A FORMAÇÃO DE PROFESSORES NA CONTEMPORANEIDADE:
DESAFIOS E PERSPECTIVAS
NASCIMENTO, Lizandra Andrade – UNIJUÍ – [email protected]
MARTINAZZO, Celso José – UNIJUÍ – [email protected]
Eixo: Formação de Professores / n. 10
Agência Financiadora: Sem Financiamento
Noções Introdutórias
Neste texto - A Formação de professores na contemporaneidade: desafios e
perspectivas - refletimos sobre os procedimentos e a relevância da formação de
professores nos tempos atuais. O trabalho foi desenvolvido com base nos princípios do
paradigma do pensamento complexo, que pressupõe e propõe uma reforma
paradigmática do pensamento tendo em vista a compreensão e o enfrentamento de
questões importantes e atuais como: a produção do conhecimento, a (des) fragmentação
dos saberes, a formação de professores, a prática pedagógica, a humanização planetária,
a compreensão de si, do outro e do mundo. Destacamos a importância dos processos de
formação
de
professores
para
o
desenvolvimento
de
práticas
pedagógicas
contextualizadas, inter e transdisciplinares.
As ações docentes continuam sendo desenvolvidas, ainda hoje, com base em
concepções e práticas simplistas e fragmentadoras. Para uma ação docente que religa,
contextualiza e globaliza os saberes faz-se necessário reformar o pensamento. A
mudança nos processos de educação escolar, na formação de professores, bem como as
formas de acessar, sistematizar, produzir e ministrar o conhecimento precisam levar em
conta os princípios cognitivos da Teoria da Complexidade.
Trata-se, pois, de uma reflexão sobre o sistema educacional vigente visando a
repensar parâmetros para uma formação docente mais coerente com as exigências e os
desafios da contemporaneidade.
Formação de professores: uma questão central no processo educacional
Refletir sobre a formação de professores no contexto contemporâneo continua
sendo um grande desafio e exige repensar as atuais concepções e práticas pedagógicas
simplistas e fragmentadas. Entendemos que os princípios da Teoria da Complexidade
formulados e sustentados por Edgar Morin podem ser balizadores desta reflexão. Os
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argumentos deste autor sobre as leis e a lógica da complexidade apresentam-se de forma
inovadora, instigante e provocativa.
Ao propor a religação dos saberes, pela reforma radical do pensamento, Morin
nos aponta caminhos para a ressignificação do processo de formação dos educadores,
sendo indispensável, para tanto, superar a compartimentalização do conhecimento
mediante a formulação de um saber complexo que nos habilite a promover reflexões
multidimensionais, multirreferenciais e contextualizadas. Ao defender a necessidade de
uma reforma do pensamento, o autor alerta que “é preciso substituir um pensamento que
isola e separa por um pensamento que distingue e une. É preciso substituir um
pensamento disjuntivo e redutor por um pensamento do complexo, no sentido originário
do termo complexus: o que é tecido junto” (Morin, 2001, p. 89).
A promulgação da LDBEN n° 9394/96, de 20 de dezembro de 1996, gerou
muitas expectativas em relação à formação de professores, à profissão docente, ao papel
da escola e à concepção de conhecimento escolar, entre outras. As políticas e ações
governamentais, no entanto, nem sempre acompanham a crescente demanda pela
instituição escolar em todos os seus níveis, com projetos políticos e pedagógicos que
possam garantir o acesso à cidadania e que contemplem as diferentes manifestações de
cultura e de processos de trabalho, bem como se orientem pela diminuição das
desigualdades sociais.
A história da educação brasileira e, especialmente, dos cursos de formação de
professores, contudo, revela que as políticas e reformas educacionais, até hoje
instituídas, não contemplaram a realidade e as especificidades do contexto brasileiro, e,
mais especificamente, de cada uma das suas regiões. É inadmissível e contraproducente,
pôr em prática projetos elaborados por organismos internacionais ou por especialistas
que desconhecem o que está além de seus gabinetes, ou que escolas do Nordeste do
Brasil tenham o mesmo projeto político-pedagógico e o mesmo livro didático que as
escolas do Sul ou do Sudeste, e vice-versa.
Os cursos de formação docente precisam equilibrar saber teórico-prático e saber
pedagógico e oportunizar aos professores a construção de conhecimentos mais
aprofundados nas áreas substantivas no intuito de fazer emergir competências para
trabalhar os diferentes conteúdos nos níveis dos educandos sabendo como realizar a
transposição didática desses conteúdos.
Morin (2001) propõe uma reforma universitária para superar as formas de ensino
que separam as disciplinas umas das outras, isolando as partes do seu todo, os objetos e
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fenômenos do seu contexto, posto que essa separação e fragmentação são incapazes de
captar o complexo, ou seja, o sentido do que está tecido em conjunto e que forma uma
rede relacional e interdependente. Trata-se de vislumbrar um processo de formação no
qual os docentes se auto-eduquem e eduquem levando em conta as características, as
necessidades e as exigências deste início de século.
O autor esclarece que a missão da universidade é formar cidadãos capazes de
compreender e de enfrentar os problemas do seu tempo; assumir o passado cultural,
civilizar o presente e despertar para uma consciência de pertencimento à Terra-Pátria;
promover a reorganização do saber para contemplar a complexidade e saber construir a
humanidade da humanidade na era planetária.
A reforma universitária implica fazer com que as grandes questões da educação
sejam discutidas pelo coletivo daqueles que constituem a comunidade educativa, sem
permanecer restrita aos especialistas que, no mais das vezes, tratam deste assunto de
forma isolada, ignorando que todos os problemas são transversais, multidimensionais e
planetários. Tal reforma não significa suprimir disciplinas, mas articulá-las, religá-las,
dar-lhes vitalidade e fecundidade (Morin, 2001, p. 104).
Nesse objetivo, a formação docente nos dias de hoje deve levar em conta que
ensinar e aprender são atividades essencialmente humanas para as quais é
imprescindível a compreensão da educação como possibilidade de reconstrução pessoal
e social, bem como uma grande dose de comprometimento que exige tomadas de
decisão ponderadas, o exercício da liberdade com autoridade, a capacidade de escutar,
de dialogar e de respeitar os diferentes pontos de vista.
Formar formadores deve significar mais do que apenas ensinar-lhes conteúdos
clássicos, historicamente construídos; requer refletir profundamente sobre as temáticas
do cotidiano, desafiando cada um a perceber na e pela própria prática as interconexões
desses conteúdos com a realidade, construindo redes de sentido com seus
conhecimentos prévios, aprofundando-os e empregando-os para ampliar a compreensão
do mundo e para adotar posturas críticas e reflexivas nas mais variadas situações.
Recebemos como herança do passado: a influência do paradigma da
simplificação e da racionalidade técnica; do saber nocional e imutável; do ensino como
transmissão de conteúdos e dos currículos gradeados.
Efetivamente, a inteligência que só sabe separar fragmenta o
complexo do mundo em pedaços separados, fraciona os problemas,
unidimensionaliza o multidimensional. Atrofia as possibilidades de
compreensão e de reflexão, eliminando assim as oportunidades de um
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julgamento corretivo ou de uma visão a longo prazo. Sua
insuficiência para tratar nossos problemas mais graves constitui um
dos mais graves problemas que enfrentamos (Morin, 2001, p. 14).
A fragmentação afeta a capacidade de pensar o contexto e o complexo
planetário, tornando a inteligência cega, inconsciente e irresponsável, como alerta
Morin (2001, p. 15). Daí a necessidade de repensar o processo de formação de
professores, a fim de que estes, em suas práticas pedagógicas, não se transformem em
meros reprodutores do ensino compartimentado e descontextualizado.
Morin e Moigne (2000) acreditam que em todo olhar complexo existe a presença
da incerteza e a possibilidade de erros, sejam eles empíricos ou teóricos e, mais
freqüentemente, ao mesmo tempo, empíricos e teóricos. Esse pressuposto precisa ser
levado em conta no processo de formação e nas práticas pedagógicas, de modo que os
professores estejam aptos a lidar com a subjetividade do conhecedor, a demonstrar
convicção ao trabalhar com o conhecimento e a propiciar aos educandos a oportunidade
de construção de novos saberes a partir do que ele, educador, planeja para as aulas.
Assim, o professor precisa confiar na capacidade de aprendizagem do aluno
despertando-lhe a curiosidade, o desejo de ir além, de reinventar os temas em estudo,
aprofundando as múltiplas percepções sobre cada assunto.
Os cursos de formação de professores necessitam levar em conta os riscos do
erro e da ilusão do conhecimento, pois, de acordo com Morin (2004, p. 31), a prática de
interrogar o desconhecido e dialogar com a incerteza constitui o oxigênio de qualquer
proposta de conhecimento. O conhecimento do conhecimento, que comporta a
integração do conhecedor e de seu conhecimento deve ser, para a educação, um
princípio e uma necessidade permanentes.
Necessitamos civilizar nossas teorias, ou seja, desenvolver nova
geração de teorias abertas, racionais, críticas, reflexivas, autocríticas,
aptas a se auto-reformar. Necessitamos encontrar os metapontos de
vista sobre a noosfera, que só podem ocorrer com a ajuda de idéias
complexas, em cooperação com as próprias mentes, em busca dos
metapontos de vista para auto-observar-se e conceber-se.
Necessitamos que se cristalize e enraíze um paradigma complexo
(Morin, 2004, p. 32-33).
Um pré-requisito indispensável à prática docente é, sem dúvida, saber interligar
o ensino de conteúdos com a formação ética dos educandos, ou seja, não “separar
prática da teoria, autoridade da liberdade, ignorância de saber, respeito ao professor e
respeito aos alunos, ensinar e aprender” (Freire; Shor, 1999, p. 104). Essas dimensões
são inseparáveis e é no paradoxo entre elas, entre o desconhecer e o descobrir que reside
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o impulso de aprender. A ignorância precisa conduzir ao desejo de conhecer, assim
como a teoria deve iluminar a prática, permitindo que o saber tenha validade concreta.
Aprender a ser professor, a partir da assunção das concepções do paradigma da
complexidade, tornou-se uma tarefa quase impossível de ser concluída se não houver a
reformulação nos processos pedagógicos sustentados, hoje, por um aparato de
conteúdos, muitas vezes obsoletos, e por um conjunto de técnicas ultrapassadas.
A formação de professores deve se constituir num continuum, em que se
estabelece um fio condutor que vá produzindo sentidos e explicando os significados ao
longo de toda a vida do professor, assegurando que haja coerência entre a formação
inicial, a continuada e as experiências docentes e de vida. Todos esses passos e
momentos necessitam ser mediados pela reflexão indispensável em qualquer ação
humana.
Aprender a ensinar é um processo intermitente ao longo da carreira docente e
que, não obstante a qualidade do que fizermos nos nossos programas de formação de
professores, na melhor das hipóteses só poderemos preparar os professores para
começar a ensinar (Zeichner, 1992, p. 55). Isso porque, segundo Morin (2001), uma
reforma nos processos de pensar deve ter origem nos próprios professores e não em
iniciativas externas, fazendo com que haja um constante ressignificar de suas próprias
práticas, aprendendo com seus pares e com os educandos.
Uma vez que o processo de formação não pode estar desconectado da realidade
vivida, nós próprios necessitamos nos perceber como seres complexos, constituídos por
múltiplas dimensões, enquanto cidadãos culturais e planetários, resguardando o nosso
direito e a nossa possibilidade de intervenção, transformação, emancipação e
reconstrução. A formação não pode, dessa forma, negligenciar a questão da cidadania e
da formação do cidadão planetário. Destaca Morin que essa é a função de uma educação
que se pretende complexa, ética e solidária. Uma educação complexa encara o desafio
de investigar os novos paradigmas a partir do questionamento de padrões e de modelos
reducionistas, disjuntivos e fragmentadores, tão presentes nos períodos da história que
nos precedeu.
A partir dessa postura de investigação e de um permanente aprofundamento
teórico poderá ser assegurada a lucidez necessária para que os educadores
compreendam a sua docência e assumam a tarefa de instigadores do pensamento
reflexivo e complexo.
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A inter e a transdisciplinaridade: princípios para as práticas pedagógicas
Se as múltiplas faces da realidade constituem um todo complexo, cabe-nos
instituir formas de conhecimento compatíveis para conhecê-lo e transformá-lo. Nesse
propósito, as disciplinas podem desempenhar uma função importante na análise da
realidade, desde que não impeçam a compreensão do todo.
[...] Intelectualmente, as disciplinas são plenamente justificáveis,
desde que preservem um campo de visão que reconheça e conceba a
existência das ligações e das solidariedades. E mais: só serão
plenamente justificáveis se não ocultarem realidades globais. [...]
Com certeza não é possível criar uma ciência do homem que anule
por si só a complexa multiplicidade do que é humano. O importante é
não esquecer que o homem existe e não é uma “pura” ilusão de
humanistas pré-científicos (Morin, 2001, p. 112-113).
A educação escolar, em todos os seus níveis, precisa incentivar a comunicação
entre as diversas áreas do saber, contemplando a complementaridade e as relações entre
os campos do conhecimento, superando as fronteiras que inibem e reprimem a
aprendizagem. Trata-se da transcendência do pensamento linear que, por si só, é
reducionista.
Concomitantemente com o pensamento complexo surgem as abordagens e
metodologias inter e transdisciplinares. A interdisciplinaridade é mais que o simples
diálogo entre as disciplinas e visa a transcender o isolamento, a alienação e a abstração
da vida cotidiana e da realidade concreta, bem como da riqueza das suas dimensões,
provocados pela abordagem disciplinar.
O termo Interdisciplinaridade se compõe de um prefixo - inter - e de
um sufixo – dade - que, ao se justaporem ao substantivo - disciplina –
nos levam à seguinte possibilidade interpretativa, onde: inter, prefixo
latino, que significa posição ou ação intermediária, reciprocidade,
interação [...]. Por sua vez, dade (ou idade) sufixo latino, guarda a
propriedade de substantivar alguns adjetivos, atribuindo-lhes o
sentido de ação ou resultado de ação, qualidade, estado ou, ainda,
modo de ser (Assunpção, 1991, p. 23; grifos do autor).
O trabalho interdisciplinar é uma modelização epistemológica que procura
contemplar o ser humano na sua totalidade, articulando as disciplinas escolares como
forma de promover o diálogo entre os saberes, a compreensão de si e do próprio
entorno, e despertar o prazer pela construção do conhecimento, sistematizando as
experiências e vivências a partir da prática constante da pesquisa e da criticidade.
Por seu turno, a transdisciplinaridade é uma prática que religa, une e contempla
o múltiplo e o diverso no processo de construção do conhecimento e, como tal, deve
perpassar todas as disciplinas. Não se trata, simplesmente, de adicionar saberes. Por
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isso, para que ocorra essa transversalidade é necessário recorrer a princípios cognitivos
complexos construindo metapontos de vista sobre o real e não apenas pontos de vista
isolados.
No que concerne à transdisciplinaridade, trata-se freqüentemente de
esquemas cognitivos que podem atravessar as disciplinas, às vezes
com tal virulência, que as deixam em transe. De fato, são os
complexos de inter-multi-trans-disciplinaridade que realizaram e
desempenharam um fecundo papel na história das ciências; é preciso
conservar as noções chave que estão implicadas nisso, ou seja,
cooperação; melhor, objeto comum; e, melhor ainda, projeto comum
(Morin, 2001, p. 115).
A transdisciplinaridade pressupõe o emprego das diversas linguagens por meio
das quais nós nos expressamos. A escola não pode desconsiderar que o homo sapiens é
também ludens, faber e demens. Ele precisa brincar, aprimorar seu poder criador, seu
senso estético e crítico, sua capacidade de introspecção e sua sensibilidade. Só assim
pode desenvolver sua ética para a construção de um mundo mais justo, igualitário e
solidário para si, para a espécie e para a sociedade.
A formação do cidadão requer que sejam possibilitadas abordagens reflexivas e
analítico-sintéticas dos problemas, uma vez que o ideal democrático de cidadania exige
iluminar e compreender os problemas próprios de uma sociedade de direitos e de
deveres. A busca de fórmulas para atingir esse ideal é uma urgência reclamada pela
função democrática da escolarização comum para todos e isso é tanto mais urgente
quanto mais especializado for o conhecimento que a escola produz e transmite. Este tem
sido, segundo Sacristán (1998), um dos grandes desafios no pensamento pedagógico.
A instituição e a abordagem do conhecimento em forma disciplinar traz o risco
da hiperespecialização e da perda de diálogo entre as diferentes áreas do saber.
A fronteira disciplinar, sua linguagem e seus conceitos próprios vão
isolar a disciplina em relação às outras e em relação aos problemas
que se sobrepõem às disciplinas. A mentalidade hiperdisciplinar vai
tornar-se uma mentalidade de proprietário que proíbe qualquer
incursão estranha em sua parcela de saber. Sabemos que,
originalmente, a palavra “disciplina” designava um pequeno chicote
utilizado no autoflagelamento e permitia, portanto, a autocrítica; em
seu sentido degradado, a disciplina torna-se um meio de flagelar
aquele que se aventura no domínio das idéias que o especialista
considera de sua propriedade (Morin, 2001, p. 106).
Reverter o quadro das especializações e da fragmentação dos processos de
ensino e aprendizagem não é tarefa fácil. Mesmo sendo um desafio bastante complexo,
no entanto, a integração das diferentes concepções é uma aspiração e uma exigência dos
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tempos atuais, a ser estabelecida como forma de pensar novas modalidades de
organização curricular, de reestruturar a política de gestão escolar e de sala de aula.
A aprendizagem da pesquisa contribui significativamente para a prática
transdisciplinar, posto que coloca o sujeito num movimento de busca que se traduz no
aprofundamento dos saberes a respeito do fenômeno pesquisado, tendo em vista que os
objetos e fatos que estudamos não podem ser tomados como entes isolados, mas, ao
contrário, devem ser compreendidos em sua totalidade, com suas conexões, em seus
contextos de inserção e no conjunto de suas especificidades.
Os currículos dos cursos de formação devem promover a inter e a
transdisciplinaridade, conduzindo à prática da pesquisa a partir do pressuposto de que
ensinar exige pesquisa. Freire (2003, p. 29) é muito enfático na afirmação de que:
Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses que-fazeres
se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino continua
buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei,
porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando,
intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o
que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade.
Em plano teórico, os questionamentos incorporam a dimensão transdisciplinar à
procura de explicações que possibilitem ao aluno aprender a pensar sobre a realidade
para compreendê-la e transformá-la. Uma das metas específicas da educação escolar é,
sem dúvida, reunir as contribuições de todas as áreas do conhecimento num processo de
reelaboração do saber, voltado para a compreensão da realidade e objetivando sua
transformação a partir dos princípios de igualdade, fraternidade, solidariedade e
desenvolvimento sustentável e humanizado.
O sistema educacional, por meio dos cursos de formação - inicial e continuada das universidades precisa ter clareza quanto aos fins a serem alcançados, ao discernir o
que é fundamental para atingi-los e ao fazer o planejamento de sua prática pedagógica,
abrindo caminhos para que a ação inter/transdisciplinar avance no plano teórico/prático.
É imprescindível que, em sua formação, os aprendizes - tanto os alunos na Educação
Básica quanto os professores enquanto docentes-aprendentes e mesmo na condição de
profissionais em processo de formação - desenvolvam a consciência reflexiva.
Os problemas desafiadores de hoje e as perspectivas futuras devem orientar a
reorganização dos cursos de formação, atentando para as modelizações epistemológicas
inter e transdisciplinares decorrentes dos princípios da Teoria da Complexidade.
Destacamos alguns desses princípios elaborados por Morin e Moigne (2000, p. 209 ss.):
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1 – O princípio sistêmico ou organizacional que liga o conhecimento
das partes ao conhecimento do todo. 2 – O princípio
“hologramático” coloca em evidência o aparente paradoxo dos
sistemas complexos em que não somente a parte está no todo, mas em
que o todo está inscrito na parte. 3 – O princípio do círculo retroativo
[...] Ele rompe o princípio da causalidade linear: a causa age sobre o
efeito e o efeito sobre a causa [...]. 4 – O princípio do círculo
recursivo [...] no qual os produtos e os efeitos são eles próprios
produtores e causadores daquilo que os produz. 5 – O princípio da
auto-eco-organização: autonomia e dependência. Os seres vivos são
seres auto-organizadores que se autoproduzem ininterruptamente e
gastam a energia para salvaguardar a sua autonomia. 6 – O princípio
dialógico [...] permite assumir racionalmente a associação de ações
contraditórias para conceber um imenso fenômeno complexo. 7 - O
princípio da reintrodução do conhecimento em todo conhecimento.
Esse princípio opera a restauração do sujeito e torna presente a
problemática cognitiva central: da percepção à teoria científica, todo
conhecimento é uma reconstrução/tradução por um espírito/cérebro
numa cultura e num tempo determinados.
As diferentes áreas das ciências precisam dialogar e se comunicar
acompanhando o avanço da inter/transdisciplinaridade, posto que questionar e ser
questionado é a alma da ciência moderna (Maciel; Neto, 2004). A dinâmica da
realidade, nosso principal objeto de estudo, é naturalmente inter/transdisciplinar e, por
isso, deve ser tomada em seu contexto, em sua complexidade, uma vez que as análises
parciais só adquirem sentido se houver uma retomada do seu entendimento mais amplo.
Desafios e perspectivas para o processo de formação de professores
A busca de alternativas para os processos de formação de professores exige uma
reorganização curricular e uma mudança de enfoque em relação à questão da construção
do conhecimento. É mister que se perceba que a socialização do conhecimento é
importante, pois valoriza o legado cultural, produzido historicamente, e o amplia
mediante as trocas e interpretações possíveis. É preciso, todavia, extrapolar e reconstruir
os saberes já existentes pelo princípio da pesquisa associado a modelizações
epistemológicas inter e transdisciplinares.
A pesquisa configura-se como princípio científico e como princípio educativo,
com implicações no progresso da ciência e da cidadania, a partir da qualidade formal e
política dos conhecimentos reconstruídos. A universidade deve ser fundamentalmente
um centro de pesquisa, de produção, reconstrução, divulgação e multiplicação de
conhecimentos pertinentes.
O conhecimento pertinente deve reconhecer esse caráter
multidimensional e nele inserir estes dados: não apenas não se pode
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isolar uma parte do todo, mas as partes umas das outras; a dimensão
econômica, por exemplo, está em inter-retroação permanente com
todas as outras dimensões humanas; além disso, a economia carrega
em si, de modo “hologrâmico”, necessidades, desejos e paixões
humanas que ultrapassam os meros interesses econômicos (Morin,
2004, p. 38).
Essa nova forma de conceber a produção dos saberes e o próprio conhecimento
produzido exige que passemos a pensar com base nos princípios cognitivos do
pensamento complexo, enquanto possibilidade de lidar com a incerteza e de conceber a
organização, bem como de reunir, contextualizar, globalizar, sem deixar de reconhecer
o individual, o singular e o concreto.
Se quisermos um conhecimento segmentário, encerrado a um único
objeto, com a finalidade única de manipulá-lo, podemos então
eliminar a preocupação de reunir, contextualizar, globalizar. Mas, se
quisermos um conhecimento pertinente precisamos reunir,
contextualizar, globalizar nossas informações e nossos saberes,
buscar, portanto, um conhecimento complexo. É evidente que o modo
de pensamento clássico tornava impossível, com suas
compartimentações, a contextualização dos conhecimentos. Ele
transformava especialistas em idiotas culturais, ignaros em relação a
tudo o que dizia respeito a problemas globais e gerais [...] (Morin,
2002, p. 566).
O conhecimento, portanto, deve articular e religar os múltiplos aspectos que
compõem a realidade: o político, o econômico, o antropológico, o ecológico entre
outros. Tal articulação requer uma reforma radical do pensamento que promova uma
legítima mudança da e na forma de acessar e de processar o conhecimento. Essa
abertura para as novas idéias vem acompanhada de uma necessidade social irrefutável:
formar cidadãos planetários aptos a compreenderem e a enfrentarem os problemas de
seu tempo. Concordamos com Morin (2004, p. 39), quando este argumenta que: “A
educação deve favorecer a aptidão natural da mente em formular e resolver problemas
essenciais e, de forma correlata, estimular o uso total da inteligência geral”.
Morin (1999) concebe a universidade como uma instituição ao mesmo tempo
conservadora, regeneradora e geradora. É conservadora porque integra, memoriza e
ritualiza saberes, idéias e valores culturais; regeneradora, pois rediscute e atualiza
saberes e os transmite às novas gerações; geradora porque cria, elabora e processa os
novos saberes que serão herdados sucessivamente.
Cabe assim ao ensino superior, em sua preocupação com a formação e
qualificação de profissionais, propor constantes desafios ao acadêmico para que este
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possa compreender sua natureza e dignidade humana, assumindo seu destino terrestre
como cidadão sensível e integrante de uma espécie comum e de uma sociedade.
Esse movimento de transformação de posicionamento em relação ao saber e à
organização do ensino propõe o desenvolvimento de uma democracia cognitiva
organizada a partir do ressurgimento do ser humano, da natureza, do cosmos e da
própria realidade. A democracia cognitiva define-se como a ampliação do acesso aos
saberes das múltiplas áreas, assim como compreende a diversidade e o pluralismo
teórico e sem preconceitos, sem o determinismo da certeza que, sob o olhar da
complexidade, é entendida como relativa, efêmera e ilusória.
No caso específico da formação de professores, compete aos cursos superiores,
enquanto experiências significativas e privilegiadas, habilitar os sujeitos para saber
pensar e para aprender a aprender. A emancipação dos sujeitos depende, basicamente,
da formação de uma cabeça bem-feita, apta a construir conhecimentos inovadores.
Esse é um alerta para que a universidade não continue a desempenhar, apenas, o
papel de guardiã do conhecimento construído e, muitas vezes, ultrapassado. Enquanto
centro de reconstrução, socialização e multiplicação de saberes e competências, cabe à
universidade educar o conhecimento, encontrando um espaço intermediário entre o
conhecimento inovador e a reprodução/transmissão de informações. Trata-se de
recapturar o conhecimento, manejando humanamente a propensão desconstrutiva.
A Universidade deve, ao mesmo tempo, adaptar-se às necessidades
da sociedade contemporânea e realizar sua missão transecular de
conservação, transmissão e enriquecimento de um patrimônio
cultural, sem o que não passaríamos de máquinas de produção e
consumo. [...] A reforma da Universidade não poderia contentar-se
com uma democratização do ensino universitário e com a
generalização do status de estudante. Falo de uma reforma que leve
em conta nossa aptidão para organizar o conhecimento – ou seja,
pensar (Morin, 2001, p. 82-83; grifos do autor).
Torna-se imprescindível uma aproximação entre os ideais da educação do futuro
- que já devem ser operacionalizados a partir do presente - com os da realidade dos
cursos de educação escolar e, sobretudo, daqueles que formam professores. Esse avanço
em termos de qualificação no processo educacional requer a superação da fragmentação,
da racionalidade mutilada e mutiladora, assumindo os desafios da complexidade e a
responsabilidade em relação à condição humana.
Trata-se de entender o pensamento que separa e que reduz, no lugar
do pensamento que distingue e une. Não se trata de abandonar o
conhecimento das partes pelo conhecimento das totalidades, nem da
análise pela síntese; é preciso conjugá-las. Existem desafios da
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complexidade com os quais os desenvolvimentos próprios da nossa
era planetária nos confrontam inelutavelmente (Morin, 2004, p. 46).
Cabe, portanto, à educação, desde a escola básica até a universidade, agir numa
perspectiva inter/transdisciplinar promovendo a (re)união dos conhecimentos, situando
a condição humana no mundo, integrando e assimilando a contribuição inestimável da
humanidade. O profissional deve estar capacitado a coletar e sistematizar as
informações, contando com as novas tecnologias e buscando sempre alternativas de
respostas às questões apresentadas no cotidiano. Para tanto, é fundamental que tenha
aprendido a aprender desenvolvendo uma postura de pesquisador e percebendo o
conhecimento como algo em constante processo de construção/reconstrução.
As condições de vida contemporânea problematizam as posturas rígidas, fixas e
não-reflexivas, pressionando por mudanças de comportamento. A contemporaneidade
não pode prescindir de um professor reflexivo, com visão inter/transdisciplinar, que
consiga integrar a ciência, a técnica e a arte. Seu saber-fazer deve ser criativo e crítico,
embasado numa racionalidade aberta e plural, possibilitando a atuação eficiente e eficaz
mesmo em situações de instabilidade, incerteza e complexidade.
Refletir sobre seus conhecimentos, sobre seu próprio processo de formação e
sobre sua prática docente permite ao educador compreender o processo de
aprendizagem do aluno para nele intervir com mais coerência e competência. Esse
exercício de reflexão é condição para a compreensão de si e do outro como alguém
diferente, bem como garantia de solidariedade e respeito à liberdade. Alerta Morin
(2000, p. 200-201) a esse respeito:
A epistemologia complexa toma forma a partir do conhecimento do
conhecimento, que compreende o conhecimento dos limites do
conhecimento. Não há conhecimento “espelho” do mundo objetivo. O
conhecimento é sempre tradução e construção. Daí resulta que toda
observação e toda concepção devem incluir o conhecimento do
observador que concebe. Não há conhecimento sem autoconhecimento
(grifo do autor).
Para Morin, a reforma do pensamento, em época de incerteza, pressupõe a
consciência reflexiva de si e do mundo para o exercício de uma auto-ética que é
complexa e concebe o homem como um ser relacional que pode viver em comunidade
numa Terra-Pátria de todos. Assim, aceitar o outro e compreendê-lo de forma amorosa é
condição ontológica da existência humana e implica mudança de atitude e de
perspectiva em todas as situações da vida.
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Assim sendo, quando Morin destaca que a tarefa primordial do ensino consiste
muito mais em aprender a religar e a contextualizar o conhecimento do que em aprender
a separar e a simplificar, apresenta importantes referenciais para repensarmos o
processo de formação de professores. Para tanto, os princípios do pensamento
complexo, já analisados, podem servir de base para refletir sobre a necessidade de
ressignificação de nosso processo educacional e de formação de professores. Como
destaca Martinazzo (2004, p. 17):
Acredito que a proposta de Morin de reformar o pensamento para
reformar o ensino educativo e a reforma do ensino educativo para
reformar o pensamento, é fundamental para uma reestruturação de
nossas práticas pedagógicas e, igualmente, demais práticas sociais. É,
sem dúvida, ponto de partida e ponto de chegada de uma forma de
pensar e de agir que nos permitirá ser concidadãos em nossa TerraPátria.
Martinazzo (2004, p. 108) entende que o pensar e o agir complexos requerem
uma reforma radical do pensamento, como condição para a concidadania na TerraPátria, e destaca, também, que é preciso estabelecer uma política do homem planetário,
a partir da qual seja garantida a hominização na humanização, resgatando valores e
desenvolvendo relações fundamenta na ética e na solidariedade. Tudo isso pressupõe a
reforma do método, do pensamento e da educação escolar.
Morin teve o mérito de organizar os princípios que regem o pensar e o agir
complexo e que constituem uma nova forma de conceber o conhecimento e, portanto,
podem contribuir para a ressignificação do processo educativo. Sem esquecer que a
complexidade é um problema, um desafio e não uma resposta para todas as questões,
Morin (2002) nos provoca a transcender o pensamento simplificador em direção a um
pensar complexo, capaz de apreender a diversidade e a unidade do contexto e do
momento sociocultural em que vivemos. Ademais, nos permite compreender a
importância da inter/transdisciplinaridade e da religação dos saberes como possibilidade
de ressignificação do ensino-aprendizagem, das práticas pedagógicas e da formação de
professores.
Referências
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fenômeno. In: FAZENDA, Ivani. (org). Práticas interdisciplinares na escola. São
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