consumíveis pela juventude. Para as gravadoras que
enfrentavam no início da década uma queda na venda de discos, a música
barata das bandas de rock saídas das garagens, com uma estrutura simples e
eficiente, mostrava-se como uma alternativa para a crise. A mediação da
indústria fonográfica faz-se então pelo simples interesse de mercado, mas
propicia a materialização do anseio e da busca de respostas da juventude. O
registro da expressão “roqueira” se estende para outras formas artísticas que
vão além da musical e ganha formatos diversos, apreendidos pela avidez da
indústria da cultura pop.
Historicamente, o rock sempre fez muito menos sentido como
estilo de regras definidas do que como discurso da juventude
urbana de uma época ou lugar. O rock brasileiro dos anos 80
era assim. Tanto poderia ser o rock de breque da Blitz ou o
pop no capricho de Lulu Santos quanto o rock’n roll do Barão
ou o punk dos Inocentes. Ou poderia ser um filme, como
Menino do Rio. Um livro, como Feliz ano velho, de Marcelo
Rubens Paiva, que publicado em 1982 e, em pouco mais de
68
JAMESON, 1993, p.25.
um ano, esgotou sua tiragem 25 vezes. Ou uma nova leva de
quadrinistas, como Angeli, Glauco e Laerte. O importante era
que fosse novo, diferente e esteticamente ousado e falasse a
linguagem das ruas69.
Nesse período, a mídia e a indústria cultural descobrem essa fatia do
mercado antes não tanto explorada e vê nela um altíssimo potencial de
consumo. Para tanto, ocorre um processo de antecipação e prolongamento da
juventude. Com um alto poder de inserção no cotidiano, a música passa a fazer
parte da vida do jovem. Desde os anos 70, o consumo de música no Brasil
passa a integrar o hábito dos consumidores, quando o LP deixa de ser um
artigo caro e se torna mais acessível. O mercado fonográfico opera também
com a diversificação dos produtos, como a fita cassete, discos compactos,
singles, discos compilados, como estratégia de atrair camadas mais baixas da
população. A partir de meados da década de 80 ocorre a profissionalização do
rock brasileiro, ganhando o afinamento técnico. O aumento expressivo das
vendas com o Cruzado, como vimos, leva as gravadoras a contratarem mais
bandas, fazendo com que a cena pop brasileira alcance seus dias de fama e
prosperidade, ainda que por tempo limitado.
Temos uma década em que público e intérprete falam a mesma língua,
têm a mesma idade e comungam dos mesmos ideais, anseios, frustrações e
amores. Há, nesse intercâmbio, uma identificação imediata que, antes de
inserir um componente a mais ao consumo do pop pela escrita das letras e
performance musical, torna-se um registro de todo o sentimento da geração.
Dessa forma, como iremos observar, o relato autobiográfico contido nas letras
de Renato Russo e Cazuza se insere no social, tornando-se um dos
componentes necessários aos poetas da música para assegurar que o desejo
do registro aconteça. A poesia do rock experimenta o suporte tecnológico do
LP, ganha a visibilidade e comercialização através dos ritos da civilização do
espetáculo e da mídia, e entrecruza aspectos nacionais e locais, na base
universal da batida rebelde roqueira, o que lhe confere as características de
hibridez e urbanidade. Essas características se aplicam ao rock, dado o diálogo
entre culturas, arranjos tradicionais e tecnológicos, rebeldia e consumo,
subjetividade e coletividade desse gênero musical que, desde seu surgimento,
69
ALEXANDRE, 2002, p.117.
une “uma síntese e um híbrido dos dois idiomas – música branca e música
negra”70. Tais características, na sociedade brasileira dos anos 80, relacionamse às expressões artísticas que respondem por seu tempo em uma cultura
altamente urbana.
Caracterizar o rock como híbrido e como artigo do mundo pop
contemporâneo, avidamente absorvido pela indústria fonográfica, aproxima-se
do pensamento de Walter Benjamin, que em um ensaio da década de 40,
assinalava que “a obra de arte reproduzida é cada vez mais a reprodução de
uma obra de arte criada para ser reproduzida”71. Sem qualquer resquício de
aura, o rock brasileiro se configura na necessidade do “valor de exposição” que
substituíra o “valor de culto” das obras de arte. Será justamente a técnica da
reprodução que coloca o rock em sintonia com seu “público consumidor”, o que
garante os lucros da indústria fonográfica e a visibilidade da arte. A reprodução
técnica – assegurava Benjamin – “pode, principalmente, aproximar o indivíduo
da obra, seja sob a forma da fotografia, seja do disco. (...) O coro, executado
numa sala ou ao ar livre, pode ser ouvido num quarto”72. Visão esta bem mais
otimista do que a de Adorno.
A reprodutibilidade técnica e o valor de troca do rock não impedem, no
entanto, o “efeito do choque”. Roberto Muggiati aponta o choque da
experiência do rock na sociedade americana, comparando com a semelhante
experiência provocada pelo cinema, assinalada por Benjamin. A aproximação
do autor brasileiro aos conceitos do filósofo alemão são perfeitamente
aplicáveis ao gênero nos anos 80, no Brasil:
O som do rock se impõe ao ouvinte, não se deixa usar
meramente como “música de fundo” e penetra à força na
sensibilidade de cada um. Os conceitos de Walter Benjamin
sobre o cinema se aplicam perfeitamente ao rock, como “forma
de arte que corresponde à vida cada vez mais perigosa
prometida ao homem de hoje”. Benjamin acha que a
necessidade de se entregar aos efeitos de choque é uma
adaptação do homem aos perigos que o ameaçam e que a
experiência cinematográfica – podemos dizer também a do
rock – corresponde a profundas modificações no aparelho
perceptivo, ‘modificações que hoje, na escala da vida privada,
experimentam toda pessoa nas ruas de uma grande cidade e,
70
MUGGIATI, 1973, p.37.
BENJAMIN, 1993, p.171.
72
Ibid., p.168.
71
na escala da História, experimenta todo cidadão de qualquer
Estado contemporâneo.73
A experiência do choque coloca o sujeito na superfície dos
acontecimentos. O bombardeio das imagens do cinema se assemelha ao
impacto do som ruidoso do rock, que não foi escutado simplesmente como o
som de uma juventude, no sentido de se configurar apenas como uma trilha
sonora que dá emoção à cena. O rock brasileiro dos 80 pode ser lido como o
registro da sensibilidade jovem, em todos seus atributos de música de rebeldia,
de consumo, de arte pop e lirismo – características que nos permitem a
compreensão da representação pós-moderna.
Fragmentado, descentrado, problemático e heterogêneo, o sujeito pósmoderno encontra, em períodos de transição, expoentes que reintensificam seu
desconcerto diante do mundo. Dissonante e numa celebração móvel da
identidade, ele busca na “nota” da escrita – confessional, instintivamente
autobiográfica, apaixonante, culpada e transgressiva – sua “afinação” com o
mundo. As escritas musicais de Renato Russo e Cazuza, na medida em que se
tornam mais visivelmente autobiográficas, mais freqüentemente enunciadas na
primeira pessoa - ganham em insistência ou em visibilidade, agitam-se,
fervilham, mobilizam-se e motivam-se, movem-se e emocionam cada vez
mais74. Promovem a “tensão do jogo com a história, tensão também do jogo
com a presença”75 e a falta, ao qual “o movimento da significação acrescenta
alguma coisa, o que faz que sempre haja mais, mas esta adição é flutuante
porque vem substituir, suprir uma falta do lado do significado”76.
As letras de música recortadas, que nos servem como citação e fios do
texto, podem ser lidas como “a escritura de si do vivente, o rastro do vivente
para si, o ser para si, a auto-afecção ou auto-infecção como memória ou
arquivo do vivente”77 que busca a salvação, o estar-se vivo, a denúncia, o
registro de seus amores e desconcerto. Contra o “tempo que não pára” e
contra a morte, a escrita corre o risco de ser tão envenenadora e autoinfecciosa quanto ela é possibilidade de salvação.
73
MUGGIATI, 1973, p.68.
DERRIDA, 2002, p.66.
75
DERRIDA, 1995, p.248.
76
Ibid., p.244.
77
DERRIDA, 2002, p.87.
74
Assim, pode-se pensar e analisar como as escritas de Renato Russo e
Cazuza se ordenam como memórias-presentes, confissões e registro
autobiográfico, que promovem o desvelamento de um período histórico através
da voz, da canção, da poesia, do lirismo e da vivência de quem experimenta a
travessia de uma década que não foi perdida.
2. A ESCRITA E A INSCRIÇÃO DO EU: A POÉTICA
CONFESSIONAL DE RENATO RUSSO E CAZUZA
Vamos revelarmo-nus.
Adriana Calcanhoto
2.1. Novos suportes tecnológicos para o aedo
Homero, nos versos iniciais da Odisséia, pede inspiração às musas para
que sua empreitada poética e seu canto sejam bem executados. A relação
entre música e poesia, até a Idade Média, se mostra bastante íntima. Essa
intimidade faz com que um instrumento musical venha nomear uma das formas
poéticas que mais se aproxima da música: a poesia lírica. Desde a Antigüidade
greco-latina, a poesia se serviu da voz cantada, na entonação de versos, ritmo
e métrica, para se fazer ouvir entre a multidão, nos espaços públicos ou na
acomodação privada de lares e bibliotecas.
O século XVI assiste à revolução provocada pela invenção da imprensa,
quando, desde então, a forma escrita vem a prevalecer sobre a oralidade,
acentuando certa distância entre música e poesia. No entanto, a relação de
intimidade entre as duas formas de expressão faz com que a música empreste
à poesia formas e características que perpetuam a antiga união. A poesia
abriga muitas vezes formas como o madrigal, a balada, o rondó e a cantiga,
além da métrica, da harmonia, do refrão, do andamento e da melodia estarem
presentes em muitas entonações poéticas. O poeta, que chamava de canto o
seu poema – como Homero, Vergílio e Camões – encontra o cantor que se vale
da poesia para se fazer ouvir na contemporaneidade. O trovador que cantou
versos a sua amada, na Idade Média, agora é o poeta que canta seus amores
e dores no ritmo da cidade e da indústria da cultura.
A poesia, espaço nobre para questões também de grande nobreza,
como o amor e os outros sentimentos “puros” do ser humano, atravessa os
séculos da idade moderna reivindicando e protegendo esse espaço, até que no
início do século XX, o modernismo se abre para aquela poesia presente no
disparatado. Os poetas abandonam o vocabulário argênteo ou ebúrneo do
parnasianismo e os turíbulos, abstrações, aromas e inefabilidades do
simbolismo, e passam a compor poemas sobre o dia-a-dia, incorporando a fala
do povo nas criações poéticas. Manuel Bandeira, por exemplo, aprenderia com
o pai a perceber a poesia tanto nos amores quanto nos chinelos e
desentranharia a poesia de lugares inusitados, percebendo o lirismo em um
beco ou no fazer de uma simples feijoada, como faria Renato Russo anos mais
tarde. Passam a fazer parte dos poemas a cidade, a rua, vendeiros e
lavadeiras, numa linguagem próxima do coloquial – cada vez mais brasileira.
Assim, “a própria poesia moderna nos diz que devemos procurá-la onde os
sisudos tratados de crítica literária nos disseram que ela não estava”78, ressalta
Silviano Santiago.
A geração de 45, por sua vez, em oposição ao modernismo de 22, adota
formas mais clássicas para o poema, como o soneto, no entanto, propõe o neoromantismo e neo-simbolismo baseados na relação de intimidade entre música
e poesia. A poesia, para aquela geração, é como um “canto”, quando a voz
procura a expressão de emoções e de um intimismo lírico. Com a bossa nova e
com Vinícius de Moraes, na década de 1950, inicia-se uma fase de identidades
entre música e poesia, como aponta Afonso Romano de Sant’Anna (2004). A
bossa nova se constitui de forma mais elaborada, tanto do ponto de vista
musical quanto do literário. Por volta de 1968, a produção poética cede lugar
78
SANTIAGO, 2006. “Comparações”, In: http://www.tanto.com.br/silvianodois.htm. Captado em
26/02/2007.
para o teatro, para o cinema e principalmente para a música sem, no entanto,
abandonar essas expressões.
Essa evasão [da literatura para outras linguagens] não nos
leva, todavia, à conclusão de que a literatura estará se
exercendo em outros canais. Não se trata de afirmar, por
exemplo, que a poesia vai se fazer na música popular ou no
cinema, mas sim de perceber como esse desvio a que nos
referimos canaliza para outras linguagens um debate
propriamente literário, muitas vezes transposto pela própria
formação (literária) dos autores.79
É o que se percebe nas composições de Chico Buarque e do
tropicalismo de Caetano Veloso e Gilberto Gil, que exigem uma letra com
status de literatura. “Os compositores irão lançar mão de artifícios poéticos na
construção de suas letras, através do fragmento e da alegoria, da
intertextualidade e da própria referência à tradição literária brasileira.”80 O
lirismo cede lugar à dicção culta, alegórica e metafórica, um tanto necessária
ao momento político que o país enfrentava.
Com o processo de redemocratização no país, o abrandamento das leis
de repressão e censura permite uma maior liberdade de expressão dos jovens
artistas que começam a compor a poética da travessia. Sem a necessidade de
uma linguagem velada e elaborada, os compositores do rock brasileiro dos
anos 80 optam pela clareza e objetividade da linguagem, numa letra direta, em
sintonia com o tempo presente. O que não significa um abandono aos
procedimentos e influências literários. Tanto que Renato Russo, Cazuza,
Humberto Gessinger, Arnaldo Antunes, Cadão Volpato, Sérgio Brito, entre
outros, seriam chamados de poetas do rock brasileiro, com destaque para os
dois primeiros.
Toda essa evolução marca, no entanto, uma crescente
transformação da música popular brasileira num fenômeno
não apenas sonoro, mas um produto escrito. O que era
apenas voz tanto na música quanto na poesia, se converte em
grafia marcando o ponto máximo desses movimentos de
equivalência e identidade. (...) Com isto se estende não
apenas o conceito de música popular, mas o de literatura e,
conseqüentemente, o de interpretação de texto.81
79
HOLLANDA, 1981, p.35.
Ibid., p.37.
81
SANT’ANNA, 2004, p.13.
80
Com o desenvolvimento da sociedade capitalista e o advento da
tecnologia e da reprodutibilidade técnica, a música, no século XX, atinge
grandes esferas de abrangência e importância, constituindo-se, em tempos
atuais, como umas das formas de arte mais difundida. Por diversas razões, a
música vem ocupar um lugar antes reservado à poesia. Com a facilidade de
difusão e inserção no cotidiano, garantido pela tecnologia e por seu alto grau
de atualidade e efemeridade, ela se espalha e atravessa a cidade e se
expande por muitos meios de escuta, atingindo espaços sociais diferenciados,
o que implica experiências e apropriações culturais diversas. Luiz Claudio V. de
Oliveira (1999) aponta a condensação e o simultaneísmo como as principais
caractarerísticas da música que lhe garantem popularização, espaço e difusão.
Ao transmitir, em um curto espaço de tempo, uma mensagem completa com
alto grau de sofisticação e de conteúdo, e pelo poder de recepção paralela a
outras atividades, a música se insere com facilidade no cotidiano e assume
funções que vão do derramamento íntimo de lamentações amorosas até a
função de captar, fixar e revelar modos e costumes de uma época,
diagnosticando sensibilidades e transformações sociais e históricas82.
Nesse sentido, a história recente do Brasil apresenta uma trilha sonora
que acompanha os fatos importantes no cenário político-social. Aldir Blanc e
João Bosco compuseram o samba, que na voz de Elis Regina se configura
como o hino da anistia83. A ditadura militar teve na letra e voz de Chico
Buarque algumas das mais elaboradas canções que registram o autoritarismo,
o sufoco e a necessidade de liberdade numa pátria mãe “subtraída”, como se
pode ouvir em “Cálice”, “Apesar de você” e “Vai passar”. Enquanto Geraldo
Vandré ressaltou a importância da canção, capaz de unir e de ser arma:
Nas escolas, nas ruas, campos, construções
Somos todos soldados, armados ou não
Caminhando e cantando e seguindo a canção
Somos todos iguais braços dados ou não84
82
OLIVEIRA, 1999, p.44.
REGINA, E. “O Bêbado e o equilibrista”. A. Blanc, J. Bosco [compositores]. In: –. Elis, essa
mulher. São Paulo: WEA, p1979. 1CD. Faixa 2.
84
VANDRÉ, G. “Pra não dizer que não falei das flores”. G. Vandré6y [compositor]. In: –.
Geraldo Vandré. São Paulo: RGE, p1994. 1CD. Faixa1.
83
Nesse ritmo, uma das maiores manifestações populares vistas pelo
Brasil, o movimento das “Diretas Já”, tem como hino uma música irônica, que
estampa na irreverência de seus versos a condição de um país que nos tem
como “inútil”85. Enquanto que 1992 vivencia outro clima de agitação popular
que exige o impeachment do presidente Collor. Os “cara pintadas” tomam as
ruas, enquanto se ouve uma trilha sonora que remete aos “anos rebeldes”. A
música, então, ocupa um dos lugares da poesia: o hino da abolição – um
poema de Castro Alves – foi entoado pela voz de seu autor, nas ruas,
acompanhado pelo povo, no século XIX. “Mudam-se os tempos, mudam-se as
vontades”, já dizia Camões86 ou “É você que ama o passado e que não vê/ Que
o novo sempre vem”87, como canta Belchior.
Concomitante a outras atvidades do dia-a-dia, a música passa a fazer
parte da vida dos seus ouvintes: no lazer, no espaço doméstico, no trabalho,
nas lojas, parques, na sexualidade e na intimidade, em shows, na televisão,
pelo rádio, pela internet, em mp3 e celulares etc. “A música para ouvir”88
ganha, como canta Arnaldo Antunes, outros lugares, modos e re-apropriações,
seja pelos meios de difusão, seja nos modos de escuta e recepção. Todo o
alcance da música nas sociedades pós-modernas faz com que haja uma
tensão entre o papel e a máquina, ou seja, uma tensão entre a materialidade
de expressões artísticas, que ganham outros formatos na era fluida da
cibernética. A relação papel e máquina questiona os novos suportes, a
impressão, o papel social, e os sem-documentos no processo de globalização
e exclusão. Essas indagações se estendem para o papel no mundo virtual e
para o lugar do acontecimento, da escrita, do corpo, da memória, do arquivo e
da materialidade na contemporaneidade. Jacques Derrida (2004), ao longo do
livro Papel-máquina, busca as respostas que, como a maioria dos seus
escritos, soam como provocações e novas inquirições.
Nos últimos anos, assistimos ao modo como o desenvolvimento da
tecnologia e as mídias diversas têm interferido na produção, na mediação,
85
ULTRAJE A RIGOR. “Inútil”. R. Moreira [compositor]. In: –. Nós Vamos invadir sua praia. Rio
de janeiro: WEA, p.1985. 1LP. Faixa 6.
86
CAMÔES, http://www.astormentas.com/camoes.htm, captado em 04/04/2007.
87
REGINA, E. “Como nossos pais”. Belchior [compositor]. In: –. Falso Brilhante. São Paulo:
Fhonogran, p1976. 1CD. Faixa 1.
88
ANTUNES, A. “Música para ouvir”. A. Antunes, E. Scandurra [compositores]. In: –. Um Som.
São Paulo: BMG, p1998. 1 CD. Faixa 1.
recepção e valoração das expressões artísticas. Da literatura à animação
virtual, as manifestações artísticas se enveredam por caminhos ditados pela
força do mercado e pelo poder de sedução de novos suportes tecnológicos.
Essas relações estão diretamente ligadas à dinâmica da indústria da cultura,
que atende ao ritmo do capitalismo tardio. Sem leituras pessimistas ou
alongadas sobre os efeitos de tais interferências, é interessante lançar algumas
questões
sobre
os
suportes
tecnológicos
que
determinadas
artes,
principalmente a poesia e a música, experimentam atualmente. O que provoca
conseqüências desestabilizadoras nos modos de produção e recepção, e faz
repensar maneiras novas de tratar antigas relações.
Sempre houve no Ocidente a supremacia da escrita, como forma de
eficácia de comunicação e permanência da obra. Relacionado diretamente à
sustentação de status e hierarquias ditadas pelos letrados, o que está escrito
sempre exerceu mais poder. Isso leva ao mesmo status e hierarquia daquele
que tem o privilégio de acesso à escrita. O popular quase nunca se encerra em
páginas de livros e, quando isso acontece, paga o preço do silenciamento das
letras ou a deformação e/ou redução do seu conteúdo estético e social (muitas
vezes um em favor do outro)89. Por muitos séculos, o livro em sua forma de
códice (caderno de páginas superpostas e encadernadas de modo que se pode
abri-lo sobre a mesa, segurá-lo entre as mãos e atê-lo ao peito) reinou em
absoluto como forma de armazenamento e transmissão de informações,
saberes e culturas. Relacionados a esse formato (e também aos outros que
virão) se questiona os seguintes pontos enumerado por Derrida: “a escrita, o
modo de inscrição, de produção e de reprodução, a obra e a operação, o
suporte, a economia do mercado ou da estocagem, o direito, a política, etc”90.
O formato tradicional do livro, com suas folhas impressas, superpostas,
mostra-se como um lugar sagrado, uma moradia, um túmulo. “A dobradura é,
em face da folha impressa em grandes dimensões um índice, quase religioso:
que não marca tanto quanto sua compreensão, em espessura, ofertando o
minúsculo túmulo, decerto da alma”91. A citação extraída de Derrida (2004)
releva a sacralização a qual submetemos o livro, no que se refere ao seu
89
Cf. MATOS, Claudia Neiva de. Popular. In: JOBIM, José Luis (org.). Palavras da Crítica. Rio
de Janeiro: Imago, 1992. p.307-341.
90
DERRIDA, 2004, p.20.
91
Ibid., p.27
tempo, espaço, ritmo, modo de manipulação, modos de legitimação e ainda à
“sociabilidade quase sacerdotal de seus produtores, intérpretes, decisores, em
todas as suas instâncias de seleção e de legitimação”92. Todo o ritual de
ressacralização do livro faz com que a mesma geração que o consagrou sofra
ao vê-lo “perder terreno para outros suportes”93. Vivenciamos a era do livro por
vir. Do códice à incorporação eletrônica e virtualizante, o texto surge para o
leitor como um espetáculo, sem demora, no ritmo do teclado e de conexões
wireless, na tela frente aos olhos do espectador/ ouvinte. A literatura agora
divide o espaço dos afazeres casuais e banais, sem a formalidade da
acomodação dos terrenos sagrados das bibliotecas. Viva, a literatura ganha a
dinâmica do espetáculo, para garantir-lhe o interesse e a sobrevivência no
mundo das imagens.
A escrita, a reprodução e distribuição do livro – lenta e restrita –
procuram a adaptação no mundo pós-moderno – acelerado, fluido, líquido,
visual. Dessa forma, a poesia esculpida “longe do estéril turbilhão da rua”, “No
aconchego/ Do claustro, na paciência e no sossego”94 e que muitas vezes
exigia um leitor de igual disciplina, temporalidade e especialidade, ganha hoje a
leitura que entra pelos fones de ouvidos e faz com que o leitor penetre em
alarde “no reino das palavras”95. A poesia retoma agora, na pós-modernidade,
a sua antiga e íntima relação com a música. O suporte para escrita, na verdade
a sua dificuldade e escassez, que manteve, entre outros motivos, poesia e
música unidas até a invenção da imprensa, promove agora uma inversão na
hierarquia e no prestígio da palavra escrita. A poesia de livro convive com a
poesia da música96, e esta ocupa cada vez mais espaço na sociedade, na
história e no cotidiano dos leitores/ ouvintes/ consumidores de bens simbólicos.
92
Ibid., p.28.
Ibid., p.27.
94
BILAC, disponível em http://www.revista.agulha.nom.br/bilac.html#poeta, captado em
05/04/07.
95
ANDRADE, Carlos Drummond, 1983, p.160.
96
Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Chico Buarque, Caetano Veloso,
Cazuza, Gilberto Gil, Vinicius de Moraes, Noel Rosa, Aldir Blanc, Adriana Calcanhotto, Ana
Cristina César, Antonio Cícero, Armando Freitas Filho, Ferreira Gullar, Francisco Alvim, Manuel
Bandeira, Mário Quintana, Murilo Mendes, Oswald de Andrade e Waly Salomão: estão
reunidas pela primeira vez poesia de livro e poesia da música em um mesmo volume. Um
verso de Cazuza dá nome à antologia Veneno Antimonotonia, organizada por Eucanaã Ferraz.
(Veneno Antimonotonia. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007).
93
Os poetas da música que, entre arranjos e composições, tecem e
interpretam hinos da história e poemas de amor, procuram o lugar para o
acontecimento no arquivo do LP, que cedeu lugar ao CD e agora vive a era da
materialidade virtual de HDs e ipods, que permitem o trânsito entre a memória
cibernética e a recepção particular dos fones de ouvido.
A antiga controvérsia entre letra de música e poesia, que marca leituras
quase apenas de ordem estrutural, se desfaz com leituras culturais que
atentam para o lugar, abrangência e recepção conquistados pela canção e pela
letra da canção nas sociedades contemporâneas. Composições dos vários
gêneros musicais que (en)cantam o Brasil ganham coletâneas que agrupam no
formato livro toda a riqueza poética da letra. Antes, porém, de se poder folhear
as canções no códice, a poesia da música atinge, em seus vários pontos de
escuta, leitores/ ouvintes diferenciados, o que implica, logicamente, em
apropriações e decodificações diversas.
Os sentidos enigmáticos e polissêmicos do signos musicais
favorecem os mais diversos tipos de escuta ou interpretações
– verbalizadas ou não – de um público ou de intelectuais
envolvidos pelos valores culturais e mentais, altamente
matizados e aceitos por uma comunidade ou sociedade. A
partir dessas concepções, a execução de uma mesma peça
musical pode provocar múltiplas escutas (conflitantes ou não)
nos decodificadores de sua mensagem [...] de acordo com
uma perspectiva sincrônica ou diacrônica do tempo histórico.97
Dessa forma, a poesia da música atinge seus leitores cotidianos, que
consomem, por entrenimento e prazer, a música que é, entre proposições
pragmáticas, uma música que vai além de uma música para ouvir e ganha
funções diversas:
Música para ouvir no trabalho
Música para jogar baralho
Música para arrastar corrente
Música para subir serpente
Música para girar bambolê
Música para querer morrer
Música para escutar no campo
Música para baixar o santo
Música para compor o ambiente
Música para escovar o dente
Música para fazer chover
Música para ninar nenê
97
CONTIER, 1991, p.152.
Música para tocar novela
Música de passarela
Música para vestir veludo
Música pra surdo-mudo
Música para estar distante
Música para estourar falante
Música para tocar no estádio
Música para escutar rádio
Música para ouvir no dentista
Música para dançar na pista
Música para cantar no chuveiro
Música para ganhar dinheiro
Música pra fazer sexo
Música para fazer sucesso
Música pra funeral
Música para pular carnaval
Música para esquecer de si
Música pra boi dormir
Música para tocar na parada
Música pra dar risada98
Os leitores/ ouvintes seguem procedimentos semelhantes aos dos
leitores de outros códigos, como o leitor de um texto escrito, por exemplo.
Conforme o tipo de leitor, dá-se a construção e decodificação da leitura,
“verbalizada ou não”. Como todo código ou obra, a leitura pode se dar de forma
especializada
ou
acadêmica,
seguindo
procedimentos
epistemológicos
próprios. Daí, a leitura mais ampla e profunda de uma peça musical por
aqueles de formação nesta áera, que podem atentar para questões de arranjo,
melodia, andamento, tempo, notas, entre outros vocábulos técnicos desses
profissionais. Do mesmo modo, a universidade, através das faculdades de
Letras, História, Sociologia, Psicologia, Antropologia, tem se voltado para o
produto escrito e sonoro da canção, fornecendo subsídios para uma leitura, na
maioria das vezes, interdicisplinar –tamanha a complexidade e riqueza de
formas e conteúdos das gravações musicais.
Diante das várias concepções e possibilidades de leitura de uma peça
musical, entre a sacralização do livro e os suportes flutuantes que materializam
as novas produções, uma indagação de Derrida gera discussão e nos ajuda no
direcionamento e tratamento da “obra” de Renato Russo e Cazuza. Derrida
pergunta respondendo sobre o que seria a “obra” de um autor:
98
ANTUNES, A. “Música para ouvir”. A. Antunes, E. Scandurra [compositores]. In: –. Um Som.
São Paulo: BMG, p1998. 1 CD. Faixa 1.
“Obra” é outra coisa ainda, que talvez nos leve daqui a pouco
às paragens de um grave problema, o das relações vindouras
entre a forma livro, o modelo do livro, por um lado, e uma obra
em geral, um opus, a unidade ou corpus de uma obra
delimitada por um começo e um fim, uma totalidade.99
No que tange à música contemporânea, mediada pelo LP, depois CD e
agora seus formatos digitais e virtuais, a obra dos músicos parece residir na
materialidade técnica de cada um desses suportes, que permitem o
agrupamento e a reprodução. Os “álbuns” compreendem certa seleção de
canções que, geralmente, num feixe temático, ajuntam-se sob determinado
título. Editados e comercializados, os álbuns são postos à venda de maneira
parecida com a que ocorre com o mercado editorial de livros. A demanda
desse mercado segue as regras do consumo, que tanto pode ser o mercado
consumidor pop, quanto um mercado mais restrito, na divulgação, circulação e
recepção de determinados títulos. A música, como a literatura, encontra seu
mercado de best-sellers e de raridades. Entre a produção que atende no ritmo
dos fast-food, da efemeridade, e do mero lucro e as produções altamente
cultas e especializadas, uma gama de produções se encontra entre os
extremos, respondendo pela característica de hibridez, no que se relaciona à
permeabilidade de culturas, estilo, linguagem, “popular”, “culto” e comercial.
Considerando o álbum (para facilitar, limitemo-nos ao suporte CD, ainda
o mais comum no mercado) como um livro, as proposições de Derrida referemse, portanto, dentro dessa nossa leitura, a ambas as formas de expressão
poética e literária:
O livro que recolhe o espírito recolhe, portanto, um poder
extremo de explosão, um desassossego sem limites, que o
livro não pode conter (grifo meu: o livro contém pó que ele não
pode conter, sendo de uma só vez maior e menor do que é,
como toda biblioteca, em suma), dele excluindo todo
conteúdo, todo sentido limitado, definido e completo.
Movimento de diáspora que nunca deve ser reprimido, mas
preservado e acolhido como tal no espaço que a partir dele se
projeta, e a que esse movimento apenas responde, resposta a
um vazio indefinidamente multiplicado, no qual a dispersão
ganha forma e aparência de unidade. Tal livro, sempre em
movimento, sempre no limite do disperso, será também
sempre reunido em todas as direções, pela dispersão mesma
e de acordo com a divisão que lhe é essencial, a qual ele não
99
DERRIDA, 2004, p.20.
faz desaparecer, mas aparecer ao mantê-la, para nela se
realizar.100
Assim, o livro e o CD encerram a tentativa de reunião da dispersão, nos
seus vários formatos de máquina, dada ao consumo de arte e cultura. O álbum
reúne, por sua vez, composições agrupadas sob o mesmo título, “no qual a
dispersão ganha forma e aparência de unidade” e o arquivo da expressão
artística musical muitas vezes acompanha um encarte ou livreto com as letras
da música. O papel de impressão e a máquina de suporte digital (quando
executado) são a materialidade da dupla articulação da canção: escrita e
melodia, grafia e voz, poesia e música. Acrescenta-se ao duplo material de
mídia da canção, um terceiro item, que se presta, em conjunto ou isolado, à
leitura simples ou acadêmica: a performance do intérprete.
Várias
abordagens
teórico-metodológicas
tentam
dar
conta
da
complexidade da canção brasileira. Para este trabalho, as letras das canções
são tratadas como poesia, sem se ater teoricamente à parte sonora e
performática da produção musical. Entretanto, não se deixa de entender que o
tecido dessa poética foi produzido considerando o canto e a interpretação. Para
a dissertação, porém, remetemos essa poética para a escrita autobiográfica,
lendo o animal que se despe, exalando o perfume particular no espaço público.
Ampliam-se, assim, as categorias de texto ao pensar a música como
poesia. Renato Russo e Cazuza, ao escreverem a poética da travessia da
década de 80, se inscrevem nesse tempo através da poesia, da autobiografia,
do ícone pop, da performance e dos depoimentos. Ou seja, na leitura da
contaminação dos discursos, o sujeito promove a representação do vivido,
desvelando assim o eu e o nós, a obra e a cultura de seu tempo.
2.2. A inscrição do sujeito
A leitura da letra-de-música como poesia, como assinala Afonso
Romano de Sant’anna (2004), amplia os conceitos de literatura, de música e de
texto. Abordagens teóricas como os estudos culturais e a crítica biográfica
100
DERRIDA, 2004, p29.
possibilitam o entendimento da abertura e da abrangência textual que, a partir
do final da década de 70, têm propiciado um novo olhar sobre o texto (nas suas
várias dimensões e linguagens) que ultrapassa seus limites como literatura ou
arte e alcança territórios históricos, culturais, econômicos e sociais. O texto,
então, penetra nos territórios criados e habitados pelo homem, elucidando as
mais complexas relações humanas, que se manifestam pela linguagem. A
produção
documental
–
a
correspondência,
a
crítica
ensaística,
os
depoimentos, as entrevistas, as reportagens jornalísticas – ao lado da
produção ficcional, compõem a obra do autor.
Os sujeitos, autores de ficção e poética, ao escreverem suas obras, se
inscrevem no tempo e no espaço onde as produzem e onde elas são
recepcionadas. A inscrição do sujeito se escreve de acordo com seu alcance
na sociedade, fato que se dá pelos vários media, tanto de divulgação da obra
ficcional quanto da figura do autor. Atravessada pelos aparelhos midiáticos ou
por sua própria pose, a figura do autor é transformada, com a ajuda de seu
público, em um personagem.
A figura do escritor substitui a do autor, a partir do momento
que ele assume uma identidade mitológica, fantasmática e
midiática. Esta personagem, construída tanto pelo escritor
quanto pelos leitores, desempenha vários papéis de acordo
com as imagens, as poses e as representações coletivas que
cada época propõe aos seus intérpretes da literatura. Cada
escritor, portanto, constrói sua biografia com base na rede
imaginária tecida em favor de um lugar a ser ocupado na
posteridade: ou o do ausente ou do morto, pois também a
morte cultiva seus teatros, como o palhaço e o dandy.101
Assim podemos compreender como as figuras de Renato Russo e
Cazuza se sobrepõem as de simples autores e intérpretes das canções. Ambos
se tornam personagens – construídos por eles mesmos e pelos leitoresouvintes. Tecem, dessa forma, a presente biografia a ser projetada para a
posteridade. O caráter de poeta-fingidor encena uma autobiografia em que fios
se confundem com os da vida empírica e os da ficção, engendrados de tal
maneira que o tecido se uniformiza re-apresentando um sujeito-personagem
que não mais se confunde com o homem comum e passa a ser visto na
máscara do herói, do mito ou do messias.
101
SOUZA, 2002, p.116.
Há, nesse processo, uma ficcionalização do eu, que não responde mais
pelo dono do registro de identidade civil, mas responde, sim, pelo registro da
representação do vivido. Representação que se faz com a própria obra ficcional
ou poética, entrecruzando com a pose do autor – nos depoimentos, entrevistas,
fotos, aparições em público, shows, ensaios. Dessa maneira, o autor atua no
palco da sociedade que o concebe e o recebe, de forma que sua encenação
discursiva (que se dá pela escrita e pelo corpo) “ultrapasse os limites do texto e
alcança o território biográfico, histórico e cultural”102. O autor responde, assim,
na figura do intelectual, pela representação do seu tempo e de seu espaço, nas
metáforas, alegorias e metonímias da experiência como ser vivente.
Entre os rituais de consagração e canonização do autor, encontra-se a
própria mídia que se encarrega, de acordo com seus propósitos, de criar seus
heróis e mitos, promovendo a ascensão e também a queda deles. O próprio
público leitor/ ouvinte é também elemento imprescindível em tais rituais. Muitas
vezes, a platéia, no processo de identificação, projeta em seus ídolos tudo
aquilo que anseia, de forma que eles passam a encenar um script delineado
por seu público.
As produções musicais da década de 80 experimentam a aproximação
entre seus pares: autores/ intérpretes e público têm a mesma faixa etária e
comungam dos mesmos anseios, frustrações e sentimentos. Ao falar a mesma
língua, o palco se nivela à platéia, havendo assim uma mistura de vozes, sendo
que a voz do cantor, por soar mais alta e eloqüente, capta e transmite a voz da
platéia. Nesse processo de identificação e na necessidade de criar seus
modelos, Renato Russo e Cazuza seriam vistos como representantes de sua
geração:
Desde que a gente começou, as pessoas observam que os fãs
têm uma postura reverencial, que eu teria uma postura
messiânica nos shows. As pessoas falam muito isso. Eu não
me vejo como um messias ou um guru – longe disso –, mas
falo de coisas que as pessoas também estão sentindo. (...) E
então, é como se a gente fosse um termômetro do que
acontece. E por termos a sorte de nos expressar através dos
meios de comunicação em massa – falando do dia-a-dia, do
meio em que você vive, o meio urbano, a sociedade atual –,
isso vai bater muito nas pessoas.103
102
103
Id., Ibid.
RUSSO apud ASSAD (org.), 2002, p.117.
A capacidade de Renato Russo falar pela juventude e escrever as
relações amorosas são apontadas no mesmo parâmetro em que Chico
Buarque consegue, na voz feminina, dizer do universo da mulher. Nesse
processo que consagra Russo como menestrel de toda uma geração e como
messias, o autor de “Pais e filhos” tenta se despir da máscara de salvador que
lhe foi colocada: “Sou jovem de vinte poucos anos, não sei nada da vida. E as
pessoas bebem minhas palavras como água. Escrevo justamente porque não
sei”.104 Renato Russo estava, na verdade, interessado em fazer rock’n roll
simplesmente. Mas é justamente ao fazerem rock’n roll, ao protagonizarem
grandes temas existenciais da literatura e da humanidade, como o amor, a
morte, a solidão, e temas controvertidos como as drogas e sexualidade, em
suas letras, que Russo e Cazuza “guardam sua natureza ficcional e se
espraiam na página aberta do espaço textual e nos interstícios criados pelo
jogo ambivalente da arte e do referente biográfico”105. A subjetividade do autor
se coloca no texto poético como sendo encenação, atuação e representação
tanto intelectual quanto lírica. Como veremos, Renato Russo e Cazuza são
dois poetas fingidores, tal como o fora Fernando Pessoa.
A representação do vivido, então, se dá pela obra poética e ficcional,
pelo recolhimento dos pequenos acontecimentos cotidianos capazes de
elucidar os fatos históricos, compondo assim “o quadro das pequenas
narrativas, igualmente responsáveis pela construção do sentido subliminar da
história”106. É colocar o sujeito na borda da história e operar nas “rupturas
específicas”; uma espécie de história nova, que a partir das pequenas
significações, fatos e atitudes “aparentemente inexpressivas” do dia-a-dia, que
se ajuntam ao montante da obra do autor, e re-conta a história, afastando-se
dos grandes blocos históricos que entoam a nota dos vencedores. Michel
Foucault (1987), em A arqueologia do saber, nos chama atenção para a
substituição das sucessões lineares – história dos longos períodos, das
grandes bases imóveis e das grandes narrativas – pelo jogo das interrupções e
descontinuidades. Nesse ponto, podemos situar o sujeito da travessia dos anos
104
RUSSO apud DAPIEVE, 2004, p.98.
SOUZA, 2002, p.119.
106
Ibid., p.115.
105
1980 que promove, dessa forma, “um corte que só a ele pertence”. Daí, o
aparecimento de “vários passados” que, recortados e encadeados sob novas
categorias e redes de determinações107, coloca o sujeito, conforme aponta
Derrida (2002), na “borda presumida da dita ruptura, a borda de uma
subjetividade antropocêntrica que, autobiograficamente, se conta ou se deixa
contar uma história, a história de sua vida”108 – que vem a ser a História.
A inscrição do sujeito, que se dá também pela escrita, transformando a
experiência em um acontecimento textual, se caracteriza pela necessidade da
materialidade, capaz de reter, inscrever e arquivar. Derrida aponta a “irredutível
acontecimentalidade do acontecimento” que, ao ser arquivada, retida,
textualizada, “produz um novo acontecimento afetando assim o acontecimento
suposto primário, que ela presumidamente retém, traça, consigna, arquiva”109.
O acontecimento no arquivo de sua textualidade, ao afetar o centro e a
“origem” de sua acontecimentalidade, rompe as grandes bases imóveis e as
grandes narrativas da história, e, de forma descontínua, entre oscilações,
deslocamento e rupturas, a produção estética do sujeito é capaz de “descrever
os afastamentos e as dispersões, e desintegrar a forma tranqüilizadora do
idêntico”110. A “singular existência” do homem-animal autobiográfico vem à tona
e funciona, ao mesmo tempo, como indagação e resposta para o trabalho de
arqueólogo de Foucault: “como apareceu um determinado enunciado, e não
outro em seu lugar?”111. Buscar na superfície da palavra escrita para música,
ou seja, na inscrição do acontecimento textual, a profundidade e singularidade
que determina as condições de caminhada do sujeito é avançar na resposta.
2.3. A escrita autobiográfica do animal-poeta-fingidor
Talvez a invenção poética seja capaz de dar conta daquilo que, sem
fingimento ou invenção, a vida por si só, na sua rigidez, faz passar
despercebido ou indigno de nota. O poeta-fingidor muitas vezes encena uma
107
FOUCAULT, 1987, p.5.
DERRIDA, 2002, p.60.
109
Ibid., p.80.
110
FOUCAULT, 1987, p.14.
111
Ibid., p.31.
108
poética do eu, cedendo, sem força qualquer de oposição, aos instintos do
animal autobiográfico.
Dir-se-ia: “É um animal autobiográfico”. (...) Neste sentido, o
animal autobiográfico seria essa espécie de homem ou de
mulher que escolhe ou que não pode impedir de ceder, por
caráter, à confidência autobiográfica. Aquele ou aquela que
trabalha de bom grado com a autobiografia. E na história da
literatura ou da filosofia, para sugerir de maneira sumária, há
‘animais autobiográficos’, mais autobiográficos que os outros,
os animais de autobiografia.112
Os animais mais autobiográficos que outros, na lista de Derrida, são os
escritores e filósofos, tais como Rousseau, Proust e Gide, Virginia Woolf,
Gertrude Stein, Celan, Bataille. Acrescentam-se os poetas da música, Renato
Russo e Cazuza. Esses dois autores, que se projetam pela escritura e pela
voz, constituem-se como animais autobiográficos capazes de responder pela
travessia de uma geração inteira. A citação acima fornece parte dos subsídios
para a compreensão do que se trata tal animal adjetivado como autobiográfico.
A expressão remete diretamente ao instinto de registro da própria vida.
Logicamente, a afirmação implicaria uma longa discussão do tema, teorizado
por pensadores contemporâneos e de outros tempos. Em “A escrita de si”,
Foucault (1992) refere-se à individualização propriamente dita da memória.
Não cabe aqui, portanto, uma discussão a respeito das memórias escritas
anteriores à modernidade, que é o momento em que o sujeito se debruça sobre
si mesmo, sem a necessidade de um registro ligado ao clã ou ao coletivo. No
entanto, a memória escrita diretamente ligada à autobiografia remete
primeiramente às sociedades sem escrita, desde a Antigüidade, passando
pelos escritos aristocráticos como hypomnemata113 e pela correspondência114,
que seriam as primeiras formas de escrita de si, ligadas aos pensamentos, à
reflexão sobre as ações diárias, com o intuito de se evitar o mau
112
DERRIDA, 2002, p.90.
Os hypomnemata, de acordo com Foucault, são livros ou carnês individuais com citações,
fragmentos de obras, exemplos, ações testemunhadas, argumentações, resumos e reflexões
sobre coisas lidas, ouvidas e pensadas, servindo assim como um guia de conduta, bastante
cultivado no meio culto da época. FOUCAULT, 1992, p.135.
114
Quanto à correspondência, Foucault ressalta o exercício pessoal do missivista, já que
“escrever é, pois ‘mostra-se’, dar-se a ver, fazer aparecer o rosto próprio junto ao outro”. A
carta é um olhar de si ao destinatário, ao mesmo tempo um olhar que se volta para si mesmo.
FOUCAULT, 1992, p.150.
113
comportamento. Ao escrever, ações e pensamentos se tornam conhecidos,
passíveis, por isso, de serem combatidos se são pecaminosos ou possíveis de
levar à tentação. Desde então, compreende-se uma escrita de confissão, em
que se percebe a vergonha, a culpa, a tentativa de livrar do “coração o que
quer que seja de perverso”115. Exercício que levou ao limite Santo Agostinho e
Rousseau. A correspondência e os hypomnemata compreendem, portanto, a
escrita de si e da vivência do eu. Emprestam às múltiplas variações do gênero
autobiográfico o seu alto teor confessional – que Derrida desenvolverá em
profundidade em muitos dos seus escritos sobre o assunto.
Antes de pensar a questão da escrita autobiográfica como confissão,
Fernando Pessoa, ao evidenciar, na própria poesia, o caráter fingidor de toda
escrita, antecipa-nos o modo de ler e compreender o teor de autobiograficidade
de Renato Russo e Cazuza em suas letras de música. Ambos também, em
muitos momentos, alguns mais metalingüísticos e outros mais tênues, deixam
transparecer o ato de invenção da escrita, tanto no que se refere às próprias
ferramentas técnicas quanto àquilo que gira em torno e no interior do eu que
escreve: “Mas então porque eu finjo que acredito no que invento?/ Nada disso
aconteceu assim - não foi desse jeito”.116
Anteriormente, discutimos que tanto o eu da obra poética como o eu da
obra documental dos autores supõem uma encenação, a re-presentação do
vivido. Assim, a invenção poética é capaz de captar com mais profundidade
aquilo que reside também na profundidade, consciente ou inconsciente, do
sujeito, dando-nos, portanto, na superfície material da escrita, aquilo que
somente se pode perceber nela. Adentramos, assim, na diffèrance de Derrida,
em que “como se pode notar, esse ‘a’ se escreve ou se lê, mas não se pode
ouvi-lo”117: “São só palavras: teço ensaio e cena/ Cada ato enceno a
diferença”.118
Assim, a letra de música opera na diferença escrita daquilo que vem à
tona junto com ela. Renato Russo, ao dizer “escrevo justamente por que não
115
FOUCAULT, 1992, p.130.
LEGIÃO URBANA. “Acrilic on canvas”. R. Russo [compositor]. In: –. Dois. Rio de Janeiro:
EMI, p1986. 1CD. Faixa 3.
117
DERRIDA, 2002, p.14.
118
LEGIÃO URBANA. “Os barcos”. R. Russo [compositor]. In: –. O descobrimento do Brasil.
Rio de Janeiro: EMI, p1993. 1CD. Faixa 7.
116
sei”119, tem na superfície da letra, pelo reflexo de uma consciência que se
materializa na linguagem, aquilo que quer apreender, reconhecer e arquivar:
“Só por dizer é que finjo que sei”120.
É um eu diante do outro. Vemo-nos na escrita autobiográfica não como
uma imagem no espelho, mas vemos o outro que somos na imagem refratária
da escrita. A poética do eu permite que um outro, a quem também o eu se
dirige quando escreve, seja um eu - outro no trânsito entre aquilo que reside no
interior do sujeito e aquilo que se manifesta na escrita. Desse modo, o eu e a
escrita sempre se modificam e movimentam-se, o que leva ao reconhecimento
de si próprio e ainda ao autoconhecimento. Mas um autoconhecimento que é
do outro:
Um outro agora vive na minha vida
Sei o que ele sonha, pensa e sente
Não é coincidência a minha indiferença
Sou uma cópia do que faço
O que temos é o que nos resta
E estamos querendo demais.121
O auto da autobiografia responde pela assinatura do eu: o eu das letras
de música cantado por uma multidão não deve ser confundido com a
assinatura do autor dito real, mesmo ele sendo o protagonizador daquilo que o
distingue como autor. Há o ato parricida da escrita: mata-se o pai para que ela
continue, de forma independente, a existir, a falar na ausência/ presença,
quando seu significante se esvazia e ganha possibilidades ilimitadas na
atualização do leitor/ ouvinte. Foucault (1992) aponta que a regularidade da
escrita está sempre pronta a ser experimentada em seus limites, havendo
assim possibilidades de transgressão e inversão: “a escrita desdobra-se como
um jogo que vai infalivelmente para além das suas regras, desse modo as
extravasando”122. O jogo, na abertura e no movimento de um espaço, em que o
sujeito da escrita tende sempre a desaparecer, possibilita a existência do outro,
119
RUSSO apud DAPIEVE, 2004, p.98.
LEGIÃO URBANA. “La nuova gioventu”. R. Russo [compositor]. In: –. O descobrimento do
Brasil. Rio de Janeiro: EMI, p1993. 1CD. Faixa 13.
121
LEGIÃO URBANA. “A montanha mágica”. R. Russo [compositor]. In: –. V. Rio de Janeiro:
EMI, p1991. 1CD. Faixa 3.
122
FOUCAULT, 1992, p.35.
120
que (não) preenche as lacunas de uma obra, e, assim, pode-se dizer sempre
inacabada.
Em “Quase sem querer”, Renato Russo, como sintetiza o título, aponta o
caráter de imprevisibilidade da escrita, sua possibilidade do impossível e sua
necessidade de audácia:
Quantas chances desperdicei
Quando o que eu mais queria
Era provar pra todo o mundo
Que eu não precisava
Provar nada pra ninguém.
Me fiz em mil pedaços
Pra você juntar
E queria sempre achar
Explicação pro que eu sentia.
Como um anjo caído
Fiz questão de esquecer
Que mentir pra si mesmo
É sempre a pior mentira.123
E o tom “exagerado” e as invenções poéticas e do amor, tão presentes
na obra e na voz de Cazuza, o garoto da zona sul do Rio de Janeiro, que
protagonizou a escassez (também do amor) de sua geração, nos faz aproximar
da idéia de que a poesia, assim como o amor, seja uma invenção “pra se
distrair”. Mas ao contrário do amor inventado que, “quando acaba, a gente
pensa que nunca existiu”124, a poesia fica como registro escrito do eu, do seu
tempo, e dos percalços da travessia. Daí, as possibilidades do retorno
constante, de movimentação e de leituras que tornam sempre e novamente a
escrita como algo presente, ainda como uma espécie de pós-scriptum: a
afirmar o suplemento. Um verdadeiro “veneno antimonotonia”125.
Os versos de “Exagerado” nos colocam diante da sedução causada pelo
fingimento, tanto do amor quanto da poesia:
Exagerado
Jogado aos teus pés
Eu sou mesmo exagerado
123
LEGIÃO URBANA. “Quase sem querer”. R. Russo [compositor]. In: –. Dois. Rio de Janeiro:
EMI, p1986. 1CD. Faixa 2.
124
CAZUZA. “O nosso amor a gente inventa”. Cazuza [compositor]. In: –. Só se for a dois. Rio
de Janeiro: Som Livre, p1987. 1CD. Faixa 3.
125
CAZUZA. “Todo amor que houver nessa vida”. Cazuza [compositor]. In: –. O tempo não
pára. Rio de Janeiro: Som Livre, p1988. 1CD. Faixa 8.
Adoro um amor inventado.126
Assim, os conhecidos versos de Fernando Pessoa, ele mesmo (será?),
que um dia declarou com toda sinceridade:
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.127
são capazes de sintetizar o fingimento autobiográfico do animal que logo
somos, dramatizado na escrita de Renato Russo e Cazuza.
A metalinguagem da sinceridade do fingimento que revela o fazer
poético legitima a poesia não como mentira, mas como expressão artística, que
se desliga da relação natural factual entre vida e obra e é capaz de
“transformar o tédio em melodia”128.
2.4. A escrita autobiográfica como confissão
Ao escrever, o outro em nós se revela. Vê-se o outro de si mesmo na
escrita. Desvela-se o eu, despe-se, porque na nudez das palavras o outro que
agora em mim vive, pensa, sente e se revela pelo instinto do animal, dado à
autobiografia intelectual e poética. E desde que o homem sentiu vergonha da
própria nudez, ainda lá no Paraíso, ao desobedecer às ordens de Deus, nascia
o pecado, o erro, a falta e a morte. Entre o bem e o mal, o homem agora
poderia escolher e precisaria esconder o sexo exposto, porque soubera estarse nu diante do outro, de Deus e, antes, de si mesmo. Sabemos que o ato de
se vestir é hábito apenas do homem, o único animal consciente da sua nudez e
da vergonha que ela causa, desde a expulsão do Éden. “O homem seria o
único a inventar-se uma vestimenta para esconder seu sexo. Só seria homem
ao tornar-se capaz de nudez, ou seja, pudico, ao saber-se pudico porque não
126
CAZUZA. “Exagerado”. Cazuza [compositor]. In: –. Exagerado. Rio de Janeiro: Som Livre,
p1985. 1CD. Faixa 1.
127
PESSOA, http://www.releituras.com/fpessoa_psicografia.asp, captado em 04/04/2007.
128
CAZUZA. “Todo amor que houver nessa vida”. Cazuza [compositor]. In: –. O tempo não
pára. Rio de Janeiro: Som Livre, p1988. 1CD. Faixa 8.
está mais nu”129. O vestiário, portanto, corresponde à técnica de encobrir a
nudez. A nudez é apenas o “sentimento, o afeto, a experiência (consciente ou
inconsciente) de existir na nudez”130. Por isso, o animal está alheio ao que
implica saber-se nu, saber de si. E ao saber de si em que isso implica? Quem
sou eu, então? Quem é este que eu sou? – indaga Derrida e o animal que nos
olha nu.
Saber de si mesmo tem sido desde o mundo antigo empreitada difícil à
qual os homens têm se entregado filosófica, espiritual, psicológica, cultural e
pessoalmente. “Conheça a ti mesmo”, prevenia o oráculo de Delfos. E Santo
Agostinho, ao assinar as Confissões, não apenas enumera suas faltas e
pecados para um Deus que tudo sabe e tudo vê. Mostra que ao confessar –
exercício que o santo-pecador fez por escrito –, damo-nos a conhecer a nós
mesmos, revelando-nos nus pela nudez das palavras que, paradoxalmente,
despe-nos e nos encobre da falta cometida diante de Deus e do outro. O outro,
antes de tudo, que é si mesmo. Desse modo, antecipa Santo Atanásio:
“escrevendo os nossos pensamentos como se os tivéssemos de comunicar
mutuamente, melhor nos defenderemos dos pensamentos impuros por
vergonha de os termos conhecido”131.
A escrita abriga o desejo da confissão, da revelação e do perdão. Dessa
forma, a escrita autobiográfica implica o ato da confissão, no sentido de arquivo
da experiência do vivente, e no sentido eclesiástico, como assinam, na tradição
ocidental cristã, Santo Agostinho e Rousseau. Para haver a confissão é
preciso, antes, a experiência do acontecimento e afirma Derrida que “não há
acontecimento sem experiência (e isso é o que, no fundo, “experiência” quer
dizer), sem experiência, consciente ou inconsciente, humana ou não, do que
acontece ao vivente.”132 No sentido da confissão da “acontecimentalidade” ou
da “acontecimentalidade” da confissão, Renato Russo e Cazuza assinam os
nomes dos viventes que experimentam a travessia, sendo capazes, ao dizer eu
- homem, eu - animal da escrita, de remeter, antes de responder, ao
arquivamento da experiência de toda a sua geração. Suas escritas podem ser
lidas como memórias coletivas, aproximando da função do relato da memória
129
DERRIDA, 2002, p.18.
Ibid., p.17.
131
ATANÁSIO apud FOUCAULT, 1992, p.130.
132
DERRIDA, 2004, p.36.
130
anterior à Idade Moderna, quando o nós se sobrepunha ao eu. No entanto, a
assinatura do nome da escrita visivelmente forjada na primeira pessoa do
singular sugere a intimidade da confissão, numa sociedade oposta àquela que
valorizava o coletivo em detrimento do particular. Entretanto, será justamente
pela assinatura do nome nos relatos autobiográficos confessionais desses dois
autores que se dará a junção do desejo imanente presente na escrita: a de ser
arquivo do acontecimento e arquivo da confissão. Logo, na primeira canção do
primeiro álbum da Legião Urbana, Renato Russo assinala:
Será que vamos ter
Que responder
Pelos erros a mais
Eu e você?133
Fica, portanto, declarada a ansiedade que antecede à confissão dos
erros próprios e do outro. O conteúdo autobiográfico presente nas letras referese também ao outro, o outro de si mesmo e o outro que o olha nu, e o faz
consciente de sua nudez e daquele mesmo que o expia.
A seguir, porque o animal segue e é seguido, abre-se (e não fecha,
apenas se movimenta) as obras de Russo e Cazuza, para as quais se voltam a
pergunta, em apressar-se em cobrir: a palavra cobre ou descobre, me põe nu
ou é uma vestimenta? “Não sei mais responder, nem mesmo responder pela
questão que me anima ou me interroga sobre quem sigo ou atrás de quem eu
sigo, e sigo assim correndo”, diria Derrida134. A perseguição de saber quem eu
sou e ao mesmo tempo de querer não mais saber – o despir-se e o vestir-se
pela palavra escrita – caracteriza-se na encenação de toda escrita
autobiográfica, ao passo que se busca conhecer a si mesmo, para que a
materialidade, a posteriori, se caracterize como documento, podendo assim
responder, com sinceridade e verdade, pela assinatura e pela travessia: “Não
tenho nenhum pudor em documentar meus momentos de dor e angústia. Não
entro nessa de ter que dizer que está tudo bem. Porque senão a música não
vira documento, história, registro de vida”135. A consciência de Cazuza do
registro documental através da obra poética não o impediria de, na expressão
133
LEGIÃO URBANA. “Será”. R. Russo [compositor]. In: –. Legião Urbana. Rio de Janeiro: EMI,
p1984. 1 CD. Faixa 1.
134
DERRIDA, 2002, p.27.
135
CAZUZA apud ECHEVERRIA, 2001, p.163.
poética, onde o eu através da confissão depara-se frente a frente com o animal
que o olha (ele mesmo), escrever:
O meu prazer
Agora é risco de vida
Meu sex and drugs não tem nenhum rock 'n' roll
Eu vou pagar a conta do analista
Pra nunca mais ter que saber quem eu sou136
Ao se constituir como linguagem, o sujeito se constitui e se conhece,
sem nem sempre se reconhecer. Tanto Cazuza como Renato Russo se
mostram conscientes do feitio poético que comporta o confessional e o
documental. E ao longo da escrita vão se revelando com mais força, fazendo
vir à tona os paradoxos da escrita e do sujeito: conturbações presentes na
superfície da letra que desvela o momento histórico de mesma característica
que (des)norteia o sujeito.
Deparamo-nos, no início, com um eu que busca o relato do
acontecimento para que na materialidade da experiência possa vir a acontecer
a confissão. Sem a apreensão do acontecimento, o eu se interroga num ato
que antecede a confissão e a culpa, antecipando, no entanto, a necessidade de
perdão e de salvação. O eu de “Soldados”, do primeiro álbum da Legião
Urbana (1984), num processo de descoberta e interrogações, busca conhecer
quem é o eu ao saber quem é o outro. Um processo que permite o inverso:
saber quem eu sou me dá a conhecer o outro. Daí, o valor documental que a
obra pode conter, dando-nos o poder de desvelamento do eu e do nós – um
tanto mutável, tal como a própria poética.
Tenho medo de lhe dizer o que eu quero tanto
Tenho medo e eu sei porque:
Estamos esperando.
Quem é o inimigo?
Quem é você?
(...)
Não sei armar o que eu senti
Não sei dizer que vi você ali.
Quem vai saber o que você sentiu?
Quem vai saber o que você pensou?
136
CAZUZA. “Ideologia”. Cazuza [compositor]. In: –. Ideologia. Rio de Janeiro: Som Livre,
p1988. 1CD. Faixa 1.
Quem vai dizer agora o que eu não fiz?
Como explicar pra você o que eu quis.137
Portanto, o acontecimento e a experiência em Renato Russo e Cazuza
estão diretamente ligados à escrita confessional – o eu na travessia faz o
acontecimento existir no momento em que o relato, o registro e o arquivamento
da experiência se fazem. A movimentação das leituras infinitas que preenchem
a ausência/ presença da assinatura do autor e o significante esvaziado
produzem um novo acontecimento, uma nova experiência, arquivável, inventiva
ainda. O acontecimento significante que se tenta organizar se reúne diante do
caos, promovendo a tensão com aquilo que fica disperso: novamente acontece
a tensão da obra e da escrita, que reúnem e dispersam, unificam e dividem –
Deus e o Diabo nas palavras. “Fadado à virtualidade do ‘cedo ou tarde’, o
arquivo produz o acontecimento, tanto quanto registra ou consigna”138, aponta,
portanto, Derrida.
O processo de descoberta e autoconhecimento do sujeito das canções
da Legião Urbana acompanham o refinamento poético de Renato Russo. No
disco Dois (1986), a letra de “Daniel na cova dos leões”, por exemplo, revela
um eu que se (des)cobre pelas metáforas. O título de referência bíblica pode
remeter e antecipar o julgamento daquele que veio a conhecer a tentação e a
cair em pecado. Condenado, o eu faz da escrita metafórica uma forma de
cobrir a nudez que se dá pelas próprias palavras. O eu, na “sinceridade” de
poeta, confessa:
Faço nosso o meu segredo mais sincero
E desafio o instinto dissonante.
A insegurança não me ataca quando erro
E o teu momento passa a ser o meu instante.
E o teu medo de ter medo de ter medo
Não faz da minha força confusão:
Teu corpo é meu espelho e em ti navego
E eu sei que tua correnteza não tem direção.139
O eu se depara com o outro e com a imprevisibilidade da escrita que,
como o outro (e si mesmo) sem direção, segue em frente. Mais adiante, no
137
LEGIÃO URBANA. “Soldados”. R. Russo [compositor]. In: –. Legião Urbana. Rio de Janeiro:
EMI, p1984. 1 CD. Faixa 9.
138
DERRIDA, 2004, p.66.
139
LEGIÃO URBANA. “Daniel na cova dos leões”. R. Russo [compositor]. In: –. Dois. Rio de
Janeiro: EMI, p1986. 1 CD. Faixa 1.
mesmo álbum, temos a confissão do erro no ritmo de maturação do eu e da
maturação lírica que Renato Russo persegue tal como se persegue a um
animal:
Nada mais vai me ferir.
É que eu já me acostumei
Com a estrada errada que eu segui
E com a minha própria lei.140
O amadurecimento leva o sujeito a tomar consciência da confissão que
ganha na materialidade da palavra escrita a visibilidade do erro e da falta. “Eu
sei” protagoniza a busca da sinceridade fingida do poeta que encena a atitude
do sujeito e, ao mesmo tempo, nestes versos, ilustra a busca da ética nas
relações humanas tão presentes em Renato Russo. Para Derrida (2002), ainda
ninguém foi capaz de negar ao animal o “poder de traçar ou de retraçar um
caminho em si. Que se lhe tenha recusado o poder de transformar esses traços
em linguagem verbal...”141:
Sexo verbal não faz meu estilo
Palavras são erros, e os erros são seus
Não quero lembrar que eu erro também
Um dia pretendo tentar descobrir
Porque é mais forte quem sabe mentir
Não quero lembrar que eu minto também.
Eu sei142
A afirmação “eu sei” remete à autenticidade do sujeito que se dá pela
experiência do ser vivente. Dessa forma, os dizeres de Derrida também são
válidos para toda a poética autobiográfica:
Que todo enunciado teórico, cognitivo, toda verdade por
revelar, assume uma forma testemunhal, a de um “eu penso”
ou “eu digo” ou “eu creio”, “eu tenho o sentimento interior que”
etc, “eu guardo uma relação para comigo a que você nunca
em acesso imediato e em razão da qual você deve acreditar
em minha palavra”.143
140
LEGIÃO URBANA. “Andrea Doria”. R. Russo [compositor]. In: –. Dois. Rio de Janeiro: EMI,
p1986. 1 CD. Faixa 10.
141
DERRIDA, 2004, p.91.
142
LEGIÃO URBANA. “Eu sei”. R. Russo [compositor]. In: –. Que país é este - 1978/1987. Rio
de Janeiro: EMI, p1984. 1 CD. Faixa 6.
143
DERRIDA, 2004, p.78.
Por aí, o fingimento do poeta não se torna uma mentira e assume forma
documental que ultrapassa a subjetividade do momento da escrita e sobrevive
à assinatura do autor. No ritmo do amadurecimento do eu – lírico, que cada vez
mais se dá ao trabalho da poética confessional, revelando-se nu nas letras das
canções, tem-se o cuidado com a ética, que como dissemos, norteia a obra de
Renato Russo. Em um dos versos de “Natália”, canção do álbum A
Tempestade (1996), temos a materialização do cuidado sincero que entra em
consonância com a busca do amor como salvação para as faltas e erros: “Não
confunda ética com éter”144. A advertência ganha na próxima canção de A
Tempestade um tratado poético e ético para as relações humanas, em que se
tem a confissão, a necessidade do perdão e da salvação. O amor, colocado
como algo acima daquilo que nos faz pequenos nos gestos faltosos, aproximase do perdão e exige a sinceridade tanto daquele que o apreende, quanto
daquele que canta os amores – o poeta-fingidor:
Nada é fácil, nada é certo
Não façamos do amor algo desonesto
Quero ser prudente e sempre ser correto
Quero ser constante e sempre tentar ser
sincero
(...)
E o que eu era eu não sou mais
E não tenho nada p’rá lembrar145
Os dois últimos versos citados nos permitem visualizar o trabalho da
memória no tecido poético autobiográfico. Entre esquecer e lembrar, tem-se o
material para a construção da autobiografia. Os versos ainda revelam o quanto
a escrita pode incomodar ao permitir que o eu me olhe nu, sendo visto pelo
animal em mim que sabe da minha condição de nudez. Daí, muitas vezes
negar aquilo que somos sem a vestimenta que encobre, sem a máscara que
protege. Como confissão sincera e poesia fingida, o poeta pode se valer do
jogo que essas afirmações permitem e dizer: “Não é desejo, nem é saudade/
144
LEGIÃO URBANA. “Natália”. R. Russo [compositor]. In: –. A tempestade. Rio de Janeiro:
EMI, p1996. 1 CD. Faixa 1.
145
LEGIÃO URBANA. “L’Aventura”. R. Russo [compositor]. In: –. A tempestade. Rio de Janeiro:
EMI, p1996. 1 CD. Faixa 2.
Sinceramente nem é verdade.146 Assim, muitas vezes a confissão se torna
fingida e a poesia, por sua vez, sincera.
Nesse ritmo lúdico da poesia que mistura lembrança e esquecimento,
sinceridade e fingimento, culpa e perdão, o eu tenta se constituir e encontra na
canção uma forma de salvação, de resistência, de perdão. O amor, em “Soul
Parsifal”, aparece como aquilo que permite a unidade. Busca-se a integridade,
a afirmação e o autoconhecimento que se dão pela escrita. O relato da culpa
encontra agora a salvação na materialidade da poesia que descobre e encobre;
pois toda confissão carrega a culpa e o perdão. Ao confessar me tenho
perdoado, cubro-me de novo:
Eu tenho um jardim e uma canção
Vivo feliz, tenho amor
Eu tenho um desejo e um coração
Tenho coragem e sei quem eu sou
(...)
Com a saudade teci uma prece
E preparei erva-cidreira no café da
manhã
Ninguém vai me dizer o que sentir
E eu vou cantar uma canção p'rá mim147
Ao se cobrir de “novo”, o eu se protege nas vestimentas e se faz novo no
sentindo de renascer, remete ao desejo da ressurreição presente em Santo
Agostinho. Esse desejo é o maior mobilizador da confissão, que já pressupõe
o perdão e fomenta com mais ânsia a salvação. A escrita que comporta o
desejo de confissão comporta também a esperança de amortização da falta
com o credor-Deus, aprisona-se e liberta-se em seguida. Morte e vida se
entrelaçam: morre-se para ressurgir-se. Um processo que encontra o acalanto
na doutrina cristã: a necessidade do sofrimento como forma de purificação e de
salvação. Algo próximo ao que Cazuza cantou de forma irônica em “Um trem
para as estrelas”:
Estranho o teu Cristo, Rio
Que olha tão longe, além
Com os braços sempre abertos
Mas sem proteger ninguém
146
Id., ibid.
LEGIÃO URBANA. “Soul parsifal”. R. Russo [compositor]. In: –. A tempestade. Rio de
Janeiro: EMI, p1996. 1 CD. Faixa 8.
147
Eu vou forrar as paredes
Do meu quarto de miséria
Com manchetes de jornal
Pra ver que não é nada sério
Eu vou dar o meu desprezo
Pra você que me ensinou
Que a tristeza é uma maneira
Da gente se salvar depois.148
Cazuza cantaria, em um pedido de perdão e piedade coletivos, a sua
própria necessidade de salvação. “Blues da Piedade”, que reflete o
amadurecimento lírico do autor, é um exemplo de confissão que remete
diretamente à necessidade de perdão e salvação que pressupõe toda
confissão através da escrita. A letra deixa transparecer, na sua metalinguagem
a necessidade de piedade para o nós e para o eu que se escondem no outro.
Nos versos de métrica semelhante às preces da liturgia cristã, que estende
para toda a comunidade o desejo de perdão íntimo, encena-se a busca do
perdão para as falhas do eu, dramatizado numa voz no plural que encobre a
vergonha e a culpa de uma voz no singular:
Agora eu vou cantar pros miseráveis
Que vagam pelo mundo derrotados
Pra essas sementes mal plantadas
Que já nascem com cara de abortadas
Pras pessoas de alma bem pequena
Remoendo pequenos problemas
Querendo sempre aquilo que não têm
(...)
Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Pra essa gente careta e covarde
Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Lhes dê grandeza e um pouco de coragem149
Em Cazuza as confissões tomam o tom “exagerado”, marca do autor. No
entanto, percebe-se menos em suas letras a metalinguagem que explica o
caráter de poeta-fingidor e de confessor sincero de suas culpas, algo que em
148
CAZUZA. “Um trem para as estrelas”. Cazuza [compositor]. In: –. Ideologia. Rio de Janeiro:
Som Livre, p1988. 1CD. Faixa 6.
149
CAZUZA. “Blues da piedade”. Cazuza [compositor]. In: –. Ideologia. Rio de Janeiro: Som
Livre, p1988. 1CD. Faixa 9.
Renato Russo, como vimos, segue todo o percurso do eu ao longo de sua
obra.
No entanto, em ambos os autores, a confissão acontece, na maioria das
vezes, sem o querer, sem a busca consciente das falhas. Sem a vontade
declarada da confissão, há o desvelamento da história do eu e do nós. Por
isso, muitas vezes, quando, na superfície da letra, o homem se depara com o
animal que o olha nu – porque agora se encontra descoberto pelas palavras –,
ele nega saber de si, promove um percurso contrário ao da materialização da
linguagem. Ficam, portanto, os rastros do animal nos rastros da escrita que não
permite a composição totalizadora desse homem que escreve, até porque é
impossível o todo. Como é impossível toda lembrança sem esquecimento, tal
qual Funes150, que não mais tem nada a lembrar, por não ter mais o que
esquecer.
Pode-se pensar na possibilidade de apagar os rastros, mas, sobre as
marcas das pegadas e traços, o animal se inscreve com mais força, o que
acaba por revelá-lo novamente. Os rastros deixam traços palimpsestuosos: a
escrita que remete a outra escrita, o eu que remete ao eu - outro em si. O
movimento desestabiliza o todo e o centro e impede a totalização do ser, a
totalização da memória, e a totalização da escrita da experiência do
acontecimento. O acontecimento se torna textual, rastro, que o animal fareja,
retoma, arquiva, consigna, encontra. “É como se, há pouco, eu estivesse dito
ou fosse dizer o interdito, alguma coisa que não se deveria dizer. Como se por
um sintoma eu confessasse o inconfessável e, como se diz, eu estivesse
querido morder minha língua.”151
Assim, não devemos também esquecer que as obras de Renato Russo e
Cazuza, ao serem lidas como autobiografia, pressupõem a exposição da nudez
que extrapola o próprio olhar do animal em nós e ganha o olhar do outro. Uma
nudez que acontece, antes de tudo, no espaço privado e depois ganha a
visibilidade pública:
Quando me vi tendo de viver comigo apenas
E com o mundo
150
151
BORGES, 1979, p.477-484.
DERRIDA, 2002, p.17.
Você me veio como um sonho bom
E me assustei152
Nas palavras de Derrida, podemos ler a questão da exposição da nudez
do homem autobiográfico que canta sua experiência de ser vivente:
Os animais me olham. Com ou sem rosto, justamente. Eles se
multiplicam, eles me saltam cada vez mais selvagemente aos
olhos à medida que meus textos parecem se tornar, como
quiserem fazer-me crer, cada vez mais ‘autobiográfico’.153
Todavia, este “cada vez mais autobiográfico” pressupõe a encenação de
quem se despe. Dessa forma, o limite do eu - homem e do nós - homem nas
obras de Renato Russo e Cazuza se torna tênue ao propor o rompimento e
fusão do eu e do nós. A nudez do eu reflete a nudez de sua geração.
Onde, então, residiria tanta culpa para a confissão? Em que momento da
travessia, o acontecimento leva à confissão e à necessidade do perdão? Em
que circunstâncias, a obra de relato íntimo da dor e da angústia, que Cazuza
não teme em relatar, carrega a tensão vida-e-morte? Qual o sentimento de
culpa que reside no interior daqueles que se libertam das amarras do
autoritarismo e da repressão e procuram o domínio do próprio corpo e da
linguagem ao mesmo tempo em que se deparam com mal do século XX, a
Aids?
A poética da travessia seria uma forma de vencer a morte e libertar a
obra do tempo fixo, lutando contra o tempo que não pára, lançando, assim,
todo o crédito de seu entendimento para o futuro – como já pressupunha
Nietzsche, ao se mostrar conhecedor da desproporção entre a grandeza de
sua tarefa e a pequenez de seus contemporâneos. Assim, somos ainda
devedores de uma compreensão maior das obras de Renato Russo e Cazuza,
que bem poderiam receber o subtítulo retirado da autobiografia do filósofo
alemão – “como cheguei a ser o que sou”.154
152
LEGIÃO URBANA. “O teatro dos vampiros”. R. Russo [compositor]. In: –. V. Rio de Janeiro:
EMI, p1991. 1 CD. Faixa 5.
153
DERRIDA, 2002, p.67.
154
NIETZSCHE, Frederico. Ecce homo: como cheguei a ser o que sou, 1959.
3. Vozes que compõem o rock da travessia
Do feio, o poeta desperta um novo encanto.
Charles Baudelaire
3.1. A escrita palimpsestuosa: polifonia, roubo e “outridade”
Mikail Bakhtin, ao analisar os Problemas da poética de Dostoiévski, no
capítulo “Particularidades do gênero e temático-composicionais das obras de
Dostoiévski”, estabelece, a partir de uma cosmovisão da evolução da prosa
literária européia, a concepção do romance polifônico. A obra de Dostoiévski
deixaria perceber a variedade de vozes distintas que se entrecruzam no texto,
estruturado de tal forma que faz ecoar pontos de vista diferentes. Os romances
do autor, de acordo com análise de Bakhtin, estariam impregnados de
elementos dos mais distintos gêneros que, depois de passarem por tensa
evolução ao longo da história da literatura, se fariam presentes em seus textos
romanescos. Do diálogo socrático, passando pela menipéia e seus
desdobramentos na Idade Média, o autor russo, no século XIX, comporia seus
romances com agudas síncrises dialógicas, crises, reviravoltas, catástrofes,
escândalos, combinações de contrastes e oxímoros, solilóquios, confissões –
num emaranhado de vozes que ecoam ao longo da tessitura do texto. Ao
renovar cada um desses gêneros, a criatividade de Dostoiévski residiria na
multiplicidade de pontos de vista que constitui a “realidade”, sendo que cada
voz distinta ou em consonância se apresenta em igual grau de convencimento.
Posicionados em um dado contexto sócio-histórico, os personagens ou
indivíduos na relação dialógica da linguagem constroem o sentido, que emerge
do embate discursivo, num confronto incessante de interação.
A multiplicidade de vozes, presentes no romance polifônico, se faz
presente também no sujeito que, constituído como um ser vivente na história e
na sociedade, suporta no seu discurso a presença de inúmeras outras vozes.
Assim, na voz do outro se faz presente o outro e si mesmo. Um jogo constante
de interação entre enunciadores e enunciatários, entre discursos, entre textos,
entre formas de expressões artísticas, e entre momentos diversos da história
do homem. Bakhtin (1995) concebe a linguagem como dialógica por natureza,
sendo necessária a instauração do eu e do outro no processo comunicacional.
A partir das análises da obra literária de Dostoiévski, o autor explica que a
polifonia instaura a constituição de sujeitos que sempre carregam a perspectiva
e a presença de um outro, da voz do outro, da voz histórica e do presente.
Vozes essas que se mesclam à voz criativa do eu e instaura a enunciação, que
sempre e novamente, retoma, em cada espaço e tempo de realização, a voz do
outro.
Bakhtin, ao constatar a evolução da literatura, evidencia que o “gênero
sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo”155.
Assim, podemos conceber o sujeito e suas inúmeras formas de expressão –
práticas e artísticas – sempre comportando uma perspectiva de vozes distintas
que, em confronto ou harmonia, tecem o discurso, a literatura e as artes. Há
nesse processo de movimento aquilo que renasce e se renova, aquilo que se
conserva e o que se acrescenta: o suplemento.
Os caminhos abertos por Bakhtin, ao propor a relação dialógica da
linguagem
e
o
conceito
de
polifonia,
incentivam
vários
estudos
e
desdobramentos de seu pensamento. Teóricos e perspectivas tentam dar conta
dos fenômenos que recaem e derivam do processo interacional da linguagem –
quando acreditam que, na linguagem prática cotidiana, no texto científico e no
literário, está presente de forma explicita ou escamoteada a voz do outro.
Porém, sem se ater a grandes questões teóricas que separam ou agrupam
conceitos de polifonia e dialogismo, interessa aqui traçar o rastro dos rastros da
escrita palimpsestuosa e incestuosa do rock brasileiro dos anos 80,
representado nas obras de Renato Russo e Cazuza. Obras escritas que
comportam a voz do eu e do outro. Aproximando os conceitos de Bakhtin
(1981) ao pensamento de Derrida (2002, 2004), pretende-se rastrear os rastros
do animal autobiográfico que, de rastros em rastros, vestígios e pegadas,
roubos e confissões, deixa revelar na sua voz a voz do outro e ainda na voz do
outro a sua voz. Assim, questiona-se onde se deixam perceber as marcas
daquilo que não se apaga completamente na espessura do palimpsesto. Quais
os rastros, vestígios sobre vestígios, onde se pode detectar o clandestino, o
roubo, a confissão do roubo de escrita, na escrita “que acusa e que se
desculpa pelas citações e quase citações”156?
Derrida (2004), em Papel Máquina, no capítulo “Matéria e memória”,
apropria-se de Santo Agostinho, Rousseau e Paul de Man e se expande numa
escrita palimpsestuosa acerca da escrita confessional, que por sua vez, remete
a uma memória, uma história e um arquivo da confissão. Santo Agostinho e
Rousseau são autores de Confissões. Inauguradas por um roubo, as histórias
autobiográficas desses autores no acontecimento textual se fazem novamente
155
156
BAKHTIN, 1981, p.91.
DERRIDA, 2004, p.62.
roubo ao remeterem uma a outra, numa espécie de respeito à genealogia de
uma escrita de culpa e perdão.
As Confissões de Agostinho foram escritas antes da instituição
do procedimento católico da confissão; as de Rousseau,
protestante convertido, depois dessa instituição e, ademais,
depois da abjuração por Jean-Jacques de seu calvinismo
como se tratasse para ele de se situar na grande história
genealógica das confissões intituladas Confissões. Árvore
genealógica de uma linhagem mais ou menos literária que
começaria pelo roubo, toda vez numa árvore portadora, no
sentido literal ou figurado, de algum fruto proibido. Uma árvore
com folhas ou árvores sem folhas, que produziu tantas folhas
de papel, de papel para escrever ou de papel para máquina.
Rousseau teria gravado seu nome na economia arquival de
um palimpsesto por meio de quase citações tomadas na
espessura palimpsestuosa de uma memória quase literária:
uma linhagem clandestina ou criptada.157
Na folha de papel as marcas da escrita daqueles que confessam o roubo
remetem ao roubo da escrita, ao “roubo na linguagem, o roubo de uma palavra,
a apropriação abusiva da significação de uma palavra”158. Assim, “a inscrição
da obra, o acontecimento de texto em seu corpo gráfico, longe de exonerar,
eis, ao contrário, uma operação do opus que sobrecarrega, gera e capitaliza
um tipo de juro (não ouso dizer de mais-valia) de culpa”159. Portanto, toda
escrita é roubo, é confissão e perdão. E ao ser assim, movimenta, remete,
retoma, e gera no acréscimo do palimpsesto o montante da culpa.
Apropriando-se do texto do outro, citando para desculpar, citamos Paul
de Man, na linhagem de citação e (des)culpa de Derrida, ao longo do seu texto:
As desculpas geram a própria culpa que elas apagam [...]
embora sempre por excesso, ou falta. No final de Devaneios....
há muito mais culpa do que se tinha no início quando
Rousseau se aplica [grifo “aplicar-se”, se dá, se dedica] para
com o que ele chama, em outra metáfora corporal, de “le
plaisir d’écrire”, isso o deixa mais culpado do que nunca
(p.1038) [...]. Culpa suplementar significa desculpa
suplementar [...] [grifo meu] nenhuma desculpa jamais pode
ter a esperança de contrabalançar tamanha proliferação da
culpa. Por outro lado, qualquer culpa incluindo o prazer
culpado de escrever o Quarto devaneio pode sempre ser
rejeitada como produto gratuito de uma gramática textual, ou
de uma ficção radical: nunca haverá culpa o suficiente que se
157
Ibid., p.47.
Ibid., p.95.
159
Ibid., p.67.
158
iguale ao poder infinito que a maquina do texto tem de
desculpar.160
A citação da culpa e da desculpa acima carrega omissões e marcas de
quem cita, capitalizando mais culpa e, por sua vez, mais desculpa: a “culpa
suplementar significa desculpa suplementar”. Dessa forma, quase que numa
remissão ao labirinto da linguagem, quando toda escrita ao remeter a outra
corre o risco de se perder e se auto-envenenar, ao mesmo tempo, que exonera
e alivia o peso da dívida. Tenta-se (a)pagar o que não se (a)paga e se inscreve
e se fixa com mais força e profundidade no palimpsesto. Ecoa, dessa forma, no
texto, a multiplicidade de vozes e marcas, rastros e vestígios do animal outro. A
escrita polifônica de Bakhtin se sobrecarrega da culpa de Agostinho,
Rousseau, Paul de Man e Derrida: são escritas do roubo, escritas para a
salvação. São múltiplos os roubos e múltiplas as formas de desculpas, que se
capitalizam na escrita.
A tentativa de reconstituição do discurso próprio e do outro, que só se dá
por rastros, busca descobrir “a palavra muda” que murmura nas entrelinhas e
faz ecoar o “miúdo e invisível” do texto. Ato que permite elucidar aquilo que se
acrescenta nas camadas do palimpsesto, sobrepondo-se às espessuras finas,
contaminando-se, tocando-se, incorporando-se, penetrando-se. O corpo da
escrita, a escrita corpórea - que em si comporta a confissão, a acusação e o
perdão - suporta no prazer da mesma escrita um gozo ambíguo de inocência e
acusação, de revelação da inocência e busca pelo perdão. A escrita
palimpsestuosa é também incestuosa, já que escritas irmãs se contaminam ao
toque da nudez das palavras, na intimidade do palimpsesto, “no coração do
júbilo terrível e severo da inscrição”161:
Teu corpo alimenta meu espírito
Teu espírito alegra minha mente
Tua mente descansa meu corpo
Teu corpo aceita o meu como a um irmão162
160
161
DE MAN apud DERRIDA, 2004, p.67.
DERRIDA, 2004, p.69.
LEGIÃO URBANA. “Uma outra estação”. R. Russo [compositor]. In: –. Uma outra estação.
Rio de Janeiro: EM, p1997. 1CD. Faixa 2.
162
Renato Russo e Cazuza, ao responderem também pelo corpo que se
torna metáfora de si próprio e daquilo que arrisca na escrita que busca a
salvação, correm, na mesma medida, o risco do envenenamento. Corpos e
escritas se contaminam ao se sobreporem uns aos outros, na sensibilidade do
toque, no diálogo íntimo que confessa “segredos de liquidificador”163. Para
Derrida, a autobiografia é a escritura de si do vivente enquanto perseguição do
rastro do animal, – é auto-afecção ou auto-infecção ao passo que, ao escrever,
o eu se contamina com o outro, o outro de si mesmo, e o outro de fora: autoinfeccionam discursos, palavras, linguagens, confissões. “Nada corre o risco de
ser tão envenenador quanto uma autobiografia, envenenador para si, de
antemão, auto-infeccioso para o presumido signatário assim auto-afetado”.164 E
o risco de infecção se alarga na medida em que sabemos que, corpo-a-corpo,
as escritas se entregam umas a outras, sem qualquer proteção, mas seguindo
o instinto de diálogo, quando o animal autobiográfico sacia o instinto de
escrever-se e de inscrever-se.
Os diálogos presentes na música refletem os diálogos entre épocas
históricas e culturas distintas que, de maneiras diversas, deixam marcas no
sujeito, na sociedade e, conseqüentemente, na obra artística, em que a
différance se manifesta, dando-nos um entendimento do passado e,
principalmente, da contemporaneidade. Não só o sujeito se comunica com ele
mesmo e com o outro, na escrita e na arte, recuperando, pelas pegadas, aquilo
que ele veio a ser; a névoa que paira sobre o século XIX pode ainda embaçar a
noite das décadas finais do século XX. A década de 1980 consegue refletir,
ainda que de forma opaca, os resquícios de séculos anteriores e os destroços
de anos mais recentes – presentes nas composições de Cazuza e Renato
Russo.
A escrita polifônica ecoa, na multiplicidade de vozes que tecem a
partitura textual do rock, rastros e vestígios de poéticas diversas, que na
espessura do palimpsesto confessam a culpa. O acontecimento textual e o
diálogo entre escritas, como um ato de contrição, buscam a salvação, ao
mesmo tempo em que a própria escrita tenta apagar a culpa e a fixa na
163
CAZUZA. “Codinome beija flor”. Cazuza [compositor]. In: –. Exagerado. Rio de Janeiro: Som
Livre, p1985. 1CD. Faixa 6.
164
DERRIDA, 2004, p.87.
profundidade do corte e do rastro, que se lavra como a própria condenação.
Culpa e confissão, salvação e condenação, remédio e veneno: a escrita
pharmakon ou fazer poético é “jorro de tempo, é afirmação simultânea da morte
e vida”. Aqui nos contaminamos com o tom e ritmo de Octavio Paz (1982) que,
em O arco e a Lira, mais precisamente em “A revelação poética”, traça as
margens – que se cruzam e se confundem –entre poesia e religião. O poema
como participação retoma instantes da criação, instaura um tempo mítico. “A
recitação poética é uma festa: uma comunhão”. E assim o é na poesia que se
constitui ritmo, música: ritmo compartilhado, comunhão novamente.
A voz do outro – de Paz, no diálogo com Bakhtin e Derrida – ajuda-nos a
entender a “outridade” como constituição do homem em diálogo constante com
o eu e com o outro. Sempre um outro a dialogar consigo mesmo, a revelar-se:
“A poesia é revelação de nossa condição e, por isso mesmo, criação do
homem pela imagem. A revelação é criação. A linguagem poética revela a
condição paradoxal do homem, sua ‘outridade’, e assim o leva a realizar aquilo
que ele é”165.
Nesse sentido, temos a poesia de Renato Russo e a de Cazuza que
afirmam a falta. A poesia se constitui como a necessidade da presença, da
revelação e da redenção, criando-se em diálogo. “O homem é um nó de forças
interpessoais. A voz do poeta é sempre social e comum...”166, ressalta Paz na
mesma harmonia que ressalta Bakhtin ao conceber a linguagem como sendo,
por sua natureza, dialógica: a palavra é e não é nossa, traz sempre a
perspectiva da voz de um outro, de um outro que ainda é o próprio eu.
O ato de escrever poemas se oferece a nossos olhos como
um nó de forças contrárias, na qual nossa voz e a outra voz se
enlaçam e se confundem. As fronteiras se extinguem: nosso
discorrer se transforma insensivelmente em algo que não
podemos dominar totalmente; e nosso eu cede lugar a um
pronome inominado, que não é inteiramente um tu ou um
ele.167
165
PAZ, 1982, p.189.
Ibid., p.200.
167
Ibid., p.194
166
As palavras do ensaio de Paz, que toca a poesia e rompe os limites
textuais entre crítica e poética, aproximam-se das palavras desta poesia de
Mario de Sá Carneiro, que ganha a voz e melodia de Adriana Calcanhoto:
Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o outro.168
O trânsito de vozes, na relação dialógica da linguagem, em todas as
suas esferas, e principalmente na poética, é forma de revelação, de
autoconhecimento. É antes confissão da falta e busca de redenção. Aquele que
busca a salvação que vem do outro, deixa que os estilhaços da culpa atinjam o
outro. Se poesia é comunhão, o eu e o outro se comunicam: culpa e redenção
se entrelaçam, fixando-se, revelando o homem e o ser.
A polifonia em Renato Russo e Cazuza aponta direções que se
entrecruzam. Uma delas pode nos orientar na compreensão do fazer literário
dos dois compositores que tentam fazer jus ao título de poetas do rock
brasileiro. Ao dialogar com fontes nobres e poetas consagrados, ambos
revelam uma filiação de tradição e ruptura, que na história da literatura aponta
amizades literárias e afinidades eletivas entre poetas. Outro direcionamento
permite-nos ler na escrita palimpsestuosa a tentativa de recuperar rastros que
compõem a escrita do animal autobiográfico fragmentado, descentrado e
desconcertado. Os caminhos se cruzam, instaurando a poética como salvação,
como possibilidade: possibilidade da “outra voz” ser a minha voz e minha voz
ser a “outra voz”.
3.2. A “outra voz” de Renato Russo: amores de salvação
Renato Russo, em toda sua obra, deixa revelar o caráter polifônico de
sua poesia nos vários momentos de intertextualidade, quando se percebe o
diálogo claro com suas fontes de inspiração, sejam elas religiosas, literárias ou
musicais. Ou quando, ao recolher do dia-a-dia, o material para suas letras,
168
ADRIANA CALCANHOTO. “O outro”. Mário de Sá Carneiro [compositor]. In: –. Público. Rio
de Janeiro: BMG, p2000. 1CD. Faixa 7.
deixa-se entrever entre os rastros do eu e da vivência diária aquilo que se
revela na metalinguagem de suas canções, quando, muitas vezes, ouvimos
versos auto-explicativos que elucidam a necessidade da canção como
salvação, forma de estar vivo e de se fazer autoconhecer: “Quero ouvir uma
canção de amor/ que fale da minha situação”169. Os versos de “Natália”, do
álbum A tempestade, anunciam a escrita como vida e salvação:
A escuridão ainda é pior
que essa luz cinza
Mas estamos vivos ainda
E quem sabe um dia
eu escrevo uma canção p’ra você170
Renato Russo, em versos, deixa transparecer a concepção bakhtiniana
da linguagem, dialógica por natureza, quando nossas palavras são, sempre e
inevitavelmente, as palavras dos outros. O roqueiro brasileiro cantara em
“Quase sem quer”: “Sei que às vezes uso palavras repetidas, mas quais são as
palavras que nunca são ditas”171. Seus versos seriam, desde o primeiro disco,
um constante diálogo com fontes diversas, seja por citações, metáforas,
referências e releituras da música, da literatura e da cultura de outros tempos,
atualizadas no entrecruzamento de discursos e na enunciação, dando todo
sentido cantado em versos que vão tecendo sua obra. O diálogo constante
recupera discursos de outros tempos e culturas, atualizados de forma
legitimada na escrita nova e pela voz do cantor. A música, por sua vez, é capaz
se ser diálogo, por sua própria natureza na interação entre material poético,
melodia e performance. Diálogo que intensifica diálogos outros, presentes em
muitas das nossas canções. É como se fosse eco para a polifonia, que já é
repercussão de outros discursos. Assim, a música nos leva a refletir sobre a
problematização da experiência plural dos seus vários pontos de escuta,
provocando ecos polifônicos, quando atinge diferentes locais e meios sociais.
Como um discurso verbal e oral, a canção se comporta como fenômeno de
169
LEGIÃO URBANA. “O mundo anda tão complicado”. R. Russo [compositor]. In: –. V. Rio de
Janeiro: EMI, p1991. 1CD, faixa 8.
170
LEGIÃO URBANA. “Natália”. R. Russo [compositor]. In: –. A tempestade. Rio de Janeiro:
EMI, p1996. 1CD, faixa 1.
171
LEGIÃO URBANA. “Quase sem querer”. R. Russo [compositor]. In: –. Dois. Rio de Janeiro.
EMI, p1986. 1 CD. Faixa 2.
comunicação cultural e passa a ser compreendida dentro de uma situação
social e envolve formas de interação, participação, trocas, vivências e
experiências entre interlocutores e intérpretes. Ela consegue, dessa maneira,
ser farol, caleidoscópio, termômetro de nossas sociabilidades e transformações
históricas.
Entende-se aqui a polifonia nas letras de Renato Russo como tentativa
de recuperar ou revelar a “outra voz” nos rastros de sua escrita poéticomusical. A escrita se desdobra palimpsestuosa direcionando para uma relação
de afinidade e influências literárias que apontam um diálogo de tradição e
ruptura entre poetas de todos os tempos. Seguindo a leitura das escritas de
Russo e Cazuza como confissão, a polifonia pode ser também entendida como
recuperação de fragmentos e rastros do animal autobiográfico que visa à
salvação na própria escrita que denuncia a culpa. Assim, Russo o faz de
maneira metalingüística, onde se pode perceber nos vestígios que permitem
um rastreamento de uma escrita que tece um discurso amoroso variado, numa
mistura de culpa e salvação pela escrita que celebra o amor: amor de salvação.
Os fragmentos dos rastros do dia-a-dia tentam se livrar da “poeira que fica se
escondendo pelos cantos”172 e permitem uma leitura de uma poética do
cotidiano e do disparatado que, por sua vez, também celebra o amor: amor de
salvação. Nesses “cantos”, por onde passa o animal, sedimentam os resíduos
e resquícios dos dias e do eu. Na superfície acomodam-se e revelam-se
poeiras: os rastros do animal. Acumulam-se na superfície, ao longo dos dias,
poeiras e palavras, que se sobrepõem, acumulam-se. Sobre os “cantos” o
trabalho de arqueólogo procura o desvelamento daquilo que se esconde nas
várias camadas de escombros, ruínas, e resquícios de tantas escritas.
O disco V, de 1991, com a epígrafe de Brian Jones “Such psychic
weaklings has Western civilization made of so many of us” e “Bem vindo aos
anos setenta!”, esta assinada pelo próprio grupo, dá-nos a dimensão da
polifonia do rock de Renato Russo, tanto no que se refere ao diálogo entre
obras – poéticas e musicais – e no que se refere ao diálogo do poeta com seu
próprio tempo, e com o outro de si mesmo. O disco inicia-se com uma cantiga
de amor do português Nuno Fernandes Torneol, do século XIII, e termina com
172
LEGIÃO URBANA. “Teatro dos vampiros”. R. Russo [compositor]. In: –. V. Rio de Janeiro.
EMI, p1991. 1 CD. Faixa 5.
a instrumental “Come share my life”, do folclore americano. O conteúdo do
álbum ilustra a capacidade de comunicação de Renato Russo com culturas
diversas, de épocas e localidades diferentes, e se inscreve no diálogo com seu
próprio tempo e com os seus vários outros eus. O disco V abarca com lirismo a
bruma da era Collor, ao mesmo tempo em que compreende aspectos da
intimidade do autor. No entanto, as composições não se limitam à situação
sócio-econômica do Brasil no início dos anos 1990, nem se reservam às dores
pessoais de Renato. Elas se alargam no tempo e se mostram atualizadas em
qualquer momento histórico: adquirem o caráter de universalidade e
atemporalidade. Trabalho meticuloso, conscientemente articulado por seu
autor:
Eu me preocupo em fazer um texto que daqui a duzentos
anos, se a pessoa pegar, não vai precisar de nota de rodapé.
O que implica que “Há tempos”, por exemplo, “Disseste que se
tua voz tivesse força igual/ À imensa dor que sentes/ Teu grito
acordaria/ não só a tua casa/ mas a vizinhança inteira”, pode
ser ouvida numa vizinhança hi-tech em Nagóia, Osaka, ou
pode ser Vila Rica. Isso foi uma coisa com que sempre me
preocupei, uma coisa que aprendi com Drummond e Pessoa,
não querendo, me comparar, é claro.173
Dessa forma, ao ouvirmos os versos de “Metal contra as nuvens”,
canção divida em quatro partes, temos, se nos ativermos ao Brasil de 1990,
uma perfeita nota da afinação do poeta com seu tempo:
Quase acreditei na sua promessa
E o que vejo é fome e destruição
Perdi a minha sela e a minha espada
Perdi o meu castelo e minha princesa.
Quase acreditei, quase acreditei.
E, por honra, se existir verdade
Existem os tolos e existe o ladrão
E há quem se alimente do que é roubo.
Vou guardar o meu tesouro
Caso você esteja mentindo.174
173
RUSSO apud DAPIEVE, 2004, p.127.
LEGIÃO URBANA. “Metal contra as nuvens”. R. Russo [compositor]. In: –.V. Rio de Janeiro:
EMI, p1991. 1CD, faixa 2.
174
No entanto, a leitura nos dias de hoje dá-nos a entender, do mesmo
modo, o atual estado do país175. A arte da poesia aprendida com Drummond e
Pessoa se faz notar na articulação de vozes que ecoam na tessitura dos fios do
tecido poético-musical, quando a
presença-ausência do eu protagoniza a
subjetividade do poeta. “Metal contra as nuvens”, na extensão de seus tantos
versos, é o registro do eu e do nós, do tempo e do espaço, do privado e do
público, do local e do universal. A letra permite o diálogo do eu com seu tempo
e ainda deixa transparecer na bruma os conflitos e aflições que se estendem
para os conflitos e aflições do outro do seu tempo, do tempo passado e do
tempo que virá. A terceira parte da canção sintetiza num lirismo agressivo de
um cavaleiro andante e romântico176 (“Viajamos sete léguas/ por entre abismo
e florestas”177) o desconcerto e a busca de afinação do sujeito que vivencia a
obscuridade da Aids e enfrenta os conflitos internos do corpo e do espírito:
É a verdade o que assombra
O descaso o que condena,
A estupidez o que destrói.
Eu vejo tudo o que se foi
E o que não existe mais.
Tenho os sentidos já dormentes,
O corpo quer, a alma entende.
Esta é a terra-de-ninguém
Sei que devo resistir –
Eu quero a espada em minhas mãos.
Sou metal - raio, relâmpago e trovão.
Sou metal, eu sou o ouro em seu brasão.
Sou metal: me sabe o sopro do dragão.
Não me entrego sem lutar –
Tenho ainda coração.
Não aprendi a me render:
Que caia o inimigo então.178
Embora Renato Russo tivesse optado por não trazer a público a sua
doença, suas letras detectam a presença viral que aos poucos corrompe o
175
Como a letra de “Que país é este”, “Metal contra nuvens” não se torna absoleta. Nem o
Brasil deixa de ser um museu de grandes novidades, quando o futuro repete o passado.
176
Renato Russo após sair do Aborto Elétrico se auto intitulou “Trovador Solitário” e fazia
shows em bares de Brasília.
177
LEGIÃO URBANA. “Metal contra as nuvens”. R. Russo [compositor]. In: –.V. Rio de Janeiro:
EMI, p1991. 1CD, faixa 2.
178
Id., ibid.
corpo. Como acontecimento que leva à culpa, sexo, drogas, Aids e rock’n roll
embalam as canções que ora celebram Eros ora Thanatos. O sujeito reside
entre os destroços do regime autoritário e procura se encontrar, quando tudo
parece perdido. O acontecimento alimenta a culpa, que assim é expressa na
canção que subtende logo em seguida a salvação, pela escrita e no amor:
O que há de errado comigo?
Não consigo encontrar abrigo
Meu país é campo inimigo
E você finge que vê, mas não vê
(...)
Dai-me de beber, que tenho uma sede sem fim.
Olhe nos meus olhos, sou o homem-tocha
Me tira essa vergonha
Me liberta dessa culpa
Me arranca esse ódio
Me livra desse medo.
Olhe nos meus olhos, sou o homem-tocha
E esta é uma canção de amor,
Esta é uma canção de amor.179
No sentido da busca da salvação pela escrita e pelo amor, os versos
finais de “Perfeição” – letra que celebra as mazela da nação, estendendo
metonimicamente as mazelas do Brasil para o “eu que cantou essa canção”180
– aposta num futuro regido por Eros:
Venha, meu coração está com pressa
Quando a esperança está dispersa
Só a verdade me liberta
Chega de maldade e ilusão.
Venha, o amor tem sempre a porta aberta
E vem chegando a primavera Nosso futuro recomeça:
Venha, que o que vem é perfeição.181
A necessidade de renascimento se protagoniza, então, no álbum O
descobrimento do Brasil, que também é título de uma das canções, sem
qualquer referência direta à nação, ressalta, na serenidade e simplicidade da
179
LEGIÃO URBANA. “A fonte”. R. Russo [compositor]. In: –. O descobrimento do Brasil. Rio
de Janeiro. EMI, p1993. 1 CD. Faixa 2.
180
LEGIÃO URBANA. “Perfeição”. R. Russo [compositor]. In: –. O descobrimento do Brasil. Rio
de Janeiro. EMI, p1993. 1 CD. Faixa 4.
181
Id., ibid.
letra, a vontade de descobrimento de um novo eu, que agora se estende
metonimicamente para a necessidade de descoberta de um novo Brasil.
Voltando à “Metal contra as nuvens”, a última parte da canção – como
em outras letras de Renato Russo, que abarcam as dificuldades, os abismos,
as florestas, o caos, as misérias, a sombra e o martírio – se abre para o estado
de esperança e luz, que dissipa a bruma, ao se encerrar com versos otimistas
que avançam para o futuro:
– Tudo passa, tudo passará.
E nossa história não estará pelo avesso
Assim, sem final feliz.
Teremos coisas bonitas pra contar.
(...)
O mundo começa agora –
Apenas começamos.182
A partir daqui, podemos situar os fragmentos de um discurso amoroso –
que se estende para as diversas formas de amar – e se revela como forma de
salvação. Forma de lançar luz e esperança sobre os momentos negros,
“quando querem transformar/ dignidade em doença/ quando querem
transformar/ inteligência em traição/ quando querem transformar esperança em
maldição”183.
No álbum anterior a V, As quatro estações, de 1989, a Legião Urbana
abandona o tom de revolta e contestação, característico do rock, e procura o
equilíbrio entre letras e melodias que celebram o amor. Marcadas por fortes
referências religiosas e confissões íntimas, as músicas atingem o universal ora
partindo do pessoal, ora de discursos que dialogam com fontes conhecidas.
Em “Monte castelo”, por exemplo, o autor se apropria de dois textos clássicos
da literatura universal e reelabora, quase que palavra por palavra, o seu
discurso sobre o amor. Um feito inédito no rock brasileiro, não pela temática da
música, mas pelo deslocamento temporal e cruzamento de fontes clássicas e
distantes, que cedem seus fios para um novo texto que surge e ganha o
diálogo com a música e faz repercutir em vários pontos de escuta, a celebração
182
LEGIÃO URBANA. “Metal contra as nuvens”. R. Russo [compositor]. In: –. V. Rio de Janeiro:
EMI, p1991. 1CD, faixa 2.
183
LEGIÃO URBANA. “1965 (Duas tribos)”. R. Russo [compositor]. In: –. As quatro estações.
Rio de Janeiro: EMI, p1991. 1CD, faixa 6.
do amor em sua contradição, imperfeição e salvação. A letra se inicia com
versos em referência direta à epístola de São Paulo aos coríntios. Russo
reelabora de forma poética e musical a citação bíblica, numa seqüência
enumerativa, que afirma e nega as características do amor. A composição
segue com o primeiro quarteto de versos de Camões retirados de um dos seus
sonetos mais conhecidos, intercalados pela repetição da primeira estrofe da
música, que segue com a transcrição fiel do segundo quarteto e do primeiro
terceto do soneto, que ganha um quarto verso, na reelaboração do último verso
do poema do escritor português. A letra termina com a introdução de um novo
verso e a repetição de versos já cantados, finalizando do mesmo modo como
se iniciou:
Ainda que eu falasse a língua dos homens.
E falasse a língua dos anjos,
sem amor eu nada seria.
É só o amor, é só o amor
Que conhece o que é verdade
O amor é bom, não quer o mal
Não sente inveja ou se envaidece.
O amor é o fogo que arde sem se ver.
É ferida que dói e não se sente
É um contentamento descontente
É dor que desatina sem doer.
(...)
É um não querer mais que bem querer
É solitário andar por entre a gente
É um não contentar-se de contente
É cuidar que se ganha em se perder.
É um estar-se preso por vontade
É servir a quem vence, o vencedor;
É um ter com quem nos mata a lealdade.
Tão contrário a si é o mesmo amor.
Estou acordado e todos dormem todos dormem todos
dormem.
Agora vejo em parte.
Mas então veremos face a face.
É só o amor, é só o amor.
Que conhece o que é verdade.
Ainda que eu falasse a língua dos homens
E falasse a língua do anjos,
sem amor eu nada seria.184
“Monte castelo”, numa junção de poesia e religião, remete-nos a Octavio
Paz, quando diz que poesia e religião se confundem ao longo da história.
Ambas apresentam origens e formas de expressão em comum, às vezes
indistinguíveis: poemas, mitos, orações, exorcismos, hinos representações
teatrais, ritos. Poesia e religião, conforme Paz, são formas de expressão e
experiências de nossa “outridade” constitutiva. Assim, “Monte Castelo” pode
ser lida, na sua forma polifônica de construção, como criação, portanto, como
revelação. Sendo o inverso também verdadeiro: quando “a revelação é criação.
A linguagem poética revela a condição paradoxal do homem, sua ‘outridade’, e
assim o leva a realizar aquilo que ele é”185. A religião conduz para a
interpretação e sistematização, e ganha, na interferência da instituição
religiosa, formas de controle e adestramento. Mas a poesia se abre como
possibilidade, possibilidade de revelação, abertura para o outro. “Monte
Castelo” ecoa o que dissera Paz: o “poeta diviniza como místico e ama como o
enamorado”.
Prossegue
o
crítico
ressaltando
que
“nenhuma
dessas
experiências é pura; em todas elas aparecem os mesmos elementos, sem que
se possa dizer que um é anterior aos outros”186.
A harmonia da fonte bíblica com a literária transforma o “amor fraterno”
do discurso de São Paulo para os coríntios em um contraponto positivo para os
paradoxos do amor carnal celebrado em versos por Camões. As afirmações e
negações que caracterizam o amor que vem do Novo Testamento favorece o
amor-fogo, o amor-dor, o amor-descontentamento, o amor-prisão, o amorsolidão, o amor-servidão. Os paradoxos do amor humano – por isso falho, por
isso paradoxal – ganham a serenidade do amor fraterno – por isso sereno –
que prega o apóstolo de Cristo. Do amor fraterno para o amor carnal, para o
amor entre homens e mulheres, na sua variação e todas as formas (in)válidas,
Renato Russo, em “Pais e filhos”, anuncia a urgência do amor: “é preciso amar
as pessoas como se não houvesse amanhã”. Em “Meninos e meninas”,
confessa, então, seu amor amplo, que tange a confissão religiosa, que se
184
LEGIÃO URBANA. “Monte castelo”. R. Russo [compositor]. In: –. As quatro estações. Rio de
Janeiro. EMI, p1989. 1 CD. Faixa 8.
185
PAZ, 1982, p.189.
186
Ibid., p.172.
fundamenta num amor carnal e divino, precedido de um estado de confusão e
nebulosidade, que se torna, à medida que se escreve e confessa, mais sereno:
Quero me encontrar mas não sei onde estou
Vem comigo procurar algum lugar mais calmo
Longe dessa confusão
E dessa gente que não se respeita
Tenho quase certeza que eu
Não sou daqui.
Acho que gosto de São Paulo
Gosto de São João
Gosto de São Francisco
E São Sebastião
E eu gosto de meninos e meninas.
Vai ver que é assim mesmo e vai ser assim pra sempre
Vai ficando complicado e ao mesmo tempo diferente187
A metalinguagem presente em “Meninos e meninas” vai além da
explicitação das ferramentas da escrita e revela o estado do eu. Aqui a escrita,
mais uma vez, no seu corpo, na sua materialidade, torna-se metáfora do
estado do eu - lírico que, entregue à confissão, desloca-se para as formas da
escrita seus sentimentos de culpa. A revelação é criação. O eu se constitui ao
confessar, ao preceder seu amor carnal, anunciando seu amor divino pelos
santos, amortece a culpa e prescinde a salvação. Então implora:
Me deixa ver como viver é bom
Não é a vida como está, e sim as coisas como são
Você não quis tentar me ajudar
Então, a culpa é de quem?
A culpa é de quem?188
A “imperfeição do passado” e o “português errado” com o qual se
escreve a declaração do amor – divino e carnal – revelam as imperfeições e o
erro: a materialidade da culpa. A confissão aqui se torna coragem. Despido, o
eu poético se entrega, em corpo e voz, ao julgamento. Autobiográfica, a letra
revela um Renato Russo que se esconde atrás de metáforas e que revela-se
ao mesmo tempo por elas. A escrita autobiográfica, como aponta Derrida, corre
187
LEGIÃO URBANA. “Meninos e meninas”. R. Russo [compositor]. In: –. As quatro estações.
Rio de Janeiro. EMI, p1989. 1 CD. Faixa 9.
188
Id., ibid.
o risco do auto-envenenamento, mas ela é inevitável, porque alguns animais
são mais autobiográficos que outros, são mais instintivos.
Se em “Meninos e meninas” a confissão se faz entremeada por santos,
metáforas e metalinguagem, em “Leila”, do álbum A Tempestade, o eu se
confessa de forma sutil, revelando-se na narrativa simples de um dia qualquer
na vida de um casal, rodeado de trabalho, filhos, pequenos consertos e baratas
voadoras:
Mas você sabe o que é ter pavor de baratas
voadoras
E você diz daquele seu jeito:
– Ai, eu preciso de um homem
E eu digo: – Ah, Leila! Eu também
E a gente ri189
Assim, atos triviais do cotidiano doméstico, como o simples fato de fazer
uma feijoada ou emprestar um par de meias, é capaz de conferir plenitude
poética e nos arrancar do nosso lugar comum, quando “o mundo anda tão
complicado”, e queremos ouvir uma canção de amor que fale da nossa
situação190. Percebemos que “... a palavra que o poeta inventa – esta que, num
instante que são todos os instantes, tinha se evaporado ou tinha se convertido
em objeto impenetrável – é a de todos os dias”191. Na dinâmica do mundo
fluido, o amor aparece como reestruturador da ordem, como conciliador do eu
com o outro, como forma de sintonia para o desconcerto do homem da pósmodernidade que procura se equilibrar entre dias e noites. O amor compõe a
narrativa poética do Livro dos dias, recolhido de fontes nobres como o amor de
São Paulo e a literatura de Camões, e da simplicidade trivial do dia-a-dia, do
disparatado e do comum, que se iguala em nobreza com as fontes religiosas e
literárias, dando-nos, assim, uma visão do Amor, que se passa a escrever com
letra maiúscula em Renato Russo.
Novamente a voz religiosa se faz presente, de forma clara, em “Se fiquei
esperando meu amor passar”, quando a liturgia se contamina da escrita
corpórea (ou vice-versa). Nessa letra, o amor se revela como culpa e salvação.
189
LEGIÃO URBANA. “Leila”. R. Russo [compositor]. In: –. A tempestade. Rio de Janeiro. EMI,
p1996. 1 CD. Faixa 11
190
LEGIÃO URBANA. “O mundo anda tão complicado”. R. Russo [compositor]. In: –. V. Rio de
Janeiro. EMI, p1991. 1 CD. Faixa 8.
191
PAZ, 1982, p.216.
Como salvação, o amor sobressai sobre a culpa e se faz liberdade, fortaleza e
sentido. Mas a vivência de um amor assim, ainda que seja o mais desejado,
faz-se novamente culpa, quando a pobreza do pecador perante Deus leva ao
ato de contrição:
"Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo
Tende piedade de nós
Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo
Tende piedade de nós
Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo
Dai-nos a paz.”192
As aspas marcam o deslocamento do discurso religioso para o poético.
Mas já é sabido por Paz que muitas vezes as expressões religiosas e poéticas
são indistinguíveis e, como nenhuma delas é pura, comportam a pluralidade de
vozes que constituem o homem na sua “outridade”.
Não há, porém, a necessidade de aspas ou qualquer outra marca gráfica
para demarcar a voz do outro em nós. Estas nos constituem poeticamente e
nos vários momentos da fala prática do dia-a-dia, fazendo repercutir em nosso
discurso outras vozes. A intertextualidade pressupõe a presença do texto-fonte,
estabelecendo o intertexto, que pode ser partilhado pelos produtores e/ ou
receptores. Assim sendo, o sujeito discursivo é plural, dada a diversidade de
vozes que ecoam em suas manifestações, sejam elas na fala prática do
cotidiano ou na elaboração artística. Paz diria que
Para [o poeta] ser ele mesmo deve ser outro. E a mesma
coisa acontece com sua linguagem: é sua porque é dos
outros. Para torná-la realmente sua recorre à imagem, ao
adjetivo, ao ritmo, isto é, a tudo aquilo que a faz diferente.
Assim, suas palavras são e não são suas.193
Assim a composição “Monte Castelo” é toda ela a inscrição do discurso
do outro, que se organiza apenas pelo pequeno re-toque e re-arranjo de
Renato Russo para o discurso bíblico e a fonte literária do século XVI. Mas que
é capaz de instaurar a diferença. Não há sinais de aspas, itálico ou qualquer
outra marca gráfica que anuncia a presença do outro no texto, até porque o
192
LEGIÃO URBANA. “Se fiquei esperando meu amor passar”. R. Russo [compositor]. In: –. As
quatro estações. Rio de Janeiro. EMI, p1989. 1 CD. Faixa 12.
193
PAZ, 1982, p.217.
texto que se faz novo é todo ele o discurso do outro. Faz-se novo por ser outro,
se faz outro por ser novo. Não são mais São Paulo e Camões que assinam os
versos. O autor é Renato Russo e cabe a ele, que aposta no compartilhamento
do conhecimento da fonte de sua escrita pela comunidade de leitor-ouvinte,
referir-se ao texto fonte. No encarte do álbum fica o registro do crédito da
música: “‘Monte Castelo’ é como está creditado e deve ter alguma coisa do
Tão-Te King (O Livro caminho perfeito) de Lao Tse (Da China Antiga) em
algum lugar. Não vá pensar que nós fizemos tudo isso sem ajuda. Alguns erros
são de propósito outros não”194. Da boca de Burton, a defesa de Russo:
“Montei laboriosamente este escrito com base em diversos autores, mas sine
injuria. Não enganei nenhum autor, e atribui, a cada um, o que lhe era
devido”195.
Os registros do encarte, além de catalogar as fontes do intertexto,
explicitam a proposta de “fazer um disco que fosse um disco amigo, um alento,
que tentasse trazer paz de espírito”196. Nesse ritmo que deixa de lado os ruídos
estrondosos de guitarras, a música de abertura do álbum, “Há tempos”, tem o
segundo verso retirado “de um achado numa igreja em 1600 e alguma coisa na
Europa e veio por carta (oi Luzia!). O legal é que quando minha prima voltou do
encontro jovem lá estava a mesma frase, no mesmo texto, desta vez atribuído
a um autor hindu desconhecido, na apostila (...)”197. A fala de Russo, longe do
discurso elaborado de suas canções, revela como textos ganham, a cada reinscrição em lugares e épocas diferentes, autorias e sentidos outros. Sem
acusação de plágio, “o que teus antepassados deixaram-te de herança, se
queres possuí-lo, ganha-o”198. Além de “Há tempos”, outra canção do mesmo
disco, “Quando o sol bater na janela de seu quarto”, apresenta a referência e a
inscrição de origem do discurso do outro: “toda parte sobre dor e desejo” é
retirada da Doutrina de Buda de Dendo Kyokai”199.
A diversidade de fontes, como revelam os registros do encarte, ainda
com recorrência ao tema religioso e ao amor, mostra na elaboração, na citação
na assimilação ou simplesmente no mascaramento, como o fazer poético do
194
Encarte de LEGIÃO URBANA: As quatro estações. Rio de Janeiro. EMI, p1989. 1 CD.
BURTON apud SCHNEIDER, 1990, p.98.
196
RUSSO apud ASSAD (org.), 2000, p.209.
197
Encarte de LEGIÃO URBANA. As quatro estações. Rio de Janeiro. EMI, p1989. 1 CD.
198
FREUD (citando Goethe - Fausto, primeira parte) apud SCHNEIDER, 1990, p.91.
199
Encarte de LEGIÃO URBANA. As quatro estações. Rio de Janeiro. EMI, p1989. 1 CD.
195
compositor dialoga com textos e culturas, doutrinas e religiões diferentes.
Assim o “homem é pluralidade e diálogo, concordando e juntando-se consigo
mesmo, mas também dividindo-se sem cessar. Nossa voz são muitas vozes.
Nossas vozes são uma só voz”200, completa Paz.
A temática do amor envolve toda a obra de Renato Russo. Desde a
primeira canção, “Será”, até a última, “O livro dos dias”, o autor recolheu
fragmentos que compõem um discurso amoroso. Fragmentos que revelam o
flagelo do amor, ao mesmo tempo em que o celebram como o sentimento
maior, a salvação para todas as misérias humanas, culpas, falhas e omissões:
“sem amor eu nada seria”201. O autor persegue os seus rastros. Declara em
“Sereníssima”: “Sou um animal sentimental/ Me apego facilmente ao que
desperta meu desejo”202. Renato Russo foi, então, um animal autobiográfico
que se deixou levar pelo instinto de escrever e se inscrever, perseguindo os
rastros, que o ajudam a compor um manual de desencontros e destroços
amorosos. Ao mesmo tempo em que os escritos sobre o amor atingem o
inatingível, o possível do impossível, na simplicidade e na idealização de um
amor como salvação para o corpo e para o espírito.
A memória e a invenção poética são vozes também presentes que
compõem o discurso amoroso em Renato Russo. Em “Vamos fazer um filme”,
a trilha sonora é um musical dos anos trinta – metáfora que é “a única maneira
ainda/ de imaginar a minha vida”. O amor, na sua simplicidade, deixa
perguntas:
E no meio de uma depressão
Te ver e ter beleza e fantasia.
E hoje em dia, como é que se diz: "Eu te amo."?203
Para aquele que um dia escreveu que “afinal, amar ao próximo é tão
démodé”204, restou-lhe o trabalho de recordação, de recolher entre as
200
PAZ, 1982, p.202.
LEGIÃO URBANA. “Monte castelo”. R. Russo [compositor]. In: –. As quatro estações. Rio de
Janeiro. EMI, p1989. 1 CD. Faixa 7.
202
LEGIÃO URBANA. “Sereníssima”. R. Russo [compositor]. In: –.V. Rio de Janeiro. EMI,
p1991. 1 CD. Faixa 6.
203
LEGIÃO URBANA. “Vamos fazer um filme”. R. Russo [compositor]. In: –. O descobrimento
do Brasil. Rio de Janeiro. EMI, p1993. 1 CD. Faixa 8.
204
LEGIÃO URBANA. “Baader-Meinhof Blues”. R. Russo [compositor]. In: –. Legião Urbana.
Rio de Janeiro. EMI, p1985. 1 CD. Faixa 8.
201
memórias o amor (não) vivido. Assim, em Russo, o amor é mais um tecido
memorialístico do que vivência plena, que levaria à recordação:
A paixão já passou em minha vida
Foi até bom, mas ao final deu tudo errado
E agora carrego em mim
Uma dor triste, um coração cicatrizado
E olha que tentei o meu caminho
Mas tudo agora é coisa do passado.205
Os estilhaços atingem aquele que recorda, e a recordação é também
uma forma de tentar um novo caminho. Em uma das canções de adeus e
recordação, “Vento no Litoral”, o sujeito atualiza a memória no tempo presente.
Tempo e memória se relacionam e presentificam na escrita, que se configura
então como aquilo que resta, ou ainda, como o mais recorrente, como o todo
que se tem do que nunca foi completo:
Agora está tão longe
Vê, a linha do horizonte me distrai:
Dos nossos planos é que tenho mais saudade,
Quando olhávamos juntos na mesma direção.
(...)
Agimos certo sem querer
Foi só o tempo que errou
Vai ser difícil sem você
Porque você está comigo o tempo todo.206
Muitas vezes a polifonia dos homens afeitos ao instinto da escrita é a
tentativa de um reajuste, de equilibrar-se entre a dissonância e o desconcerto.
Daí a evasão, quando a vacuidade da vida ou estado de incompreensão no
tempo e no espaço presentes os fazem buscar em outros tempos e espaços a
vivência daquilo que a vida não os permitiu. O mesmo desejo de Manuel
Bandeira de “ir embora para Pasárgada” se nota em Renato Russo, quando
canta em “Mauricio”:
Já não sei dizer se ainda sei sentir
O meu coração já não me pertence
Já não quer mais me obedecer
205
LEGIÃO URBANA. “Longe do meu lado”. R. Russo [compositor]. In: –. A tempestade. Rio de
Janeiro. EMI, p1996. 1 CD. Faixa 4.
206
LEGIÃO URBANA. “Vento no litoral”. R. Russo [compositor]. In: –. V. Rio de Janeiro. EMI,
p1991. 1 CD. Faixa 7.
Parece agora estar tão cansado quanto eu.
Até pensei que era mais por não saber
Que ainda sou capaz de acreditar.
Me sinto tão só
E dizem que a solidão até que me cai bem.
Às vezes faço planos
Às vezes quero ir
Para algum país distante e
Voltar a ser feliz.207
Ou em “Meninos e meninas”:
Quero me encontrar, mas não sei onde estou
Vem comigo procurar algum lugar mais calmo
Longe dessa confusão
E dessa gente que não se respeita
Tenho quase certeza que eu
Não sou daqui.208
A Pasárgada de Bandeira ou o país distante de Russo são muitas vezes
a própria escrita, lugar em que o sujeito se realiza e dá a conhecer e viver seus
mais íntimos sentimentos. Porque muitas vezes a escrita é uma invenção ou o
simples desejo de ter vivido aquilo que se narra. Ninguém mais duvida da
existência de Pasárgada, tão bem inventada por Bandeira.
O amor em Renato Russo também se mostra como gratidão. A escrita é
uma forma de gratidão, como se pode perceber nos últimos escritos de Renato
Russo. Escritos esses que anunciam a morte e confirmam a escrita como uma
forma de estar-se vivo. Morre-se na escrita e vive-se nela para sempre. “A Via
Láctea”, canção que se tornou “hino” de despedida de Renato Russo
exaustivamente executado pelas rádios FM do Brasil, encontra seus ecos na
poesia de despedida de Álvares de Azevedo:
Quando em meu peito rebentar-se a fibra
Que o espírito enlaça á dor vivente,
Não derramem por mim nenhuma lágrima
Em pálpebra demente.209
207
LEGIÃO URBANA. “Maurício”. R. Russo [compositor]. In: –. As quatro estações. Rio de
Janeiro. EMI, p1989. 1 CD. Faixa 8.
208
LEGIÃO URBANA. “Meninos e meninas”. R. Russo [compositor]. In: –. As quatro estações.
Rio de Janeiro. EMI, p1989. 1 CD. Faixa 9.
209
AZEVEDO, “Lembrança de morrer”, em
http://intervox.nce.ufrj.br/~clodo/manuel_antonio_alvares_de_azeved.htm, captado em
05/04/07.
Dois poetas que experimentaram a escrita como a própria vivência, dois
poetas que, na bruma, entre cigarros e papéis, registraram na exaltação do eu
a revelação do nós. Os primeiros versos de “Lembrança de morrer” entram em
consonância com os últimos de “A via láctea”:
Quando tudo está perdido
Eu me sinto tão sozinho
Quando tudo está perdido
Não quero mais ser quem eu sou
Mas não me diga isso
Não me dê atenção
E obrigado por pensar em mim.210
E assim a obra de Renato Russo é “O livro dos dias”, como conclui a
última canção, do último disco, do último lado de Renato:
Não esconda tristeza de mim
Todos se afastam quando o mundo está errado
Quando o que temos é um catálogo de erros
Quando precisamos de carinho,
Força e cuidado
Este é o livro das flores
Este é o livro do destino
Este é o livro de nossos dias
Este é o dia de nossos amores211
A polifonia do rock também alcança o diálogo da batida rebelde com
outros estilos musicais. Ouve-se na introdução de “Teatro dos Vampiros” ecos
da obra instrumental barroca do Alemão Johann Pachelbel, Canon212, do
século XVII. E “Douce dama jolie”, do francês Guillaume de Machaut213, do
século XIV, na música instrumental “Ordem dos templários”. Além das já
citadas “Come share my life”, do folclore americano, e “Love Song”, cantiga
210
LEGIÃO URBANA. “A via Láctea”. R. Russo [compositor]. In: -. A tempestade. Rio de
Janeiro. EMI, p1996. 1 CD. Faixa 5.
211
LEGIÃO URBANA. “O livro dos dias”. R. Russo [compositor]. In: –. A tempestade. Rio de
Janeiro. EMI, p1996. 1 CD. Faixa 14.
212
O Canon escrito pelo compositor e organista alemão Johann Pachelbel atravessou
fronteiras e ressuscitou em pleno século 20, mais precisamente a partir do início da década de
70. http://musicaclassica.folha.com.br/cds/14/biografia-3.html.
213
Este compositor é aquele que na Idade Média ocupa o lugar de destaque no que toca a
inventividade, gênio, espírito inovador e versatilidade: ele marca o nascer de uma era na
História da Música, influênciando todo uma nova corrente musical, a "Ars Nova", que
representa um romper abissal com os cânones da música religiosa da Idade Média,
nomeadamente pela introdução de várias linhas de canto simultâneas, ou seja, o nascer da
chamada "polifonia", e pelo experimentar de um novo jogo de acordes até então interditos
pelas
regras
da
música
religiosa.
http://musicantiga.com.sapo.pt/MusicantigaGuillaume_de_Machaut.htm.
portuguesa do século XIII. O disco remete ainda aos anos de 1970 no que se
refere “aos seus principais ganchos sonoros: passagens acústicas de rock
progressivo, rompantes de hard rock”214. E ainda, quando cita, em epígrafe,
Brian Jones, marca uma relação do estado de desolação e desconcerto que
atravessa os anos de 1960, o momento histórico no Brasil e no mundo em
1990, e o próprio álbum, que busca serenidade, “enquanto o caos segue em
frente/ Com toda calma do mundo”215.
A leitura da polifonia do rock com outros gêneros musicais aqui toma
como exemplo o álbum V publicado em dezembro de 1991. O álbum inaugura
a década de 1990, que se inicia sem grandes novidades. Pelo contrário, os
versos “eu vejo o futuro repetir o passado/ Eu vejo um museu de grandes
novidades”216, de Cazuza, nos serviriam como epígrafe (mais como epitáfio!)
para marcar a era Collor: porque “voltamos a viver como a dez anos atrás/ e a
cada hora que passa envelhecemos dez semanas”217. “Tuas idéias não
correspondem aos fatos”218 – outro verso de Cazuza - define o rápido e
nebuloso governo do primeiro presidente eleito diretamente pelo povo na nova
república.
O recorte temporal da pesquisa ora apresentado não se restringe ao
material fonográfico produzido apenas na década de 1980. Isso acontece
porque a idéia de uma década de travessia e desconcerto teria como final a
morte de Cazuza em 7 de julho de 1990. Entretanto, por se pensar na
aproximação de Cazuza e Renato Russo, companheiros de travessia, essa
década se estende também, no caso da Legião Urbana, aos discos que serão
produzidos até 1996, quando o último da travessia chega ao fim. Renato Russo
morre em 11 de outubro de 1996.
Os discos que seguem depois de 1990 podem ser lidos como o diálogo
do autor com a década de 1980. Os escritos de Renato Russo encontram
assim uma polifonia com o próprio tempo de experiência do ser vivente. A
214
DAPIEVE, 2004, p.126.
LEGIÃO URBANA. “Sereníssima”. R. Russo [compositor]. In: –.V. Rio de Janeiro: EMI,
p1991. 1CD, faixa 6.
216
CAZUZA. “O tempo não pára”. Cazuza [compositor]. In: –. O tempo não pára. Rio de
Janeiro: Som Livre, p1985. 1CD. Faixa 6.
217
LEGIÃO URBANA. “O teatro dos vampiros”. R. Russo [compositor]. In: –.V. Rio de Janeiro:
EMI, p1991. 1CD, faixa 5.
218
CAZUZA. “O tempo não pára”. Cazuza [compósito]. In: –. O tempo não pára. Rio de Janeiro:
Som Livre, p1985. 1CD. Faixa 6.
215
escrita dos álbuns V (1991), O descobrimento do Brasil (1993), A Tempestade
(1996), e do póstumo, Uma outra estação (1997), é ainda o relato do sujeito da
travessia, que ao dialogar com passados distantes ou próximos, dialoga com
sua contemporaneidade, que agora, dado o pouco de distanciamento da
vivência, permite melhor saber quem eu sou.
E depois do começo
O que vier vai começar a ser o fim.
E depois do começo
O que vier vai começar a ser.219
3.3. Os amores exagerados de Cazuza: amores de perdição
Vimos que a tentativa de compor um discurso amoroso revela-se, em
Renato Russo, como confissão e redenção pela própria escrita – que confessa
e absolve. O discurso amoroso composto por várias vozes é entoado como ato
de contrição e cantado como hino de celebração: amores de salvação. Um
amor comedido que deixa prevalecer o espírito sobre o corpo sem, no entanto,
apagar as marcas do conflito: “o corpo quer, a alma entende”220 já é um estado
de pura elevação do eu. Russo canta as várias formas de amor, deixando
ainda prevalecer os resquícios do romantismo que recai sobre o trovador
solitário. Cazuza, o outro ser vivente da travessia, operando de forma
suplementar, compõe-se em letras nas quais se encontram vozes harmônicas
e dissonantes que embalam a lírica moderna.
“Pouco importa o que esta gente vá falar mal”221, escancarava Cazuza
na sua primeira poesia gravada pelo grupo Barão Vermelho, do qual foi
integrante até 1984:
Vem viver comigo, vem me experimentar
Me experimenta
Soltem as coisas lindas que te ardem, me traz
219
LEGIÃO URBANA. “Depois do começo”. R. Russo [compositor]. In: –. Que país é este. Rio
de Janeiro. EMI, p1987. 1 CD. Faixa 4.
220
LEGIÃO URBANA. “Metal contra as nuvens”. R. Russo [compositor]. In: –.V. Rio de Janeiro.
EMI, p1991. 1 CD. Faixa 2.
221
BARÃO VERMELHO. “Posando de star”. Cazuza [compositor]. In: –. Barão vermelho. Rio de
Janeiro: Som Livre, p1982. 1CD. Faixa 1.
Você sem texto sem cinema
Não faz do sexo um problema
Eu armo uma cena, é, eu armo uma cena!
Quebro garrafa
Morro de chorar
Mas ainda te faço dar!222
A primeira canção, do primeiro disco de Cazuza, que soa como um
convite “pras pessoas de alma bem pequena”223, dá o tom, o ritmo, e a letra do
que seria sua obra poético-musical. As letras amadurecem liricamente,
acompanhando a experiência do ser vivente, que exageradamente cantou as
dores do amor e fez da poesia uma forma de manter-se vivo. Talvez Cazuza
tenha levado muito a sério aqueles versos de Renato Russo que diziam “afinal,
ninguém sai vivo daqui”224. “Estou levando a vida na arte e acho que não tem
nada melhor nem mais bonito do que contar a minha vida”225: protagonizando a
própria vida na poesia, Cazuza que declarava que “mentiras sinceras me
interessam” soube muito bem vestir a máscara do garoto louco, bêbado,
drogado, livre, amante e desconcertado da zona sul do Rio de Janeiro que, aos
poucos, despiu a geração 80 do Brasil inteiro.
Por enquanto cantamos
Somos belos, bêbados cometas
(...)
Prevendo o futuro
Que não chega.226
Talvez o futuro nunca tenha chegado mesmo para a década de 80.
Enquanto isso, a vida louca e breve fornece o suficiente para o registro ansioso
contra o tempo que não pára. Entre garrafas, drogas, lirismos, sexo e rock’ n
roll, cantar “todo amor que houver nessa vida” exigia antes de tudo liberdade.
Assim, em 1985, o primeiro disco solo de Cazuza é publicado, levando no título
e nos versos a marca autobiográfica do autor: Exagerado. O rock de Cazuza,
cantado a partir de suas poesias, ainda no grupo Barão Vermelho, já permitia o
222
Id., ibid.
CAZUZA. “Blues da piedade”. Cazuza. [compositor]. In: –. Ideologia. Rio de Janeiro:
Polygran, p1988. 1CD. Faixa 9.
224
Título também da biografia de Jim Morrison escrita por Jerry Hopkins: Daqui ninguém sai
vivo.
225
CAZUZA apud ECHEVERRIA, 2001, p.78.
226
BARÃO VERMELHO. “Nós”. Cazuza [compositor]. In: –. Maior abandonado. Rio de Janeiro:
Som Livre, p1984. 1CD. Faixa 9.
223
diálogo com autores e gêneros um tanto aversivos para a batida forte do rock.
Cazuza soma sexo, drogas, rock’n roll e a dor-de-cotovelo do samba-canção, o
refinamento da bossa nova e o lirismo de Cartola. Ingredientes que ganhavam
o teor explosivo e alucinante do prazer de viver perigosamente. E assim, o
cantor da classe média optou pela carreira solo, quando entendeu que para por
o Pé na estrada227 e ousar vôos mais altos não seria possível em grupo. A
partir de Exagerado, Cazuza tornou o rock brasileiro o mais polifônico possível.
Somou ao estilo rebelde do gênero, as dores dos amores desencontrados, a
insatisfação da juventude e a transgressão sexual, reformulando conceitos de
comportamento numa sociedade que se desvincula aos poucos das ordens
militares. A fúria, a poesia, a transgressão e o amor, na agilidade de mãos que
escrevem na conturbação de um mundo cada vez mais rápido, ecoam as
atitudes semelhantes dos poetas beat dos anos 50, que revolucionam a escrita,
o comportamento e a sociedade conservadora dos Estados Unidos.
Quando a Brasiliense começou a lançar as obras de Kerouac,
Ginsberg, Borroughs, eu quase fiquei pirado, porque eu fazia
algo ligado a eles e não sabia. Penso que os anos 50 têm
muito a ver com os anos 80. Era uma época de repressão que
se soltou lá pela década de 60 como agora.228
Entre os destroços do regime autoritário e o presente incerto que tenta
ser construído no dia-a-dia, o sujeito do final do século XX, que atravessa a
década de 80 rumo à democracia e à liberdade, que acena para o eterno
amanhã do novo milênio, encobre-se na bruma que paira e embaça as vestes
coloridas da juventude. A antítese que se instala no confronto do sujeito com
ele mesmo, dramatizando a alegria de viver versus o desencanto e o tédio,
busca muitas vezes a catarse na arte e na poesia, aproximando-se do oxímoro
da complexidade humana: “consegui meu equilíbrio cortejando a insanidade,/
Tudo está perdido mas existem possibilidades”229, pois “a vida é bela e cruel,
227
Título em português do livro On the road, de Jack Kerouac, uma das fontes de influência de
Cazuza.
228
CAZUZA, Folha de São Paulo, 14/março/1986, disponível em
http://www.cazuza.com.br/sec_textos_list.php?language=pt_BR&id=31&id_type=2&page=1
229
LEGIÃO URBANA. “Sereníssima”. R. Russo [compositor]. In: -. V. Rio de Janeiro. EMI,
p1991. 1CD. Faixa 6.
despida/ tão desprevenida e exata/que um dia acaba”230. O mal-estar-perantea-morte e a náusea, tão bem incorporados na estética do espírito decadente de
Baudelaire, parecem prolongar-se na “... extensão dos longos dias mancos/
quando o tédio, esse fruto da incuriosidade,/ sob os pesados flocos da neve
dos anos, /atinge as proporções da imortalidade”231. Como no século XIX, é
sobre o artista que recai o desencanto, a névoa, o spleen, que permitem na
poesia transformada do cotidiano, um diagnóstico mais preciso do mal du
siècle.
Digam o que disserem
O mal do século é a solidão
Cada um de nós imerso em sua própria
arrogância
Esperando por um pouco de afeição.232
A sociedade dos anos 80 que acolhe a juventude filha da ditadura militar
abre-se para um processo que ultrapassa a abertura democrática e se amplia
para outros sentidos, experiências e sensações. Porque agora o poeta, que
celebra todo dia sua vida e seus amigos233, na urgência do momento,
experimenta o excesso do vazio e do desencanto do fim do século. Recaem
sobre o corpo e sobre a arte as metáforas do exagero que acaba por refletir a
escassez e a busca do sentido para existência. “Já estou cheio de me sentir
vazio”234, denunciava Russo, enquanto Cazuza proclamava: “ideologia eu
quero uma pra viver”235. Na busca e na possibilidade da liberdade, o sujeito
experimenta as sensações alucinantes das drogas ilícitas, o prazer do sexo
igual, ao som da batida rebelde e romântica do rock. “O rock’n’roll é como uma
trepada, muito ligado ao sexo e à droga”236, esbravejava Cazuza. Assim os
230
CAZUZA. “Ritual”. Cazuza. [compositor]. In: -. Só se for a dois. Rio de Janeiro: Polygran,
p1987. 1CD. Faixa 2.
231
BAUDELAIRE apud CEIA. Carlos, E-Dicionário de termos literários, disponível em
http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/S/spleen.htm, captado em 001/04/2007.
232
LEGIÃO URBANA. “Esperando por mim”. R. Russo [compositor]. In: –. A tempestade. Rio
de Janeiro. EMI, p1996. 1 CD. Faixa 12.
233
LEGIÃO URBANA. “A fonte”. R. Russo [compositor]. In: –. O descobrimento do Brasil. Rio
de Janeiro. EMI, p1993. 1 CD. Faixa 2.
234
LEGIÃO URBANA. “Baader-Meinhof Blues”. R. Russo [compositor]. In: –. Legião Urbana.
Rio de Janeiro. EMI, p1984. 1CD. Faixa 8.
235
CAZUZA. “Ideologia”. Cazuza. [compositor]. In: –. Ideologia. Rio de Janeiro: Polygran,
p1988. 1CD. Faixa 1.
236
CAZUZA, Compilação feita por Ezequiel Neves e recolhida em entrevista às revistas IstoÉ,
Playboy, Amiga e Interview, no período de 1983 a 1989. Disponível em
companheiros da travessia vivenciam ao extremo a velha tríade do “sexo,
drogas, e rock roll”. A essa combinação explosiva, que desde os anos 60,
provoca delírio, prazer, alegria, dor, fascinação, tristeza e morte, acrescenta-se
a Aids que, a partir dos anos 80, vem cortar o “barato” da “juventude
transviada”. A névoa recai de forma fatal sobre aqueles que deixam repercutir
no corpo a liberdade, o excesso e os estilhaços da travessia. O tom mórbido e
frio da Noite na taverna ecoa na letra de “Será”, pela qual Renato Russo
parece profetizar o desencanto e a névoa dos anos que viriam, assombrados,
entre outros fantasmas, pela Aids:
Será só imaginação?
Será que nada vai acontecer?
Será que tudo isso é em vão?
Será que vamos conseguir vencer?
Nos perderemos entre monstros
Da nossa própria criação
Serão noites inteiras
Talvez por medo da escuridão
Ficaremos acordados
Imaginando alguma solução237
Na contramão da liberdade da redemocratização, o sujeito sofre um
processo de adestramento: “Eu sou um cara/ cansado de correr/ na direção
contrária/ sem pódio de chegada ou beijo de namorada”238. Além da culpa, o
animal se sente acuado, devido à Aids e à condição sócio-histórica do país:
“cortaram meus braços/ cortaram minhas mãos/ cortaram minhas pernas/ num
dia de verão”239. “O animot múltiplo sofreria ainda por ter sempre o dono sobre
suas costas. Ele estaria farto de ser assim domesticado, amansado, adestrado,
dócil, disciplinado, domado”240. A citação de Derrida, em Cazuza, se estrutura
poeticamente desta forma, em “Cobaia de Deus”:
http://www.cazuza.com.br/sec_textos_list.php?language=pt_BR&id=4&id_type=2&page=1,
capturado em 04/04/2007.
237
LEGIÃO URBANA. “Será”. R. Russo [compositor]. In: –. Legião Urbana. Rio de Janeiro. EMI,
p1985. 1 CD. Faixa 1.
238
CAZUZA. “O tempo não pára”. Cazuza. [compositor]. In: –. O tempo não pára. Rio de
Janeiro: Polygran, p1988. 1CD. Faixa 6.
239
LEGIÃO URBANA. “1965 (Duas tribos)”. R. Russo [compositor]. In: –. As quatro estações.
Rio de Janeiro. EMI, p1989. 1 CD. Faixa 6.
240
DERRIDA, 2002, p.74.
Se você quer saber como eu me sinto
Vá a um laboratório ou labirinto.
Seja atropelado por esse trem da morte
Vá ver as cobaias de Deus
Andando na rua pedindo perdão
Vá a uma igreja qualquer
Pois lá se desfazem em sermão
Me sinto uma cobaia, um rato enorme
Nas mãos de Deus mulher
De um Deus de saia
Cagando e andando,
Vou ver o ET
Ouvir um cantor de blues
Em outra encarnação
Nós, as cobaias de Deus
Nós somos cobaias de Deus
Nós somos as cobaias de Deus
Me tire dessa jaula, irmão, não sou macaco
Desse hospital maquiavélico
Meu pai e minha mãe, eu estou com medo
Porque eles vão deixar a sorte me levar
Você vai me ajudar, traga a garrafa
Estou desmilingüido, cara de boi lavado
Traga uma corda, irmão (Irmão, acorda!)
Nós, as cobaias, vivemos muito sós
Por isso, Deus tem pena, e nos põe na cadeia
E nos faz cantar, dentro de uma cadeia
E nos põem numa clínica, e nos faz voar
Nós, as cobaias de Deus
Nós somos cobaias de Deus241
Da expulsão do paraíso – a vergonha do sexo exposto, a culpa, a morte
– aos caprichos de Deus – o animal a serviço do criador, caçado, expulso,
preso fantoche, brinquedo, teste. Os fortes indícios da cultura cristã que ensina
“que a tristeza é uma maneira/ Da gente se salvar depois”242 se faz presente
como atenuante da culpa: “Eu luto contra um sentimento de culpa cristão que
tenho. Estudei num colégio de padres quase dez anos. Então, a minha vida em
241
CAZUZA. “Cobaias de Deus”. Cazuza. [compositor]. In: –. Burguesia. Rio de Janeiro:
Polygran, p1989. 2CD. Faixa 10.
242
CAZUZA. “Um trem para as estrelas”. Cazuza. [compositor]. In: –. Ideologia. Rio de Janeiro:
Polygran, p1988. 1CD. Faixa 7.
si é uma luta para vencer isso”243, confessa Cazuza. Em consonância,
“Clarisse”, a letra mais autobiográfica de Renato Russo, que na pele de uma
menina de 14 anos se sente “cansado de ser vilipendiado, incompreendido e
descartado”244, permite-nos visualizar o Ecce Animot de Derrida, aquele que
Nem uma espécie, nem um gênero, nem um indivíduo, é uma
irredutível multiplicidade vivente de mortais, e mais que um
duplo clone ou uma mot-valise [palavra entrecruzada], uma
espécie de híbrido monstruoso, uma quimera esperando ser
morta por seu Belerofonte.245
A falta de conhecimento sobre o vírus da Síndrome da Imunodeficiência
Adquirida e suas conseqüências provoca na sociedade mundial da década de
80 reações de angústia e preconceito, ao mesclar medos e tabus sobre
epidemias, castigos, homossexualidade e morte. Susan Sontag (2003), em La
enfermedadd y sus metáforas, dá-nos uma visão do uso de metáforas
relacionadas às doenças como a sífilis, a tuberculose, o câncer e a Aids, que
entre mitos e fantasias tange a vida, a morte e a expressão artística.
Relacionam-se, dessa forma, numa mesma necessidade de permanência e
continuidade – dada a nossa mortalidade – a escrita, as metáforas e o
erotismo. “O que está sempre em questão é a substituição do isolamento do
ser, da sua descontinuidade por um sentimento de continuidade profunda”246 –
aponta Georges Bataille, ao conceber o erotismo como “a aprovação da vida
até na morte”. Formas de vida e morte, imbricadas, relacionadas, que
instauram um estado de possível imortalidade – ou pelo menos descoberta de
mortalidade e da fragilidade da vida. Uma experiência interior que encontra no
corpo (e na escrita) o mediador para contar aquilo que experimenta e percebe.
O corpo, de acordo com Sontag, sempre foi metáfora para a sociedade,
para a família, para a política e também para as enfermidades. A metáfora
militar para a Aids, como uma invasora do corpo e da sociedade, emplaca uma
descrição e arsenal de guerra, que revela a fragilidade e vulnerabilidade
243
CAZUZA, Compilação feita por Ezequiel Neves e recolhida em entrevista às revistas Isto É,
Playboy, Amiga e Interview, no período de 1983 a 1989. Disponível em
http://www.cazuza.com.br/sec_textos_list.php?language=pt_BR&id=4&id_type=2&page=1,
capturado em 04/04/2007.
244
LEGIÃO URBANA. “Clarisse”. R. Russo [compositor]. In: –. Uma outra estação. Rio de
Janeiro. EMI, p1997. 1 CD. Faixa 5.
245
DERRIDA, 2002, p.77-78.
246
BATAILLE, 1980, p.17.
humana e do corpo social. A luta, a guerra, a defesa e o combate à doença se
aliam a outros vocábulos bélicos e planejam campanhas para a derrota do
“inimigo”. As metáforas militares não só para doenças, mas também para
combate à pobreza, às drogas, por exemplo – aponta a crítica americana –, se
justificam nas sociedades capitalistas:
puede que el abuso de la metáfora militar sea inevitable en la
sociedadd capitalista, uma sociedad que restringe cada vez
más el propósito y la credibilidad de las llamada a la ética y en
la que quien cada no somente suas propias acciones al
cálculo del interrés y provecho próprio es um necio.247
Sem adentrar em estudos sobre a Aids no seu período de descoberta e
as relações com questões polêmicas com a sexualidade, a religião e até
mesmo a comunidade científica, cabe aqui apenas uma analogia com as
metáforas da sífilis, câncer e tuberculose. As metáforas para essas
enfermidades do século XIX provocam na sociedade do fim do século XX
reações, fantasias, mitificação, e preconceitos semelhantes aos que acontecem
com a Aids, representada, desde o inicio de 1981 como peste, câncer gay e ira
divina – castigo para o exercício do sexo e para comportamento tortuoso.
Interessa observar como a escrita poética da pós-modernidade vivencia e
experimenta os resquícios da lírica romântica “tida muitas vezes, como a
linguagem de ânimo, da alma pessoal”248. Mas compreendendo que “com
Baudelaire começa a despersonalização da lírica moderna, pelo menos no
sentido que a palavra lírica já não nasce da unidade de poesia e pessoa
empírica, como haviam pretendido os românticos”249. Portanto, sem qualquer
leitura ou entendimento da relação naturalista e fatalista entre obra e vida, a
poesia é capaz, pela voz do poeta fingidor, de dramatizar os sentimentos do eu
e da sua geração, captando e antecipando a compreensão do seu tempo
histórico.
O
mal-estar
contemporâneo
se
estende
metafórica
e
metonimicamente para a literatura e esta encena a angústia, o desconcerto, os
247
SONTAG, 2003, p.46.
FRIEDRICH, 1978, p.17.
249
Ibid., p.36.
248
medos, as fantasias, a esperança e todos os sentimentos do homem pósmoderno250.
Sontag (1984), no artigo “El artista como sufridor ejemplar” elucida a
relação literatura e sofrimento:
El escritor es el sufridor ejemplar, no sólo porque haya
alcanzado el nivel de sufrimiento más profundo, sino porque
ha encontrado una manera profesional de sublimar (en el
sentido literal de sublimar, no en el freudiano) su sufrimiento.
Como hombre, sufre; como escritor, transforma su sufrimiento
en arte. El escritor es el hombre que descubre el uso del
sufrimiento en la economia del arte, como los santos
descubrieron la utilidad y la necesidad de sufrir en la economía
de la salvación.251
A poesia, na sua capacidade de catalisar e registrar os sentimentos e
sensações daqueles que a protagonizam e daqueles que a recebem, com a
amplitude da letra de música, nos dá o diagnóstico do eu e do mundo: “Nos
deram espelhos e vimos um mundo doente”252. Fica, portanto, a pergunta da
poesia de Ferreira Gullar cantada por Nara Leão e Fagner em “Traduzir-se”:
Uma parte de mim é só vertigem
Outra parte linguagem
Traduzir uma parte na outra parte
Que é uma questão de vida e morte
Será arte?253
“Feedback song for a dyng friend”, escrita em inglês por Renato Russo,
em 1985 e cantada no disco As quarto estações, é uma “canção retorno para
um amigo à morte”254. Seus versos são cantados no momento em que o Brasil
assiste à morte anunciada de Cazuza, vencido pela Aids, em 7 de julho de
1990:
250
A Aids na literatura brasileira desponta em Caio Fernando Abreu: nela se percebe a
literatura do limite e da angústia, que expõe o risco de morte e a fragilidade da vida.
251
SONTAG, 1984, p58.
252
LEGIÃO URBANA. “Índios”. R. Russo [compositor]. In : –. Dois. Rio de Janeiro. EMI, p1986.
1 CD. Faixa 12.
253
NARA LEÃO. “Traduzir-se”. F. Gullar [compositor]. In: –. Romance Popular. Rio de Janeiro:
Polygran, p1981. 1CD. Faixa 8.
254
O encarte de As quarto estações contem a tradução de Millôr Fernandes para “Feedback
song for a dyng friend”: “Alisa a testa suada do rapaz/Toca o talo nu ali escondido/ Protegido
nesse ninho farpado sombrio da semente/ Então seus olhos castanhos ficam vivos/ Antes
afago pensava ele era domínio / Essas aí não são suas mãos são as minhas / E seguras,
minhas mãos buscam se impor / Todo conhecimento do jorro viril do meu senhor /O gosto
perfumado que retém minha língua /É engano instalado e não desfeito (...)”
Soothe the young man's sweating forehead
Touch the naked stem held hidden there
Safe in such dark hayseed wired nest
Then his light brown eyes are quick
Once touch is what he thought was grip
Tis not his hands those there but mine
And safe,my hands do seek to gain
All knowledge of my master's manly rain
The scented taste that stills my tongue
Is wrong that is set but not undone255
Sontag aponta a necessidade de alguma enfermidade para identificar
com o mal, que culpe suas vítimas256, e Cazuza que já havia declarado “que
meu prazer agora é risco de vida”, transforma sua doença e martírio em
declaração política e poesia:
Escrevo numa tarde cinzenta e fria
Trabalho pra espantar a solidão e meus pensamentos
Hoje assumi em público minha doença
Estou mais leve, mais livre
Mas ainda tenho muitos medos
Medo de voar, de amar
Medo de morrer, de ser feliz
Medo de fazer análise e perder inspiração
Ganho dinheiro cantando minhas desgraças
Comprar uma fazenda, fazer filhos
Talvez seja uma maneira de ficar pra sempre na terra
Porque discos arranham e quebram
Amor257
Assim a polifonia no rock de Cazuza permite o encontro de vozes que
cantam um amor de perdição. Um amor de perdição que ressalta a
necessidade da salvação na mesma esfera da materialidade da palavra em
Renato Russo. Em Cazuza, o amor se dá mais com o corpo do que com o
espírito nos seus primeiros escritos - assim sua escrita se torna corpo do seu
desejo e desejo do seu corpo, e repercute vozes que assim permitem uma
255
LEGIÃO URBANA. “Feedback song for a dying friend”. R. Russo [compositor]. In: –. As
quatro estações. Rio de Janeiro. EMI, p1989. 1 CD. Faixa 3.
256
SONTAG, 2003, p.48.
257
CAZUZA. “Carta dani”. Cazuza [compositor]. In: –. Cazuza - o tempo na pára (trilha sonora
do filme). Rio de Janeiro: Som Livre, p2004. 1CD. Faixa 9.
Em 1985, Cazuza declarou: “Espero que no futuro, não esqueçam do poeta que sou”. E
esclarece a materialidade da letra como a única garantia de permanência e continuidade: “Só a
música vai ficar. É só isso que o público vai levar do Cazuza" (Amiga, 04/dezembro/1985,
disponível
em
http://www.cazuza.com.br/sec_textos_list.php?language=pt_BR&id=24&id_type=2&page=1).
escrita corpórea. O corpo se torna metáfora em Cazuza e abrange o amor, as
paixões, o erotismo e as enfermidades.
Com a Aids não há romantização – apesar de ter sido relacionada, a
princípio, com a vida boêmia, com a noite, com o uso desregrado do corpo e do
prazer.
Esta romanización de la demência característica de la
neurosífilis fue la precursora de esa fantasia mucho más
persitene, típica del siglo XX, según la cual lãs enfermedades
mentales son fuente de creatividad artística u originalidad
espiritual. Pero com el sida – auque la demecia estambién
ente este caso um síntoma tardio – no há surgido ningun a
mitologia compensatória, ni parece que vaya surgir.258
A Aids ligada à morte rápida e impiedosa com marcas no corpo não
assinala momentos de intensidade criativa. Em Cazuza e Renato, não é o
estado da doença que desencadeia uma crise de produção intensa. Numa
quase vertigem de escrita asmática, a poética dos últimos álbuns é forma de
manter-se vivo, de continuidade, de salvação. Em “A inocência do prazer”,
Cazuza expõe a necessidade de perdão e salvação. Como se não houvesse
mais necessidade do castigo: “Tudo é possível no amor/ Só não volta a infância
perdida/Só não nos livramos de morrer à toa”259. Busca-se um tempo novo que
instaura uma inocência do prazer, sem a culpa, sem a condenação mas “la
inocencia, por la inexorable lógica subyacente em todo término que expressa
un relacion, sugiere culpa”260.
Já passou, fomos perdoados
Por todos os deuses do amor
Acabou, podemos ser claros
Como era antes, seja lá como for
Alguém tentou desesperadamente
Sentir algo decente
Sou feliz, pois já fui julgada261
258
SONTAG, 2003, p.52.
CAZUZA, “A via crucis do corpo”, In: ECHEVERRIA, 2001, p.339. Letra escrita por Cazuza a
partir de um conto de Clarice Lispector, para a trilha sonora do filme homônimo de José
Antônio Garcia.
260
SONTAG, 2003, p.47.
261
CAZUZA apud ECHEVERRIA, 2001, p.261. Música gravada originalmente por Dulce
Quental, em 19987. Foi regravada por Cazuza em 1989 para o disco Burguesia, mas excluída
da seleção final do álbum.
259
Cazuza não hesitaria em compor versos sobre a obscuridade da vida.
Mas sempre regado por rimas de amores, o poeta filho da classe média,
dosava poesia beatink com dor-de-cotovelo dos samba canção, dando-nos
assim a característica de um rock polifônico, que não deixara de rezar em sua
cartilha de rebeldia, mas afinava-se com os tempos brasileiros e com os
sentimentos da juventude do fim do século breve.
Vivendo assim a atualidade “na moda da nova Idade Média”262, o futuro
que parece repetir o passado nos permite o encontro de vozes distantes e
recentes que ecoam em nós, muitas vezes através da “mídia da novidade
média”. A juventude se vê recolhida nos cacos e amores impossíveis, nos
goles e em mais uma dose, que Cazuza brinda e bebe em nome de todos, com
total irreverência e pouca prudência: “Mais uma dose?/ É claro que eu estou a
fim/ (...)Canibais de nós mesmos/ Antes que a terra nos coma/ Cem gramas,
sem dramas”263.
Em “Só as mães são felizes”, do seu primeiro disco solo, o autor celebra
o “lado escuro da vida”, e canta suas influências malditas, de Luiz Melodia a
Jack Kerouac:
Você nunca varou
A Duvivier às 5
Nem levou um susto Saindo do Val Improviso
Era quase meio-dia
No lado escuro da vida
Nunca viu Lou Reed
"Walking on the wild side"
Nem Melodia transvirado
Rezando pelo Estácio
Nunca viu Allen Ginsberg
Pagando michê na Alaska
Nem Rimbaud pelas tantas
Negociando escravas brancas264
A letra retoma a questão de vida e arte entrelaçadas, tal como o poeta
beat Jack Kerouac faz no ritmo e intimidade de seus relatos. Ao homenagear
262
CAZUZA. “Medieval II”. Cazuza. [compositor]. In: –. Exagerado. Rio de Janeiro: Som Livre,
p1985. 1CD. Faixa 2.
263
BARÃO VERMELHO. “Por que a gente é assim?”. Cazuza. [compositor]. In: –. Maior
abandonado. Rio de Janeiro: Som Livre, p1984. 1CD. Faixa 7.
264
CAZUZA. “Só as mães são felizes”. Cazuza [compositor]. In: –. Exagerado. Rio de Janeiro:
Som Livre, p1985. 1CD. Faixa 9.
“todas pessoas diferentes e poetas”, Cazuza se coloca no meio deles,
ressignificando seus diálogos com propostas poéticas de outras épocas, dando
um novo sentido para experiência dos “malditos” da travessia dos oitenta e de
outras travessias. O próprio autor explica o processo de criação da letra:
Essa música foi feita de um verso de Jack Kerouac (tirado do
livro Scattered Poems), um frase de um poema dele me
deixou muito intrigado. A frase é muito radical: só as mães são
felizes! Dita desse modo parece que ninguém mais é. Eu usei
a frase como brincadeira, porque na verdade a música é uma
homenagem a todos os poetas malditos. Eu quis fazer
homenagem a este tipo de poeta, de cantor, de loucos que
têm pela vida. Gente que barbariza, que são santos e
demônios ao mesmo tempo... (...) o Kerouac está presente
apenas nessa frase. Eu coloquei no final de brincadeira, para
dar razão ao título.265
A letra foi vetada pela censura, por causa dos versos finais “pós-Nelson
Rodrigues”, como caracterizava o próprio autor:
Você nunca sonhou
Ser currada por animais
Nem transou com cadáveres?
Nunca traiu teu melhor amigo
Nem quis comer a tua mãe?
Só as mães são felizes...266
Embora a bruma recaia sobre Cazuza e mesmo celebrando os poetas e
loucos, malditos e incompreendidos, ele tenta dissipá-la, ainda que não saiba
viver sem ela: “a vida sem bruma/ não é vida humana”267. Sua poesia é
também colorida, embora noturna; ainda é uma comemoração do agora, na
urgência de um brinde, no sentimento de quem quer tudo “no próximo hotel”.
De quem quer “transformar o tédio em melodia”.
Como Renato Russo, que paira sob névoa que recai sobre os poetas
malditos, Cazuza também capta os sentimentos daqueles. Nilo Roméro,
parceiro na melodia da canção “Completamente Blue”, consegue sintetizar os
estados de ânimo do poeta quando diz: “Esta música carrega o sentimento de
265
CAZUZA apud ECHEVERRIA, 2001, p.130.
CAZUZA. “Só as mães são felizes”. Cazuza [compositor]. In: –. Exagerado. Rio de Janeiro:
Som Livre, p1985. 1CD. Faixa 9.
267
CAZUZA. “Bruma”. Cazuza [compositor]. In: –. Burguesia. Rio de Janeiro: Polygran, p1985.
2CD. Faixa 19.
266
angustia blasé de algumas pessoas diante do estilo de vida do final do século
XX, em que você pode fazer o que quiser, mas a satisfação interior é cada vez
mais difícil de ser conseguida”268:
Como é triste a tua beleza
Que é beleza em mim também
Vem do teu sol que é noturno
Não machuca e nem faz bem269
Temos assim o sentimento do homem pós-moderno, na vertigem do
mundo capitalista do consumismo – fragmentação e dilaceramento – que
impõem uma busca constante de auto-realização e satisfação que esbarra nas
proibições, perseguições, limitações, regras, castigos e doenças de uma
sociedade da mídia e do espetáculo, que corrobora o sentimento de vazio e
solidão.
Nesse sentido, o amor se torna amor de salvação, como em Renato
Russo. Este emprega o recurso da polifonia que constrói um discurso do amor
que reinstaura a ordem do mundo fluido e dinâmico, e vem como redenção.
Cazuza opta pela invenção do amor, que denota a necessidade desse
sentimento como salvação. Para aquele que acreditava “que o amor na prática
é sempre ao contrário”270, herdeiro da atitude do “faça você mesmo”, o poeta
não hesitou em cantar “o nosso amor a gente inventa”. A música, a poesia e os
amores se constituem como uma invenção da geração oitentista, e neles
ecoam o lirismo, a obscuridade e os sentimentos de outras épocas e funcionam
como antídoto, ou melhor, como “algum veneno antimonotonia”:
Eu quero a sorte de um amor tranqüilo
Com sabor de fruta mordida
Nós na batida, no embalo da rede
Matando a sede na saliva
Ser teu pão, ser tua comida
Todo amor que houver nessa vida
E algum trocado pra dar garantia
E ser artista no nosso convívio
Pelo inferno e céu de todo dia
268
ROMÉRO apud ECHEVERRIA, 2001, p.150.
CAZUZA. “Completamente blue”. Cazuza [compositor]. In: –. Só se for a dois. Rio de
Janeiro: Polygran, p1987. 1CD. Faixa 6.
270
CAZUZA. “Ritual”. Cazuza [compositor]. In: –. Só se for a dois. Rio de Janeiro: Polygran,
p1987. 1CD. Faixa 2.
269
Pra poesia que a gente não vive
Transformar o tédio em melodia
Ser teu pão, ser tua comida
Todo amor que houver nessa vida
(...)
E algum remédio que me dê alegria271
O amor se constitui na diversidade de vozes, dissonantes e harmônicas,
encerrando características de ambigüidade. Do corpo ao espírito, a poética de
celebração de amores exagerados e formas de vida e continuidade atravessam
a obra de Cazuza. Com um teor de erotismo e transcendência, os versos de
Cazuza carregam a perspectiva da voz do outro. E revelam o outro a si mesmo.
Depois que sai do Barão vermelho aflorou o meu lado Dolores
Duran, Maysa, Nelson Rodrigues.”272
Não estou sendo pretensioso, não, mas vários estudiosos da
música popular já me disseram que eu trouxe essa coisa da
dor-de-cotovelo de volta. É claro que isso aconteceu com a
moldura mais epidérmica do rock. Todo brasileiro, todo latinoamericano, é pego um pouquinho pelo pé nisso de mexer na
ferida do amor. E sempre gosta de temas relacionados a uma
paixão que não deu certo. Esse é o lado diferente e talvez
polêmico do meu trabalho.273
A declaração do autor dá o tom do disco Só se for a dois, que a começar
pelo título abarca uma temática “não rock’ n’ roll” e sugere uma carga de lirismo
romântico. Cazuza, em “Medieval II”, assume seu lado romântico sentimental:
“Eu acredito no meu lado/ Português, sentimental/ Eu acredito em paixão e
moinhos lindos” – quando dialoga com a MPB de Chico Buarque, que em
“Fado tropical” cantara: “sabe, no fundo eu sou um sentimental/ Todos nós
herdamos no sangue lusitano uma boa dose de lirismo (além da sífilis, é
claro)”274. Portanto, Cazuza compõe e canta nesse ritmo o tom do amor a dois
num disco que, alheio ao político e ao social e sobrecarregado de
271
CAZUZA. “Todo amor que houver nessa vida”. Cazuza. [compositor]. In: –. O tempo não
pára. Rio de Janeiro: Polygran, p1987. 1CD. Faixa 4.
272
CAZUZA apud ECHEVERRIA , 2001, p.139.
273
CAZUZA, Compilação feita por Ezequiel Neves e recolhida em entrevista às revistas IstoÉ,
Playboy, Amiga e Interview, no período de 1983 a 1989. Disponível em
http://www.cazuza.com.br/sec_textos_list.php?language=pt_BR&id=4&id_type=2&page=1,
capturado em 04/04/2007.
274
CHICO BUARQUE. “Fado Tropical”. C. Buarque, R. Guerra [compositores]. In: –. Calabar, o
elogio da traição ou Chico canta. Rio de Janeiro: Fhonogran, p1973. 1CD. Faixa 7.
subjetividade, enaltece um amor conquistador – característica ainda do bom e
velho rock’n roll. Assim, as vozes que compõem letra e música de Cazuza são
várias e convivem nas batidas do rock, do blues, do rythm & blues e das
baladas românticas – nas quais ecoam os sentimentos da juventude de sua
geração, que ganham visibilidade através do rock.
Ainda como integrante do Barão Vermelho, Cazuza, em Maior
Abandonado, registra uma poesia cuja temática é a vida e as dores de amor,
que ecoam as vozes de Nelson Gonçalves, Lupicínio Rodrigues e Ataulfo
Alves. Consciente de sua influência e polifonia, Cazuza anunciava: “Um dia
ainda chamo o Nelson Gonçalves para cantar uma música com o Barão. Se
isso chocar algum roqueiro, é sinal de que ele precisa se libertar desse
trauma”275. Dessa forma, inaugura um rock-mpb, feito um “um pierrot
retrocesso/ meio bossa nova e 'rock'n roll”276 que compõe o “clipe sem nexo” do
seu show. Um show híbrido, marcado pela diversidade e influência de gêneros
musicais e formas de compor letra: “A mis-en-scêne, tem muita coisa que a
gente imita dos outros. Pego um pouquinho ali do Caetano, um pouquinho do
Ney, um pouquinho do Mick Jagger, os ídolos da gente"277. Muitas vezes a
música de Cazuza é mais MPB do que rock, é mais bossa e “fossa” que
rebeldia roqueira: formas novas de escrever e cantar num país marcado pela
diversidade. Carrega assim, em suas composições, perspectiva da voz do
outro, que explora e explicita os sentimentos do eu:
Será que eu sou medieval?
Baby, eu me acho um cara tão atual
Na moda da nova Idade Média
Na mídia da novidade média.278
A MPB – categoria musical surgida nos anos 60 comporta um gênero
impuro, que abarca elementos nacionais e populares no seu modo de
275
CAZUZA apud ECHEVERRIA, 2001, p.77.
CAZUZA. “Faz parte do meu show”. Cazuza [compositor]. In: –. Ideologia. Rio de Janeiro:
Polygran, p1988. 1CD. Faixa 12.
Para Cazuza, “essa música não é um new bossa nova como andam dizendo. É bossa velha
mesmo” (CAZUZA apud ECHEVERRIA, 2001, p.190).
277
CAZUZA, Compilação feita por Ezequiel Neves e recolhida em entrevista às revistas IstoÉ,
Playboy, Amiga e Interview, no período de 1983 a 1989. Disponível em
http://www.cazuza.com.br/sec_textos_list.php?language=pt_BR&id=4&id_type=2&page=1,
capturado em 04/04/2007.
278
CAZUZA. “Medieval II”. Cazuza [compositor]. In: –. Exagerado. Rio de Janeiro: Som Livre,
p1985. 1CD. Faixa 2.
276
composição e em sua melodia, elementos estes que podem “desafinar” em
polêmicas e controvérsias, dada a indefinição e variação do significado de tais
termos que tangem o político e uma ordem classificatória hierarquizante. Sem
estender para uma discussão a respeito de gêneros musicais e suas
conotações populares ou não, cabe aqui apenas ressaltar o contato que a cena
roqueira oitentista experimenta com a MPB, seja quando propõe a ruptura, no
inicio dos anos 80, ou quando no final da década, tenta uma reaproximação.
Renato Russo declara a necessidade de “um corte proposital em relação a
MPB” como “valorização dos anos 80”279:
Realmente não precisamos entrar nessa de masturbação
intelectual, vocabulário hermético e citações de autores
desconhecidos para provar qualquer coisa sobre nosso país.
Isto é insegurança de uma geração mais velha, frustrada,
porque não teve permissão para abrir a boca. Não precisamos
disto. Por que não falar o que você sente, sem gramática
correta, sem preocupações políticas?280.
A aproximação de compositores do rock com a MPB como é o caso da
Legião Urbana e de Cazuza coloca o rock como um gênero de
experimentação, dotado da característica de hibridez. A fala de Renato Russo
não é paradoxal à sua atitude e ao seu trabalho de compositor de um rock
lírico, altamente marcado por influências literárias e preocupações estéticas –
como são as composições da MPB.
O depoimento do roqueiro ilustra a
geração 80 e sua necessidade de falar do aqui e agora, valorizando os
sentimentos do eu. Para isso, Russo e Cazuza se aproximam da própria MPB,
que de acusada passa a ser modelo281. Renato Russo constata que “a legião
hoje virou MPB”282. Não nega assim as características básicas do rock, apenas
as confirma na sua impureza ou hibridez. Ao longo dos anos, a estética simples
do rock, que no início dos 80 se compunha na limitação dos recursos musicais
e em letras simples, incorpora, num processo de amadurecimento e
profissionalização, outros instrumentos, arranjos sofisticados, tecnologia de
gravação e reprodução. E as letras amadurecem literariamente. Dessa forma,
279
RUSSO apud DAPIEVE, 2004, p.
RUSSO apud BRYAN, 2004, p.138.
281
Cazuza, em 1987, divide o prêmio de Melhor letrista da MPB com Chico Buarque.
282
RUSSO apud DAPIEVE, 2004, p.196.
280
Renato e Cazuza se distanciam do amadorismo e se tornam porta voz de sua
geração, fixando-se como mainstream do rock brasileiro de todos os tempos.
E os diálogos do rock com a MPB e com outros gêneros musicais, como
o samba e a bossa nova, reafirmam a década de 80 como a década da
travessia. Cazuza e Renato Russo caminham, prosseguem na movimentação
cultural, confirmando também o Brasil como uma nação mista, impura, em
todos os sentidos, desde a colonização. Cazuza declara-se como poeta da
travessia:
Não sou um poeta aleatório e, depois, como um bom filho da
Tropicália, não consigo admitir a barreira que as pessoas
traçam o que é e que deixa de ser MPB. Sou letrista de rock
por acaso. Se houvesse pintado um grupo de samba, em vez
de Barão Vermelho, eu estaria compondo sambas de qualquer
forma, sou muito latino, muito passional, e minha poesia
reflete isso. Posso tentar caminhar no estilo Joy Division, mas
quando vou ver o resultado está muito Cartola.283
As influências do poeta se diluem ao longo de sua obra.
As vozes do outro se fazem ouvir no miúdo do texto e murmuram em seus
diálogos, curtos ou longos, com a música e com a literatura.
Minhas influências literárias são completamente loucas. Nunca
tive método de ler isso ou aquilo. Lia tudo de uma vez
misturando Kerouac com Nelson Rodrigues, William Blake
com Augusto dos Anjos, Ginsberg com Cassandra Rios,
Rimbaud com Fernando Pessoa. Adorava seguir Carlos
Drummond de Andrade em seus passeios por Copacabana.
Me sentia importante acompanhando os passos daquele
Poeta Maior pelas ruas à tarde. Mas meu livro de cabeceira foi
sempre "A descoberta do mundo", de Clarice Lispector. Adoro
acordar e abri-lo em qualquer página. Para mim, sempre
funciona mais que o I Ching. As minhas letras têm muito
desses ‘bruxos’ todos.284
Em “Azul e Amarelo”, Cartola assina a autoria da música ao “emprestar”
os versos “Não vou não quero”, de sua música “Autonomia”. Lobão, que
também assina a canção, explica o roubo anunciado de Cazuza: “Na verdade
‘não vou e não quero’ é um verso de música do Cartola, e Cazuza falou assim:
283
284
CAZUZA, 2001, p.257.
CAZUZA, Compilação feita por Ezequiel Neves e recolhida em entrevista às revistas IstoÉ,
Playboy, Amiga e Interview, no período de 1983 a 1989. Disponível em
http://www.cazuza.com.br/sec_textos_list.php?language=pt_BR&id=4&id_type=2&page=1,
capturado em 04/04/2007.
‘Essa frase é do Cartola, então eu quero ter o Cartola na nossa parceria, você
quer? ’ Eu disse: ‘Claro’”285. Roubo, parceria, apropriação – diálogos que se
intensificam, quando a partir do romance Água Viva, Cazuza transforma a
prosa de Clarice Lispector em rock do Barão Vermelho: "Gosto de coisas
densas, como a literatura de Clarice Lispector. Por falar nela, acabei de compor
‘Que o Deus venha’, uma música inspirada em meu livro de cabeceira, Água
Viva"286. Ou em “Balada do Esplanada”287, quando a poesia de Oswald de
Andrade se transforma em letra e música de Cazuza. A apropriação do texto
alheio rouba-lhe sentido e ritmo e impregna-o de uma assinatura que desloca
seu significado “original”. Ao fazer com que Cartola, Lispector ou Andrade
assine a co-autoria da letra, faz com que eles se tornem cúmplices do roubo e
dilua a culpa daquele que se apropria do alheio. E o sentido, o significado, a
confissão e a culpa passam a ser compartilhados. Renato Russo, por sua vez,
em “Monte Castelo”, por exemplo, não traz a assinatura de São Paulo ou
Camões. Todavia, o diálogo e o roubo de Cazuza e Russo resulta num rock
polifônico, que comporta a perspectiva da voz do outro, seja pela citação, pela
referência, ou pela apropriação. As palavras de Paz ajudam a compreender o
roubo do eu do outro, quando nos apropriamos do discurso alheio e nos
revelamos naquilo que tomamos como nosso:
Nosso nome sustém também um estranho de quem nada
sabemos exceto que ele é nós. O homem é temporalidade e
mudança, e a “outridade” constitui sua própria maneira de ser.
O homem se realiza ou se completa quando se torna outro.
Ao se tornar outro se recupera, reconquista seu ser original,
anterior à queda ou ao despencar no mundo anterior à cisão
em eu e “outro”.288
Dessa forma, lemos/ ouvimos “Que o Deus venha” como sendo
confissão de um eu “inquieto, áspero, e desperançado” – um eu - Cazuza, um
eu - Clarice, que se expõe e se torna um eu - outro quando o leitor/ ouvinte, se
apropria daquele eu anônimo e substituível, dos quais falam Paz e Derrida.
285
LOBÃO apud ECHEVERRIA, 2001, p.232.
CAZUZA, Compilação feita IstoÉ, Playboy, Amiga e Interview, no período de 1983 a 1989.
Disponível
em
http://www.cazuza.com.br/sec_textos_list.php?language=pt_BR&id=4&id_type=2&page=1,
capturado em 04/04/2007.
287
CAZUZA. “Medieval II”. Cazuza [compositor]. In: –. Só se for a dois.. Rio de Janeiro:
Polygran, p1987. 1CD. Faixa 11.
288
PAZ, 1982, p.219.
286
Cazuza também toma por inteiro a letra do outro e a faz sua, na voz e na
doação do corpo. O roqueiro gravou o samba “O mundo é o moinho”, de
Cartola, “Esse cara”, de Caetano Veloso, e “Vida louca vida”, de Lobão, e
outras canções que não são de sua autoria. E como assinala Chiara, ao
apontar as “Afinidades Eletivas” entre Caio Fernando Abreu, Cazuza, Renato
Russo e Álvares de Azevedo: “A palavra-chave é entrega. E essa confusão
entre vida e arte. Essa vida de artista... mesmo quando não falam por si
próprios, difícil não saber quando não falam de si.”289
A nudez de Cazuza não se fez somente pela escrita da letra. Pelo canto
e performance despiu-se por completo. Para os nossos poetas em questão,
vida e obra se confundem, obviamente com todas as considerações apontadas
no capítulo dois. Portanto, as palavras dos outros são também técnicas de
despir e máquinas de fazer confessar. “Vida louca vida” talvez seja difícil de ser
lida, ouvida e compreendida se desvinculada do corpo, da vivência e da voz de
Cazuza:
Vida louca vida
Vida breve
Já que eu não posso te levar
Quero que você me leve
Vida louca vida
Vida imensa
Ninguém vai nos perdoar
Nosso crime não compensa290
Como Renato Russo que assina o diálogo por ele promovido entre São
Paulo e Camões – resignificando o entendimento e entrecruzamento do amor
carnal e divino –, Cazuza se doa para o texto alheio e não se intimida com a
contaminação entre escrita e voz. Penetra, em alarde e festa, no reino das
palavras e as possui. Se dermos ao empreendimento de compreensão da vida
e da obra de Cazuza, os versos de Cartola soam bem, ainda que tristes e
pessimistas, para dar conta, daquele, que como Álvares de Azevedo, foi poeta,
viveu e amou a vida:
Ainda é cedo amor
Mal começastes a conhecer a vida
289
CHIARA, 2001, p.10.
CAZUZA. “Vida louca vida”. Lobão, B. Vilhena. [compositores]. In: –. O tempo não pára. Rio
de Janeiro: Polygran, p1988. 1CD. Faixa 1.
290
Já anuncias a hora da partida
Sem saber mesmo o rumo que iras tomar291
Os diálogos de Cazuza também se fazem na doação da letra para o
corpo. O compositor “distribuiu” várias letras para outros intérpretes da música
brasileira, principalmente quando, numa maneira de manter-se vivo e lutar
contra a doença e a morte, compunha em ritmo alucinado. Sua letra encontra
assim o diálogo com vários outros ritmos musicais, ampliando seu alcance e o
consagrando como poeta292: “o sonho do poeta se concretizou, e sua herança
está registrada na história da música popular brasileira através de várias
frentes”293.
Ainda que as composições de Cazuza estejam bastante ligadas ao seu
tempo e espaço de vivência, sendo, portanto, mais datadas e localizadas que
as de Renato Russo, o exagero do garoto que nasceu “no Rio de Janeiro/ fruto
do amor verdadeiro/ de uma cristã e um cristão”294 ganha a perenidade e
atemporalidade, ao protagonizar em versos sentimentos comuns a toda a sua
geração, que ecoa de tempos em tempos, para outras épocas.
Eu não saio do bar, tomo oito vodcas, milhares de não sei o
que, vou pra casa e escrevo o que vi. O Tom Jobim uma vez
disse que, quando a gente canta o quintal da gente, está
sendo internacional, porque aquele quintalzinho só a gente
tem.295
291
CAZUZA. ”O mundo é um moinho”. Cartola [compositor]. In: –. Preciso dizer que te amo toda a paixão do poeta. Rio de Janeiro: Universal. p2001. 1CD. Faixa 14.
292
O Capítulo11 do livro Preciso dizer que te amo, que reúne todas as letras do poeta,
apresenta as composições de Cazuza interpretadas por vários artistas como Marina Lima,
Cássia Eller, Adriana Calcanhoto, Ney Matogrosso, Leila Pinheiro, entre outros.
293
ECHEVERRIA, 2001, p259.
294
CAZUZA apud ECHEVERRIA, 2001, p.8.
295
Declaração que vai na contramão da matéria polêmica e sensacionalista da Veja, de 26 de
abril de 1989, em cuja capa vinha a foto de um Cazuza magérrimo e frágil e anunciava:
“Cazuza – uma vítima da Aids agoniza em praça pública”. Concluindo a matéria, a revista
arriscava: “Cazuza não é um gênio da música. É até discutível se sua obra irá perdurar, de tão
colada que está no presente. Não vale, igualmente, o argumento de que sua obra tende a ser
pequena devido à força do destino: quando morreu de tuberculose, em 1937, Noel Rosa tinha
26 anos, cinco a menos que Cazuza, e deixou compostas nada a menos que 213 músicas,
dezenas delas obras-primas que entraram pela eternidade afora. Cazuza não é Noel, não é um
gênio. É um grande artista, um homem cheio de qualidades e defeitos que tem a grandeza de
alardeá-los em praça pública para chegar a algum tipo de verdade” ( VEJA apud ALEXANDRE,
2001, p.345).
Cazuza tivera mais 160 músicas gravadas e deixou mais de seis dezenas inéditas.
“E de qualquer quintal faço cidade”296, reforça-lhe a defesa Renato
Russo. Assim Cazuza ganha a amplitude no tempo e no espaço: "Antes eu me
sentia cronista da minha tribo, muito reduzida, por ser a tribo dos boêmios (...).
Agora, minha temática se tornou mais abrangente. Não que não me considere
mais cronista da minha tribo, mas é que minha tribo aumentou"297. Garante-se,
assim, décadas depois de sua morte, como grande poeta do rock brasileiro.
Talvez por teimosia (característica exacerbada do cantor) seus versos vão
continuar a embalar histórias de amor, amores desfeitos e insistir para que o
Brasil mostre sua cara. Contra o tempo que não pára, Cazuza recolheu em
seus rastros os seus cacos, seus amores vividos e inventados, e num diálogo
com passado e com o presente, deu o tom da expressão de angústia,
liberdade, dor, prazer e desencanto da geração em travessia. Como Noel
Rosa, Jim Morrison, Janis Joplin, Fred Mercury e Renato Russo, “os bons
morrem jovens”298:
Os ignorantes são mais felizes
Eles não sabem quando vão morrer
Eu não
Eu sei que eu tenho um encontro marcado
As pessoas esquecem o que precisam fazer
Eu não posso me dar esse luxo
Faço tudo caber nos meus próximos poucos dias
Todas as idéias que eu teria as pessoas que eu conheceria
O que eu fosse ainda fosse cantar
Estou grávido mais não posso esperar
O tempo não pára e a gente ainda passa correndo
E eu fiquei aqui, tentando agarrar o que eu puder
Ando fraco
Tem um mundo ao redor que agente não percebe
Tô ficando magro e pequeno nas minhas roupas
Sinto que estou reunindo minhas coisinhas
Me concentrando
Se pudesse, guardava tudo numa garrafa, e bebia de uma vez
Penso no que vai ficar de mim
Eu... só sei insistir...299
296
LEGIÃO URBANA. “Os barcos”. R. Russo [compositor]. In: –. O descobrimento do Brasil.
Rio de Janeiro. EMI, p1993. 1 CD. Faixa 7.
297
CAZUZA, O Estado de S.Paulo, abril/1988, disponível em
http://www.cazuza.com.br/sec_textos_list.php?language=pt_BR&id=33&id_type=2&page=1.
298
LEGIÃO URBANA. “Love in the afternoon”. R. Russo [compositor]. In: O descobrimento do
Brasil. Rio de Janeiro. EMI, p1993. 1 CD. Faixa 12.
299
CAZUZA. “Ombra mai fu”. Cazuza [compositor]. IN: –. Cazuza - o tempo na pára (trilha
sonora do filme). Rio de Janeiro: Som Livre, p2004. 1CD. Faixa 11.
E tomando (ou roubando, ou dialogando com) Oswald de Andrade, a
epígrafe do último álbum da Legião Urbana, A tempestade - “O Brasil é uma
república federativa cheia de árvores e gente dizendo adeus” – permite-nos
uma leitura de Cazuza e Renato Russo como “crônicas de uma morte
anunciada”.
Este caráter emocional com que se misturam vida, paixão e
imaginação pertence à nova sensibilidade com que os
românticos perceberam as mudanças de sua época e ao
modo como as sensibilidades românticas contemporâneas
percebem nossa época. Sensibilidades polarizadas – almas
partidas; anjos demônios, Ariel/ Caliban – esses artistas
cultuam as experiências limite, em que perdem suas almas,
privilegiam a ferocidade das paixões, e gostam das noites
gastas nas tavernas ou das aventuras pela noite.300
Herdeiros dos estigmas do romantismo, nossos poetas da pósmodernidade abrigam ainda conceitos da modernidade introduzidos por
Baudelaire: dissonante, o poeta “faz do negativo algo fascinador”301. Hugo
Friedrich, ao analisar a Estrutura da lírica Moderna, observa que “Baudelaire
perscruta um mistério no lixo das metrópoles: sua lírica mostra-o como brilho
fosforescente”302. Assim o faz Cazuza:
Pra que sonhar
A vida é tão desconhecida e mágica
Que dorme às vezes do teu lado
Calada
Calada
Pra que buscar o paraíso
Se até o poeta fecha o livro
Sente o perfume de uma flor no lixo
E fuxica
Fuxica303
Para Baudelaire, “o maravilhoso privilégio da arte é que o espantoso,
expresso com arte, torna-se beleza, e que a dor ritmizada, articulada, preenche
300
CHIARA, 2001, p.12.
FRIEDRICH, 1978, p.43.
302
Id. Ibid.
303
CAZUZA. “Ritual”. Cazuza. [compositor]. In: –. Só se for a dois. Rio de Janeiro: Polygran,
p1987. 1CD. Faixa 2.
301
o espírito com alegria tranqüila”304. Assim, Cazuza e Renato Russo, como
Baudelaire, souberam poetizar a dor, o sujo, o malvado, o sórdido, o viral, o
pus: “Do feio, o poeta desperta um novo encanto”305. Ou como escreveu Caio
Fernando Abreu: “E se tudo isso que você acha nojento fosse exatamente o
que chamam amor?”306
304
BAUDELAIRE apud FRIEDRICH, Hugo, 1978, p.40-41.
Ibid., p44.
306
ABREU, Caio Fernando apud CHIARA, 2001, p.14
305
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mas estamos vivos ainda
E quem sabe um dia eu escrevo uma canção p’rá você.
Renato Russo
A pesquisa de dissertação aqui empreendida voltou-se para a leitura da
produções escritas da obras musicais de Renato Russo e Cazuza, buscando
uma
leitura das letras de música ordenadas como memórias-presentes e
escrita autobiográfica e confessional. Para tanto, o primeiro capítulo prestou-se
a uma leitura contextualizada das questões sócio-culturais que permeiam as
produções artísticas daqueles que se aventuram na caminhada da travessia. O
rock na sua versão brasileira dos anos 80 apresenta-se e configura-se como a
escrita e o som da juventude herdeira da necessidade do “faça você mesmo”.
Daí, apreendemos o rock, considerando suas características fundamentais e o
contexto econômico e político do Brasil, como o gênero que melhor poderia
formatar e veicular as necessidades da juventude, já que, a princípio, não
exigiria aprofundamento técnico. De base híbrida, o rock brasileiro permite a
convivência de gêneros e estilos e não se formata dentro de uma escola e, por
isso, configura-se como obra poético-musical da travessia. Não há intuito de
permanência, nem de seguidores.
O primeiro capítulo, ao lado do terceiro, dá-nos a dimensão da hibridez
do rock. Por ser híbrido e permitir a confluência de vários ritmos e estilos,
torna-se polifônico. A polifonia, então, reflete uma necessidade da geração da
travessia. Não se constituindo como escola, o rock oitentista exige o diálogo
com o presente e com o passado e vislumbra o futuro, já que objetiva a
transição. A confluência e a diversidade de vozes atestam o sujeito como
portador de perspectivas e resquícios que se manifestam na materialidade de
sua expressão artística. Formas, portanto, do ser vivente fragmentado que,
apenas pelos rastros e vestígios, pode tentar representar quem ele é. Sem
poder se compor na totalidade, o sujeito apenas percorre seus rastros e fareja
os vestígios do perfume particular que lança no espaço público, tornando-se,
assim, metonímia da sociedade que o concebe, e concebendo a sociedade
como metáfora para seu corpo. O todo e a parte, o eu e o nós comungam
particularidades e peculiaridades que fazem ressoar o eco de vozes que
(de)compõem tal sujeito.
No contexto econômico e político, no qual se encontram os autores da
travessia, a característica de uma escrita e de um ritmo musical polifônico
agrega as múltiplas forças, aliadas e inimigas, que movimentam e
desencantam os viventes desse tempo e espaço. Fragmentam-se e
reaproximam-se os vestígios do sujeito. O som da caminhada é o rock. Este
dialoga com outros ritmos, culturas e tempos distintos. São seres viventes da
experiência, da experimentação. Por isso, rupturas e reaproximações que
repercutem a polifonia e o processo de maturação da geração 80. Inserido nas
esferas da indústria cultural, o rock de garagem do início da década, para
permanecer como artigo de venda e registro da expressão artística, necessita
de uma consolidação literária no que se refere às letras e de um afinamento
técnico no que diz respeito à sofisticação sonora. Daí então a reaproximação
com a MPB, que concentra a qualidade lírica e melódica.
O outro ponto a que se chega, refere-se às escritas de Cazuza e Renato
Russo como registro da culpa e busca da redenção. Nesse sentido, os textos
teóricos de Jacques Derrida, O animal que logo sou e Papel máquina,
subsidiam a leitura e se aproximam do texto-objeto, ora um e outro
comportando-se como citação. Na superfície da escrita, encontram-se as
marcas do roubo e da culpa. Ao constatar o roubo e a culpa, a própria escrita
se torna roubo e tão culpada quanto aquele que rouba e confessa. Todavia, o
processo de confissão comporta a redenção e a salvação. O erro e a falta
levam à culpa que, por sua vez, desencadeia os sentimentos de desconcerto
naquele que insiste na travessia. O sujeito do desconcerto é aquele do
concerto, é aquele que busca, na materialidade da escrita e da melodia, a
salvação. É aquele que procura a nota de afinação e harmonia, ainda que o
faça de forma dissonante. É o poeta da pós-modernidade. Se errado, faltoso,
empreende na busca do conserto, na busca daquilo que o ajuste, o afine com
seu tempo e espaço, e principalmente daquilo que o coloque em sintonia com o
corpo e o espírito, com interior e com a sociedade, com o particular e o público.
Portanto, a geração oitenta foi a geração da afinação, por isso ruídos, por isso
atropelos, experimentações, desconcertos – travessia.
A travessia aponta uma terceira margem. Algo que se localiza entre as
margens. Algo que instaura metáforas que compõem a narrativa de uma
década chamada de perdida, mas que, no entanto, se entendida como a
década do trânsito, da caminhada, revela sua importância para o Brasil e para
aquele que a protagoniza. Elo entre o passado penoso e vergonhoso da
ditadura militar e a promessa do futuro grandioso. Porém, não une passado e
futuro, e se desfaz, sem se perder, entre aquilo que é melhor esquecer e o que
apenas acena ao longe, na ilusão do eterno esperar. A geração desmemoriada
foi, no entanto, capaz de escrever sua própria história. As produções poéticas
musicais das várias bandas de rock compõem a narrativa da geração que
produz e consome a arte pop, e vive a dinâmica e fluidez do mundo pósmoderno. De desmemoriada, a juventude na sua expressão artística se torna a
memória da geração e da nação, mesmo sendo feita em passadas largas e
descompassadas – porque assim são o eu e geração dessa travessia. A
escrita, portanto, antes de seu desvelamento aprofundado, na superfície, toma
a forma de quem a protagoniza.
Nem elo, nem perdida, a geração oitenta, entre as margens, localiza o
sujeito em desarmonia. Os estilhaços e entulhos do autoritarismo convivem
com as roupas festivas da redemocratização. Entre encantos e desencantos,
sem diretas e com reinados de vice-governos, o país tenta se equilibrar em
meio a tropeços, corrupção, fraude e inflação. Na névoa da economia e da
política, o sujeito livre das amarras e ordens, tenta viver a liberdade. Liberdade
de expressão, do corpo, do sexo. Na contramão, os obstáculos, impedimentos,
adestramentos, a Aids, os conflitos internos, a culpa.
Terceira margem, porque a década de 80 se situa entre o que foi e o que
seria. Não comporta a nota dos vencidos dos longos blocos da história, nem se
formata como escola ou movimento. Constrói-se entre rastros e ressalta a
diversidade, a individualidade que, todavia, é capaz de encenar os anseios da
coletividade. Daí, a biografia e a subjetividade que vêm a preencher as lacunas
das grandes ideologias coletivas. É a terceira opção, aquela que não participa
dos movimentos de engajamento cultural e também não é aquela que calada
se deixa levar e ser persuadida. Sem a crença do poder revolucionário na
palavra poética, encena, na rebeldia característica do rock, a insatisfação da
nação.
Chega-se também a outros governos e ritmos: o sertanejo embala a era
Collor. O tom rebelde e a batida forte do rock é ruído para o governo da
corrupção e do confisco. Por isso, os amores e dores-de-cotovelo das duplas
sertanejas, que a partir da década de 1990 proliferam no Brasil, são mais
aprazíveis, menos contestatórios, mais sedutores. E cada época, cada
governo, cada geração compõe e canta sua trilha musical. Mas nota-se,
principalmente a partir de 1990, a diversidade de gêneros e ritmos que cantam
a nação e o sujeito. Entre a subjetividade e a contestação coletiva, aquela
diversidade que ensaia seus primeiros passos na década de 80 ganha, na
última década do século, um profícuo espaço e mercado. Torna-se, hoje, difícil
mapear o estilo, o gênero, a banda ou artista como o representante de um
tempo ou de uma geração. O sujeito da travessia termina sua jornada e
desembarca no multiculturalismo. A mídia e a indústria da cultura, de tempos
em tempos, elegem seus ícones, seus produtos mais lucrativos e celebram,
assim, a arte e o apelo comercial, tornando cada vez mais híbrida nossas
manifestações culturais.
O rock, após a travessia, não sai de cena. Após a euforia e queda das
vendas provocadas pelo Plano Cruzado, as bandas que resistem às
tempestades e intempéries da viagem se consolidam diante do mercado e dos
seus ouvintes/ consumidores. A Legião Urbana continua produzindo até 1996,
quando a banda se desfaz com a morte de Renato Russo. E daqueles que
iniciaram a caminhada, no inicio de 1980, em plena produção nos dias de hoje
se encontram, por exemplo, Capital Inicial, Titãs, Engenheiros do Havaí, entre
outros.
O rock brasileiro toma o aspecto cada vez mais pop e deságua no
chamado pop-rock, gênero que guarda certas características em comum com
rock 80 e consolida o aspecto de arte pop, ou seja, aponta o entretenimento e o
consumo como principais objetivos, diluindo-se no lucro e na efemeridade do
mercado altamente rotativo. Necessita-se, porém, de um levantamento e
análise das letras dos grupos que entram e saem de cena e junto com outros
ritmos e gêneros compõem a trilha sonora da diversidade cultural brasileira
atual. Ressalta-se a diversidade de gêneros e subgêneros que surgem a cada
dia. Fato que assinala a expansão da indústria fonográfica, ao mesmo tempo
em que denota a necessidade de algo novo que responda aos anseios da nova
geração que convive com a aceleração, com a tecnologia e com a fugacidade.
Fatores da pós-modernidade que fragmentam, desconcertam e diluem o
sujeito. Daí a citação, a apropriação, o recorte, a mistura, o pastiche, a
bricolagem e a criação de subcategorias, que marcam os novos gêneros
musicais que, a começar pelo formato em si, já responde por aqueles que os
criam e os consomem. A arte e a cultura tornam visíveis certas engrenagens do
capitalismo. Os novos suportes para música impossibilitam a idéia de se formar
uma discoteca, quando o LP ordenava os gêneros musicais e o consumo de
música. Com a Internet e os suportes virtuais, a música na versão eletrônica
toma outras roupagens e requer atenção e ferramentas que possam elucidar as
trocas culturais urbanas da contemporaneidade.
O outro ponto a que leva a travessia mostra a escrita contra a morte e
contra o tempo que não pára. Marcel Proust e Manuel Bandeira, por exemplo,
foram dois viventes que transformaram a própria vida ou a morte iminente em
arte, em literatura. Renato Russo e Cazuza colocam em tensão a brevidade da
vida e a intensidade da poesia, criando uma escrita que não é a tentativa de
busca do tempo perdido, nem a espera da morte que poderia encontrar a casa
pronta a qualquer momento. A escrita desses dois autores ratifica o incômodo
da mortalidade e o desejo de continuidade. Renato Russo e Cazuza fazem da
escrita a própria vida ou da vida a própria escrita. Empregam assim na vivência
o lúdico que reside na poesia. A brevidade versus a intensidade resulta no
exagero. A poesia de Renato e Cazuza é o exagero, é o derramamento
excessivo de lirismo quando se descobre aquilo que falta. A escassez
acompanha a travessia. A escassez e o exagero são faces de uma mesma
escrita. Sem os opostos se negarem, eles revelam a complexidade e as
contradições do sujeito. Por se tratar de sujeitos da travessia, da
experimentação, muitas vezes, as contradições se intensificam e deságuam em
oxímoros: convivem no mesmo sujeito escassez e exagero, travessia e
agoricidade, culpa e salvação, obra e vida. O oxímoro repercute na polifonia.
Ao se aventurar pela travessia, mais do que a busca de um ponto de chegada,
o importante é a caminhada. A geração 80 é a geração da travessia, mas é a
geração do presente, da valorização do aqui e do agora. É a geração da
caminhada, mas que faz de cada passo uma chegada, pois é incerto o futuro.
A geração 80 é movimento e consegue parar a beleza com a escrita. Ou
pela escrita revelar a beleza do sujo. O poeta é dissonante. Não se teria uma
poética, se não transformasse o feio, o sujo, o nojento, a dor, o sofrimento em
lirismo. Era mais do que preciso transformar o tédio em melodia, era preciso
inventar amores, era preciso inventar canções. Era preciso manter-se vivo e a
vida foi mantida pela escrita e pelo canto. “Porque o meu canto é a minha
solidão/ É a minha salvação/ Porque o meu canto é o que me mantém vivo”307,
finaliza a ultima estrofe, da última música, do último lado, do último disco de
Cazuza – como cantou Renato Russo no dia da morte do seu companheiro de
travessia.
A urgência do presente daquela geração se confronta com a urgência do
passado dos viventes do novo milênio. Vivenciamos hoje o boom da memória.
O que faz com que voltemos no tempo, faz com que relembremos, muitas
vezes com nostalgia, o percurso da caminhada. O percurso e os percalços que
nos trouxeram até aqui e fizeram de nós aquilo que somos. A necessidade de
retorno ao passado, principalmente a revisão do passado do breve século XX,
por ter sido breve e intenso, instaura a busca do tempo perdido. Em se tratando
da década de 80, a busca da década perdida. Quando o futuro não repete o
passado, o presente retoma o passado para entender o próprio presente.
Retrospectivas e nostalgias podem também reiterar o vazio, a superficialidade
do novo. A tecnologia, a dinâmica e fluidez da pós-modernidade causam
fissuras no presente. E a memória e a recuperação do arquivo se prontificam
como uma vivência do passado e do presente. A sociedade que vislumbra o
novo necessita do velho. O que virá depende do que foi, e assim o passado,
apenas aquele que conseguimos reconstituir e articular com o presente, se
transforma em memória.
Na era dos sistemas high-tech de informação, corre-se o risco da
memória – com a de Funes - não nos dizer nada. Os relançamentos,
coletâneas, filmes sobre o Holocausto, almanaques da década de 60, 70, 80,
entre festas com hits e decorações retrô, constituem-se também como
memórias efêmeras para o consumo, postas à venda pela indústria da cultura.
A memória concorre, portanto, como necessidade de recuperação do tempo
perdido, de articulação para entendimento da contemporaneidade e também
como produto da indústria cultural. Ao revisar o passado, nos constituímos,
como Renato Russo e Cazuza, como seres dotados da necessidade do
diálogo. Repercute em nós, a diversidade de vozes, do presente e do passado,
do eu e do outro.
307
CAZUZA. “Quando eu estiver cantando”. Cazuza [compositor]. In: –. Burguesia. Rio de
Janeiro: Polygram, p1989. 2CD. Faixa 20.
Espera-se que em uma escrita de travessia, os passos do presente e os
rastros da caminhada possam apontar o sujeito e os companheiros da jornada.
Fica, portanto, uma escrita diário de bordo, na qual se encontra os relatos das
intempéries, as alegrias da descoberta, o alívio e o sufoco dos dias de sol e
noites tempestuosas. Originalmente, o último álbum lançado pela Legião
Urbana com Renato Russo ainda vivo, se intitula A tempestade com o subtítulo
O livro dos dias. Pensando na possibilidade de uma inversão do título e
subtítulo desse álbum, vislumbra-se o quanto fora tempestuosa a travessia
daqueles dias, ou como aqueles dias ainda que tempestuosos não impediram a
caminhada, nem a escrita.
Cazuza e Renato Russo, os companheiros de viagem, em seus registros
confessionais – poéticos e documentais – se apresentam como aquilo que
substitui as grandes sucessões lineares da história pelo jogo da escrita
subjetiva que comporta o jogo das interrupções e descontinuidades.
Posicionados na borda da história, nossos poetas da música rompem com as
grandes bases imóveis e as grandes narrativas tradicionais: narram a história
do processo de redemocratização do Brasil, encenando na escrita poéticomusical a vivência do eu desconcertado.
Reconstruindo o discurso do outro, procurou-se a palavra muda que
murmura nas entrelinhas do texto e da história oficial. Procurou-se revelar o
miúdo do texto, o miúdo do eu, o miúdo do outro, o miúdo de uma geração. As
singularidades e as condições de existência da década de 80 podem ser lidas
nas obras de Russo e Cazuza. Como arquivo da vivência de uma geração, o
deslocamento da letra da canção para o discurso acadêmico, ainda que possa
contaminar a escrita científica, permite elucidar os acontecimentos que
pontuam o sujeito e seu tempo histórico.
A escrita autobiográfica revela-se culpada e transgressiva, apaixonante
e sedutora. E qualquer escrita sobre uma escrita assim comporta os mesmos
vestígios de quem confessa. Escrever sobre a escrita da culpa e da confissão
exige uma escrita culpada, que confessa por si própria, à medida que se
contamina da escrita do outro, sobre a qual se escreve. Perpetua-se a
genealogia da escrita das confissões iniciada por Santo Agostinho e seguida
por Rousseau. Escrever sobre a escrita do roubo já é roubo. E,
paradoxalmente, cita-se para desculpar, culpando-se mais ainda, confessando.
A escrita sobre a escrita da culpa é palimpsestuosa. Muito não se comporta na
espessura do palimpsesto, daí uma escrita edipiana que se revela pelos pés
inchados do texto, nas inúmeras citações de pé-de-página. Mais culpada ainda
se torna essa escrita sempre à sombra do erro e da culpa daquilo que não se
pode evitar.
Quem escreve sobre a autobiografia corre os mesmos riscos daquele
que se entrega ao instinto do animal autobiográfico. Corre o risco do autoenvenenamento, da auto-infecção. Mas é o risco que busca a salvação, o risco
da letra em palimpsesto, o risco do perigo, o risco do corte, da dor. Portanto, a
autobiografia e qualquer escrita sobre ela é (re)corte, ruptura, deslocamento.
Não permite, por isso, uma unidade totalizadora. Como não é possível a
totalização de qualquer empreendimento sobre a escrita. Ambas as escritas
não comportam o fechamento, apenas as movimentações do jogo que as
compõem, permitindo infinitas leituras.
Pode-se assim dizer que Renato Russo e Cazuza metaforizam em suas
obras poético-musicais os conceitos de différance e suplemento de Jacques
Derrida. Eles se anunciam na primeira pessoa e tecem a tensão do eu com a
história. O eu que oscila entre a presença e a falta, entre a diferença e os
rastros que se confundem. Eles se suplementam na caminhada. Suas obras ao
serem lidas como constitutivas da travessia, movimentam-se, agitam-se.
Cedem uma a outra na adição flutuante do movimento. São assim memóriaspresentes que se fazem suplemento e diferença.
A fragmentação e desconcerto dos sujeitos da travessia, que se
constituem pela escrita, permitem aproximações, quando a citação poética
(des)culpa conceitos teóricos. Estes, por sua vez, esbarram-se, tocam-se,
contaminam-se com os dizeres que exigem metáforas e outras figuras de
linguagem, que ausentes do escrito teórico, tentam apreender a complexidade
das relações humanas. Relações que, na superfície da escritura, fazem vir à
tona o que reside na profundidade do homem. Somente na escrita se revela a
différance.
Esperam-se ainda outras respostas para aqueles versos que suscitaram
questionamentos desde a primeira música, do primeiro lado, do primeiro disco
da Legião Urbana: “Será que vamos conseguir vencer?”. Como se esperam
ainda outras leituras desses poetas.
A epígrafe, “Ouça este disco da primeira à última faixa. Esta é a história
de nossas vidas”, do álbum Uma outra estação, lançado após a morte de
Renato Russo, resume a escrita da memória e da autobiografia em
palimpsesto. Da legião que se aventurou pela travessia restaram anjos e
demônios, fãs, histórias e o arquivo fonográfico que permitem, nesta estação e
nas próximas, o rastreamento do animal que logo foram, que logo somos, que
logo seremos – como diz o subtítulo de Jacques Derrida: A seguir.
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