ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA
João Carlos de Azevedo Fraga
O EMPREGO DAS FORÇAS ARMADAS EM OPERAÇÕES
DE GARANTIA DA LEI E DA ORDEM
Rio de Janeiro
2011
ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA
João Carlos de Azevedo Fraga
O EMPREGO DAS FORÇAS ARMADAS EM OPERAÇÕES
DE GARANTIA DA LEI E DA ORDEM
Trabalho de Conclusão de Curso - Monografia
apresentada ao Departamento de Estudos da
Escola Superior de Guerra como requisito à
obtenção do diploma do Curso de Altos Estudos de
Política e Estratégia.
Orientador: CMG GUILHERME SANDOVAL GÓES
Rio de Janeiro
2011
C2011 ESG
Este trabalho, nos termos de legislação que
resguarda os direitos autorais, é considerado
propriedade da ESCOLA SUPERIOR DE
GUERRA (ESG). É permitida a transcrição
parcial de textos do trabalho, ou mencionálos, para comentários e citações, desde que
sem propósitos comerciais e que seja feita a
referência bibliográfica completa.
Os conceitos expressos neste trabalho são de
responsabilidade do autor e não expressam
qualquer orientação institucional da ESG
__________________________________
Assinatura do autor
Biblioteca General Cordeiro de Farias
Fraga, João Carlos de Azevedo.
O emprego das Forças Armadas em Operações de Garantia da Lei e
da Ordem / João Carlos de Azevedo Fraga - Rio de Janeiro : sigla da
unidade, 2011.
48 f.: il.
Orientador: CMG Guilherme Sandoval Góes
Trabalho de Conclusão de Curso – Monografia apresentado ao
Departamento de Estudos da Escola Superior de Guerra como requisito
à obtenção do diploma do Curso de Altos Estudos de Política e
Estratégia (CAEPE), 2011.
1. Segurança Pública e Forças Armadas. 2. Constituição e Forças
Armadas. 3. Garantia da Lei e da Ordem.
1. Marinha do Brasil. 2. Recursos humanos. 3. Gestão de pessoas.
4. Recrutamento.
A todos que contribuíram para o meu
ingresso no CAEPE, com a estadia da minha
família na cidade maravilhosa, assim como
àqueles que, durante o meu período de
curso, contribuíram com ensinamentos e
incentivos.
Aos
meus
amigos,
principalmente
aos
conquistados durante o ano de 2011.
À minha amada mulher Kellen e ao meu
primeiro filho José pela compreensão, como
resposta aos momentos de distanciamento,
em dedicação às atividades da ESG.
A todos os nossos familiares, pais, mães e
irmãos,
alunos.
de
quem
somos
privilegiados
AGRADECIMENTOS
Ao Ministério da Defesa, por manter, incentivar e ampliar tão importante Instituição de
Ensino que realmente se propõe a pensar o futuro do Brasil.
Ao Corpo Permanente da ESG pela condução dos trabalhos, que me fizeram um homem
melhor e preparado para ajudar na construção do Brasil.
A todos os colegas e amigos estagiários da única, singular e ímpar Turma Segurança e
Desenvolvimento, pelos ricos momentos compartilhados durante um ano de muita felicidade
e harmonia.
EPÍGRAFE
Há aqueles que lutam um dia; e por isso são bons;
Há aqueles que lutam muitos dias; e por isso são muito bons;
Há aqueles que lutam anos; e são melhores ainda;
Porém, há aqueles que lutam toda a vida; esses são os
imprescindíveis.
Bertold Brecht
RESUMO
Esta monografia abordou os requisitos e as situações legalmente previstas para o
emprego das Forças Armadas do Brasil em operações de garantia da lei e da
ordem, bem como a sua relação direta com a garantia do exercício dos direitos
fundamentais previstos na Carta Magna brasileira. O objetivo foi, a partir da
legislação existente e em vigor no país, iniciando pelo texto da Constituição Federal,
avaliar a participação das Forças Armadas no processo constitucional de garantia do
exercício desses direitos fundamentais da pessoa humana (segurança, locomoção,
domicílio, entre outros). Isso porque a participação das Forças Armadas em
episódios internos do Brasil é prevista na Constituição Federal apenas de maneira
subsidiária, para e em situações excepcionais, como as situações de garantia da lei
e da ordem. A metodologia adotada comportou uma pesquisa bibliográfica e
documental, visando buscar referenciais teóricos, além da experiência do autor,
como Promotor de Justiça atuante no Estado do Rio Grande do Sul. O campo de
estudo delimitou-se às situações em que há a autorização legal para o emprego das
Forças Armadas em operações de garantia da lei e da ordem. Analisou sob o
enfoque da garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos moradores de territórios
dominados pela criminalidade a possibilidade da intervenção forte do Estado através
de medidas excepcionais (Forças Armadas), por prazos determinados e com
delimitação geográfica. Por último, estudou o emprego das Forças Armadas na
operação de garantia da lei e da ordem que está em andamento do Brasil,
especificamente no Rio de Janeiro, em uma localidade denominada Complexo de
Favelas do Alemão. Os principais tópicos foram: segurança e forças armadas na
Constituição Federal; operações de garantia da lei e da ordem; e o caso da
ocupação do complexo de favelas do alemão na cidade do Rio de Janeiro. A
conclusão indicou os resultados positivos já alcançados e outras possibilidades para
que operações da mesma natureza possam contribuir para que os direitos
fundamentais do cidadão sejam garantidos.
Palavras chave: Segurança Pública e Forças Armadas. Constituição e Forças
Armadas. Garantia da Lei e da Ordem.
ABSTRACT
This monograph addresses the requirements and situations legally provided for the
employment of military operations in Brazil in guaranteeing law and order, as well as
their relationship right with the guarantee of the exercise of fundamental rights
provided for in the Brazilian Constitution. The goal is, from the existing legislation and
in force in the country, starting with the text of the Constitution, to evaluate the
participation of the armed forces in the constitutional process to guarantee the
exercise of fundamental human rights (security, transportation, home, among other ).
This is because the participation of the Armed Forces in inner episodes of Brazil is
provided in the Constitution only way subsidiary to and in exceptional situations such
as ensuring law and order. The methodology involved a literature search and
document in order to get theoretical, beyond the author's experience as acting Public
Prosecutor in the State of Rio Grande do Sul The field narrowed to situations in
which there is legal authority to employment of the armed forces in operations
ensuring law and order. Scans from the standpoint of ensuring the fundamental rights
of citizens living in areas dominated by crime the possibility of strong state
intervention through exceptional measures (Armed Forces), for certain periods and
geographical boundaries. Finally, studying the use of armed forces in operations that
operations ensuring law and order underway in Brazil, specifically Rio de Janeiro, in
a place called the German Complex Slums. The main topics are: security and armed
forces in the federal constitution; operations ensuring law and order, and the case of
occupation of the German complex of slums in the city of Rio de Janeiro. The finding
indicates the positive results already achieved and other opportunities for similar
operations that might contribute to the fundamental rights of citizens are guaranteed.
Keywords: Public Security and Armed Forces. Constitution and the Armed Forces.
Warranty Law and Order.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 11
2 A RELAÇÃO ENTRE O DIREITO À SEGURANÇA E AS FORÇAS ARMADAS NA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA ............................................................. 15
2.1 O DIREITO À SEGURANÇA COMO DIREITO FUNDAMENTAL ...................... 15
2.2 AS HIPÓTESES DE ATUAÇÃO DAS FORÇAS ARMADAS EM TERRITÓRIO
NACIONAL ............................................................................................................... 18
2.3 A ATUAÇÃO DAS FORÇAS ARMADAS EM AÇÕES EXTREMAS RELATIVAS À
SEGURANÇA COMO FORMA DE CONCRETIZAÇÃO DE UM DIREITO
FUNDAMENTAL ....................................................................................................... 21
3 OPERAÇÕES DE GARANTIA DA LEI E DA ORDEM ......................................... 23
3.1 ANÁLISE DA LEGISLAÇÃO À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL ............... 23
3.2 DEFINIÇÃO DE GARANTIA DA LEI E DA ORDEM .......................................... 25
3.3 HIPÓTESES E REQUISITOS ............................................................................ 28
3.4 TEMPORALIDADE, ABRANGÊNCIA TERRITORIAL, LIMITES DE ATUAÇÃO E
COMANDO DA OPERAÇÃO ................................................................................... 30
3.4.1 Temporalidade ............................................................................................... 30
3.4.2 Abrangência territorial .................................................................................. 31
3.4.3 Limites de atuação ........................................................................................ 32
3.4.4 Comando da operação ................................................................................. 33
4 O CASO DA OCUPAÇÃO DO COMPLEXO DE FAVELAS DO ALEMÃO ......... 36
4.1 BREVE HISTÓRICO DO DOMÍNIO, PELO CRIME, DAS FAVELAS DA CIDADE
DO RIO DE JANEIRO .............................................................................................. 36
4.2 AS FORMALIDADES DA OPERAÇÃO ARCANJO ............................................ 39
4.3 A NECESSIDADE DO EMPREGO DAS FORÇAS ARMADAS PARA A
OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO E OS SEUS RESULTADOS ................................. 41
5 CONCLUSÃO ..................................................................................................... 44
REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 47
1 INTRODUÇÃO
Um dos grandes entraves ao desenvolvimento e ao progresso de qualquer
país que ainda não tenha alcançado o rol de “países desenvolvidos”, identificados
como aqueles possuidores de consideráveis índices de qualidade de vida,
distribuição de renda, industrialização, emprego, entre outros, diz repeito à
segurança pública. Como tal, esse estado/sensação deve ser entendido como um
direito fundamental do cidadão e estreitamente ligado ao principio democrático1,
tratando-se, também, de uma das condições basilares para o livre exercício dos
demais direitos individuais (liberdade de locomoção, de manifestação, direito à
intimidade e à propriedade, por exemplo), todos ligados à própria dignidade da
pessoa humana2.
Nesse sentido, a concepção de Estado Democrático de Direito3 fundado sob
uma Constituição com força normativa4 trouxe consigo o fortalecimento de uma série
de instituições5, assim como a criação6 e o aprimoramento7 de instrumentos legais
para a consecução da observância8 e do cumprimento, pelo Estado, dos direitos
fundamentais
1
historicamente
reconhecidos9,
mais
especificamente
aqueles
Afonso da Silva leciona que o princípio democrático “nos termos da Constituição, há de constituir
uma democracia representativa e participativa, pluralista, e que seja a garantia geral da vigência e
eficácia dos direitos fundamentais”. Curso de Direito Constitucional Positivo. 17 ed. São Paulo:
Malheiros Editores ltda, 2000, p. 126.
2
Cfe. Sarlet, Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988.
3 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 101.
3
Cfe. Afonso da Silva, idem, p. 122.
4
Cfe. Hesse, A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991, p.
24-27.
5
Dentre essas instituições, cumpre destacar o Ministério Público em relação aos direitos difusos,
coletivos e individuais homogêneos de toda a sociedade e a Defensoria Pública em face dos
hipossuficientes.
6
Como inovação, a arguição de descumprimento de preceito fundamental surgiu como um novo
instrumento disponibilizado para a realização dos direitos fundamentais.
7
A ação civil pública, na constituição federal, mereceu atenção especial do legislador constituinte,
que fez com que se tornasse um meio importantíssimo de ação dos atores processuais envolvidos
com causas coletivas.
8
Cfe. Hesse, Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre:
Sérgio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 290-330.
9
Lembra Canotilho que “Em geral, costuma fazer-se um corte histórico no processo de
desenvolvimento da idéia de direitos fundamentais, cnducente a uma separação absoluta entre duas
épocas: uma, anterior a Virgínia Bill of Rights (12-6-1776) e à Declratio des Droits de L’Homme ET Du
conhecidos como direitos fundamentais de 1.ª geração10, também chamados de
direito de proteção. São direitos mínimos, civis e políticos, que devem garantir uma
proteção do cidadão contra terceiros e, principalmente, contra eventuais ações ou
omissões arbitrárias do próprio Estado.
Neste sentido, vale reproduzir o pensamento de Streck e Morais11:
O Estado Democrático de Direito tem um conteúdo transformador da
realidade, não se restringindo, como o Estado Social de Direito, a uma
adaptação melhorada das condições sociais de existência. Assim, o seu
conteúdo ultrapassa o aspecto material de concretização de uma vida digna
ao homem e passa a agir simbolicamente como fomentador da participação
pública quando o democrático qualifica o Estado, o que irradia os valores da
democracia sobre todos os seus elementos constitutivos e, pois, também
sobre a ordem jurídica. E mais, a ideia de democracia contém e implica,
necessariamente, a questão da solução do problema das condições
materiais de existência.
De outro lado, certamente essa tentativa de prever um grande número de
fatos que atentassem contra as liberdades individuais fez com que fossem
reforçadas algumas e criadas outras instituições, assim como estabelecidas, na Lei
Maior12 do Estado Nacional, as condições para o exercício e os limites existentes ao
exercício do poder coercitivo estatal. Isso, na maioria das vezes, considerando, uma
situação de normalidade, mas também concedendo alguma margem para que o
Citoyen (26-8-1789), caracterizada por uma relativa cegueira em relação á idéia de direitos do
homem;outra, posterior a esses documentos, fundamentalmente marcada pela chamada
constitucionalização ou positivação dos direitos do homem nos documentos constitucionais”. Direito
Constitucional. 5ª. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 378.
10
Na concepção de Bonavides, esses direitos “Entram na categoria do status negativus da
classificação de Jellinek e fazem ressaltar na ordem dos valores políticos a nítida separação entre
Sociedade e Estado. Sem o reconhecimento dessa separação, não se pode aquilatar o verdadeiro
caráter antiestatal dos direitos da liberdade, conforme tem sido professado com tanto desvelo teórico
pelas correntes do pensamento liberal de teor clássico”. Curso de Direito Constitucional. 13 ed. São
Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2003, p. 564.
11
Cfe. Streck e Morais, Ciência Política e Teoria Geral do Estado. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2001, p. 93.
12
Como Lei maior ou Constituição, Moraes afirma que “é o ato de constituir, de estabelecer, de
firmar; ou, ainda, o modo pelo qual se constitui uma coisa, um ser vivo, grupo de pessoas;
organização, formação. Juridicamente, porém, Constituição deve ser entendida como a lei
fundamental e suprema de um Estado, que contém normas referentes à estruturação do Estado, à
formação dos Poderes Públicos, forma de governo e aquisição do poder de governar, distribuição de
competências, direitos, garantias e deveres dos cidadãos. Além disso, é a Constituição que
individualiza os órgãos competentes para a edição das normas jurídicas, legislativas ou
administrativas. Direito Constitucional. 19 ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 02.
Estado pudesse agir, também dentro da legalidade, em situações extremas, através
de medidas excepcionais e urgentes.
Nessa concepção, a partir de 1988, foi extremamente limitada a participação
das Forças Armadas em operação cotidianas e comuns, fazendo com que estivesse
pronta para atuar, quase que exclusivamente, apenas no caso ataques de inimigos
externos, passando a ser vista, até mesmo, como um elemento estranho a qualquer
política de segurança pública, mesmo que subsidiariamente e em caráter
excepcional. Grande parte de tal concepção, no Brasil, decorreu até mesmo do
preconceito estimulado pela mídia e por partidos políticos ligados a grupos de
extrema de esquerda, os quais ainda possuem muitos ressentimentos com as
Forças Armadas do Brasil em razão do regime militar adotado no país a partir de
196413 e por temerem que um maior campo para a sua atuação, seja em matéria de
segurança pública ou outra qualquer, venha a conduzir a um novo regime
predominante militar.
Entretanto, em que pese a referida limitação inicial, diversos fatos de
elevada gravidade foram praticados nos últimos anos por poderosas organizações
criminosas contra a população ordeira, causando pânico geral e grave risco à ordem
pública, principalmente no Estado do Rio de Janeiro, que demonstraram uma
necessidade urgente de que a força militar brasileira estivesse pronta para atuar em
cooperação com as forças estaduais de segurança pública. E, nesses casos
pontuais, podemos falar em Operações de Garantia da Lei e da Ordem, previstas na
Constituição Federal e regulamentadas pela Lei Complementar n.º 9714, de 09 de
junho de 1999, e pelo Decreto n.º 3.89715, de 24 de agosto de 2001, que constituem
instrumentos que determinam a forma, a maneira e em que situações as Forças
Armadas do Brasil podem atuar para a garantia desses dois pilares do Estado
Democrático de Direito: a Lei e a Ordem.
Da mesma forma, através da simples leitura do texto constitucional, já é
possível verificar que foi previsto como direito fundamental na Constituição Federal
13
Em 31 de março de 1964, após uma grave crise institucional e com amplo apoio da população, as
Forças Armadas assumiram o governo do Brasil.
14
Dispõe sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas.
15
Fixa as diretrizes para o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, e dá outras
providências.
o direito à segurança, certamente por estar intimamente ligado à própria dignidade
da pessoa humana e a outros direitos fundamentais decorrentes, tais como o direito
à propriedade, à intimidade e à locomoção. Tais direitos, uma vez atingidos por
grupos armados e organizados, que atuam muitas vezes com verdadeiros contornos
terroristas contra a população de uma determinada localidade, impedindo o acesso
do Estado até mesmo a determinados territórios e impondo medo e temor a seus
moradores, constituem verdadeiros ataques aos direitos fundamentais mais básicos
das pessoas, de forma a autorizar uma ação estatal extrema e excepcional, com a
possibilidade do uso de todos os instrumentos legalmente previstos para o
enfrentamento de uma ação dessa natureza.
Nesse contexto, mesmo havendo previsão constitucional e legal para tanto,
bem como o ataque aos direitos fundamentais da população, não raras vezes
surgem vozes16 na mídia invocando uma pretensa irregularidade no emprego das
Forças Armadas nessas ocasiões, sustentado que tal cooperação seria uma
verdadeira
intervenção,
a
qual
não
poderia
subsistir
sem
os
requisitos
constitucionais previstos para tanto. Com esse raciocínio, tenta-se passar uma
imagem de ilegalidade de tal atuação, dando condições e argumentos para que
integrantes de organizações criminosas capturados no curso dessas operações
obtenham junto a tribunais suas respectivas solturas ou declarações de ilegalidade
dos respectivos procedimentos.
Ante a essas situações e considerando a atualidade do tema proposto, o
presente trabalho tem por objetivo realizar uma análise profunda e propositiva do
sistema legal das Operações de Garantia da Lei e da Ordem, verificando os seus
pressupostos fáticos e legais, a sua diferenciação para as demais formas de atuação
militar no âmbito interno em tempos de paz, assim como apontar eventual
deficiência legal para a eficiência dessas operações. Além disso, considerando que
no momento da elaboração do presente trabalho está em andamento uma Operação
de Garantia da Lei e da Ordem na cidade do Rio de Janeiro, mais precisamente no
Complexo de Favelas do Alemão, pretende-se analisar especificamente essa
Operação à luz dos pressupostos iniciais traçados no curso deste estudo.
16
Ver o Blog do Desembargador Siro Darlan, no sítio <http://www.blogdosirodarlan.com/?m=201106>
em seu artigo sob o título Intervenção Federal Branca no Rio de Janeiro.
2 A RELAÇÃO ENTRE O DIREITO À SEGURANÇA E AS FORÇAS ARMADAS NA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA
2.1 O DIREITO À SEGURANÇA COMO DIREITO FUNDAMENTAL
Durante a mais recente evolução histórico-cultural da civilização ocidental17,
uma série de direitos inerentes à pessoa humana tem sido conquistada e
reconhecida de maneira universal. Por se tratarem de direitos que dizem com as
necessidades mais básicas dos indivíduos, podem estar relacionados aos direitos do
indivíduo contra ações do Estado, também conhecidos como direitos de proteção, ou
com obrigações do Estado em relação aos indivíduos e a coletividade, também
denominados como direitos de prestação. A tais direitos se reconhece uma
característica que os distingue dos demais, a “fundamentalidade”, razão pela qual
são conhecidos como direitos fundamentais e devem prevalecer sobre os demais
quando existente algum conflito.
Nesse sentido, é primordial ter sempre em consideração que a origem de
tais direitos, por regra, está na violação ou na omissão do Estado18 em relação aos
indivíduos, o que, quando de ocorrência reiterada, produz uma reação coletiva e,
posteriormente, um reconhecimento a tais proteções e prestações, impondo-se uma
obrigação ao Estado, ou seja, um processo cíclico de ação/reação que produz, ao
final, o reconhecimento de um direito. Isso ocorreu ao longo de centenas de anos,
sendo muito mais acentuado durante os séculos XVIII, XIX e XX, culminando, nos
dias de hoje, com a consolidação de tais direitos no âmago da civilização ocidental 19,
de modo que já encontram respaldo e fundamentação legal em inúmeras cartas e
17
Trata-se de um processo que tem na Revolução Francesa (1789 -1799) o seu apogeu, ocasião em
que o pensamento sobre os direitos do homem vinham sendo fomentados tomam forma de
movimento revolucionário.
18
O termo violação aqui é colocado no sentido de um agir concreto do Estado contra os direitos
fundamentais e a omissão uma não ação para preservá-los, deixando-os à própria sorte. Da mesma
forma, o Estado que se fala é o Estado Nacional, independente de sua divisão política eventualmente
concebida (União, Estados e Municípios).
19
Cfe. Canotilho, idem, p. 384.
regulamentos, tanto de origem nacional20 quanto internacional, sempre no sentido de
reconhecimento e observância obrigatória.
No Brasil, assim como se fez em relação às garantias e liberdades
fundamentais mais tradicionais21, o legislador constituinte22 não se olvidou do tema
segurança e alçou-o a direito fundamental. Em seu texto, a Constituição da
República Federativa do Brasil trouxe o tema segurança23 com bastante ênfase,
demonstrando a sua verdadeira e real importância, assim como o devido tratamento
correspondente.
O preâmbulo, ou seja, o texto que define os objetivos do Estado Brasileiro,
assim dispõe (BRASIL, 1988):
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional
Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o
exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bemestar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de
uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na
harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a
solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus,
a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
Da mesma forma, importante a leitura dos artigos 5.º e 6.º, caput, da
Constituição Federal, que ensinam: (BRASIL, 1988)
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
20
Em termos de direitos fundamentais no Brasil, além dos tratados internacionais dos quais o país é
signatário, a Constituição Federal é o principal instrumento legal que positiva e garante a
exequibilidade e primazia respectiva.
21
Exemplo de direitos fundamentais tradicionais são os direitos à vida, à igualdade e à propriedade,
todos devidamente expressos no artigo 5.º da Constituição Federal de 1988.
22
Por legislador constituinte entende-se aquele grupo de pessoas eleito pelo povo para, em seu
nome, elaborar uma nova constituição, necessária em face de uma ruptura com os valores e
princípios que vigiam num modelo imediatamente anterior e não são mais reconhecidos pela
sociedade.
23
O tema segurança objeto do presente estudo diz com a segurança pública, ou seja, individual.
[...]
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho,
a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta
Constituição.
Além disso, também é possível que o direito fundamental à segurança esteja
intimamente relacionado com diversos outros direitos fundamentais violados, até
mesmo como uma forma de garantia de preservação e do exercício desses outros
direitos, como o direito à liberdade de locomoção, de propriedade ou à
inviolabilidade do seu domicílio24. Assim, além da segurança em sentido individual,
que por si só já detém um caráter de direito fundamental dos indivíduos da
sociedade brasileira de viverem em paz sem que sejam perturbados de maneira
indevida, o direito fundamental à segurança também funciona como uma espécie de
garantia à preservação de diversos outros direitos estabelecidos como fundamentais
pelo legislador constituinte.
Nesse sentido, como garantias individuais pertinentes ao direito à
segurança, lecionam os incisos II, XI, XV e XXII do artigo 5.º da Constituição
Federal: (BRASIL, 1988)
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão
em virtude de lei;
[...]
XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar
sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou
desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação
judicial;
[...]
XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo
qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair
com seus bens;
[...]
XXII - é garantido o direito de propriedade;
E essa concepção do direito à segurança como direito fundamental, que se
extrai dos artigos 5.º e 6.º da Constituição Federal, constitui-se num importante
24
Isso porque a falta de segurança ao cidadão, além de fragilizar esses referidos direitos, é capaz de
impedir o seu exercício, seja de forma total ou parcial.
aspecto para a compreensão da necessidade da ação pró-ativa estatal, sem medir
esforços, para o alcance desse estado aos seus cidadãos. O elo existente entre a
segurança pública, ou seja, a segurança do cidadão e a garantia de seus direitos
mais básicos, e a presença de um Estado forte e robusto frente a poderosas
estruturas criminosas com longo tempo de atuação, que impõe medo e se sustenta
por atividades ilícitas, determina que a atuação estatal seja concebida da maneira
mais atuante, eficiente e forte possíveis, pois se tratam de situações graves e
excepcionais.
Nesses termos, certamente para a consecução dos fins objetivados, que são
a paz social e o estado de segurança aos cidadãos, em caso de a estrutura formal
concebida em atendimento às situações de normalidade25 não esteja preparada para
dar uma resposta efetiva, ações excepcionais previstas também na Constituição
Federal estarão autorizadas a serem tomadas. Isso, sempre com vistas à garantia
do exercício dos direitos fundamentais que estão sendo violados, sendo que a ação
Estatal deve ser à altura dessa violação e suficiente para o retorno da paz social e
ao estado de segurança aos cidadãos.
2.2 AS HIPÓTESES DE ATUAÇÃO DAS FORÇAS ARMADAS EM TERRITÓRIO
NACIONAL
Em que pese a redução e a limitação da atuação das Forças Armadas26 em
tempos de paz constante da Constituição Federal em relação ao modelo
imediatamente anterior27, o que certamente ocorreu em face de um sentimento
revanchista de parcela da classe política brasileira após duas décadas de regime
militar, o legislador constituinte previu situações especiais em que as Forças
25
Ou seja, aquelas em que não há uma conturbação da ordem capaz de desencadear um sentimento
geral de medo/pânico da população ou o impedimento ao exercício dos direitos fundamentais pelos
cidadãos.
26
Nos dias de hoje são apenas 03 (três) as situações em que podem ser empregadas as Forças
Armadas, conforme o artigo 142 da Constituição Federal.
27
No período anterior à Constituição Federal de 1988, até por se tratar de um regime militar, o campo
de atuação das Forças Armadas tinha espectro superior.
Armadas poderiam ser empregadas, sempre sob a autoridade suprema28 do
Presidente da República, mesmo em situações originadas por convocação dos
demais representantes dos poderes federais que também possuem legitimidade
para tanto (Presidente do Supremo Tribunal Federal ou da Mesa do Congresso
Nacional).
Importante ressaltar que o emprego das Forças Armadas com vistas à
garantia da lei e da ordem não se confunde com Intervenção Federal, Estado de
Defesa ou Estado de Sítio, respectivamente explicitados nos artigos 3429, 13630 e
13731, incisos I e II, da Constituição Federal. Tais eventos tratam de crises de
extrema gravidade e com natureza institucional, que são capazes de merecerem até
mesmo uma ação unilateral através da União, com ou sem o uso das Forças
Armadas.
28
O chefe do Poder Executivo possui o comando sobre as Forças Armadas, podendo determinar, ou
não, o seu emprego nas situações constitucionalmente previstas.
29
Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:
I - manter a integridade nacional;
II - repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra;
III - pôr termo a grave comprometimento da ordem pública;
IV - garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação;
V - reorganizar as finanças da unidade da Federação que:
a) suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de
força maior;
b) deixar de entregar aos Municípios receitas tributárias fixadas nesta Constituição, dentro dos prazos
estabelecidos em lei;
VI - prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial;
VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:
a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático;
b) direitos da pessoa humana;
c) autonomia municipal;
d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta.
e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a
proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços
públicos de saúde.
30
Art. 136. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de
Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais
restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente
instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.
31
Art. 137. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de
Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos
casos de:
I - comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de
medida tomada durante o estado de defesa;
II - declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira.
Nesse sentido, sob a égide da atual32 Constituição Federal, mais
precisamente em seu artigo 142, restaram estabelecidas 03 (três) hipóteses de
situações em que as Forças Armadas do Brasil poderiam ser empregadas, quais
sejam: a defesa da pátria, a garantia dos poderes constitucionais e a garantia da lei
e da ordem, sendo que é esta última hipótese constitui o objeto do presente estudo.
Dispõe o artigo 142 da Constituição Federal: (BRASIL, 1988)
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e
pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares,
organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade
suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à
garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da
lei e da ordem.
Como defesa da pátria, identifica-se uma situação em que o território
nacional ou as riquezas de nosso país encontram-se em situação de risco, o que faz
com que a necessidade do emprego das Forças Armadas seja direcionado a um fato
hostil determinado, seja em relação a outro estado nacional ou a um grupo de
indivíduos determinados ou determináveis. Assim, tal hipótese trata tanto de uma
manobra defensiva quanto de um ataque, desde que direcionado de algum modo à
defesa das instituições e do próprio Estado Brasileiro, características das situações
extremas da Intervenção, Estado de Defesa ou Estado de Sítio.
A garantia dos poderes constitucionais diz com a manutenção dos Poderes
Executivo, Legislativo e Judiciário frente a um ataque ou uma ameaça interna e
concreta ao seu livre exercício, ou seja, uma afronta à própria democracia brasileira,
que se encontra fundada sob princípio da triparticipação harmônica dos poderes
constitucionais. Além disso, trata-se de uma proteção ao próprio sistema
constitucional, uma vez que os poderes constitucionais emanam do povo e são
exercidos mediante representação, constituindo-se em uma garantia da vontade
popular que assim estabeleceu o Estado Brasileiro e as suas instituições.
32
A Constituição Federal vigente no país desde 1988 foi promulgada após duas décadas de regime
militar e teve como orientação primordial o estabelecimento de um regime democrático, assim como a
sua respectiva manutenção.
Por derradeiro, a garantia da lei e da ordem encontra-se situada no campo
da defesa do Estado de Direito, ou seja, do respeito às leis e da paz social, de modo
que a ordem social perturbada por alguma situação de extrema gravidade, que
restou transformada ou corre sério e iminente risco de partir para a desordem,
retorne ao estado anterior de paz e harmonia, ou seja, efetivamente garantida, a fim
de que os cidadãos possam livremente exercer seus mais básicos direitos
fundamentais.
Assim, tem-se as três situações estabelecidas de maneira exaustiva 33 pelo
Poder Constituinte e dentre as quais qualquer emprego das Forças Armadas
Brasileiras deverá encontrar respaldo, sob pena de flagrante ilegalidade, a qual
poderá ser passível de correção e responsabilização pelos órgãos de fiscalização e
instâncias administrativas e judiciais respectivas.
2.3 A ATUAÇÃO DAS FORÇAS ARMADAS EM AÇÕES EXTREMAS RELATIVAS À
SEGURANÇA COMO FORMA DE CONCRETIZAÇÃO DE UM DIREITO
FUNDAMENTAL
A ação estatal com vistas à garantia e à satisfação de um direito
fundamental deve, sempre, ser pautada pela necessidade de se proteger ou
satisfazer o direito fundamental que está ameaçado, não medindo esforços para
tanto. Uma vez em se tratando de direito fundamental, o qual, por si só, já está
intimamente ligado à própria dignidade da pessoa humana e à democracia, essas
ações estatais deverão ser direcionadas para a sua proteção e satisfação, sob pena
de uma omissão, esta sim, ilegal, inconstitucional e passível de punição ao
administrador público respectivo34.
33
Tal conclusão decorre do fato de que o texto não possui caráter meramente exemplificativo, pois
fecha naquelas três situações, sem margem para interpretações extensivas.
34
O servidor ou agente público que pratique atos em desacordo com os princípios ou normas
relativas à Administração Pública, assim como cause prejuízo ao erário poderá incorrer nas sanções
previstas na Lei n.º 8.429/1992, também conhecida como lei de Improbidade Administrativa.
Nesse contexto, da mesma maneira como ocorre em áreas sensíveis como
educação e saúde35, a cooperação entre os entes da federação se constitui em
medida essencial para a consecução da satisfação do direito fundamental à
segurança, razão pela qual os esforços conjuntos, quando possível, podem e devem
ser concretizados, senão, ao menos tentados. Certamente, a união de esforços
entre os entes interessados tornam extremamente mais fácil o alcance do direito
estatal cuja obtenção foi alçada a fundamental pelo legislador constituinte.
E tais esforços não precisam ser reduzidos apenas a transferências de
recursos para programas da área de segurança36, mas também podem ser
concretizados através das cooperações institucionais37. Assim, a Constituição
Federal previu uma série de instituições a quem incumbem a Segurança Pública em
território nacional, quais sejam: polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia
ferroviária federal, polícias civis, polícias militares e bombeiros militares 38.
35
Essas duas importantes áreas possuem uma tripartição de competências e recebem recursos de
três esferas: União, Estados e Municípios. Trata-se de um exemplo que poderia ser seguido área da
segurança, repartindo-se as obrigações aos entes federados diretamente envolvidos e interessados.
36
Muito importante lembrar que está em vigor um programa federal que destina recursos a projetos
de segurança pública, o PRONASCI. Entretanto, não é o bastante, uma vez que destinado apenas
para qualificar os profissionais envolvidos com segurança pública e justiça criminal.
37
As Forças-tarefas são exemplos de que uma ação integrada entre os órgãos policiais e os de
fiscalização fazendária podem ajudar a combater a corrupção e as demais espécies de crimes.
38
Ver o artigo 144 da Constituição Federal.
3 OPERAÇÕES DE GARANTIA DA LEI E DA ORDEM
3.1 ANÁLISE DA LEGISLAÇÃO À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Ao prever as possibilidades do emprego das Forças Armadas, tanto para a
defesa da pátria, quanto para a garantia dos poderes constitucionais e da lei e da
ordem, o legislador constituinte determinou que fossem estabelecidas, através de
Lei Complementar, as normas gerais sobre a organização, preparo e emprego das
Forças Armadas.
Dispõe o parágrafo 1.º do artigo 142 da Constituição Federal: (BRASIL,
1988)
Art. 142.
[...].
§ 1º - Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas
na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas.
Nesse sentido, as normas infraconstitucionais devem estar em conformidade
com o estabelecido na Constituição Federal, nos seus estritos limites, a fim de que
não seja verificada qualquer incoerência ou contradição que possa viciar de
inconstitucionalidade a legislação complementar e regulamentar.
Assim, analisando o disposto na Constituição Federal acerca do emprego
das Forças Armadas para a garantia da lei e da ordem, a interpretação que emerge
das legislações infraconstitucionais, num primeiro momento, é no sentido de que se
encontram em perfeita sintonia. Entretanto, em que pese a harmonia entre as
legislações, são possíveis apenas umas poucas considerações, a fim de impedir que
subsista uma dissonância entre o disposto na Constituição Federal e os termos
estabelecidos na Lei Complementar n.º 97/1999 e o Decreto n.º 3.897/2001.
Nesse sentido, em que pese a Lei Complementar n.º 97/1999, que
regulamenta o preparo e o emprego das Forças Armadas, tenha feito de acordo com
as diretrizes já traçadas pelo legislador constituinte, a regulamentação realizada pelo
Decreto n.º 3.897/2001 parece ter ocorrido um pouco além do limite do poder
regulamentar39. Isso porque, apesar de não inovar, trouxe uma situação específica
que merece atenção, referente à competência equiparada aos Militares a das
polícias militares, estabelecida em seu artigo 3.º, que dispõe: (BRASIL, 1999)
Art. 3º Na hipótese de emprego das Forças Armadas para a garantia da lei
e da ordem, objetivando a preservação da ordem pública e da incolumidade
das pessoas e do patrimônio, porque esgotados os instrumentos a isso
previstos no art. 144 da Constituição, lhes incumbirá, sempre que se faça
necessário, desenvolver as ações de polícia ostensiva, como as demais, de
natureza preventiva ou repressiva, que se incluem na competência,
constitucional e legal, das Polícias Militares, observados os termos e limites
impostos, a estas últimas, pelo ordenamento jurídico.
Nesse aspecto, a fim de impedir qualquer interpretação que conclua pelo
vício da inconstitucionalidade/ilegalidade em razão de o Decreto ter extrapolado o
seu limite de regulamentação, trata-se de um caso típico de interpretação40
conforme a constituição, sem redução de texto41. Tal conclusão decorre do fato de
que ao presente caso cabe uma leitura do dispositivo que impede o prejuízo que
ocorreria com a sua inteira retirada do ordenamento jurídico pátrio.
Ao contrário da simples retirada do mundo jurídico, a interpretação conforme
a constituição42, no presente caso, possibilita dar efetividade à ação militar de
39
Poder regulamentar como a capacidade que possui o Chefe do Executivo em editar decretos para
fins de execução da legislação ordinária.
40
Cfe. Juarez Freitas, A interpretação sistemática do direito. 4ª. ed. São Paulo: Malheiros Editores
Ltda., 2004, p. 80-83.
41
Cfe. Streck, 2002. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2002, p. 517-540.
42
Cfe. Barroso, Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática
constitucional transformadora. 6ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 371-372.
garantia da lei e da ordem. Esse artigo deve ser interpretado de maneira restritiva e
com o esclarecimento necessário de que os militares empregados na ação, apesar
de não possuírem as mesmas competências legalmente previstas para as polícias
militares, ao estarem incumbidos da preservação da ordem pública, poderão praticar
os atos assemelhados aos da polícia ostensiva que sejam necessários à operação.
Assim, ressalvado esse possível vício inicial da regulamentação, corrigível
através de uma interpretação conforme a constituição para a respectiva aplicação ao
caso em concreto, a legislação infraconstitucional se encontra em perfeita sintonia
com os princípios e normas constitucionais, atendendo, até mesmo, à concretização
de direitos fundamentais.
Desta forma, para verificar a legalidade/constitucionalidade do emprego das
Forças Armadas em operações de garantia da lei e da ordem, deve ser observado
se o caso está ao abrigo da Constituição Federal em termos conceituais43, se o
emprego foi realizado conforme determina a Lei Complementar n.º 97/1999 e se a
execução atende o disposto no Decreto n.º 3.897/2001, em todo o seu âmbito.
3.2 DEFINIÇÃO DE GARANTIA DA LEI E DA ORDEM
Conforme já analisado, as Operações de Garantia da Lei e a da Ordem
encontram respaldo jurídico na concretização dos direitos fundamentais previstos no
artigo 5.º e na previsão constante do artigo 142 da Constituição Federal44, assim
como na Lei Complementar n.º 97/1999 e no Decreto n.º 3.897/2001, diplomas
legais que estão em conformidade com o texto constitucional e que estabelecem as
circunstâncias, as formas e os procedimentos necessários para a execução de
operações desse caráter. Da mesma forma, a situação de garantia da lei e da ordem
não pode ser confundida com a previsão constante do artigo 144 da Constituição
Federal, que trata especialmente da segurança pública dentro de uma circunstância
43
Ou seja, se é caso de garantia da lei e da ordem, de modo que a situação que esteja ocorrendo
tenha a gravidade necessária.
de normalidade, onde são destacadas e estabelecidas as instituições responsáveis
pela preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio.
Desta forma, importante lembrar o texto do artigo 144 da Constituição
Federal: (BRASIL, 1988)
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade
de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da
incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
I - polícia federal;
II - polícia rodoviária federal;
III - polícia ferroviária federal;
IV - polícias civis;
V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.
Assim, mesmo que a partir de uma simples leitura, já se verifica que há uma
distinção sutil, mas significativa e importante na intenção do legislador constituinte
no intuito de diferenciar a atuação das Forças Armadas daquelas realizadas por
órgãos destacados como sendo de segurança pública.
Nesse sentido, às Forças Armadas compete a “garantia” da lei e da ordem,
enquanto às forças auxiliares compete a “preservação” da ordem pública e da
incolumidade e do patrimônio. Portanto, enquanto uma visa garantir e a outra
procura preservar45, de modo que a garantia, por si só, já se destina a situações de
maior gravidade, aquelas em que há risco para a própria existência da ordem, ou
seja, existe uma situação tão grave a ponto de estabelecer um estado de desordem,
em que a lei não é observada, prevalecendo a vontade do mais forte, mais poderoso
ou de grupos com superioridade numérica ou bélica.
No caso das situações de normalidade, em que a atuação das instituições
elencadas no artigo 144 da Constituição Federal visa à “preservação” da ordem, o
risco existente diz com a integridade da ordem pública. Portanto, a ordem é
ameaçada no que se refere a toda sua abrangência, ou seja, há o risco de a ordem
pública ser atingida sim, mas não a ponto de ser extinta e a instalação de um
verdadeiro caos.
45
Aqui se vê que a garantia diz com a própria existência da lei e da ordem, ante a situações de
tamanha gravidade que podem vir a extingui-las; enquanto a preservação diz com a integridade, que
pode ser atingida pela concretização de ameaças mais brandas sem que sejam visualizadas
condições para a extinção.
Também, relativamente ao termo “lei” utilizado pelo legislador constituinte
como um dos objetos de garantia, deve-se entender como o conjunto de direitos
preservados e estabelecidos pelo sistema jurídico pátrio, assim como a “ordem” tem
relação com a normalidade social no espaço público, de modo que as condutas de
algumas pessoas não impeçam o transcurso normal do quotidiano e do dia-a-dia, os
quais devem ser garantidos para o próprio desenvolvimento econômico, social e
financeiro do país.
Além disso, o parágrafo 2.º do artigo 15 da Lei Complementar n.º 97/1999
ainda previu que a situação passível de garantia da lei e da ordem pressupõe o
esgotamento dos instrumentos previstos no artigo 144 da Constituição Federal, os
quais são destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade e do
patrimônio, como uma espécie de direito penal46 no sistema jurídico47, ou seja, a
ultima ratio48. Dessa forma, trata-se do último instrumento previsto no ordenamento
jurídico para que haja a manutenção da ordem pública, e ao fim e ao cabo do próprio
Estado de Direito, que se encontra fundamentado no respeito às leis e às normas
legalmente instituídas, que regulam as relações sociais com a finalidade de
preservação.
Importante frisar o que estabelece o parágrafo 2.º do artigo 15 da Lei
Complementar n.º 97/1999: (BRASIL, 1999)
Art. 15. (...).
o
§ 2 A atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, por
iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com
as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados
os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da
incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da
Constituição Federal.
46
Cfe. Capez, Curso de Direito Penal: Parte Geral. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2001, p.
11-27.
47
O Direito Penal no sistema jurídico tem duas características que o distinguem fundamentalmente
dos demais ramos do direito: a subsidiariedade e a fragmentairiedade. A primeira, diz com a
ineficiência dos demais ramos para solucionar aquela situação e a segunda com a relevância para o
meio social daquele bem atingido pela conduta ilícita
48
Trata-se de uma expressão de origem latina muito usada no Direito Penal, que designa a última
razão, ou seja, em último caso, não sendo visualizadas outras possibilidades para a situação
examinada.
Portanto, uma operação de garantia da lei e da ordem é aquela em que a
ação estatal por meio das Forças Armadas se faz necessária para a garantia do
próprio Estado de Direito e da paz social, em face da inviabilização das estruturas de
segurança pública previstas na Constituição Federal. Isso, seja em razão da
dimensão do próprio fato que atenta contra a lei e a ordem, seja por outro motivo
que inferiorizou o sistema e as instituições de segurança pública previstas na
Constituição Federal, as quais se tornaram incapazes de responder à demanda de
preservação da ordem.
3.3 HIPÓTESES E REQUISITOS
O emprego das Forças Armadas nessas situações decorre do atendimento a
um ato administrativo, que como tal deve obedecer rigidamente aos seus próprios
princípios e regras49. Da mesma forma, a decisão sobre o emprego das Forças
Armadas é de responsabilidade do Presidente da República50, o qual determinará ao
respectivo Ministro de Estado da Defesa que faça cumprir a sua determinação 51, nos
termos das diretrizes que forem baixadas na ocasião e através de atos
administrativos correspondentes de sua competência.
Além
da
iniciativa
própria
do
Presidente
da
República,
possuem
legitimidade52 para requerer o emprego das Forças Armadas em operações de
garantida da lei e da ordem quaisquer dos poderes constitucionais53, por meio dos
Presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado Federal ou da Câmara dos
Deputados. Para tanto, devem formalizar um pedido ao Presidente da República,
que avaliará a sua pertinência de maneira discricionária54.
49
Cfe. Maffini, Direito Administrativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 43-45.
Cfe. Artigo 142, caput, da Constituição Federal.
51
Ver artigo 15, caput, da Lei Complementar n.º 97/2001.
52
Legitimidade aqui empregada como a capacidade jurídica para requerer ao Presidente da
República a intervenção das Forças Armadas.
53
Os poderes constitucionais tratados no artigo 142 da Constituição Federal são o Legislativo e o
Judiciário, uma vez que o chefe do executivo já é o comandante supremo das Forças Armadas e
quem decide sobre o pedido formulado pelos demais poderes.
54
Cfe. Di Pietro, Direito Administrativo. 13 ed. São Paulo: Atlas, 2000, p.98.
50
Ainda no âmbito da iniciativa própria do Presidente da República, conforme
previsão do Decreto n.º 3.897/2001, também se encontra o emprego das Forças
Armadas em operações para garantia da lei e da ordem em atendimento à
solicitação realizada formalmente por Governador do Estado ou do Distrito Federal.
Assim dispõe o parágrafo 2.º do artigo 2.º do Decreto n.º 3.897/2001:
(BRASIL, 1988)
Art. 2º [...]
§ 2º O Presidente da República, à vista de solicitação de Governador de
Estado ou do Distrito Federal, poderá, por iniciativa própria, determinar o
emprego das Forças Armadas para a garantia da lei e da ordem. (BRASIL,
2001, p.)
Da mesma forma, também há previsão para operações dessa natureza em
situações em que se presuma a possibilidade de perturbação da ordem, como
eventos oficiais ou públicos, assim como aqueles que contem com a participação de
Chefes de Estado ou de Governo estrangeiros, e até mesmo em relação à pleitos
eleitorais, desde que, nesse último caso, haja solicitação do Poder Constitucional
competente (STF), conforme a redação do artigo 5.º do Decreto n.º 3.897/2001, que
dispõe: (BRASIL, 2001)
Art. 5º O emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, que
deverá ser episódico, em área previamente definida e ter a menor duração
possível, abrange, ademais da hipótese objeto dos arts. 3º e 4º, outras em
que se presuma ser possível a perturbação da ordem, tais como as relativas
a eventos oficiais ou públicos, particularmente os que contem com a
participação de Chefe de Estado, ou de Governo, estrangeiro, e à
realização de pleitos eleitorais, nesse caso quando solicitado. (BRASIL,
2001, p.)
Como pressuposto a tal emprego, tanto a Lei Complementar n.º 97/1999
quanto o Decreto n.º 3.897/2001, estabeleceram que estivesse caracterizado o
esgotamento – assim como a real possibilidade de que ocorra – dos instrumentos
legais previstos no artigo 144 da Constituição Federal e que são destinados
precipuamente à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do
patrimônio. Tal fato é fundamental para demonstrar a necessidade do emprego das
Forças Armadas, sendo, também, prevista a possibilidade do reconhecimento
formal, através manifestação do chefe do Poder Executivo Estadual, acerca
da
indisponibilidade, inexistência ou insuficiência dos instrumentos previstos no artigo
144 da Constituição Federal ao desempenho regular da sua missão constitucional.
Assim, verifica-se que compete ao Presidente da República a decisão
acerca do emprego das Forças Armadas em operações de garantia da lei e da
ordem, a qual também pode atender a uma solicitação ou chancelar a iniciativa de
outro Poder Constitucional. Isso, sempre que sejam considerados esgotados os
instrumentos previstos no artigo 144 da Constituição Federal para a preservação da
ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através de
constatação ou reconhecimento formal.
3.4 TEMPORALIDADE, ABRANGÊNCIA TERRITORIAL, LIMITES DE ATUAÇÃO E
COMANDO DA OPERAÇÃO
3.4.1 Temporalidade
Tratando-se
de
situação
episódica
e
excepcional,
que
visa
fundamentalmente o retorno a uma situação de normalidade que foi alterada e deu
ensejo ao emprego das Forças Armadas, não se poderia pensar em uma operação
que se perpetuasse no tempo.
Essa também foi uma preocupação do legislador, tanto no § 4.º do artigo 15
da Lei Complementar n.º 97/1999 quanto no artigo 5.º do Decreto n.º 3.897/2001,
respectivamente, onde fez questão de ressaltar a necessidade de que essas
operações para a garantia da lei e da ordem fossem limitadas no tempo, mesmo que
não tivessem um prazo máximo de duração estabelecido em lei, mas que deveria
ser o suficiente para o restabelecimento da situação de normalidade e possibilitada a
tomada de providências a fim de que os motivos que lhe deram causa não
voltassem a ocorrer.
O citado §4.º do artigo 15 da Lei Complementar n.º 97/1999 tem a seguinte
redação: (BRASIL, 1999)
Art. 15. [...]
o
o
§ 4 Na hipótese de emprego nas condições previstas no § 3 deste artigo,
após mensagem do Presidente da República, serão ativados os órgãos
operacionais das Forças Armadas, que desenvolverão, de forma episódica,
em área previamente estabelecida e por tempo limitado, as ações de
caráter preventivo e repressivo necessárias para assegurar o resultado das
operações na garantia da lei e da ordem.
Em sintonia, dispõe o artigo 5.º do Decreto n.º 3.897/2001: (BRASIL, 2001)
Art. 5º O emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, que
deverá ser episódico, em área previamente definida e ter a menor duração
possível, abrange, ademais da hipótese objeto dos arts. 3º e 4º, outras em
que se presuma ser possível a perturbação da ordem, tais como as relativas
a eventos oficiais ou públicos, particularmente os que contem com a
participação de Chefe de Estado, ou de Governo, estrangeiro, e à
realização de pleitos eleitorais, nesse caso quando solicitado.
Dessa forma, desde início da operação, ou logo após o seu começo, deve
haver o estabelecimento de uma data, certa ou provável, para que as Forças
Armadas deixem a área conturbada onde esteja ocorrendo uma operação de
garantia da lei e da ordem, a fim de que as autoridades e as instituições
originariamente
competentes
possam
voltar
a
cumprir
as
suas
missões
constitucionais de preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e
do patrimônio, dentro da normalidade necessária.
3.4.2 Abrangência territorial
Desde a preparação para o emprego das Forças Armadas com vistas a uma
operação para a garantia da lei e da ordem, o local conturbado que receberá o
efetivo já deverá estar delimitado territorialmente55. Isso decorre do próprio objetivo
precípuo da operação, que não é substituir as forças locais, mas sim cumprir a
55
A delimitação territorial do espaço onde será desenvolvida a ação é fundamental apara o seu futuro
êxito, de modo que não seja ampliado a cada momento e se tenha a perda do foco inicial.
missão de restabelecimento da lei e da ordem, ou seja, a retomar a presença do
Estado de Direito56 em determinado local.
Nesse sentido, a inteligência do §4.º do artigo 15 da Lei Complementar n.º
97/1999 e do artigo 5.º do Decreto n.º 3.897/2001, referidos por ocasião da questão
da temporalidade, sempre ressaltam a necessidade de uma delimitação prévia da
área onde ocorrerá o emprego das Forças Armadas. E tal previsão é fundamental,
uma vez que se trata de situação episódica e excepcional com um objetivo muito
bem definido e predeterminado: o restabelecimento de uma situação de
normalidade.
Para tanto, a fim de que a atuação das Forças Armadas ocorra em
consonância com o fim desejado, uma área definida é fundamental. Isso porque o
limite geográfico deverá ser profundamente estudado em face da necessidade de
que ocorra uma avaliação prévia do contingente a ser empregado, dos meios
logísticos e de mobilização da operação, que deverão constar do planejamento para
uma melhor execução.
Portanto, em conformidade com a legalidade e para um cumprimento
eficiente da missão de garantir a lei e a ordem, o prévio estabelecimento dos limites
geográfico da operação constitui requisito imprescindível e que deve constar da
própria Diretriz do Ministério da Defesa referente à operação militar que será levada
a efeito.
3.4.3 Limites de atuação
Por se tratar de uma operação de caráter publico, os limites de atuação das
Forças Armadas são aqueles previamente estabelecidos na lei57. Portanto, só pode
ser feito pelos agentes, no caso os militares, o que a norma assim dispõe, pois há a
necessidade de que esteja definido e expresso no ordenamento jurídico, ou seja,
56
Estado organizado em conformidade com os preceitos legais vigentes, onde todos devem respeitos
às normas estabelecidas.
57
Cfe. Justen Filho, Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 374-354.
autorizado, a fim de que a conduta realizada pela administração pública através de
seu agente possa ser considerada legal58.
Conforme o disposto no artigo 3.º do Decreto n.º 3.897/2001, as Forças
Armadas, assim sendo necessário, serão incumbidas das ações de preservação da
ordem pública, sendo que os efetivos empregados na ocasião deverão agir por meio
de ações que estejam em conformidade com o objetivo da missão.
Igualmente, caso existam meios disponíveis, porém insuficientes, relativos à
polícia militar estadual, nada impede que estes atuem sob o controle do comando
militar responsável pelas operações, de acordo com as circunstâncias e as
necessidades fáticas das situações e desde que haja a anuência do Governador de
Estado respectivo, a quem são subordinadas originariamente, conforme preceitua o
artigo 4.º do Decreto n.º 3.897/2001: (BRASIL, 2001)
o
Art. 4º Na situação de emprego das Forças Armadas objeto do art. 3 , caso
estejam disponíveis meios, conquanto insuficientes, da respectiva Polícia
Militar, esta, com a anuência do Governador do Estado, atuará, parcial ou
totalmente, sob o controle operacional do comando militar responsável
pelas operações, sempre que assim o exijam, ou recomendem, as situações
a serem enfrentadas.
Desta forma, para que alcancem seus objetivos de restabelecimento da
ordem, as forças militares em operações de garantia da lei e da ordem podem
desenvolver ações que seriam de caráter de policiamento ostensivo, mas que diriam
respeito à preservação da ordem. Além disso, as policias militares locais poderão,
sendo necessário, atuarem em uma cooperação subordinada ao comando militar
responsável pela operação, desde que com a autorização do Governador do Estado
onde ocorrer a operação militar.
3.4.4 Comando da operação
Após a decisão do Presidente da República sobre o emprego das Forças
Armadas, seja por iniciativa própria ou em atendimento a pedido de quaisquer dos
poderes constitucionais (Supremo Tribunal Federal, Senado Federal ou Câmara dos
Deputados), serão editadas as diretrizes a serem seguidas para o emprego e
preparo das Forças Armadas na operação de garantia da lei e da ordem.
Essas referidas normas são as orientações gerais que devem ser seguidas
pelos comandantes das forças envolvidas, tanto para o alcance dos objetivos da
operação quanto para uma correta execução, através do plano de operações e das
regras de engajamento59.
No mesmo sentido, o artigo 15 da Lei Complementar n.º 97/1999 dispõe
acerca da subordinação a qual deve ser obedecida pelos órgãos operacionais,
devendo seguir os critérios estabelecidos em seus incisos: (BRASIL, 1999)
Art. 15. O emprego das Forças Armadas na defesa da Pátria e na garantia
dos poderes constitucionais, da lei e da ordem, e na participação em
operações de paz, é de responsabilidade do Presidente da República, que
determinará ao Ministro de Estado da Defesa a ativação de órgãos
operacionais, observada a seguinte forma de subordinação:
I - ao Comandante Supremo, por intermédio do Ministro de Estado da
Defesa, no caso de Comandos conjuntos, compostos por meios adjudicados
pelas Forças Armadas e, quando necessário, por outros órgãos;
II - diretamente ao Ministro de Estado da Defesa, para fim de
adestramento, em operações conjuntas, ou por ocasião da participação
brasileira em operações de paz;
III - diretamente ao respectivo Comandante da Força, respeitada a
direção superior do Ministro de Estado da Defesa, no caso de emprego
isolado de meios de uma única Força.
Desta forma, havendo a execução de uma operação de garantia da lei e da
ordem apenas pelo Exército Brasileiro, ou seja, ocorrendo o emprego isolado de
meios do Exército Brasileiro sem a participação das demais forças, os órgãos
operacionais envolvidos estarão subordinados diretamente ao Comandante do
Exército, sempre respeitando a direção superior do Ministro de Estado da Defesa.
59
Regramentos administrativos para a execução da missão.
De outro lado, caso não sejam suficientes os meios disponíveis por uma
única Força, havendo a necessidade de comandos conjuntos, compostos por meios
das Forças Armadas, ou outros órgãos, a subordinação será ao Comandante
Supremo, por intermédio do Ministro de Estado da Defesa.
Portanto, em operações de garantia da lei e da ordem tanto pode haver a
incidência do inciso “I” quanto do “III”, o que deverá ser verificado quando do
emprego da Força e da necessidade comandos conjuntos, através das
necessidades existentes para o cumprimento dos objetivos traçados.
4 O CASO DA OCUPAÇÃO DO COMPLEXO DE FAVELAS DO ALEMÃO
4.1 BREVE HISTÓRICO DO DOMÍNIO, PELO CRIME, DAS FAVELAS DA CIDADE
DO RIO DE JANEIRO
Além das belezas naturais, a cidade do Rio de Janeiro é mundialmente
conhecida por suas mais variadas formas de ocupação do solo urbano pela
população de mais baixa renda. Na maioria das vezes, essa ocupação, dadas as
características geográficas realmente específicas e características da cidade,
ocorreu e ocorre de maneira desordenada sobre qualquer espaço onde o cidadão
mais pobre – por vezes até os mais ricos – verifique existirem condições para a
construção de uma pequena casa de madeira ou de alvenaria.
A essas construções realizadas de forma acumulada, ou seja, muitas, lado a
lado e até mesmo umas sobre as outras, em condições de solo totalmente
desfavoráveis, seja em morros ou em áreas alagáveis, muitas vezes insalubres, deuse o nome de favelas, também chamadas, atualmente, de comunidades.
Na origem, as favelas eram formadas apenas por pessoas que não
possuíam melhores condições financeiras para estabelecerem suas moradias em
locais mais apropriados, em face da absoluta falta de recursos – pobreza extrema –
e da inexistência de políticas públicas estatais fortes no campo da habitação60.
Nesse contexto, com o total abandono por parte do Estado, tanto social quanto
policial, esses locais foram se tornando nichos61 propícios ao acúmulo de pessoas
de má índole, condenados e foragidos sistema prisional, enfim, ao próprio
60
Não havendo uma política séria, duradoura e eficiente no campo da habitação para pessoas de
baixa renda, famílias acabam sendo “obrigadas” a ocuparem moradias precárias em favelas.
61
Cfe. Darcy Ribeiro, O Povo Brasileiro. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 204-205.
estabelecimento de organizações criminosas62 ligadas ao tráfico de armas e de
drogas.
Analisando essa situação, cumpre trazer à balia a percepção de Darcy
Ribeiro: (1995, p. 200)
O doloroso é que esses bandos se instalam no meio das populações
faveladas e das periferias, impondo a mais dura opressão para impedir que
escapem do seu domínio. Isso é o que desejam muitas famílias pobres,
geralmente desajustadas. Paradoxalmente, confiam é no crime organizado,
que costuma limpar a favela dos pequenos delinquentes mais
irresponsáveis e violentos e põe a cobro à caçada de crianças pelos
matadores profissionais.
E é a partir do estabelecimento desta “zona livre” 63 para o crime que as
organizações criminosas ali estabeleceriam seus “quartéis generais” e partiriam para
ações criminosas por toda a cidade (furto, roubo, extorsão e comércios de drogas e
armas) – com o objetivo específico de financiar os luxos de seus líderes e os
salários dos subalternos. Para tanto, após o cometimento de tais atos ilícitos em
outros bairros da cidade, essas pessoas retornavam ao território dominado pela
força do crime com a certeza de que não iriam sofrer quaisquer espécies de ações
estatais de cunho repressivo, dadas as características dos locais e do seu amplo
domínio armado naquele espaço.
Além disso, a disputa pelo poder dentro da própria favela, por grupos
criminosos rivais, também era responsável por inúmeras mortes e crimes, seja entre
os próprios criminosos ou com vítimas inocentes alvejadas por “balas perdidas”, sem
falar no pânico causado à população em geral vizinha da “comunidade”, que
convivia diariamente com essa disputa.
Nessa realidade, o Estado Policial é impedido de ingressar nas favelas, e
quando se via na obrigação de entrar naquela localidade somente o fazia com
armamento muito pesado e com intensa troca de tiros, o que colocava em risco tanto
os agentes do Estado quanto os moradores do local.
62
Tais organizações primeiramente encontraram sustento na venda de drogas e armas. Hoje, lucram
também com toda uma série de serviços, muitos também ilícitos, à população daquela localidade,
como gás e TV a cabo clandestina.
63
A zona livre é estabelecida por meio de um pacto silencioso. Ninguém sabe e ninguém vê. O medo
prepondera na população local e o aparato estatal policial, distante, não possui condições para atuar
preventivamente ou para investigação posterior.
Quanto aos projetos sociais em áreas dominadas pelo crime, esses eram
rotineiramente negociados de maneira obscura com líderes comunitários ligados às
organizações criminosas, ou seja, o Estado Social se via obrigado a negociar com
bandidos em face do domínio exercido por grupos armados naquele espaço urbano
dominado por um “poder paralelo”.
Entretanto, no dia 19 de dezembro de 2008, no morro Santa Marta, na
cidade do Rio de Janeiro, esse contexto começou a mudar, através do início de um
programa elaborado e executado pelo Estado do Rio de Janeiro chamado UPP –
Unidade de Polícia Pacificadora da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Tal programa
fundamenta-se na instalação de unidades da Polícia Militar no interior da favela, de
modo que o Estado volte a estar presente de maneira efetiva naquela localidade. E
essa presença possibilita segurança à população ordeira e é decisiva para a
expulsão dos grupos armados, de modo que a vida social na favela (comércio,
bares, restaurantes) não seja mais regulada pelo crime e o acesso a tais locais seja
possível a qualquer pessoa sem qualquer tipo de restrição, seja de dias, de horários
ou de qualquer outra espécie estabelecida unilateralmente pelo crime.
Tal iniciativa traz uma vida nova para todos, tanto aos trabalhadores quanto
aos criminosos, os primeiros por terem restabelecidos os seus direitos fundamentais
mais básicos e os últimos que, acuados, são obrigados a mudar de atividade,
trabalhar licitamente ou empreender fuga para outras comunidades que ainda não
contam com tal iniciativa governamental.
E esse processo de instalação de UPP em favelas, com a respectiva fuga
dos criminosos, ocorre sem maiores consequências até que, no final do mês de
novembro de 20116465, é iniciada uma série de ataques a alvos civis na cidade do
Rio de Janeiro. Nessa ocasião, certamente em razão de estarem com seus negócios
muito prejudicados e sendo acuadas pela polícia em “seus” territórios, facções
criminosas começam a realizar uma série de ataques em toda a cidade do Rio de
64
Cfe. Informação do sítio da internet disponível em: <http://g1.globo.com/rio-dejaneiro/noticia/2010/11/onibus-e-incendiado-na-baixada-fluminense.html>. Acesso em 27.06.2011.
65
Ver também notícia do sítio da internet disponível em: <http://g1.globo.com/rio-dejaneiro/noticia/2010/11/homem-tem-60-do-corpo-queimado-em-onibus-incendiado-no-rio.html>.
Acesso em 27.06.2011.
Janeiro66 e sua região metropolitana67, numa clara demonstração de força e
insatisfação com tal política governamental.
Num primeiro momento, através desses ataques a alvos civis, as
organizações criminosas alcançam os seus objetivos iniciais, pois é instalado um
estado de pânico e medo em toda população da cidade do Rio de Janeiro. As
pessoas encontram-se acuadas pelo crime, sem que possam reagir de alguma
maneira efetiva, apenas assistindo passivamente – como meros espectadores – a
uma série de fatos criminosos que ocorrem em larga escala por toda a cidade e
região metropolitana.
Entretanto, uma vez constatada a origem do foco criminoso (Vila Cruzeiro,
no Bairro da Penha), verificou-se necessária a colaboração das Forças Armadas até
que o Estado do Rio de Janeiro pudesse formar pessoas em número suficiente à
demanda policial desse contexto.
Nesse sentido, o Governador do Estado, no intuito de obstar a ocorrência
desses atentados e paralisar essas atividades criminosas, promovendo o
reestabelecimento da ordem na região, pediu o apoio do Presidente da República,
pois seria necessário o emprego das Forças Armadas, através de uma típica
operação de garantia da lei e da ordem, o que viria a desencadear a Operação
Arcanjo, executada pelo Exército Brasileiro no Complexo de Favelas do Alemão.
4.2 AS FORMALIDADES DA OPERAÇÃO ARCANJO
Como já referido, ao final do mês de novembro de 2010, a população da
cidade do Rio de Janeiro e sua região metropolitana vivia dias de medo e pânico,
66
Na cidade do Rio de Janeiro, os ataques foram realizados da zona sul à zona norte, da zone leste à
zona oeste, de acordo com notícia veiculada no sítio da internet disponível em: <
http://www.sidneyrezende.com/noticia/110445+nove+carros+e+tres+onibus+queimados+na+madruga
da+do+rio+de+janeiro > Acesso em 27.06.2011.
67
Na região metropolitana, Baixada Fluminense e Niterói também tiveram alvos atingidos, conforme
notícia
veiculada
no
sítio
da
internet
disponível
em:
<http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,policia-e-exercito-montam-cerco-no-morro-doalemao,645591,0.htm >. Acesso em 27.06.2011.
com inúmeros ataques a meios de transportes (incêndio de ônibus e carros) e a
prédios da Polícia Militar (tiros alvejaram cabines e quartéis da polícia militar
carioca). A cada hora que se passava era noticiado um novo ataque, em locais
diversos, da zona sul à zona norte, de Niterói à Baixada Fluminense, todos
realizados de maneira autônoma, mas com as mesmas características: nitidamente
para impactar a população e ganhar as principais manchetes de jornais e televisão,
normalmente na capa.
Analisados os locais de onde poderiam ter sido determinados tais ataques,
chegou-se a um território dominado pelo crime há muitos anos na cidade do Rio de
Janeiro: a Vila Cruzeiro68, no Bairro da Penha. Aliadas às dificuldades para o
ingresso da polícia no referido perímetro urbano, tradicionalmente formado por
ruelas e becos, tratava-se de uma área onde o Estado Policial não poderia ingressar
em uma situação de rotina, dadas as condições geográficas do interior da Vila e da
disponibilidade de armamento pesado pelos criminosos.
Como resposta aos ataques, ante a demonstrada insuficiência de policiais
(homens) e meios (armamento e veículos apropriados) necessários, foi requerido,
pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro69 ao Presidente da República, apoio
integral das Forças Armadas.
Desta forma, ao requerer a colaboração das Forças Armadas para que
pudesse buscar o retorno da ordem no Estado do Rio de Janeiro, o respectivo
Governador declarou a insuficiência dos instrumentos disponibilizados pelo artigo
144 da Constituição Federal, desde logo cumprindo uma das formalidades
estabelecidas através do Decreto n.º 3.897/2001, em seu artigo 15, §3.º.
Além disso, após a formalização do pedido, o Presidente da República, no
âmbito da sua discricionariedade disposta nos artigos 142 da Constituição Federal,
15, § 1.º da Lei Complementar n.º 97/1999, 1.º, § 2.º do Decreto n.º 3.897/2001,
entendendo tratar-se de um típico caso de emprego das Forças Armadas para a
68
Trata-se de localidade da zona norte da cidade do Rio de Janeiro conhecida há muitos anos pelo
domínio territorial do crime organizado.
69
Através de ofício s/n.º , datado de 25 de novembro de 2010, o Governador do Estado solicitou o
apoio das Forças Armadas.
garantia da lei e da ordem, comunicou70 ao Ministro de Estado da Defesa que estava
autorizada a participação das Forças Armadas. Após, seguiu-se a elaboração das
diretrizes e regras de engajamento pertinentes ao respectivo emprego das Forças
Armadas71.
Assim, no caso da Operação Arcanjo, as formalidades necessárias previstas
para o emprego das Forças Armadas em uma operação de garantia da lei e da
ordem obedeceram exatamente ao disposto na legislação específica, uma vez que
foi desencadeada após um pedido formal e expresso do Governador do Estado do
Rio de Janeiro, com a sua declaração de que os meios disponíveis ao Estado eram
insuficientes para a situação.
4.3 A NECESSIDADE DO EMPREGO DAS FORÇAS ARMADAS PARA A
OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO E OS SEUS RESULTADOS
Além da legalidade formal acima explicitada, em termos materiais, ou seja,
conceituais, mais precisamente quanto ao conteúdo, não há como negar que
realmente trata-se de uma típica ação militar absolutamente necessária para a
garantia da lei e da ordem.
A situação visualizada e percebida nas ruas da cidade do Rio de Janeiro
traduzia perfeitamente o desrespeito a um conjunto de direitos dos cidadãos (lei) e a
conturbação da ordem estabelecida (ordem). Aliado essas circunstâncias, verificouse a total insuficiência, ao menos de forma imediata, dos meios elencados pelo
artigo 144 da Constituição Federal para o enfretamento da situação.
Dessa forma, além de a lei estar sendo desrespeitada, a ordem era atingida
e os meios constitucionalmente previstos para um Estado Federado responder a tais
demandas eram flagrantemente insuficientes. E isso, por si só, já autorizaria a
medida extrema do ponto de vista do seu conteúdo.
70
Por meio de simples ofício, foi comunicado pelo Sr. Presidente da República ao Sr. Ministro de
Estado da Defesa que estava autorizada a participação das Forças Armadas naquela situação de
garantia da lei e da ordem.
71
Atos administrativos que delimitam a extensão da operação e as normas a serem seguidas durante
a ação militar.
À época, muitas críticas foram realizadas no sentido de que as Forças
Armadas não estariam preparadas para operações dessa natureza72, pois sua
finalidade seria o combate ao inimigo e não haveria treinamento de seus homens
sobre a necessária relação a ser estabelecida entre militares e cidadãos. Outros73,
chegaram a afirmar que a Operação Arcanjo tratar-se-ia de uma intervenção federal
da União no Estado do Rio de Janeiro.
Entretanto, conforme referido em capítulo anterior, a Constituição Federal de
1988 estabeleceu 03 (três) situações nas quais as Forças Armadas poderiam ser
empregadas, ao Comando Supremo do Presidente da República: (1) defesa da
Pátria, (2) garantia dos poderes constitucionais e (3) da lei e da ordem.
Assim, sendo uma das três situações previstas na Constituição Federal
como hipótese de emprego, as Forças Armadas, se não estivessem, deveriam estar
sendo preparadas para situações urbanas como aquela que precedeu a Operação
Arcanjo. Além disso, deve ser ressaltada que houve um atendimento a uma
solicitação do Governador para uma situação específica e de caráter republicana,
não havendo motivos para se falar em qualquer espécie de intervenção federal,
medida que possui outros pressupostos e natureza completamente distinta74.
Isso se confirmou pelos resultados obtidos desde o início da ocupação, com
uma redução permanente dos índices de criminalidade75 por toda a cidade do Rio de
Janeiro, assim como a não ocorrência de situações que pudessem indicar o
despreparo das Forças Armadas para lidar com aquela situação excepcional, mas
constitucionalmente prevista, não havendo qualquer revés ao pacto federativo e ao
respeito às autonomias estaduais. Aliado a isso tudo, o apoio da população à ação
72
Entretanto, essa crítica só pode vir do desconhecimento acercas das situações em que as Forças
Armadas podem ser empregadas, pois o texto constitucional é taxativo.
73
Conforme o artigo “Intervenção Federal Branca no Rio de Janeiro”, publicado no sítio
<http://www.blogdosirodarlan.com> Acesso em 28.06.2011.
74
A presente situação de garantia da lei e da ordem, que apresenta verdadeira cooperação em prol
do interesse público, em que houve solicitação de apoio do Governador do Estado do Rio de Janeiro
e a sua anuência para que as forças estaduais ficassem sob o comando militar difere, em tudo, de um
ato unilateral em que um ente federado, por iniciativa própria e contra a vontade de outro, invade a
sua competência constitucionalmente estabelecida.
75
Todos os índices de criminalidade apresentam significativa redução, do homicídio ao roubo, de
acordo com o sítio <http://www.isp.rj.gov.br>. Acesso em 15.07.2011.
militar foi amplamente divulgado pela mídia76, uma vez que puderam retomar seus
hábitos sociais com a tranquilidade necessária, seja dentro ou fora da área ocupada,
agora, por forças do Estado.
76
Diversas entrevistas com moradores que não quiseram se identificar foram divulgadas pelo sítio
<http://www.g1.com>. Acesso em 20.07.2011.
5 CONCLUSÃO
Certamente entre as hipóteses de atuação das Forças Armadas brasileiras
previstas na Constituição Federal, o emprego em operações de garantia da lei e da
ordem é aquela que se encontra mais próxima da realidade brasileira. Isso não quer
dizer que as outras duas situações sejam de menor importância, muito pelo
contrário, pois concebidas para situações em que estejam ocorrendo verdadeiros
ataques ao Estado e à democracia do país, o que, porém, na atualidade, possuem
uma probabilidade de incidência extremamente reduzida ante o presente período de
estabilidade interna e externa.
Nesse contexto, verifica-se que a execução de uma operação para a
garantia da lei e da ordem constitui-se, sempre, num instrumento de proteção e
garantia dos direitos fundamentais que foram violados pela situação imediatamente
anterior e que devem ser restabelecidos o mais rápido possível. Da mesma forma,
deve-se ter presente, por se tratar de uma operação de cunho militar e haver a
possibilidade de restrições a alguns direitos fundamentais em seu desenrolar, que a
determinação do emprego das Forças Armadas deve ser precedida de uma análise
da situação ao princípio da proporcionalidade/razoabilidade, a fim de examinar, com
precisão, a adequação da medida ao caso concreto.
Tal análise deve ser precedida de uma conclusão sobre legalidade da
medida, tanto em termos adjetivos quanto substantivos, ou seja, se realmente é o
caso de uma operação para a garantia da lei e da ordem, se estão presentes os
pressupostos básicos, e, a partir daí, executá-la em conformidade com a Lei
Complementar n.º 97/1999 e o Decreto n.º 3.897/2001, que regulamentam o preparo
e o emprego das Forças Armadas.
Na sua execução, deve-se obedecer às regulamentações existentes e
fundamentadas nos textos legais acima referidos, a fim de que a legalidade seja
preservada e o êxito da missão seja alcançado. Isso porque, após a constatação de
que se trata realmente de uma situação de garantia da lei e da ordem, a execução
seja realizada dentro dos limites previstos, evitando-se qualquer tipo de excesso que
possa comprometer o objetivo precípuo da ação militar, que é o restabelecimento do
respeito à lei e à ordem estabelecidas.
Além disso, jamais a execução dessa medida excepcional deve ser desviada
do seu foco inicial, pois deve visar, sempre, a proteção de direitos fundamentais da
população. Dessa maneira, sempre objetivando a preservação de direitos
fundamentais, tanto a decisão de empregar as Forças Armadas em operações de
garantia da lei e da ordem quanto a forma de colocá-la em prática, o respaldo da
população será alcançado e a lei cumprida.
E essa forma de determinar o emprego das Forças Armadas e executar a
medida objetivando a garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos é o que
fornece a sustentação para a Operação Arcanjo no Complexo de Favelas do
Alemão, atualmente em execução da cidade do Rio de Janeiro. Isso porque, além de
libertar a população local do domínio pelo crime organizado, trouxe mais
tranquilidade para outros bairros da cidade, o que, efetivamente, ofereceu uma
possibilidade para a concretização dos direitos fundamentais dos moradores da
região atingida diretamente pela operação de garantia da lei e da ordem e
segurança para todos os demais.
No mesmo sentido, a fim de que não seja utilizada de maneira rotineira por
administrações públicas ineficientes, deve ser ressaltado que, por se tratar de uma
medida de caráter excepcional, não pode, de maneira alguma, se constituir em uma
regra para o combate ao crime organizado. Pode, isso sim, ser concebida como uma
boa ferramenta a ser utilizada em situações de extrema gravidade, assim como
ocorreu e ainda ocorre na cidade do Rio de Janeiro.
Por fim, conclui-se que, por ser uma importante medida prevista na
Constituição Federal, as Forças Armadas devem estar devidamente preparadas
para executá-la. Isso porque a sua execução, desde que correta e dentro dos limites
estabelecidos pela lei, poderá significar a preservação dos direitos fundamentais
mais básicos dos cidadãos brasileiros, os quais, nessas ocasiões, foram cerceados
ou limitados em razão do desrespeito à lei e à ordem.
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