ISABEL E O FIM DO IMPÉRIO
Nelly Martins Ferreira Candeias
Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela
Gonzaga de Bragança e Bourbon nasceu no Rio de Janeiro,
em 29 de julho de 1846 e faleceu em Eu, na França, em 14 de
novembro de 1921. Filha do Imperador D. Pedro II e da
Imperatriz Dona Teresa Cristina, a Princesa Isabel exerceu a
regência do Império do Brasil durante três períodos. Foi a
primeira Chefe de Estado das Américas e uma das nove
mulheres a governar uma nação durante o século XIX.
Ao assinar a Lei Áurea em 13 de maio de 1888, a Princesa
Isabel extinguiu a escravidão no Brasil atendendo a forte apelo
da consciência nacional. Era chegado o momento para ser
tomada aquela medida. A questão provocava a troca de
gabinetes. Os cativos fugiam em massa apoiados pela
consciência popular.O Exército deixara de assumir o papel de capitão-do-mato e o
trabalho escravo tornou-se indesejável, frente à concorrência da mão-de-obra imigrante,
menos dispendiosa e mais qualificada. Ao libertar os escravos, a monarquia e a Princesa
Isabel, a Redentora, voltaram ao imaginário da Nação e a alegria do povo traduzia-se
em comemorações festivas.
Mas nem todos ficaram contentes, como acontece com os gestos de grande efeito. A
abolição prejudicara os proprietários de escravos de regiões econômicas politicamente
estratégicas como a do Vale do Paraíba, para os quais nenhuma indenização foi
cogitada. Mesmo os barões imperiais desampararam politicamente a causa monárquica,
passando a apoiar o ideário republicano. Por outro lado, intensificaram-se as intrigas
que visavam a denegrir o Terceiro Reinado, agravado pelo fato de a herdeira do trono
de D. Pedro II ser mulher. Naquela altura do século
XIX, ainda prevalecia no Brasil a idéia de que as
mulheres deveriam ser educadas apenas para serem
esposas e mães, limitando-as à culinária, aos
bastidores e às agulhas e bloqueando-lhes o acesso
aos ensinos secundário e superior. É de salientar Pena de Ouro que assinou a Lei Áurea
que, ao contrário das expectativas feministas da
época, a Constituição Republicana não concedeu o direito de voto a mulheres, tão
arraigados estavam aqueles preconceitos.
O exílio da Família Real
“Viva a República”. Extinta a monarquia em 15 de novembro de 1889, o chefe do
Governo Provisório republicano, Marechal Manoel Deodoro da Fonseca decretou
em ato solene, no dia 16, a deposição da dinastia imperial e a extinção do sistema
monárquico representativo. E fixou a partida da família real para as duas horas do dia
seguinte.Assim escreveu a Princesa Isabel em Memória para meus filhos: “no dia 16
às duas horas da tarde chegou a Comissão do Governo Provisório com uma mensagem
a Papai exigindo sua retirada para fora do país (...) A idéia de deixar os amigos, o
país, tanta coisa que amo, e que me lembra mil felicidades, fez-me romper em soluços.
Nem por um momento desejei uma menor felicidade para minha pátria, mas o golpe
foi duro”.Da carta assinada por D. Pedro II, no dia 16 de novembro e dirigida a Rui
Barbosa, constou: (...) resolvo, cedendo ao império das circunstâncias, partir com
toda a minha família para a Europa, deixando esta Pátria de nós estremecida, a qual
me esforcei para dar constantes testemunhos de entranhado amor e dedicação durante
quase meio século (...)”
Pressionada pelos acontecimentos, a família imperial partiu
para o exílio sem saber o futuro que a esperava. Ainda no
porto, um oficial disse à Princesa: “Vossa Alteza compreende
que esta transformação era necessária”, ao que ela lhe responde:
“pensava que se daria, mas por outro modo; a nação iria
elegendo cada vez maior número de deputados republicanos e
então, tendo a maioria, nos retiraríamos”.
Na madrugada do dia 17 de novembro de 1889 teve início o
embarque da família imperial no navio Parnaíba e a transferência
para o navio Alagoas, acompanhado de perto pelo Riachuelo,
Lei Áurea de 13 de Maio de 1888
enquanto em águas brasileiras. Diz Raul Pompéia, “culpa,
tristeza e mesmo certa vergonha. Em vez da luz forte do sol, temos o escuro da noite,
em lugar da recepção calorosa, a partida solitária, sob olhares escondidos”. Assim
seguiram para Portugal, levando “a mais saudosa lembrança”, aqueles que, a partir de
1808, transformaram uma colônia adolescente numa poderosa Nação, evitando a
fragmentação do território conquistado, como ocorreu no oeste do continente. Sem a
família real, o Brasil teria se transformado num conjunto de países muito menos
poderosos.
Omissões históricas, preconceitos e discriminações
Não se pode dizer que o Brasil tenha sido o último país a erradicar a escravatura , a
não ser que se considere apenas as Américas no século XIX*.
Em entrevista publicada no “Caderno Idéias” do Jornal do Brasil, em 2001, o canadense
Paul Lovejoy, professor da Universidade de York, em Montreal, pesquisador do Atlas
Histórico da Escravidão, comentou que a Nigéria, de onde vieram muitos cativos para
o Brasil, libertou os escravos nos anos 30 do século XX. Outros países, como a
Arábia Saudita e a Mauritânia, eliminaram a escravidão por volta de 1960. De acordo
com o depoimento de Pierre Verger, famoso fotógrafo e escritor francês (Fundação
Pierre Verger), os próprios africanos atacavam aldeias no interior da África, marcando
nos prisioneiros as iniciais do comprador com ferro incandescente.
*Ver Em torno de Zumbi, realização Estação em Ciência, USP, CNPq, co-patrocínio da Secretaria Municipal da Cultura de São Paulo, pág.7
Traficantes africanos riquíssimos, como portugueses,
espanhóis, franceses, ingleses e dinamarqueses, negociavam o
preço dos escravos e operavam em navios tumbeiros. Os mais
ricos utilizavam-nos em suas propriedades africanas.
Alberto da Costa e Silva, ex- presidente da Academia Brasileira
de Letras e embaixador na Nigéria, o maior africanólogo em
língua portuguesa, revela peculiaridades e fatos históricos de uma África desconhecida
, relatando que muitos escravos africanos pertenciam a reis e aos grandes do Daomé,
reino africano situado na África Ocidental, cujo regime de trabalho pouco diferia do
brasileiro. Diz também que durante os séculos da escravatura e nos primeiros anos
seguintes à abolição, o Oceano Atlântico transformou-se num largo e comprido rio,
tendo como margens o Brasil e a África ocidental. A cultura africana passou a ser um
dos alicerces da cultura brasileira, exigindo o estudo dos resultados sociais da
aproximação histórica das duas margens continentais desse grande rio.
Dom Pedro II e Família
Por ser injusta e pouco democrática a distância social entre o Brasil negro e o Brasil
branco, é natural que o imaginário do povo sobre a escravidão contenha distorções
ideológicas. Torna-se necessário interpretar, com metodologia
séria, a origem dos preconceitos e das discriminações existentes
em nosso meio, para então legitimar as informações registradas
nos livros didáticos que muitas vezes os omitem. Queixas de
distorções, omissões e mentiras históricas têm sido frequentes.
Princesa Isabel
Em matéria publicada especialmente pela Folha de São Paulo,
os jornalistas Leandro Naloch e Nei Lopes referem-se aos enredos
maniqueístas dos temas das escolas de samba que desfilam no
carnaval, observando que neles os afrodescendentes são sempre
caracterizados como heróis libertadores e todos os outros como
seus opressores. Menos divulgada é a notável contribuição do
negro para a história do Brasil e sua miscigenação na formação
da nacionalidade. brasileira.
Os dois Brasis
É enorme a distância entre o Brasil moderno dos brancos e o Brasil arcaico dos
negros. Diz Norberto Bobbio que “ao lado de um estado de poder visível, há sempre
um estado de poder invisível que passa despercebido”.
Cento e vinte anos depois da abolição da escravatura, quais são as condições sócioeconômicas da comunidade negra no Brasil? No momento em que tanto se fala das
políticas públicas e dos sistemas de cotas, basta entrar na sala das grandes
universidades brasileiras, públicas ou privadas, para observar grave problema ainda
não resolvido pela república brasileira.
Estudo realizado na Universidade de Brasília mostra que os professores brancos
representam 99 % do quadro das universidades públicas brasileira, país em que os
afro-descendentes representam 47% da população brasileira. Muito embora haja visíveis
avanços no controle de preconceitos e discriminações de raça,
particularmente após a Constituição de 1988, os ideais dos direitos
humanos e da cidadania estão longe de ser alcançados. O banco
de dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD), que utiliza o cálculo do Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH/PNUD) , assim como os dados provenientes da
Fundação João Pinheiro, permitem comparar as condições sociais
dos negros entre 175 países. O IDH dos brasileiros negros colocase na 107ª posição em 175 nações, equivalendo a El Salvador e
China, ao passo que os brancos brasileiros ocupam a 46ª posição
Princesa Isabel e D.Pedro Henrique
nesse mesmo conjunto de nações.
Nas estatísticas apresentadas pela Pesquisa Nacional Por Amostra de Domicílios - PNAD
2001, o rendimento médio familiar, per capita, dos negros de todo o Brasil, foi de 1,15
salários mínimos, ao passo que o mesmo índice, entre os brancos, foi de 2,64 salários
mínimos. A taxa bruta de escolaridade entre os negros brasileiros foi de 84% e a dos
brancos de 89%. A taxa de alfabetização das pessoas maiores de 15 anos também
apresentou variação positiva para o contingente branco (92,3%) - mais de 10 pontos
percentuais superior ao ocorrido entre os negros, cujo índice de alfabetização foi de
81,8%. Lamentavelmente, no que tange ao indicador da esperança de vida ao nascer
para o período 1990-1995, a esperança de vida ao nascer foi de 70 anos para os
brancos e de 64 anos para os negros.
Conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2001,
apenas 15,8% dos negros puderam concluir curso de graduação, enquanto entre
brancos esse índice atingiu 53,6%. No período entre 1992 e 2001, o número de
crianças e adolescentes negros no mercado de trabalho foi duas vezes maior do que o
de brancos, impedindo, obviamente, a ascensão social pela educação. Agrava-se a
condição dos brasileiros negros pelo insignificante acesso a cargos públicos com
poder de decisão. Nas eleições de 1999, apenas 15 parlamentares negros foram eleitos
entre as 513 cadeiras da Câmara do Brasil (2,8%).
Racismo como tema global
O conceito de direitos humanos tem sido apoiado por convenções, tratados e
ratificações. Em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada
pela Assembléia Geral da ONU e assinada pelo Brasil na mesma data, ainda sob
impacto das atrocidades cometidas durante a 2ª Guerra Mundial, comprometeu-se a
“promover os direitos humanos sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”. Esse
documento foi traduzido para 360 idiomas.
Como tema global, publicou-se a famosa “Convenção Internacional sobre a eliminação
de todas as formas de discriminação racial”, assinada pelo Brasil em 1966 e ratificada
em 1968, com decreto assinado em 1969. Nela se expressam as liberdades fundamentais
para todos, sem discriminação de raça, sexo, idioma ou religião. Um dos principais
objetivos dessa Convenção é criar um povo unido, sem classificar as pessoas em
função das raças ou das raças resultantes. Como aqui se sugere, é preciso estudar
cientificamente o que ocorreu com os negros no século XIX, durante a Monarquia, e
no século XX, na vigência da República. Só assim, e em termos do racismo brasileiro,
ainda vigente em certos redutos do existir brasileiro com suas omissões históricas,
preconceitos e discriminações, estaremos contribuindo para a igualdade dos direitos
humanos, dentro da teoria democrática contemporânea, expressa na Constituição
Cidadã de 1988.
Abraço à Redentora
Foi esse o objetivo da Princesa Isabel ao abolir a escravatura no dia 13 de maio de
1888, quando afirmou preferir perder o reino do que não libertar os escravos. Como
grande estadista, não desconhecia as conseqüências do ato que realizara. Ausente, o
Imperador enviou-lhe um telegrama com as palavras “Abraço à Redentora”.
Nas vésperas do centenário da Independência do Brasil, em 3
de setembro de 1921, o Decreto no. 4.120 do Presidente Epitácio
Pessoa, em ato de elevada justiça, revogou o banimento da
Família Real e autorizou a trasladação dos despojos de D. Pedro
II e D.Tereza Cristina . Estes chegaram ao Rio de Janeiro, em
janeiro de 1921, a bordo do couraçado São Paulo, para serem
depositados na Catedral de Petrópolis.
D. Isabel faleceu em novembro desse mesmo ano. Seus restos
mortais e os de seu marido, Conde D’Eu, foram transportados
Pouco antes de falecer
pelo Barroso, nau capitânea da esquadra brasileira, que aqui
chegou no dia 7 de julho de 1953.
Foram tempos difíceis. A Princesa Isabel conviveu com o predomínio agrário do
tempo e declínio dos escravagistas marginalizados pelo golpe fatal da Abolição.
Enfrentou a ideologia republicana dos adversários, a extinção da monarquia e as
tristezas do exílio.
Isabel Cristina Leopoldina Augusta Miguela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança e
Bourbon é um ícone dos preconceitos e das discriminações de gênero e de racismo
no Brasil, que a Constituição Cidadã de 1988 atenuou, mas não conseguiu ainda
eliminar.
oOo
Bibliografia
BARMAN, Roderick J., trad. de Luiz Antônio Oliveira Araújo, : Princesa Isabel do Brasil Gênero e poder no século XIX, São Paulo: Editora UNESP, 2005.
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CERQUEIRA , Bruno da Silva Antunes de (org.), D. Isabel I, a Redentora, Rio de
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SILVA, Alberto da Costa. A manilha e o libambo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
2002.
Racismo no Brasil: percepções da discriminação e do preconceito racial no século
XXI / organizadoras Gevenilda Santos e Maria Palmira da Silva – São Paulo. Editora
Fundação Perseu Abramo, 2005.
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ISABEL E O FIM DO IMPÉRIO Nelly Martins Ferreira Candeias