PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Alessandra Medeiros
PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA: A SAÍDA PARA A SAÍDA
Um estudo sobre pessoas que saíram da rua
DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL
São Paulo
2010
1
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Alessandra Medeiros
PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA: A SAÍDA PARA A SAÍDA
Um estudo sobre pessoas que saíram da rua
Tese apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para a obtenção do título de
DOUTORA em Serviço Social, sob a orientação da
Professora Doutora Mariangela Belfiore Wanderley.
DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL
São Paulo
2010
2
BANCA EXAMINADORA
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AGRADECIMENTOS
Difícil elencar todos os nomes que contribuíram para a concretização deste
processo de crescimento e aprendizagem acadêmica, profissional e pessoal. O
medo de esquecer traz a cautela da recuperação do caminho percorrido até aqui e,
mesmo assim, não me eximirá de cometer alguma falha.
Assim, de antemão, agradeço a todas as pessoas que me incentivaram a
ingressar no doutorado e, nesses
cinco anos, com palavras amigas e
reconfortantes, suportaram meus “altos e baixos”, me apoiando em muitos
momentos que pensei em desistir.
Dessa maneira, agradeço:
- a todos aqueles que sobrevivem nas ruas de São Paulo e que, diuturnamente, me
instigam a pensar e a agir;
- aos trabalhadores sociais que contribuem para a saída da situação de rua;
- àqueles que, com coragem e apoio, mudaram essa condição e, neste trabalho,
contribuem para a reflexão da saída da rua, com seus depoimentos;
- aos professores das disciplinas e atividades programadas cursadas neste período,
sobretudo pela contribuição na fase crucial de delimitação do objeto de estudo,
principalmente à professora Doutora Maria Lucia Carvalho da Silva, em Seminários
de Tese;
- à brilhante orientação e disponibilidade da professora Doutora Mariangela Belfiore
Wanderley, que, além de ser exemplo profissional, esteve presente contribuindo com
sua palavra amiga em momentos importantes de minha vida;
-
aos membros da Banca de Qualificação: professora Bader Sawaia, Camila
Giorgetti e Maria Lúcia Martinelli, pelas valiosas contribuições;
-
aos membros da Banca Examinadora, pela disponibilidade e avaliação deste
trabalho, que, antes de ser um produto, é resultado de um processo de
amadurecimento profissional e intelectual;
−
à CAPES e ao CNPq, que, em momentos diferentes, subsidiaram este estudo,
sem os quais não seria possível sua conclusão;
−
à Vania, secretária do Programa de Estudos Pós-graduados em Serviço Social; à
Kátia, secretária do Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais; à
4
Fátima, secretária do CEDPE;
- ao apoio de amigos, sempre presentes, mesmo às vezes distantes: Flávia Cristina
de Paula Gomes Pires, André Vieira, Beatriz Ramsthaler, Adriana Aleixo, Emanuel
Jones Xavier, Larri Viega, Cristiane Miller, Ana Cristina Mendes, Gabriel Tacco, Silvia
Carbone, Márcio Santiago, Valéria Gonelli, Nivaldo Costa, Carlos Eduardo Carneiro,
Juliana Reis, Adalgisa Pereira, e tantos outros;
- às minhas atuais chefes: Solange Rolo (pela paciência e apoio), Célia, Selma
Amaral, Sonia Ribeiro, Viviane Diniz, Viviane Delgado, especialmente Ana Paula
Roland Medeiros, também amiga.
- às minhas mais que companheiras e companheiros de trabalho, companheiras e
companheiros de luta: Eliane Nicoletti, Michelly Wiese, Malu Ventura, Rita Oliveira,
Sonia, Elaine Gass, Cecília Homem de Melo, Deise Oliveira, Edinael Rocha, Maria
Helena dos Santos, Milena Matos, Márcia Franzini, Anúncia, Fátima, Rosângela,
Edna, Lilian, Alessandra, Valéria, Paulo Nakazone, Sérgio Vieira e muitos outros
-
aos alunos, pela experiência de aprendizagem constante, especialmente:
Fernanda Vinco, Mayara Ramos Pires, Edna Maria Pereira, Flávio Souza, Jackson
Pereira, Felipe, Jayna, Monica, Vanessa Parra, Jô, Valéria Lelis, Valdice, Waldênia
Machado, Anabel, Regiane, Kelly, Simone e tantos outros.
- aos futuros assistentes sociais: Viviane Canadã, Solange, Dalva, Ellen, Kelda,
Vinícius, Fernanda e Daniela.
- aos meus pais, Alcides e Sandra, pela compreensão de minha ausência;
especialmente minha mãe, que sempre esteve presente, separando reportagens e
discutindo a temática comigo. Aos meus companheirinhos de estimação, presentes
em todos os momentos: Pedrinho, Mu e Loro.
- a Valmir Mendes dos Santos Junior, que me inspira a cada dia e me ajuda a querer
ser uma pessoa melhor.
Muito obrigada a todos!
5
“Vocês, artistas, que fazem teatro em grandes casas,
sob a luz de sóis postiços,
ante a platéia em silêncio,
observem de vez em quando esse teatro que tem na rua o seu palco:
cotidiano, multifário, inglório,
mas tão vivido e terrestre, feito da vida em comum dos homens
- esse teatro que tem na rua o seu palco. [...]
Adiante, um bêbado imita o padre no sermão abrindo aos pobres as ricas recompensas
do Paraíso.
Tão sério e engraçado, e tão digno esse teatro!
Não são como papagaios e macacos que representam por representar,
Indiferentes ao que estão representando, apenas para dizerem que sabem: têm ao
contrário,
propósitos em vista.
Oxalá, possam vocês, artistas maiores, imitadores exímios,
não ficar nisso abaixo deles! Não se afastem,
por mais que se aperfeiçoem na arte,
desse teatro de todos os dias
que tem na rua o seu palco! [...]
Nosso intérprete, no canto da rua,
Não é nenhum sonâmbulo a quem ninguém se deva dirigir;
Não é nenhum supremo sacerdote em seu divino ofício...
Podem interrompê-lo a qualquer hora,
e ele responde com toda a calma, e depois prossegue com a sua exibição.
Não digam:”Esse homem não é artista!” – Erguendo tal barreira entre vocês e o mundo,
ficarão vocês fora do mundo: não lhe dão o título de artista, e ele a vocês talvez não dê
o título de homens.... E essa restrição dele será mais grave ainda. Digam, antes: é um
artista, porque é um ser humano.
Podemos fazer tudo o que ele faz e sentirmo-nos muito honrados, pois o que nós
fazemos é algo de humano e universal que a toda hora sucede no burburinho das ruas,
quase tão caro aos homens como alimentar-se e respirar!
[...] Fiquemos, pois, entendidos: ainda quando aperfeiçoem o que faz o homem do canto
da rua, vocês ainda estarão fazendo menos do que ele, se ao teatro de vocês derem
menos sentido, com motivos menores, participando menos da vida do público e com
menos serventia.”
(Sobre o teatro de todos os dias – um aviso aos atores, Bertolt Brecht)
6
A todos aqueles que ainda moram nas ruas de São
Paulo e, principalmente, àqueles que, como um
artista, sobrevivem e não perdem a capacidade de
sonhar....
7
RESUMO
O presente trabalho, “Pessoas em situação de rua: a saída para a saída”, de autoria de
Alessandra Medeiros, apresenta um estudo sobre pessoas que saíram da rua.
Partindo do objetivo geral de conhecer e identificar quais são os fatores que contribuem
para a saída da situação de rua, visa responder a pergunta central desta tese: quais
fatores objetivos e subjetivos contribuem para o processo de saída da rua?
Dessa maneira, os objetivos específicos desta pesquisa foram:
Compreender qual foi o significado da saída dessa condição apontado pelos
entrevistados e em que medida a política de assistência social vem colaborando nesse
processo;
Propor princípios metodológicos que contribuam no atendimento de adultos em situação
de rua, considerando a bibliografia estudada e o olhar daqueles que saíram dessa
condição.
Este tema justifica-se pelo crescimento do número de pessoas vivendo nessas
condições, principalmente nas grandes metrópoles e, ainda, pela pouca produção sobre
a saída da rua, uma vez que a maioria dos estudos pesquisados discute o processo que
leva à situação de rua e não à saída dela .
Assim, foram testadas as seguintes hipóteses:
• Assim como existem momentos/ fatos (processos) que culminam na “situação de rua”,
existem momentos/fatos/estímulos (processos) que incentivam a saída da “situação de
rua”;
• Esses momentos podem ser estimulados, de acordo com a metodologia de trabalho
adotada no atendimento a esse público.
Para tanto, foram realizados dois levantamentos. O primeiro, por meio de entrevistas
com trabalhadores sociais de alguns serviços que atendem essa
população; e, o
segundo, em que foram coletados depoimentos de oito pessoas que saíram da situação
de rua, sendo esta uma pesquisa qualitativa.
Por tratar-se de um estudo qualitativo, não passível de generalizações, o presente
trabalho apresenta a percepção daqueles que saíram da situação sobre o processo que
vivenciaram a fim de contribuir para a construção da política pública a esse segmento.
Palavras-chave: pessoas em situação de rua, trabalhadores sociais, assistência social.
8
ABSTRACT
This paper provides an overview of people who have overcome homelessness. It also
seeks to identify and analyze factors – of both objective and subjective order - that might
have effectively contributed to that outcome.
The purpose of this study was, in the first place, to hear some people who have
experienced the process mentioned before. By doing so, our aim was not only to
comprehend their perception on what happened to them, but also to verify if nowadays
social assistance policy can claim any impact on those events. Secondly, we tried to
propose methodological principles - based on those perceptions and also with the
support of literature that has already been produced on that theme - which might be
applied on programs devised for homeless adults.
This theme justifies itself by the growing number of people living in those conditions,
especially in large cities ; and also because most discussions have their focus on the
reasons that could lead to homelessness, ignoring the factors that might help succesfully
overcome it.
Thus, the following hypotheses were tested:
• As there are moments / events (processes) that might culminate in the homelessness
phenomenon, are there moments / events / stimuli (processes) that encourage people to
leave the streets?
• If so, can such moments be stimulated by the methodology apllied to social
assistance ?
In order to address those questions, two surveys were conducted: the first interwied
some social workers who deal with that population; the latter is a qualitative research that
brings
statements
from
eight
people
who
have
overcome
homelessness.
Although not susceptible to generalization – due to its nature -, this paper believes that
the perceptions of those who have overcome homelessness should be regarded as a
major contribution to further development of public policy.
Keywords: homelessness, social workers, social assistance
9
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO......................................................................................................12
CAPÍTULO I - EXCLUSÃO, POBREZA E PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA
EM SÃO PAULO – COMPREENDENDO O UNIVERSO
DA PESQUISA...................................................................................20
1.1 A CONCEPÇÃO DE POBREZA/EXCLUSÃO SOCIAL NA BIBLIOGRAFIA
FRANCESA .................................................................................................24
1.2 A CONCEPÇÃO DE POBREZA/EXCLUSÃO SOCIAL NA BIBLIOGRAFIA
BRASILEIRA ...............................................................................................34
1.3 O PROCESSO DE EXCLUSÃO E A ESPECIFICIDADE DA CIDADE DE
SÃO PAULO: UMA REFLEXÃO SOBRE A POBREZA URBANA................38
1.3.1 São Paulo: dados gerais................................................................44
1.4 PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA...........................................................56
CAPÍTULO II - PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA: RESGATE HISTÓRICO
DO ATENDIMENTO A ESSE PÚBLICO EM SÃO PAULO E
O RESPALDO LEGAL EXISTENTE..................................................78
2.1 O HISTÓRICO DO ATENDIMENTO ÀS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA
NA CIDADE DE SÃO PAULO E SUA RELAÇÃO COM A POLÍTICA
DE ASSISTÊNCIA SOCIAL.........................................................................79
2.2 A POLÍTICA DE ATENDIMENTO ÀS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA
NA CIDADE DE SÃO PAULO: 2000-2010...................................................93
2.2.1 Entre 2000 e 2004: a padronização dos serviços de atendimento
às pessoas em situação de rua....................................................94
2.2.2 Entre 2005 e os dias atuais...........................................................97
2.3 SERVIÇOS DA REDE SOCIOASSISTENCIAL PESQUISADOS..............106
2.3.1 Limites e possibilidades da função exercida.............................110
2.3.2 Opinião sobre o trabalho das Casas de Acolhida.....................115
2.3.3 Concepção do trabalho realizado e do público atendido.........117
10
CAPÍTULO III - SAÍDAS PARA A SAÍDA DA SITUAÇÃO DE RUA.......................125
3.1 APRESENTANDO OS SUJEITOS DA PESQUISA....................................128
3.2 OS FATORES SUBJETIVOS E OBJETIVOS QUE INCENTIVARAM O
PROCESSO DE SAÍDA DA RUA .............................................................132
3.2.1 Os fatores objetivos apontados nos depoimentos...................133
3.2.2 Os fatores subjetivos apontados nos depoimentos.................141
3.3 A AVALIAÇÃO DA REDE SOCIOASSISTENCIAL APONTADA NOS
DEPOIMENTOS........................................................................................151
3.4 APROXIMAÇÕES METODOLÓGICAS.....................................................165
3.4.1 Fatores estruturais.......................................................................165
3.4.2 Pressupostos ao atendimento....................................................167
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................175
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................180
11
LISTA DE TABELAS E MAPAS
Tabela 01 - São Paulo - Território e dados de população...........................................46
Tabela 02 - São Paulo - qualidade de vida.................................................................47
Tabela 03 - Dados comparativos São Paulo e Região Metropolitana........................49
Tabela 04 - Comparação de indicadores por região – São Paulo..............................54
Tabela 05 - Esquema das situações de permanência na rua....................................58
Tabela 06 - Distribuição de vagas – serviços durante a noite..................................103
Tabela 07 - Distribuição de vagas – serviços durante o dia.....................................103
Tabela 08 - Vagas noturnas, segundo a Relação dos Serviços –
Proteção Especial..................................................................................104
Tabela 09 - Vagas diurnas, segundo a Relação dos Serviços –
Proteção Especial..................................................................................104
Tabela 10 - Pessoas em situação de rua na região Central (Subprefeitura Sé)......105
Tabela 11 - Quanto ao sexo dos funcionários pesquisados.....................................106
Tabela 12 - Quanto à escolaridade dos funcionários pesquisados..........................107
Tabela 13 - Quanto ao tempo de trabalho no local da entrevista dos funcionários
Pesquisados.........................................................................................108
Tabela 14 - Quanto ao tempo de trabalho com pessoas em situação de rua dos
funcionários pesquisados......................................................................108
Mapa 01 - Mapa da Vulnerabilidade Social................................................................53
Mapa 02 - Total de pessoas em situação de rua (2000) e distribuição espacial........69
12
APRESENTAÇÃO
[...] o primeiro pressuposto de toda a existência humana e,
portanto, de toda a história, é que os homens devem estar em
condições de viver para poder “fazer história”. Mas para viver é
preciso comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisas
mais [...]. (MARX, ENGELS, 1987:39)
O presente estudo aborda as condições necessárias para que indivíduos
que vivem em situação de rua possam sair dessa condição.
A expressão
“algumas coisas mais”, citada por Marx e Engels, reúne condicionantes que, isolados
ou somados, conferem estímulos à saída da situação de rua.
O primeiro fato histórico é, portanto, a produção dos meios que
permitem satisfazer essas necessidades, a produção da
própria vida material; e isso mesmo constitui um fato histórico,
uma condição fundamental de toda a história, que se deve,
ainda hoje como há milhares de anos, preencher dia a dia, hora
a hora, simplesmente para manter os homens com vida [...];
uma vez satisfeita a primeira necessidade, a ação de satisfazêla e o instrumento já adquirido com essa satisfação levam a
novas necessidades – e essa produção de novas necessidades
é o primeiro ato histórico. (MARX, ENGELS, 2002:21-22)
Quais as necessidades supridas nas ruas que levam pessoas a viverem
nessa situação e, a partir de qual momento, buscam satisfazer novas necessidades
fora dela? O que impulsionou a busca de uma nova (outra) alternativa?
O caminho percorrido para tentar definir alguns dos fatores que contribuem
para a saída da condição de rua deu-se por meio de depoimentos daqueles que
superaram as adversidades da rua e hoje encontram-se em outra condição.
Assim, o retorno à família, em função da retomada de um vínculo, a garantia
de um emprego e/ou moradia, o acesso viabilizado à educação, são apenas alguns
exemplos do que aqui chamaremos de “saídas para a saída da situação de rua”.
Vale recuperar a trajetória percorrida até a delimitação do objeto de pesquisa
acima apresentado.
Esse trabalho é resultado da inserção em um “universo familiar de
problemas”, que consistiu em “[...] leituras, cursos, participação em seminários e
outras atividades [...]” (SEVERINO, 2002:157) que culminou na problematização
aqui exposta.
13
Destacamos a preocupação em garantir, nesta tese, as características
qualitativas exigidas nos trabalhos realizados nos cursos de pós-graduação, como
aponta Severino (2002:145) “[...] a necessária procedência de um trabalho de
pesquisa e de reflexão que seja pessoal, autônomo, criativo e rigoroso”.
Nesse sentido, este trabalho cumpre as exigências acima, já que se trata de
um trabalho pessoal, no qual “[...] qualquer pesquisa, em qualquer nível, exige do
pesquisador um envolvimento tal que seu objetivo de investigação passa a fazer
parte de sua vida” (CINTRA apud SEVERINO, 2002:145). É também autônomo, pois
“[...] é fruto de um esforço do próprio pesquisador [...] [na] capacidade de estabelecer
um inter-relacionamento enriquecedor, portanto dialético, com outros pesquisadores
[...]” (SEVERINO, 2002:146).
[...] não se trata mais de apenas aprender, de apropriar-se da
ciência acumulada, mas de colaborar no desenvolvimento da
ciência, de fazer avançar este conhecimento aplicando-se o
instrumental da ciência aos objetos e situações, buscando-se
seu desvendamento e sua explicação. (SEVERINO, 2002:148)
Dessa maneira, desvendar os fatores determinantes que contribuem para a
saída da situação de rua é o eixo temático norteador desta pesquisa. Para tanto,
foram utilizados alguns autores que embasaram este estudo, dentre os quais
destacamos Serge Paugam e Camila Giorgetti.
Permito-me realizar uma paráfrase, elaborada a partir da leitura do livro
“Produzir sua obra – O momento da tese”, de Remi Hess. Logo na apresentação, o
autor escreve “este livro tem uma história e essa história necessita ser contada”
(HESS, 2005:11), tomo a liberdade para dizer, essa tese tem uma história, e ela
necessita ser contada.
Desvendar o trabalho socioeducativo que poderia ser realizado na própria
rua é tema de interesse desde meus primeiros trabalhos desenvolvidos como
assistente social, ou ainda como educadora social, há mais de 10 anos. Nesse
sentido, o estudo dos livros
“Pedagogia da Autonomia”, de Paulo Freire, e
“Pedagogia da Presença”, de Antônio Carlos Gomes da Costa; a metodologia de
trabalho
empreendida
pela
Fundação
Projeto Travessia,
com
crianças
e
adolescentes “de e na rua”; e a tentativa de experimentar essas discussões no
14
atendimento à população adulta, como assistente social de um albergue, foram
sempre instigantes para mim.
Vale destacar que essa temática permeou minha atuação profissional, direta
ou indiretamente, ao longo de todo esse tempo, mas foi a partir de 2005, ao
ingressar na Proteção Especial de Adultos e Idosos, da Secretaria Municipal de
Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), da cidade de São Paulo, que a
trajetória desta pesquisa começou a ser esboçada.
Ao participar da equipe que deveria normatizar e monitorar os serviços a
esse público, como também propor metodologia de intervenção, acompanhar o setor
responsável pelas abordagens nas ruas, vários questionamentos foram surgindo. O
primeiro a nortear esta pesquisa, inicialmente, foi: por que trabalhadores sociais que
atuam junto a esse público manifestam sentimentos frustrados e descrentes quanto
à saída da situação de rua de pessoas adultas? Esse sentimento não condicionaria
uma prática pouco pedagógica, influenciando de maneira negativa o atendimento
desenvolvido?
Frases comuns que escutei em capacitações ou visitas a albergues
afirmavam: “trabalhar com esse público é secar gelo, empacotar fumaça”, “com
criança e adolescente ainda se dá jeito, agora com adulto não dá, eles já não
aprendem mais nada”, “Aqui, de 100, só se salva um”, entre outras colocações.
Esses comentários foram me motivando cada vez mais a pensar e estudar a
saída para a saída da rua. Por que algumas pessoas saem e outras não? O que
diferencia a trajetória de uma e outra? De alguma maneira, eu queria provar que,
mesmo diante de toda a complexidade do assunto, haveria algo a ser feito. Essa
então seria a “tese” que eu gostaria de levantar e provar. Como Hess (2005:27)
esclarece, “defender uma tese significa defender um ponto de vista, e isso implica,
eventualmente, se inscrever em uma luta de vida ou morte”1. Essa tornou-se a
minha luta.
Dessa maneira, a escolha pela temática e a elaboração desta pesquisa teve
como premissa um “universo epistemológico e político” (SEVERINO, 2002:159).
Partiu do cotidiano profissional e contou com a observação como primeira técnica de
coleta de dados.
1
Aqui o autor faz uma referência ao conceito de “luta moral” desenvolvido por Hegel, quando o
enfrentamento físico da luta de vida ou morte supõe uma superação. (HESS, 2005:27)
15
A observação constitui elemento fundamental para a pesquisa.
Desde a formulação do problema, passando pela construção
das hipóteses, coleta, análise e interpretação dos dados, a
observação desempenha papel imprescindível no processo de
pesquisa. (GIL, 1999:110)
A partir da observação atenta e constante, algumas premissas foram
levantadas. Há vários estudos sobre os motivos que levam para as ruas e as
características desse público, mas pouco se tem publicado sobre a saída ou o
processo de saída da rua. Essa primeira premissa já torna o presente estudo de
grande relevância.
[...] o momento da tese é, antes de tudo, um momento de
reflexão. É uma tentativa de elaboração de um discurso
construído, que se apóia sobre uma certa erudição em relação
a trabalhos anteriores que trataram, em graus diferentes, da
problemática na qual a gente se inscreve. (HESS, 2005:29)
Assim, esta pesquisa apresenta como temática central o processo de saída
da rua. Segundo Parra Filho e Almeida (1996:60),
O tema é o assunto, ou seja, a questão vital da pesquisa. Ele
pode ser identificado a partir de uma necessidade pessoal ou
externamente, da curiosidade do pesquisador ou do
coordenador da pesquisa ou dos desafios da própria teoria ou
das propostas de outros trabalhos científicos.
Outra premissa construída a partir da observação e dos levantamentos dos
primeiros dados, tanto bibliográficos quanto empíricos, é que se trata de um
processo que requer um conjunto de fatores, sendo alguns subjetivos e outros
objetivos.
De acordo com Parra Filho e Almeida (1996:62), um objetivo geral “possui
como finalidade dar uma visão geral do assunto da pesquisa. Mostrar o significado
desse assunto em relação ao conhecimento do conteúdo mais abrangente e está
relacionado à apresentação do tema”.
A partir disso, esta pesquisa teve como objetivo geral conhecer e identificar
quais são os fatores que contribuem para a saída da situação de rua.
Objetivos específicos são, segundo Amado e Bervian (2002:83),
16
A definição de objetivos específicos nos leva a um
aprofundamento das intenções expressas nos objetivos gerais.
O estudante se propõe a mapear, identificar, levantar e
diagnosticar o perfil ou historiar determinado assunto específico
dentro de um tema com que finalidade? Ele pode com isso
querer apontar novas relações para o mesmo problema,
identificar novos aspectos, ou utilizar os conhecimentos
adquiridos com a pesquisa para instrumentalizar sua prática
profissional ou intervir em determinada realidade onde ocorre o
problema.
Os objetivos específicos desta pesquisa são:
● Compreender qual foi o significado da saída dessa condição apontado pelos
entrevistados e em que medida a política de assistência social vem
colaborando nesse processo;
● Propor princípios metodológicos que contribuam no atendimento de adultos
em situação de rua, considerando a bibliografia estudada e o olhar daqueles
que saíram dessa condição.
Dessa forma, os objetivos descritos acima visam responder a pergunta
central desta pesquisa:
Quais fatores objetivos e subjetivos contribuem
para o processo de saída da rua?
Para responder a essa pergunta, além do levantamento bibliográfico, foram
aplicados questionários com trabalhadores sociais dessa área e colhidos os
depoimentos daqueles que já saíram dessa situação para verificar as seguintes
hipóteses:
● Assim como existem momentos/ fatos (processos) que culminam na “situação
de rua”, existem momentos/fatos/estímulos (processos) que incentivam a saída
da “situação de rua”;
● Esses momentos podem ser estimulados, de acordo com a metodologia de
trabalho adotada no atendimento a esse público.
17
Como técnica de coleta de dados, optamos pela pesquisa qualitativa por
meio da história oral que “[...] é um instrumento de pesquisa que privilegia a coleta
de informações contidas na vida pessoal de um ou vários informantes”, como explica
Chizzotti (2001:95). “É uma técnica que permite recuperar valores, comportamentos
não quantificáveis. A história de vida reflete o comportamento do indivíduo dentro de
uma coletividade, ou grupo [...]”, como esclarece Rojas (1999:93).
Nesse sentido, foram colhidos depoimentos pessoais, já que “[...] se
concentram ou sobre um lapso de tempo mais reduzido [...], ou sobre uma série de
acontecimentos marcantes que permita aprofundar informações e aumentar os
detalhes a respeito de algo que foi bastante delimitado” (QUEIROZ, 1991:60).
A escolha dessa abordagem deu-se pelo “contato direto com o sujeito da
pesquisa”, requisito para essa metodologia de pesquisa, como esclarece Martinelli
(1999:22).
[...] podemos afirmar que, nessa metodologia de pesquisa, a
realidade do sujeito é conhecida a partir dos significados que
por ele são atribuídos. [...] Não se trata, portanto, de uma
pesquisa com um grande número de sujeitos, pois é preciso
aprofundar o conhecimento em relação àquele sujeito que
estamos dialogando. (MARTINELLI, 1999:23)
Dessa forma, “[...] não é o número de pessoas que vai prestar a informação,
mas o significado que esses sujeitos têm em função do que estamos buscando com
a pesquisa” (MARTINELLI, 1999:24).
Destacamos ainda que
A pesquisa qualitativa envolve o estudo do uso e a coleta de
uma variedade de materiais empíricos – estudos de caso;
experiência pessoal; introspecção; história de vida; entrevistas;
artefatos; textos e produções culturais; textos observacionais,
históricos, interativos e visuais – que descrevem momentos e
significados rotineiros e problemáticos na vida dos indivíduos.
(DENZIN, LINCOLN, 2006:17)
Finalmente, esclarecemos que os depoimentos apresentados neste trabalho
foram colhidos de acordo com as técnicas aqui descritas, sendo fruto de um roteiro
dirigido, de acordo com os interesses aqui delimitados, por meio de entrevistas
curtas, não passíveis de generalizações, mas que proporcionam a reflexão e alguns
18
caminhos possíveis de serem adotados visando à melhoria da qualidade de vida das
pessoas que vivem em situação de rua.
Ressaltamos ainda que este trabalho foi redigido conforme o Novo Acordo
Ortográfico e que a transcrição dos depoimentos não se preocupou em retextualizálos à Norma Padrão da Língua Portuguesa, mas apenas pontuá-los para orientar a
leitura.
Assim esta tese divide-se em três capítulos: no primeiro contextualizamos o
universo da pesquisa, trazendo os principais conceitos inerentes à problemática
estudada, ou seja, o entendimento sobre a exclusão social que vive essa população,
como também compomos o cenário de quem vive nessa condição, respondendo
quem são e como vivem as pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo.
No segundo capítulo, apresentamos um resgate histórico do atendimento a
esse público em São Paulo e o respaldo legal existente, bem como o resultado de
um levantamento realizado junto a alguns serviços que prestam atendimento direto a
essa população com o objetivo de descrever o cotidiano vivido por esses
profissionais e, ainda, os desafios, dificuldades e características do serviço prestado.
No terceiro capítulo, apresentamos os resultados obtidos por meio dos
depoimentos daqueles que saíram da rua e explicamos quais são os fatores
subjetivos e objetivos analisados a partir da fala daqueles que saíram dessa
situação.
Este capítulo também apresenta alguns princípios metodológicos no
atendimento a pessoas adultas em situação de rua, sugeridos a partir do estudo aqui
realizado, uma vez que “quando escrevemos, não podemos nos impedir de pensar
que o nosso trabalho pode ser útil a outros” (HESS, 2005:69).
Desejamos que esse trabalho seja útil aos trabalhadores sociais que atuam
com pessoas em situação de rua, um instrumento de reflexão e, quiçá, de
transformação de práticas.
Hess (2005:68) afirma que escrever “é também um trabalho de construção
de vestígios” e nos desperta o questionamento sobre “para quem queremos produzir
esses vestígios?”
19
Se um estudante percebe que o trabalho, no qual ele está
engajado, tem sentido para os próximos, isso é uma fonte de
motivação importante. Aqui, a idéia de próximos é menos a de
uma família biológica e mais de um grupo de pertencimento
intelectual. Esse grupo pode ser um “colégio invisível”,
composto por pessoas em quem pensamos ao escrever, mas
que obrigatoriamente não se reconhecem entre eles: colegas
de trabalho, estudantes ou pesquisadores. Esse colégio
invisível, diferente para cada mestrando ou doutorando,
representa o destinatário de nosso trabalho de escrita [...].
(HESS, 2005:69)
Que os vestígios aqui apontados fomentem a reflexão dos que trabalham
nessa área e inspirem a luta por melhores condições de vida daqueles que, hoje, se
encontram em situação de rua.
20
CAPÍTULO I - EXCLUSÃO, POBREZA E PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA EM
SÃO PAULO – COMPREENDENDO O UNIVERSO DA PESQUISA
Ó prazer de começar! Ó alvorada!
A primeira grama, quando parece esquecido.
O que é o verde! Ó primeira página do livro.
Tão esperado, surpreendente! Leia.
Devagar, muito rápido.
A parte não lida ficará pequena! E o primeiro jato d’água
no rosto suado! A camisa
Fresca! Ó começo do amor! Olhar que desvia!
Ó começo do trabalho! Colocar óleo
Na máquina fria! Primeiro movimento e
Primeiro ruído do motor que pega.
A primeira fumaça enchendo os pulmões!
E você, pensamento novo!
Bertolt Brecht
21
Ao pensarmos nas pessoas que utilizam as ruas como espaço de
sobrevivência e moradia, fatalmente, estabelecemos a relação direta com o conceito
de exclusão social, uma vez que é a expressão mais adequada para adjetivar o que
presenciamos cotidianamente nas ruas, principalmente nas grandes metrópoles.
Por essa razão, este primeiro capítulo tem como objetivo caracterizar o
universo teórico desta pesquisa, ou seja, apresentar os principais conceitos
adotados para a compreensão do universo deste estudo: pessoas que vivem nas
ruas na cidade de São Paulo.
Para compreender o processo que leva uma pessoa a viver nas ruas,
caracterizando-a como um “excluído social”, tornam-se necessários alguns
esclarecimentos preliminares. Um primeiro ponto a ser frisado é a preocupação
deste trabalho em não responsabilizar o indivíduo pela situação em que vive, em
razão de representar o resultado de uma situação excludente, que se configura
como consequência de um perverso sistema capitalista, neoliberal, que, além de
uma injusta distribuição de renda, desigualando oportunidades de acesso a bens,
também não garante a universalidade ao acesso e à garantia da efetivação de
direitos básicos para uma vida digna. Neste contexto, pessoas vivem nas ruas e
escancaram uma situação-limite, chamando a atenção de muitos de nós,
diuturnamente.
Tão próximos e tão visíveis - mas, ao mesmo tempo, tão
distantes e tão invisíveis. É como se fizessem parte de uma
outra nação, tivessem diferentes códigos, costumes, línguas.
Amedrontam mais por serem tão diferentes e tão próximos,
mesclando a visibilidade com a invisibilidade. A exclusão se
presta como uma linha, em todo o “nosso” território, criando
fronteiras imaginárias. (CHIAVERINI, 2007:09)
Visando facilitar a compreensão e o entendimento acerca do que leva uma
pessoa
a
viver
nessa
condição,
recorremos
aos
conceitos
de
pobreza,
vulnerabilidade social e, ainda, exclusão social para descrever e qualificar a situação
de viver nas ruas. Nesse sentido, a pesquisa bibliográfica sobre esses conceitos
demonstra quão ambíguos, imprecisos e frágeis podem se tornar tais explicações,
dependendo dos referenciais teóricos adotados ou ainda a própria “saturação da
utilização indiscriminada dessa noção” (WANDERLEY, 2007:17).
22
Entre as representações da pobreza, é possível estudar, por
exemplo, o modo como os indivíduos de um país ou de uma
região explicam esse fenômeno. Algumas pesquisas realizadas
recentemente na Europa distinguiram dois grandes tipos de
explicação: pela preguiça e a explicação pela injustiça. A
primeira remete a uma concepção moral fundada no sentido do
dever e na ética do trabalho. Segundo essa ótica, cada
indivíduo é responsável por si mesmo e somente sua coragem
pode evitar que ele conheça a pobreza. A explicação de
pobreza pela injustiça remete, ao contrário, a uma concepção
mais global da sociedade. Neste espírito, os poderes públicos
têm um dever: o de ajudar os pobres no sentido de conquistar
uma maior justiça social. Assim, as explicações pela preguiça e
pela injustiça correspondem a opiniões contrastadas cujo
sentido ideológico e político, dependem de cada um.
(GIORGETTI, 2006:9-10)
Como Giorgetti (2006) esclarece acima, as explicações acerca de conceitos
como o de pobreza assinalam posicionamentos políticos e ideológicos. Mesmo com
uma realidade bem diferente da européia, no Brasil, explicar a pobreza não é tarefa
fácil. Dessa maneira, ressaltamos a preocupação em garantir, nesta pesquisa, a
questão da pobreza e da exclusão social por meio de uma compreensão mais global
dos processos vividos e não como uma escolha individualizada, ou seja, a
explicação pela injustiça social.
Outra preocupação, nesta conceituação, é valer-se de uma característica em
detrimento das demais, como exemplifica Sawaia (2007:07) quando aponta a
existência de
[...] análises centradas no econômico, que abordam a exclusão
como sinônimo de pobreza, e as centradas no social, que
privilegiam o conceito de discriminação, minimizando o escopo
analítico fundamental da exclusão, que é o da injustiça social.
A dificuldade em conceituar o termo exclusão justifica-se pela recorrência da
temática na atualidade e, ao mesmo tempo, a necessidade de explicação do
crescente número de pessoas vivendo em condições indignas.
Exclusão é o tema da atualidade, usado hegemonicamente nas
diferentes áreas do conhecimento, mas pouco preciso e dúbio
do ponto de vista ideológico. Conceito que permite usos
retóricos de diferentes qualidades, desde a concepção de
desigualdade como resultante de deficiência ou inadaptação
individual, falta de qualquer coisa, um sinônimo do sufixo sem
23
(less), até a de injustiça e exploração social. (SAWAIA,
2007:07)
Nesta pesquisa, trabalharemos na perspectiva da exclusão como “[...]
processo complexo e multifacetado, uma configuração de dimensões materiais,
políticas, relacionais e subjetivas” (SAWAIA, 2007:09). No entanto, ter essa
compreensão de exclusão social ainda não nos possibilita a total compreensão de
sua relação e a qualificação quando falamos daqueles que vivem nas ruas.
Wanderley (2007:16) destaca que “[...] é mais precisamente a partir dos anos
90 que uma nova noção – a de exclusão – vai protagonizar o debate intelectual e
político” para o entendimento dos problemas sociais que, historicamente,
atravessam séculos. A autora ainda esclarece que a invenção dessa noção é
atribuída a René Lenoir, em 1974, e que, embora possuísse teses que emanassem
do pensamento liberal, contribuiu para a análise da concepção da exclusão
enquanto fenômeno de ordem social e não mais individual “[...] cuja origem deveria
ser buscada nos princípios mesmos do funcionamento das sociedades modernas”.
Esse deslocamento da análise individual para a social na explicação da
exclusão foi um avanço também na compreensão da situação de rua, que, durante
muito tempo, foi explicada como vadiagem ou malandragem, culpabilizando-se o
indivíduo por essa condição, como veremos adiante.
No Brasil “[...] a noção de exclusão social aparece na segunda metade dos
anos 80 [...]” (WANDERLEY, 2007:20) com a discussão de Hélio Jaguaribe e
importantes trabalhos como o Mapa de Exclusão/Inclusão na cidade de São Paulo,
de Aldaíza Sposatti, em 1996.
Lavinas (2003:02) afirma:
[...] falar de exclusão social é tomar um registro mais amplo do
que o da carência ou do déficit de renda para informar o debate
da pobreza. É transitar do universo restrito do não atendimento
das necessidades básicas e vitais para o espaço da eqüidade,
da emancipação e do pertencimento.
Visando complementar o debate aqui empreendido acerca dos conceitos de
exclusão, pobreza e vulnerabilidade social, recorreremos a referências francesas,
destacando o conceito de “desqualificação” a partir da análise de Paugam e de
“desfiliação” de Robert Castel e outros autores. Salientamos que, embora esses
24
conceitos tenham sido cunhados na sociedade francesa, bem diferente da brasileira,
eles
podem contribuir na compreensão da análise do processo de pobreza e
exclusão vivenciado no Brasil.
A escolha pela bibliografia francesa como suporte teórico para este trabalho
justifica-se pela concepção dos autores dessa nacionalidade na compreensão da
exclusão social e vulnerabilidade social como responsabilidade do Estado (e não do
indivíduo). Esse esclarecimento está presente na recente publicação de Lúcio
Kowarick (2009), que apresenta um estudo sobre a questão da pobreza e da
marginalização nas sociedades americana e francesa, e sobre a vulnerabilidade no
Brasil. Diferente dos americanos, que discutem a culpa ou não do indivíduo, na
França “[...] a vulnerabilidade massiva é de responsabilidade do Estado”
(KOWARICK, 2009:48).
1.1 A CONCEPÇÃO DE POBREZA/EXCLUSÃO SOCIAL NA BIBLIOGRAFIA
FRANCESA
Maura Pardini Véras esclarece, no prefácio do livro “Desqualificação Social ensaio sobre a nova pobreza” (PAUGAM, 2003:14-15), que:
[...] o conceito de exclusão permanece até hoje amplo, difuso,
implícito à questão das desigualdades sociais; continua sendo
um motivo de angústia, demandando tanto pesquisas
científicas quanto soluções ou, em outros termos, modos de
intervenção
que
realmente
auxiliem
os
julgados
desfavorecidos.
Segundo Véras,
[...] Paugam apresenta três idéias que se associam ao conceito
de exclusão: a noção de trajetória, ou seja, de que há um
processo que deve ser visto longitudinalmente, o que permite
apreender o percurso temporal de indivíduos em confronto com
o ambiente mais ou menos permeável; em segundo lugar, o
conceito de identidade, positiva ou negativa, de crise e de
construção dessa identidade; e o aspecto da territorialidade, ou
seja, a base espacial que abriga processos excludentes,
incluindo a segregação. (PAUGAM, 2003:15)
[...] nas sociedades modernas, a pobreza não é somente o
estado de uma pessoa que carece de bens materiais; ela
25
corresponde, igualmente, a um status social específico, inferior
e desvalorizado, que marca profundamente a identidade de
todos os que vivem essa experiência. O pobre sempre foi
portador de uma condição humilhante [...]. (PAUGAM, 2003:45)
Destacamos da definição de Paugam, o processo (trajetória), a construção
da identidade e a territorialidade (segregação), que complementam o conceito de
desqualificação. Paugam (2003) contribui também com este estudo na medida em
que estabelece a relação dos indivíduos em estado de privação e a assistência
pública.
De acordo com pesquisas desenvolvidas pelo autor na Europa,
o conceito de desqualificação social permite compreender
como indivíduos em estado de privação (não apenas material)
estão relacionados aos Serviços de Assistência Pública. Em
abordagem tipológica, Paugam distingue diferentes tipos: os
assistidos (que denotam dependência dos serviços), os
fragilizados (que guardam ainda distância dos Serviços) e os
marginalizados (que rompem com os vínculos sociais). Assim,
as políticas sociais cumprem o papel de “integrar” os assistidos,
mas podem também contribuir para a estigmatização dessas
pessoas e pesar na construção de identidades. (VÉRAS in
PAUGAM, 2003:15)
Assistidos, fragilizados e marginalizados são classificações estabelecidas
pelo autor na relação existente entre os indivíduos em estado de privação e uma
analogia realizada de acordo com a utilização dos serviços públicos.
De acordo com a tipologia acima descrita, podemos arriscar classificar as
pessoas em situação de rua já como sendo marginalizados nesse processo de
desqualificação social, uma vez que já romperam vínculos sociais, impossibilitando
até que recorram à assistência pública. No entanto, o grupo daqueles que vivem nas
ruas não é homogêneo, ou seja, nesse grande grupo de pessoas, também
encontramos aqueles que utilizam os albergues (centros de acolhida), classificados
por Paugam como assistidos, já pertencendo à rede de atendimento há anos e
também aqueles chegados recentemente à situação de rua e que recusam
atendimento (fragilizados).
Vale ainda levantar a questão de como a política social brasileira responde
às necessidades daqueles que estão em situação de rua: fortalecendo o estigma ou
de fato contribuindo para a autonomia?
26
Nesse sentido, “o conceito de desqualificação permite compreender a
trajetória segundo a qual esses indivíduos se tornam usuários da Assistência de
diferentes formas” (VÉRAS in PAUGAM, 2003:16)
Paugam (2003) explica essas três fases do processo de desqualificação
social. Para o autor, a fragilidade
[...] corresponde ao aprendizado da desqualificação social. As
pessoas deslocadas socialmente após um fracasso profissional
aos poucos tomam consciência da distância que as separa da
grande maioria da população. Sentem que o fracasso que as
oprime é visto por todos. Supõem que todos os seus
comportamentos cotidianos são interpretados como sinais de
inferioridade do seu status, até mesmo de uma incapacidade
social. Quando devem explicar em público as razões de seus
problemas, os desempregados têm a impressão de serem
vistos como indivíduos “pestilentos”. [...] Quando, por força das
circunstâncias, são obrigados a solicitar auxílio dos serviços de
assistência social, a inferioridade conferida por esta situação
lhes é insuportável. Preferem manter distância em relação aos
assistentes sociais. O ingresso nas redes de assistência é
percebido por eles como uma “renúncia” a um “verdadeiro”
status social e como perda progressiva da dignidade. (VÉRAS
in PAUGAM, 2003:34-35)
Um exemplo dessa fase é “[...] não ter residência fixa e ser obrigado a morar
na casa de amigos, em alojamentos transitórios e sem conforto ou em albergues,
isso também provoca, freqüentemente, um sentimento de angústia quanto ao futuro:
o medo de cair ainda mais” (VÉRAS in PAUGAM, 2003:34).
Nesse sentido, podemos observar, dentre aqueles que são recém-chegados
à situação de rua, uma espécie de diferenciação de sua condição perante “os
outros”. Mesmo ocupando coletivamente as dependências de um albergue, por
exemplo, a fragilidade ainda permite que ele se distinga da condição vivida “pela
maioria”.
A fragilidade é dividida por Paugam (2003:94) em interiorizada e negociada.
A primeira, materializada no sentimento de
[...] humilhação, perturbação, isolamento, ressentimento e, até
mesmo, condenação de uma ordem social que lhes parece
injusta [...] [e] o segundo tipo de experiência é vivido por
pessoas que tentam evitar o fracasso elaborando projetos e
multiplicando tentativas para “sair dessa”.
27
Esses últimos consideram a situação como temporária e frequentemente se
sentem constrangidos ao utilizarem os serviços sociais.
Na fragilidade interiorizada, com relação ao uso dos serviços sociais,
[...] a freqüência a essas instituições provoca, geralmente,
dentro deles, um certo mal-estar, que reaviva o sentimento de
decadência e a angústia do fracasso [...] a humilhação
ressurge a cada esforço efetuado para conseguir um emprego,
obter um seguro financeiro ou uma cesta básica de alimentos.
Para as pessoas que conhecem a fragilidade interiorizada, a
freqüência aos serviços sociais se impõe, conseqüentemente,
como uma penosa provação. (PAUGAM, 2003:99)
[...] Eles têm também a impressão de ser sempre julgados e
rotulados pelos serviços sociais, que formulam sempre as
mesmas perguntas. [...] As famílias que passam pela
experiência da fragilidade interiorizada adotam sempre uma
estratégia de distanciamento quando entram em contato com o
serviço social do setor [...]. A atitude mais freqüente consiste
em evitar manter contatos regulares com um assistente social e
esperar atingir o limite extremo para pedir auxílio financeiro.
(PAUGAM, 2003:104-105)
A fragilidade negociada é vivida, em geral, por jovens com menos de 25
anos de idade. Esses, ao contrário dos primeiros, têm muito mais confiança em si
mesmos e
Multiplicam seus esforços, elaboram projetos e sonham com
um status social superior. Essa atitude os libera do peso do
fracasso e da inferioridade social. Conscientes também de sua
fragilidade, adotam um comportamento pragmático na
utilização dos serviços sociais. (PAUGAM, 2003:115)
Já a fase da dependência refere-se a como o indivíduo torna-se assistido2.
Como explicar que alguns possam se habituar a frequentar os serviços sociais e
ainda chegarem a reivindicar que a coletividade se encarregue de melhorar/ resolver
os seus problemas? (VÉRAS in PAUGAM, 2003:37)
[...] é sempre depois de uma fase mais ou menos longa de
desmotivação e abatimento que os indivíduos que conheceram
2
Essa terminologia foi adotada na França, uma vez que, tradicionalmente, os usuários da assistência
social eram aqueles considerados incapazes de prover as suas próprias necessidades e inúteis
produtivamente para a sociedade.
28
uma deslocalização social recorrem aos assistentes [sociais].
Não encontrando outras alternativas, aceitam a idéia de
depender e de manter relações constantes com os serviços
assistenciais para obter uma garantia de renda e auxílios
diversos. Enquanto considerarem a possibilidade de encontrar
um emprego adotarão uma atitude de distância em relação aos
agentes encarregados de ajudá-los. Após muitas tentativas,
que se revelam inúteis, e mesmo de ter seguido sem sucesso
vários estágios de formação, essas pessoas constatam que
sua esperança de se inserir verdadeiramente no mundo do
trabalho é diminuta. (VÉRAS in PAUGAM, 2003:37-38)
Dessa forma,
[...] resta a esses indivíduos apenas aceitar as obrigações do
status de assistido, iniciando-se, então, para eles, uma nova
carreira, durante a qual a personalidade transforma-se
rapidamente. Vivem o aprendizado dos papéis sociais que
correspondem às expectativas específicas dos assistentes
[sociais]. É a partir desse momento que começam a justificar e
a racionalizar a assistência da qual se beneficiam. (VÉRAS in
PAUGAM, 2003:38)
Os indivíduos que vivem a experiência de dependência
procuram compensações para suas frustrações tentando
valorizar sua identidade parental [...]. As relações que mantêm
com os assistentes sociais podem ser muito cordiais, na
medida em que tentam cooperar com eles. A assistente social,
em alguns casos, pode tornar-se uma confidente, aquela que
compreende e busca soluções apropriadas. Entretanto, o status
de assistido muitas vezes gera insatisfações. (VÉRAS in
PAUGAM, 2003:38-39)
Podemos exemplificar certo senso comum existente na análise dos
indivíduos que se encontram há muito tempo ocupando a rede socioassistencial,
“pipocando de albergue em albergue” há mais de 10 anos. Esses recebem o rótulo
de acomodados ─ tanto por parte dos trabalhadores sociais, como dos recémchegados, ou seja, aqueles que estão há menos tempo em situação de rua ─, ou
ainda,
de um indivíduo que, intencionalmente, ou seja, por opção, quer tirar
vantagens do Estado, “ocupando o lugar de quem de fato precisaria estar ali”.
Paugam também nos traz o conceito de ruptura, sendo caracterizada pelo
[...] acúmulo de dificuldades (afastamento do mercado de
trabalho, problemas de saúde, falta de moradia, perda de
contatos com a família etc). Trata-se da última fase do
29
processo, produto de uma soma de fracassos que conduzem à
acentuada marginalização. Não nutrindo mais nenhuma
esperança de sair, verdadeiramente, dessa situação, essas
pessoas sentem-se inúteis para a sociedade. Perderam o
sentido de suas vidas. Procuram, então, muitas vezes na
embriaguez, a compensação para seus infortúnios ou suas
derrotas. Os assistentes sociais que tentam reinseri-los
salientam que o maior problema com que se defrontam é o do
álcool ou da droga. (VÉRAS in PAUGAM, 2003:39)
É preciso ressaltar, também, que o modo de vida desses
andantes implica formas de resistência à miséria que podem
passar como provocação e, em alguns casos, como
reivindicação da liberdade de viver à margem da sociedade.
Tais comportamentos correspondem ao último estágio de
inversão simbólica do estigma. Quando se dirigem aos
assistentes sociais, eles sabem que não têm nada a perder e
adotam um tom agressivo. Trata-se de um mecanismo de
defesa. Sentem-se ameaçados ou observados com reprovação
por esses profissionais do setor social, que vivem em um outro
mundo. Assim manifestam seu direito à palavra. Esses
comportamentos não são sempre compreendidos. Eles não
facilitam os contatos com a administração e com as pessoas
que gostariam de ajudá-los. (VÉRAS in PAUGAM, 2003:41)
Vale destacar que Paugam estabelece também uma carreira moral dos
assistidos, tipificando as diferentes formas que famílias vivenciam a experiência de
proteção social na França.
Assim, divide essa assistência em: assistência postergada, assistência
instalada e assistência reivindicada.
Esse modelo pode ser também utilizado no estudo do processo
pelo qual uma pessoa assistida torna-se cada vez mais
dependente dos serviços sociais, perde progressivamente sua
motivação para o trabalho, elabora racionalizações ou autojustificativas acerca da assistência e aprende a negociar com
trabalhadores sociais [...]. (PAUGAM, 2003:127)
O autor explica que circunstâncias particulares poderão interromper ou adiar
as fases, não sendo essa uma análise determinista.
A assistência postergada é marcada pela busca de um emprego e pela
dificuldade em aceitar a atual situação. As chances de encontrar um emprego vão se
reduzindo progressivamente. “Quando solicitam os serviços sociais, é sempre por
causa de dificuldades financeiras. [...] todo esforço realizado para solicitar um auxílio
financeiro reaviva o sentimento de fracasso social.” (PAUGAM, 2003:132)
30
Acrescenta ainda que “a assistência postergada corresponde ao aprendizado do
status de assistido [...]. Por enquanto, a assistência é postergada. Para aceitar esse
status, é preciso passar pela experiência da assistência instalada” (PAUGAM,
2003:135).
Já a assistência instalada é marcada pela pouca motivação para o emprego,
pela elaboração de racionalizações para justificar a assistência e estratégias hábeis
na relação com os assistentes sociais.
Na assistência reivindicada, Paugam (2003:153) explica que, entre as
tendências observadas, aponta-se nenhuma motivação para o emprego e grande
dependência em relação aos serviços sociais, além do surgimento de conflitos,
passageiros ou duradouros, na relação com os assistentes sociais.
Paugam caracteriza da seguinte forma os que chama de marginalizados:
Os marginalizados não dispõem nem de rendas ligadas ou
derivadas de um emprego regular, nem de benefícios
assistenciais. Trata-se de pessoas que não mais recebem – ou
jamais receberam – indenizações por desemprego, e por essa
razão não são objeto de uma intervenção social regular de
caráter assistencial. (PAUGAM, 2003:163)
Explica, ainda, que os marginalizados
[...] são desacreditados em razão dos fracassos que marcaram
suas vidas. Estigmatizados por seu meio social e confrontados
com essa “diferença vergonhosa” de que fala E. Goffman,
esses indivíduos “à margem” devem suportar cada dia a
experiência da reprovação social. (PAUGAM, 2003:164)
Paugam divide em dois os tipos de experiência de marginalidade: a
renegada e a organizada. A marginalidade renegada
[...] revela as tentativas de integração social dos que estão tão
atormentados por sua infelicidade que sonham encontrar um
equilíbrio e pôr fim à sua vida marginal. É possível antever,
através dessa experiência, as condições necessárias para a
promoção social das pessoas sem status. (PAUGAM,
2003:177)
A marginalidade renegada é uma experiência na qual é
possível constatar, ao mesmo tempo, uma firme vontade de
“sair dessa” e também modificações profundas que exercem
31
influência na personalidade e nas representações do indivíduo.
(PAUGAM, 2003:181)
Já a marginalidade organizada
[...] corresponde à reconstrução simbólica de um contexto
cultural tolerável em um espaço controlado pela experiência
das trocas e das atividades cotidianas e, às vezes, graças aos
recursos do imaginário. Por meio do espaço vivido, que contém
potencialmente a história de seus conflitos e fracassos, mas
também de festas e momentos felizes, essas pessoas acabam
tendo acesso a uma forma de identidade positiva. Não se trata,
porém, de um anseio de mudança de status, mas, antes, de
uma adaptação individual a uma condição que pode ser
considerada como no limite da exclusão social. (PAUGAM,
2003:177)
[...] os que passam pela experiência da marginalidade
organizada sentem necessidade de dar um sentido à sua vida
e de se identificar com valores. A moradia, mesmo uma
cabana, é muitas vezes, para eles, um lugar onde podem dar
livre curso à imaginação e reconstruir o panorama de vida
simbólico necessário ao seu equilíbrio. (PAUGAM, 2003:191)
Ainda segundo a bibliografia francesa, outro importante autor é Robert
Castel (2008:21) que aponta para a necessidade do uso controlado do termo
exclusão, uma vez que “[...] vem se impondo pouco a pouco como um mot-valise
para definir todas as modalidades de miséria do mundo: o desempregado de longa
duração, o jovem da periferia, o sem domicílio fixo etc, são excluídos”.
Esse uso controlado do termo é explicado por Castel (2008) em função de
várias características. A primeira é a heterogeneidade de seus usos, em número
imenso de situações diferentes, no entanto, encobrindo a especificidade de cada
uma. Chamar essas situações diferentes, nomeando-as como exclusão, não garante
compreendê-las. “[...] Falar em termos de exclusão é rotular com uma qualificação
puramente negativa que designa a falta, sem dizer no que ela consiste nem de onde
provém.” (CASTEL, 2008:25)
A segunda razão é a ideia de a palavra “exclusão” ser associada a situações
limites, que só têm sentido se resultantes de diferentes processos e trajetórias, como
se uma situação vulnerável viesse antes da exclusão em si. “Na maior parte dos
casos ‘a exclusão’ nomeia, atualmente, situações que traduzem uma degradação
relacionada a um posicionamento anterior.” (CASTEL, 2008:27) Por causa disso,
32
Castel (2008:28) esclarece que “na maior parte dos casos, ‘o excluído’ é de fato um
desfiliado cuja trajetória é feita de uma série de rupturas”.
Quando Castel (2008) explica a terceira razão, chama-nos a atenção acerca
da armadilha da palavra exclusão tanto para a reflexão como para a ação. Para a
reflexão, uma vez que o uso da palavra leva à
economia da necessidade do
entendimento ou mesmo da interrogação dos processos que levaram à condição de
exclusão. Para a ação, a partir do desenvolvimento de um duplo discurso. O
primeiro, que reabilita a empresa, os méritos da competitividade e da eficácia a
qualquer preço; e o segundo, sobre o destino dos excluídos “[...] como se o discurso
sobre a exclusão tivesse representado um adendo associado a uma política que
aceitava a hegemonia das leis econômicas e os ditames do capital financeiro”
(CASTEL, 2008:30).
Outras razões colocadas por Castel (2008:33) remetem à forma como as
ações de inserção se dão, já que se torna necessário “[...] intervir sobre o processo
que produz essas situações”, além do problema da focalização da ação social, e a
redução da questão social à questão da exclusão.
Assim, a exclusão não é nem arbitrária nem acidental. Emana
de uma ordem de razões proclamadas. [...] a exclusão, no
sentido próprio da palavra, é sempre o desfecho de
procedimentos oficiais e representa um verdadeiro status. É
uma forma de discriminação negativa que obedece a regras
estritas de construção. (CASTEL, 2008:45-46)
Finalmente, Castel adverte sobre três cuidados necessários: “Primeiramente,
não chamar de exclusão qualquer disfunção social, mas distinguir cuidadosamente
os processos de exclusão do conjunto dos componentes que a constituem, hoje, a
questão social na sua globalidade.” (CASTEL, 2008:51-52)
Castel apresenta-nos, então, o conceito de desfiliação, analisado por
Kowarick (2009) como
[...] perda de raízes e situa-se no universo semântico dos que
foram desligados, desatados, desamarrados, transformados em
sobrantes e desabilitados para os circuitos básicos da
sociedade. Não se trata, convém relembrar, de um estado ou
condição, mas de um processo que é preciso perseguir para
delinear suas transformações, pois a questão social só pode
33
ser equacionada através da perspectiva histórica. (KOWARICK,
2009:86)
Kowarick (2009), ainda sobre esse conceito, acentua que falar em
desenraizamento social e econômico significa considerarmos, de um lado, o
enfraquecimento de laços de sociabilidade primária (família, parentela, bairro, vida
associativa e do próprio mundo do trabalho); de outro lado, o desemprego de larga
duração, os trabalhos irregulares, informais, ou seja, a não inserção no sistema
produtivo.
Lavinas (2003) ao analisar a produção europeia, resgata a concepção de
exclusão de importantes autores como a definição instituída pelo Conselho da
Europa, em 1994, que conceitua como excluídos “os grupos de pessoas que se
encontram parcialmente ou integralmente fora do campo de aplicação efetiva dos
direitos humanos“ (BLANDINE, SALAMA apud STROBEL, 1996). Acrescenta, ainda,
que exclusão é o avesso da cidadania3.
Também devemos considerar o processo de exclusão das pessoas em
situação de rua uma manifestação da questão social, uma vez que “a questão da
exclusão torna-se então ‘questão social’ por excelência” (CASTEL, 2008:22).
Lavinas (2003) esclarece que uma definição mais criteriosa vai conceber
pobreza como um estado de carência, de privação, que pode colocar em risco a
própria condição humana, pois ser pobre é ter sua humanidade ameaçada, seja pela
não satisfação de necessidades básicas (fisiológicas e outras), seja pela
incapacidade de mobilizar esforços e meios em prol da satisfação de tais
necessidades.
[...] falar de exclusão implica considerar também aspectos
subjetivos, que mobilizam sentimentos de rejeição, perda de
identidade, falência dos laços comunitários e sociais,
resultando numa retração das redes de sociabilidade, com
quebra dos mecanismos de solidariedade e reciprocidade.
(LAVINAS, 2003:15)
Lavinas (2003:05) explica que “na América Latina, a extrema desigualdade,
de caráter estrutural, continua sendo a razão primeira da pobreza”. Essa autora
3
Aldaíza Sposati discorre sobre essa compreensão da exclusão em "Exclusão Social abaixo da Linha
do Equador". In: VERAS, M. P. B. (Org.). Por uma sociologia da exclusão social - O debate com
Serge Paugam. São Paulo : Educ, 1999.
34
refere-se ainda à contribuição de Paugam quando afirma que pobreza não é apenas
o estado de uma pessoa que carece de bens materiais, mas corresponde também a
um status social específico, inferior e desvalorizado, que marca profundamente a
identidade daqueles que a vivenciam. (LAVINAS, 2003:16)
Na verdade, moradia e mercado de trabalho constituem-se nas
duas categorias referenciais na conceituação da pobreza, ou
seja, inserção espacial e inserção ocupacional se combinam
como as duas faces indissociáveis do fenômeno da pobreza na
moderna sociedade urbano-metropolitano brasileira. A primeira
fase remonta à virada do século XIX-XX, quando o pobre,
morador dos cortiços ou vivendo na rua, era associado ao
vadio, àquele que se recusava a trabalhar, que permanecia
“fora do universo fabril”, pobreza sendo, portanto, sinônimo de
“resistência
ao
assalariamento”.
Embora
fortemente
ideologizada, essa concepção do pobre é reveladora do seu
não-lugar no mundo do trabalho, pois toda inserção produtiva
fora dos marcos da relação predominante do novo mundo de
produção capitalista implica exclusão. Ser pobre é, assim,
praticamente auto-excluir-se do padrão dominante de inclusão,
como se fosse dado a todos tal escolha. (LAVINAS, 2003:21)
1.2 A CONCEPÇÃO DE POBREZA/EXCLUSÃO SOCIAL NA BIBLIOGRAFIA
BRASILEIRA
Muitos autores brasileiros discutem essa questão, dentre eles, Simões
(2007:309-310) trata sobre a amplitude do conceito de exclusão social, “porque
abrange o rompimento das relações sociais e comunitárias; o expurgo, absoluto ou
relativo, da vida social, em seus vínculos básicos”.
Faria afirma que a exclusão é o resultado do processo social que
impossibilita o acesso de parte da população aos bens e recursos disponibilizados
pela sociedade, gerando a privação, o abandono e a expulsão dessa população da
convivência social. Ao corroer os mecanismos de formação de identidades coletivas,
propicia uma cultura de desagregação, banaliza a violência e leva ao risco de
sobreposição do privado ao público (FARIA apud SIMÕES, 2007:311).
Martins (2003) esclarece que a exclusão social não é um fenômeno novo e
sim a tentativa de transformá-la em categoria que explique todos os males sociais de
nosso tempo.
35
[...] Todos os problemas sociais passam a ser atribuídos
mecanicamente a essa coisa vaga e indefinida a que se chama
de exclusão [...]. De repente, essa categoria tão extremamente
vaga (no sentido de imprecisa e vazia), que é a de exclusão,
substitui a idéia sociológica de processos de exclusão [...].
(MARTINS, 2003:16)
Além da preocupação da palavra exclusão suprimir os processos que levam
a ela, MARTINS aponta ainda outra dificuldade indicada por essa palavra
[...] mais que uma certeza – revela uma incerteza no
conhecimento que se pode ter a respeito daquilo que se
constitui objeto de nossa preocupação – a preocupação com os
pobres, os marginalizados, os excluídos, os que estão
procurando identidade e um lugar aceitável na sociedade.
Portanto, a palavra exclusão nos fala, possivelmente de um
lado, da necessidade prática de uma compreensão nova
daquilo que, não faz muito, todos chamávamos de pobreza.
(MARTINS, 2003:28)
Martins (apud KOWARICK, 2009:74) afirma que discutir o tema exclusão
implica analisar “[...] a proposital inclusão precária e instável, marginal. [...]
Discutimos a exclusão e, por isso, deixamos de discutir as formas pobres,
insuficientes, e, às vezes, até indecentes de inclusão”.
“O termo exclusão social reveste-se, no Brasil, de uma roupagem diferente,
pois, ao contrário da Europa, onde ele aparece como algo novo, surpreendente, vem
somar-se às velhas contradições não resolvidas na nossa condição de Terceiro
Mundo.” (GIORGETTI, 2006:34) Aldaíza Sposati acrescenta que a “impossibilidade
de universalização do emprego é a primeira grande e universal manifestação de
exclusão social sob o capitalismo” (SPOSATI, 1999:126).
Assim, mesmo com todas as dificuldades conceituais do termo exclusão,
pessoas em situação de rua podem ser consideradas excluídas socialmente. Nesse
sentido, quando falamos do processo de exclusão vivido por essas pessoas, não
podemos esquecer que
[...] tema do debate público e alvo privilegiado do discurso
político, a pobreza sempre foi notada, registrada e
documentada. Poder-se-ia dizer que, tal como uma sombra, a
pobreza acompanha a história brasileira, compondo o elenco
de problemas, impasses e também virtualidades de um país
que fez e ainda faz do progresso (hoje formulado em termos de
36
uma suposta modernização) um projeto nacional. (TELLES
apud WANDERLEY, 2007:19)
Yasbek (2008:16-17) explica que a pobreza brasileira é produto dessas
relações que, em nossa sociedade, a produzem e reproduzem, quer no plano
socioeconômico, quer nos planos político e cultural, constituindo múltiplos
mecanismos que “fixam” os pobres em seu lugar na sociedade. Abordar aqueles
que, socialmente, são constituídos como pobres é penetrar num universo de
dimensões insuspeitadas. Universo marcado pela subalternidade, pela revolta
silenciosa, pela humilhação, pela fadiga, pela crença na felicidade das gerações
futuras, pela alienação, pela resistência e pelas estratégias para melhor sobreviver,
apesar de tudo. Embora a renda se configure como elemento essencial para a
identificação da pobreza, o acesso a bens, recursos e serviços sociais ao lado de
outros meios complementares de sobrevivência precisa ser considerado para definir
situações de pobreza.
É importante considerar que pobreza é uma categoria
multidimensional e, portanto, não se expressa apenas pela
carência de bens materiais, mas é categoria política que se
traduz pela carência de direitos, de oportunidades, de
informações, de possibilidades e de esperanças. (MARTINS
apud YAZBEK, 2008:17)
Pochmann (2003:15,19), ao tratar as raízes da exclusão, explica que:
A questão se coloca, portanto, em patamar diferente do
habitual: a exclusão social que realmente importa não se refere
ao indivíduo, suas opções ou fraquezas naturais, e sim às
diferentes formas históricas encontradas pelos povos para
construírem sua sociedade. [...] é preciso ter claro que a
exclusão social está intimamente ligada à “negação de direitos
na trama das relações sociais.
Esse autor contribui também para a reflexão de um novo perfil de pessoas
excluídas, sendo um grupo composto por pessoas que, um dia, foram incluídas;
pensamento em consonância ao apontado por Telles (apud WANDERLEY, 2007:19)
quando fala da nova exclusão registrada no empobrecimento dos trabalhadores
urbanos, deterioração salarial, degradação dos serviços públicos afetando
37
diretamente a qualidade de vida das pessoas nas cidades, além do alto índice de
desemprego no setor formal da economia.
Wanderley (2009:73) aponta que “nas questões sobre pobreza, existem
concordâncias de que podemos observar várias formas de pobreza e que elas estão
associadas ao mercado de trabalho, à situação familiar, à estrutura etária etc”.
Na relação existente entre a pobreza e a questão social, podemos
considerar esta última como a expressão de um
[...] conjunto de desigualdades sociais engendradas pelas
relações sociais constitutivas do capitalismo contemporâneo.
Sua gênese pode ser situada no século XIX quando os
trabalhadores reagem à exploração de seu trabalho resultante
da Revolução Industrial. (YASBEK, 2008:05)
Este estudo não visa o aprofundamento desse conceito, nem tampouco
discutir se há ou não uma nova questão social, diferenciada do período de sua
gênese. No entanto, vale destacar que o conceito de questão social adotado nesta
pesquisa é definido por YASBEK como
[...] apesar de suas novas manifestações e indicadores [a
questão social], permanece estruturalmente a mesma por se
constituir em uma questão estruturante de relações sociais
desiguais que configuram o sistema capitalista. [...] Questão
que, na contraditória conjuntura atual, com seus impactos
devastadores sobre o trabalho, assume novas configurações e
expressões entre as quais destacamos: as transformações das
relações de trabalho; e as transformações nos padrões de
proteção social. (YASBEK, 2008:08)
Como principais manifestações e expressões da questão social, autores
apontam as transformações no mundo do trabalho, as transformações na Política
Social e as múltiplas expressões da pobreza e da desigualdade social. Nesse
sentido, a situação de rua é mais uma manifestação da questão social, já que essa
condição “[...] faz parte do conjunto de trabalhadores desatendidos em seus direitos
sociais mínimos e que, sem emprego e sem moradia, se encontram no limite da
sobrevivência e dignidade humanas” (SOUSA apud VIEIRA, BEZERRA, ROSA,
2004:11).
Dessa maneira, “quando se fala de população de rua ninguém tem dúvida de
que este segmento social expressa uma situação limite de pobreza, por mais
38
diferente que seja a conceituação que se desenvolva” (LOPES apud VIEIRA,
BEZERRA, ROSA, 2004:17).
Assim, por mais consenso que seja associarmos a situação de rua a uma
condição de pobreza e exclusão social, convém delimitarmos ainda mais o objeto de
estudo desta pesquisa, apresentando os recortes que daremos neste trabalho,
compreendendo as peculiaridades dos processos excludentes vividos na cidade de
São Paulo.
1.3 O PROCESSO DE EXCLUSÃO E A ESPECIFICIDADE DA CIDADE DE SÃO
PAULO: UMA REFLEXÃO SOBRE A POBREZA URBANA
Qualquer estudo sobre a exclusão deve ser contextualizado no
espaço e tempo ao qual o fenômeno se refere. (WANDERLEY,
2007:18)
Por tratar-se de um estudo sobre a exclusão,nesse sentido, como aponta
Wanderley (2007), é absolutamente necessário delimitarmos a localização espacial e
temporal de nosso objeto de pesquisa. Assim, esta investigação está delimitada na
cidade de São Paulo e na caracterização das pessoas em situação de rua na última
década.
[...] Toda definição estática da pobreza contribui para agrupar,
num mesmo conjunto, populações cuja situação é
heterogênea, ocultando a origem e os efeitos a longo prazo das
dificuldades dos indivíduos e de suas famílias. (PAUGAM,
2003:68)
Dessa maneira, não basta compreendermos as implicações conceituais
quando nos referimos à pobreza, torna-se também necessário apresentar algumas
considerações sobre a especificidade de uma metrópole como São Paulo, ainda
mais porque alguns autores atrelam a questão da pobreza a um fenômeno urbano,
uma vez que “a pobreza, enquanto questão, nasce com o selo urbano” (LAVINAS,
2003:02).
[...] pobreza é urbana não apenas porque a maioria dos pobres
vive nas cidades e zonas metropolitanas, ou porque a
reprodução da pobreza é mediada pela reprodução do modo
urbano das condições de vida, através da dinâmica do
39
mercado de trabalho, da natureza do sistema de proteção
social e do pacto de coesão social que é, na verdade, o que
estrutura o conjunto de relações e interações entre a sociedade
civil, o Estado e o mercado. Ela também é urbana porque
desafia a governabilidade urbana, exige dos governos locais,
soluções rápidas e efetivas, inscreve no território da cidade
marcas indeléveis das contradições sociais que a reconfiguram
e recontextualizam a cada momento. Ela é urbana porque cada
vez mais as formas de regulação de pobreza são mediadas por
compromissos instituídos no processo de construção da
cidadania urbana. (LAVINAS, 2003:02)
A esse respeito, Marques (2005:40) acrescenta que “o conceito de pobreza
só pode ser entendido como uma construção social, já que as sociedades
sancionam coletivamente o conjunto de bens e serviços ao qual todos os seus
cidadãos devem ter acesso” (MARQUES, 2005:40).
Esse mesmo autor aponta que analisar a pobreza urbana não é uma tarefa
fácil, porque é um tema carregado de conteúdos ideológicos e é objeto de disputas
acirradas entre atores políticos, pois seu reconhecimento social define a atribuição
de benefícios e custos relativos ao desenvolvimento de políticas voltadas para
combatê-la. Esclarece que são múltiplas as dimensões das situações de pobreza.
(MARQUES, 2005:39)
Acrescenta, ainda, que:
Ao contrário de uma única forma de pobreza, portanto,
podemos observar muitas formas variadas associadas a
conjuntos de características sociais distintas ligados à
composição familiar, à inserção no mercado de trabalho etc. A
distribuição espacial dessas formas de pobreza aumenta ainda
mais a complexidade, já que associa o acesso a bens, serviços
e oportunidades de formas diferenciadas aos vários grupos
sociais distintos, a partir de suas características. (MARQUES,
2005:41)
Percebemos, dessa forma, a heterogeneidade da pobreza. O que são
desigualdades sociais? Wanderley (2009:76) explica que desigualdade é um
processo complexo e contraditório e vincula-se “[...] à cidadania política, à renda, ao
acesso à justiça, à saúde, à escola, à cultura, ao lazer, à segurança etc”.
Neste trabalho, adotaremos a definição: “Por desigualdade social entende-se
genericamente a existência de características sociais distintas entre grupos sociais
40
estabelecidos a partir de alguma clivagem contínua ou dicotomia/categorial.”
(MARQUES, 2005:41)
Para exemplificar uma situação de desigualdade social, de acordo com a
definição acima, o autor cita as diferenças salariais entre homens e mulheres.
Atrelado ao conceito de desigualdade social, principalmente na relação com o
espaço urbano, uma clivagem a ser adotada é que os grupos são definidos em
bases territoriais, ou seja, existe uma relação direta entre a desigualdade social e os
espaços urbanos ocupados por determinados grupos sociais.
Esse elemento é importante porque, como as desigualdades
sociais tendem a ser cumulativas, o território pode cumprir um
papel importante em sua produção e reprodução, reforçando
circuitos e cristalizando situações de pobreza e destituição,
mesmo contra esforços em contrário desenvolvidos pelo
Estado, por exemplo. (MARQUES, 2005:42)
Nesse sentido, a associação da desigualdade social a espaços territoriais
remete-nos a desigualdades de acesso, ou seja, dentre as desigualdades sociais
estão as desigualdades de acesso, que podem ser, por exemplo, o acesso ao
mercado de trabalho e o acesso a políticas públicas.
Dois conjuntos principais de diferenciais de acesso estão aqui
presentes – acesso ao mercado de trabalho (que gera
oportunidades diferenciadas) e acesso às políticas públicas
(que geram as amenidades e os serviços que caracterizam a
vida urbana). Esses elementos influenciam fortemente as
possibilidades de alcançar bem-estar individual e coletivo ou
ingressar em situação de vulnerabilidade e pobreza, embora os
dois tipos de acesso digam respeito a elementos diferentes.
Nas palavras de Rúben Kaztman, o primeiro tipo de acesso se
liga primeiramente “às estruturas de oportunidades”, enquanto
o segundo se associa a parte do que Caroline Moser denomina
“vulnerabilidade de ativos”. (MARQUES, 2005:42)
Um exemplo de estruturas de oportunidades seria o sentimento de
pertencimento a determinado grupo ou comunidade. Atrelado a esse, a ideia de
ativos também complementa o exposto acima, uma vez que
[...] destaca que as áreas habitadas pela população de piores
condições sociais têm sido sempre definidas pelos elementos
que não possuem e não pelo que efetivamente têm. [Assim]
tirar proveito dos ativos de uma dada população se torna a
41
estratégia mais relevante de combate às situações socialmente
precárias. (MARQUES, 2005:43)
Podemos perceber, dessa forma, que, mesmo em situações de extrema
desigualdade social, seja por condições diferenciadas de acesso a serviços, podem
ser diferentemente vivenciadas pelos grupos, de acordo com a maneira que se
organizam
e
ainda
como
desenvolvem
sentimentos
de
pertencimento
e
sociabilidade. Nesse sentido, autores trazem a discussão sobre a segregação
territorial e ainda a função das redes sociais.
A segregação territorial reduz o contato entre as pessoas, estreitando
possibilidades e oportunidades, inclusive de construção de redes sociais capazes de
potencializar a comunidade em suas relações internas e externas.
A segregação urbana é atribuída a algumas causas, segundo Marques
(2005:45), dentre elas:
● A dinâmica econômica, o mercado de trabalho e a estrutura social,ou seja,
tudo é pensado a partir dos interesses do sistema capitalista, agravando os
padrões de segregação e as condições de vida das periferias;
● A dinâmica do mercado de terras, as ações dos produtores do espaço urbano
e da produção de moradia: aqui apontam estudos dos incorporadores e suas
lógicas e ainda a maneira como o mercado de terras distribui os grupos sociais
e as atividades econômicas das cidades; O Estado e as políticas públicas:
poder regulatório do Estado sobre o território das cidades, além da própria
legislação de zoneamento, ou ainda o aumento do valor de determinadas
regiões da cidade, pela construção de obras públicas, por exemplo, e a
construção de conjuntos habitacionais socialmente homogêneos em áreas
periféricas;
● A ordem jurídica brasileira e sua relação com nossa sociedade em suas
dimensões de tradicionalismo, hierarquia social e preconceito: “[...] a
segregação e a pobreza urbana são produzidas e reproduzidas pela lei e sua
aplicação” (MARICATO apud MARQUES, 2005:48).
42
Dessa maneira, esses quatro grupos indicados “[...] tem sua parcela de
responsabilidade na produção e reprodução da segregação e das desigualdades no
espaço urbano” (MARQUES, 2005:48).
Wanderley (2009:70), para explicar o fenômeno segregação, recorre a
alguns autores, dentre os quais destacamos Caldeira (2000), que, ao definir a
segregação de natureza social e a de natureza espacial, aponta, nos últimos anos,
novos padrões em função da falta de cidadania, da violência e do crime organizado,
alterando formas de relacionamento entre o centro e a periferia a partir dos anos
1980.
A segregação social cresce desarticulando as áreas comuns de
convivência, por razões da violência. E a segregação espacial,
para além da disseminação das periferias, atinge outros níveis
com o que ela denomina enclaves fortificados – espaços
ocupados por membros das classes alta e média, fechados e
monitorados, com medo da violência crescente. Por outra
parte, as ruas são ocupadas pelos pobres, os “sem teto”,
pessoas que vivem de “bicos”, segregando bairros e espaços
públicos. (WANDERLEY, 2009:70)
Complementando os conceitos trabalhados neste capítulo, a compreensão
de vulnerabilidade social é também necessária, uma vez que “[...] a partir da década
de 1990, a vulnerabilidade parece emergir como um conceito que veio para substituir
o da pobreza. Os vários autores que trabalham com ele argumentam que esse novo
conceito acrescenta elementos que o conceito de pobreza não tinha” (ARREGUI,
WANDERLEY, 2009:149).
De certa maneira, o que vem acrescentar ao conceito de pobreza é que a
vulnerabilidade contempla as necessidades, mas também o que as pessoas
possuem enquanto recurso ou, por que não dizer, potencialidade.
Ao contrário do enfoque da pobreza, este caminho analítico
permite trabalhar não apenas com as necessidades das
pessoas carentes, mas também com recursos e ativos de que
elas dispõem para enfrentar os riscos pelas privações
vivenciadas. (CUNHA apud ARREGUI, WANDERLEY,
2009:149)
43
No entanto, Arregui e Wanderley (2009) concluem, em artigo intitulado “A
vulnerabilidade social é atributo da pobreza?”, que a discussão de ativos e passivos
como dimensão inovadora da concepção vulnerabilidade não é uma novidade.
Nesse sentido, apontam a necessidade de se
[...] avançar na construção de grades analíticas que deem
conta do caráter multidimensional do fenômeno da pobreza e
das inter-relações existentes, incorporando as necessidades,
demandas e potencialidades da população [...] [Sendo o
desafio] poder trabalhar as condições de pobreza não como
constatação da situação da população, mas como informaçõeschave para orientar a proteção social. (ARREGUI,
WANDERLEY, 2009:161)
Kowarick (2009:67-68) apresenta recente estudo sobre vulnerabilidade
socioeconômica e civil, resgatando a vulnerabilidade no Brasil urbano. Traz, assim, a
vulnerabilidade associada a direitos básicos, “na medida em que os sistemas
públicos de proteção social não só sempre foram restritos e precários como também,
em anos recentes, houve desmonte de serviços e novas regulamentações legais que
se traduziram na perda de direitos adquiridos”. Acrescenta ainda:
Quanto à vulnerabilidade civil, não obstante alguns intentos de
tornar certos grupos – crianças, jovens, mulheres ou idosos –
mais protegidos nos seus direitos, basta olhar as notícias e as
estatísticas estampadas na imprensa acerca de atos criminais
perpetrados por bandidos e pela polícia, muitas vezes impunes,
que revelam a fragilidade do Estado em um atributo básico, o
monopólio legítimo da violência.
Para sabermos qual a relação desses conceitos quando estamos nos
referindo às pessoas em situação de rua, apontamos algumas considerações.
A primeira consideração a ser feita refere-se à relação existente, no Brasil,
entre a pobreza, a exclusão social e a questão social como caso de polícia, forma
essa como as pessoas em situação de rua vêm sendo tratadas novamente em São
Paulo.
44
O segundo fator é que vivemos em um sistema capitalista perverso que,
“enquanto a produção social e o trabalho são coletivos, a apropriação de seus frutos
fica com apenas parcela da sociedade” (IAMAMOTO, 1998:48-49). Podemos, então,
afirmar que a pobreza e a exclusão no Brasil são decorrentes de um problema
estrutural, nesse sentido, reiteramos o posicionamento desta pesquisa em
considerar a situação de rua como resultado de um processo de exclusão coletiva e
não de responsabilidade individual.
A terceira e última consideração remete-se ao desafio proposto por Arregui e
Wanderley: até que ponto as constatações acerca do modo de vida, ou ainda do
perfil, dos que estão em situação de rua vêm sendo considerados no planejamento
das políticas públicas oferecidas a essa população?
É importante também considerar como esses conceitos materializam-se na
cidade de São Paulo, por isso recorreremos a alguns números que nos servirão
como exemplos.
1.3.1 São Paulo: dados gerais
Pochmann (2003:24) aponta que:
São Paulo, como outras grandes cidades do Brasil, vem
sofrendo, especialmente depois de 1980, com o declínio do
crescimento econômico e a pressão das políticas neoliberais, a
gestação e o nascimento de um quadro muito mais complexo
de exclusão social.
Wanderley (2009:69) coloca que:
É conhecida a argumentação de que São Paulo é uma mistura
de Nova York com Calcutá. Ela vivencia, historicamente,
problemas de toda ordem, típicos da colonização,
industrialização e urbanização que a identificam, ademais de
causas históricas e estruturais que a condicionaram por
séculos [...], a cidade paulistana mostra situações de pobreza,
desigualdade, exclusão e violência espantosas.
45
Vejamos, então, alguns números.
O município de São Paulo compreende uma área de 1.509
km², com
população de 11.188.646 habitantes, e estima-se 11.320.3294 de pessoas vivendo
na cidade de São Paulo em 2010.
A cidade de São Paulo constitui o núcleo central da mais
importante região metropolitana do Brasil e sua área de
influência tem um alcance que ultrapassa o âmbito regional e
mesmo o nacional, colocando-a como um dos pólos de
destaque entre as denominadas cidades globais. Seu
desenvolvimento urbano, relativamente recente, pois data de
pouco mais de cem anos, esteve estreitamente relacionado à
ocupação do território paulista desencadeada pela expansão
das atividades agroexportadoras especialmente o cultivo do
café e, ao longo do século XX, ao processo de industrialização
brasileiro. Este último teve seu principal foco em São Paulo e
em alguns de seus municípios vizinhos (região do ABC),
impulsionando o crescimento da cidade e determinando a
formação de uma área metropolitana que comanda ampla e
diversificada rede urbana, hierarquicamente estruturada a partir
da capital. (OLHAR SÃO PAULO, 2007:07)
Administrativamente, estrutura-se em 96 distritos municipais, divididos em 31
subprefeituras. Da área total da cidade, 1000 km² são urbanizados. De acordo com a
Fundação Seade/SMDU/DIPRO, São Paulo apresenta uma densidade demográfica
de 7.288,81 (Habitantes/km²/2009). Acrescentam ainda outras informações, segundo
a tabela abaixo:
4
Fonte: IBGE - Censo demográfico de 1991 e Sinopse Preliminar do Censo 2000. Secretaria
Municipal do Planejamento - SEMPLA/ DEINFO - Estimativas, 1997, 1998, 1999, 2001e 2010 com
base.
46
Tabela 01 - São Paulo - Território e dados de população
Território e Dados de População
Ano
Fonte
Taxa de Crescimento
Demográfico - 2000/2009 (em
% a.a.)
0,59
2009
Fundação
Seade/SMDU/Dipro
Índice de Envelhecimento Pop. Total
32,2
2009
Fundação
Seade/SMDU/Dipro
Índice de Envelhecimento Homens
24,5
2009
Fundação
Seade/SMDU/Dipro
Índice de Envelhecimento Mulheres
40,1
2009
Fundação
Seade/SMDU/Dipro
População de 0 a 14 anos
(em %)
24,1
2009
Fundação
Seade/SMDU/Dipro
População de 15 anos a 24
anos (em %)
14,8
2009
Fundação
Seade/SMDU/Dipro
População de 25 anos a 59
anos (em %)
49,6
2009
Fundação
Seade/SMDU/Dipro
População de 60anos e + (em
%)
11,5
2009
Fundação
Seade/SMDU/Dipro
Razão de Sexos
(homem/mulher)
91,3
2009
Fundação
Seade/SMDU/Dipro
Dos dados especificados na Tabela 1, destacamos os 49,6% da população
entre 25 e 59 anos.
Ainda de acordo com a Fundação Seade, a taxa de natalidade na cidade,
por mil habitantes, em 2007, foi de 15,77. A taxa de mortalidade geral no mesmo
ano, por mil habitantes, foi 6,04. Os principais indicadores de qualidade de vida
estão sintetizados na tabela a seguir:
47
Tabela 02 - São Paulo - qualidade de vida
Qualidade de Vida
Ano
Fonte
Índice de
Desenvolvimento
Humano Municipal IDHM
0,841
2000
IBGE/PNUD/IPEA/FJP
Renda per Capita
(em salários
mínimos)
4,03
2000
IBGE
Domicílios com
Renda per Capita
até 1/4 do Salário
Mínimo (em %)
5,02
2000
IBGE
Domicílios com
Renda per Capita
até 1/2 do Salário
Mínimo (em %)
9,48
2000
IBGE
Grupo 1
2002
Fundação Seade
Grupo 1
2004
Fundação Seade
Grupo 1
2006
Fundação Seade
Índice Paulista de
Responsabilidade
Social - IPRS
Com relação à infraestrutura urbana, o IBGE (2000) aponta que 98,62% dos
domicílios possuem rede de água; 87,23%, rede de esgoto; e 99,2%, seus lixos
coletados.
A média de anos de estudo da população de 15 a 64 anos, de acordo com o
IBGE (2000), é de 8,37, o que garante o ensino fundamental completo. Esse órgão
ainda aponta que 46,62% da população de 25 anos ou mais tem menos de 8 anos
de estudo (IBGE, 2000). Acrescenta que, entre a população de 18 a 24 anos,
45,83% concluiu o ensino médio (IBGE, 2000).
Dados relacionados a emprego e rendimento demonstram que a taxa de
desemprego é de 11,2 (Fundação Seade, jan. 2009). Segundo a Secretaria
Municipal do Trabalho, a PEA – população economicamente ativa, em novembro de
2007, era de 5.872 mil pessoas, estando 5.056 mil ocupadas e 816 mil
desempregadas. Dentre os ocupados, apenas 1.300 mil com o registro formal, ou
seja, com a carteira assinada.
48
Os dados da Pesquisa de Emprego e Desemprego PED foram
desagregados para oito regiões da cidade, indicando a
sobreposição de situações de dificuldade para inserção no
mercado de trabalho. Há de início uma questão etária, já que
os dados mostram maiores taxas de desemprego na faixa entre
18 e 24 anos. Depois, acrescenta-se a condição de gênero: as
mulheres aparecem com maior nível de desemprego. Por fim, a
variável regional mostra uma piora importante à medida que o
foco se desloca de regiões mais centrais para as áreas
periféricas da cidade. Sobrepondo essas dimensões, tem-se
um quadro alarmante referente ao jovem de periferia: nas
regiões norte 2 e leste 2 as taxas de desemprego entre os
jovens ultrapassam o patamar de 25%, muito superior à taxa de
desemprego geral no município. (OLHAR SÃO PAULO,
2007:59)
Dados referentes à economia da cidade levantados pela Fundação
Seade/IBGE apontam um PIB de 282.852 milhões de reais correntes (2006),
representando 35,24% de participação no PIB do Estado de São Paulo.
Com um PIB ao redor de US$ 55 bilhões em 2004 (cerca de R$
160,6 bilhões), São Paulo destaca-se como o principal pólo
econômico entre os municípios brasileiros e constitui o núcleo
dinâmico da maior região metropolitana do país. O PIB per
capita correspondia a US$ 5.067,00, em 2004, valor
significativamente acima da média nacional (US$ 3.326,00). A
economia paulistana caracteriza-se por múltiplas interações
intersetoriais e pela formação de cadeias produtivas
complexas. Seu setor terciário é tão heterogêneo - abrange
desde simples serviços domésticos até grandes redes de
televisão passando por serviços de consultoria de software que tem sido difícil enumerar propriedades comuns a todas as
divisões que o compõem. A indústria, apesar de grandes
perdas ao longo da década de 90, ainda ostenta números
expressivos em termos de valor adicionado, estabelecimentos
e empregos. Além disso, a presença de suas sedes dinamiza
os serviços prestados às empresas, tanto técnicos (assessorias
e consultorias) como auxiliares (contratação de serviços de
segurança e limpeza). (OLHAR SÃO PAULO, 2007:17)
Olhar São Paulo, Contrastes urbanos, publicado em outubro de 2007, pela
Secretaria de Planejamento – Departamento de Estatística e Produção de
Informação, traz informações da cidade sob o enfoque das desigualdades
socioterritoriais. Inicialmente, trazem uma comparação da cidade com a Região
Metropolitana.
49
Tabela 03 - Dados comparativos São Paulo e Região Metropolitana
Região Metropolitana de São Paulo
Município de São Paulo
• 11 milhões de habitantes, em 2007.
• Crescimento demográfico estimado de
0,5% ao ano entre 2006 e 2007 (menos da
metade da taxa observada entre 1980 e
1991, de 1,16% ao ano).
• 20 milhões de habitantes em 2007, dos
quais 55,4% no Município de São Paulo.
• PIB de R$ 160,6 bilhões, equivalente a US$
55 bilhões, em 2004.
• É uma das cinco maiores aglomerações
urbanas do mundo.
• É o 4º maior PIB entre as unidades
federativas do Brasil, após SP, RJ e MG.
• Seu núcleo principal, a cidade de São
Paulo, constitui uma das poucas
municipalidades do mundo com mais de 10
milhões de habitantes.
• A participação no PIB brasileiro passou de
11,57%, em 2000, para 9,09%, em 2004.
• 8.051 km², dos quais 18,74% no Município
de São Paulo.
• 39 municípios, dois deles com população
superior a 1 milhão de habitantes: São Paulo
e Guarulhos.
• PIB de R$ 275,1 bilhões, equivalente a
US$ 94 bilhões, em 2004.
• A RMSP responde por 15,57% do PIB
brasileiro (eram 18,17%, em 2000).
• Taxa de crescimento do PIB entre 2003 e
2004: 9,3% em valores correntes.
• PIB per capita de R$ 14.821,00,
equivalente a US$ 5.067,00, em 2004.
• Cerca de 3,5 milhões de domicílios
permanentes.
• 17.260 km de vias públicas.
• 5 milhões de veículos matriculados no
município, dos quais 3,8 milhões são
automóveis e 490 mil são motocicletas.
• 61,3 km de metrô.
• 112,9 km de linhas ferroviárias.
• 111,5 km de corredores exclusivos para
ônibus.
• 974 linhas urbanas de ônibus (frota: 15 mil
veículos).
Fonte: IBGE; Fundação Seade; Emplasa; Cia. do Metropolitano de São Paulo-Metrô; CPTM; São
Paulo Transporte-SPTrans; Sempla. Tabela elaborada a partir da publicação Olhar São Paulo, p.8.
A publicação apresenta a tendência da periferização do crescimento
demográfico não só na cidade de São Paulo, mas em toda a região metropolitana.
A presença de grandes contingentes populacionais nas áreas
periféricas indica que houve um avanço da área urbanizada
sobre zonas frágeis do ponto de vista ambiental, sejam aquelas
situadas na região dos mananciais Guarapiranga e Billings, ao
sul do município, sejam as localizadas ao norte, nas encostas
da Serra da Cantareira. São áreas em que a maioria da
população vive em precárias condições de moradia,
saneamento, transportes e acesso a serviços públicos. O
50
distrito de Grajaú, localizado ao sul, entre as duas represas, é o
mais populoso da capital, com mais de 300 mil habitantes,
contingente comparável à população de uma cidade de médio
porte. (OLHAR SÃO PAULO, 2007:11)
Com relação às faixas etárias, nos últimos anos, a partir dos dados do
Censo de 2000, há um reduzido contingente de crianças e jovens em relação aos
adultos (resultado da diminuição das taxas de crescimento demográfico dos 20 anos
anteriores) e também um significativo aumento das pessoas com mais de 60 anos,
inerentes ao processo de envelhecimento da população.
Nota-se, ainda, a ocorrência de um processo de “feminilização”
da população, já que há excedentes de mulheres em
praticamente todas as faixas etárias acima de 15 anos. Tendose em conta que as migrações já não têm peso determinante
no crescimento demográfico de São Paulo, esse excedente
pode ser explicado pelo diferencial de mortalidade observado
entre os gêneros, por razões próprias a cada grupo etário. Nas
faixas de idade mais avançadas, a sobremortalidade masculina
ocorre sobretudo por causas naturais, enquanto naquelas
correspondentes aos jovens e adultos, há que se levar em
consideração as mortes por causas externas e, entre estas,
especialmente aquelas decorrentes do fenômeno da violência
urbana, que vitimiza especialmente a população masculina
nestas faixas de idade. O excedente masculino na infância é
explicado pela sobrenatalidade que ocorre para este gênero,
por razões naturais. (OLHAR SÃO PAULO, 2007:16)
Ainda de acordo com a publicação, a questão habitacional em São Paulo
apresenta
dimensões que afetam a qualidade de vida urbana, já que a cidade
convive com um expressivo déficit de habitações e/ou de melhorias do ambiente
urbano, conforme revelam dados do IBGE e da Secretaria Municipal de Habitação Sehab: 402 mil domicílios vagos – 14,25% do total de domicílios na cidade (Censo
2000); cerca de 3,4 milhões de habitantes, vivendo em assentamentos precários
(Sehab, 2003), dos quais: - 1,6 milhão em moradias precárias localizadas em
loteamentos irregulares; - 1,2 milhão em favelas; - 600 mil em cortiços. (OLHAR
SÃO PAULO, 2007:55)
Os dados apresentados demonstram o grande contraste presente na cidade
de São Paulo. Ao mesmo tempo uma potência econômica nacional, São Paulo é
palco de desigualdades sociais. E, para minimizar essa questão, uma transformação
no território é importante e necessária a partir da oferta de políticas públicas, já que
51
no conjunto de fatores que se estabelecem “como causadores da exclusão nas
áreas periféricas são elencados: precariedade habitacional, altas taxas de
mortalidade infantil e de homicídios, limitada escolaridade, subemprego e
desemprego estrutural” (WANDERELY, 2009:74).
O lugar que as pessoas ocupam no território reflete a posição
dos indivíduos na sociedade; portanto, se desejamos
transformar as condições de vida da população mais carente
devemos intensificar a transformação do seu habitat.
Toda ação do poder público transforma direta ou indiretamente
o território, de forma positiva ou negativa. As políticas públicas
ganham em efetividade e eficiência quando adotam um recorte
territorial, uma escala e um escopo adequados. É importante
explorar mecanismos de desenvolvimento urbano para
promover uma desconcentração espacial das oportunidades
econômicas. A criação de novas oportunidades passa por
aproximar o emprego do local de moradia, diminuindo os
custos de transportes e os problemas da monofuncionalidade
residencial em amplas áreas periféricas. (OLHAR SÃO PAULO,
2007:51)
O IPVS – Índice Paulista de Vulnerabilidade Social é utilizado para medir as
condições de vida da população, combinando variáveis como: renda, escolaridade e
ciclo de vida familiar.
A publicação - Espaços e Dimensões da Pobreza nos Municípios do Estado
de São Paulo - esclarece a variação entre nenhuma vulnerabilidade e
vulnerabilidade muito alta utilizada por este índice:
Grupo 1 – Nenhuma Vulnerabilidade: engloba os setores
censitários em melhor situação socioeconômica (muito alta),
com os responsáveis pelo domicílio possuindo os mais
elevados níveis de renda e escolaridade. Apesar de o estágio
das famílias no ciclo de vida não ser um definidor do grupo,
seus responsáveis tendem a ser mais velhos, com menor
presença de crianças pequenas e de moradores nos
domicílios, quando comparados com o conjunto do Estado de
São Paulo.
Grupo 2 – Vulnerabilidade Muito Baixa: abrange os setores
censitários que se classificam em segundo lugar, no Estado,
em termos da dimensão socioeconômica (média ou alta).
Nessas áreas concentram-se, em média, as famílias mais
velhas.
52
Grupo 3 – Vulnerabilidade Baixa: formado pelos setores
censitários que se classificam nos níveis altos ou médios da
dimensão socioeconômica e seu perfil demográfico caracterizase pela predominância de famílias jovens e adultas.
Grupo 4 – Vulnerabilidade Média: composto pelos setores que
apresentam níveis médios na dimensão socioeconômica,
estando em quarto lugar na escala em termos de renda e
escolaridade do responsável pelo domicílio. Nesses setores,
concentram-se famílias jovens, isto é, com forte presença de
chefes jovens (com menos de 30 anos) e de crianças
pequenas.
Grupo 5 – Vulnerabilidade Alta: engloba os setores censitários
que possuem as piores condições na dimensão
socioeconômica (baixa), estando entre os dois grupos em que
os chefes de domicílios presentam, em média, os níveis mais
baixos de renda e escolaridade. Concentra famílias mais
velhas, com menor presença de crianças pequenas.
Grupo 6 – Vulnerabilidade Muito Alta: o segundo dos dois
piores grupos em termos da dimensão socioeconômica (baixa),
com grande concentração de famílias jovens. A combinação
entre chefes jovens, com baixos níveis de renda e de
escolaridade e presença significativa de crianças pequenas
permite inferir ser esse o grupo de maior vulnerabilidade à
pobreza.
Destacamos, ainda, que a concepção de vulnerabilidade presente no mapa
a seguir
está em consonância com a concepção de pobreza adotada neste
trabalho, já que
A vulnerabilidade à pobreza não se limita em considerar a
privação de renda, central nas medições baseadas em linhas
de pobreza, mas também a composição familiar, as condições
de saúde e o acesso a serviços médicos, o acesso e a
qualidade do sistema educacional, a possibilidade de obter
trabalho com qualidade e remuneração adequadas, a
existência de garantias legais e políticas etc. (Fundação
Seade).
53
Mapa 01 - Mapa da Vulnerabilidade Social
MAPA
Este mapa permite-nos visualizar a alta concentração de vulnerabilidade nas
extremidades periféricas da cidade de São Paulo.
O Mapa da Vulnerabilidade Social da cidade de São Paulo é uma
contribuição importante que possibilitou a compreensão sobre a situação de pobreza
e exclusão em São Paulo. Merece destaque porque trata da vulnerabilidade social
de determinadas áreas urbanas e não de indivíduos.
Tal vulnerabilidade é entendida como um somatório de
situações de precariedade, para além das precárias condições
socioeconômicas (como indicadores de renda e escolaridade
muito ruins) presentes em certos setores censitários. São
considerados como elementos relevantes no entendimento da
privação social aspectos como a composição demográfica das
famílias aí residentes, a exposição a situações de riscos
variados (como altas incidências de certos agravos à saúde,
54
gravidez precoce, exposição à morte violenta etc), precárias
condições de vida e outros indicadores. (SÃO PAULO,
2004:12)
Outra publicação de grande relevância para compreendermos a situação
vivida na cidade de São Paulo é de autoria do Movimento Nossa São Paulo,
publicado em janeiro de 2009, que apresenta os Indicadores Básicos da Cidade de
São Paulo. Nela são apresentados diversos indicadores importantes, por
subprefeitura, e ainda trazem um indicador denominado desigualtômetro, que
consiste no fator de desigualdade presente entre os melhores e os piores
indicadores diferentes de zero das 31 subprefeituras.
A seguir, pontuamos alguns indicadores levantados nessa publicação que
merecem reflexão. Para tanto, apresentamos em qual região encontra-se o pior
indicador, o melhor indicador e o índice de desigualdade entre o pior e o melhor
indicador.
Tabela 04 - Comparação de indicadores por região – São Paulo
Indicador mensurado
Pior indicador
Melhor indicador
São Mateus
Sé
(0)
(10,78)
São Miguel
Sé
(0)
(20,61)
Vila Prudente/
Sapopemba
Sé
Desigualtômetro
Acervo de bibliotecas para
adultos per capita, ou seja,
número de livros
disponíveis em acervo das
bibliotecas públicas por
habitantes com 15 anos ou
mais. (Secretaria Municipal
de Cultura, 2006)
Cinema – número de salas
de cinema em cada
subprefeitura sobre o total
de salas da cidade.
(Sempla, 2006)
Teatro - Percentual de salas
em cada subprefeitura
sobre o total de salas da
cidade. (Sempla, 2006)
(0)
(54,21)
1.078 vezes
54,2 vezes
102,3 vezes
55
CONTINUAÇÃO
Analfabetismo
Porcentagem da população
analfabeta com 16 anos ou
mais.
Parelheiros
Sé
(6,32)
(2,1)
2,5 vezes
(SEADE/ Dieese, 2006)
Percentual de domicílios em
favelas
Campo Limpo
(40,41)
(Sehab, 2009)
Sé
(0,31)
130,4 vezes
Rede de esgoto
Percentual de domicílios
sem ligação com a rede de
esgoto
Cidade Ademar
Sé
(37,08)
(0.75)
49,4 vezes
IBGE (Censo 2000) e
Sabesp (2007)
Orçamento destinado a
cada subprefeitura dividido
pelo número de habitantes
(em reais)
Capela do Socorro
(60,06)
Sé
(238,96)
3,97 vezes
(Sempla, 2008)
Número de leitos
hospitalares públicos e
privados disponíveis por mil
habitantes
Parelheiros
(0)
Sé
Perus
(24,29)
(Sempla, 2007)
(0)
Unidades de atendimento
de saúde básica públicas
por 20 mil habitantes
Sé
(0,36)
M’Boi Mirim
(1,23)
50,6 vezes
3,4 vezes
(Sempla, 2007)
Trabalho e Renda
Taxa média de desemprego
de 16 a 29 anos
São Miguel
Sé
(21,48)
(12,78)
1,7 vezes
(Seade, 2006)
Dentre os 32 indicadores apresentados nessa publicação, 9 dos expostos na
tabela acima construída para facilitar a exposição dos dados desta pesquisa
apresentam o melhor indicador na região central da cidade (Subprefeitura Sé). Esse
56
dado merece destaque uma vez que é nessa região da cidade que se encontra o
maior número de pessoas vivendo em situação de rua.
1.4 PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA
Mendigo, vagabundo, pedinte, “homem do saco”, marginal, muitos atributos
já foram conferidos a essa população ao longo do tempo. Mudanças de
nomenclatura não garantem uma diferenciação no status ocupado por essas
pessoas no imaginário da população. Seria consenso pensar que a condição de rua
ocupa o grau mais elevado de exclusão social e pobreza ou simplesmente são
pessoas “fracas” que desistiram de lutar por uma vida melhor e se estão nesta
condição é por culpa de um passado desregrado?
“Não estudaram, porque não quiseram”, “pedem, porque é mais fácil do que
trabalhar”, “tem emprego para todo mundo, só não trabalha quem não quer”, são
exemplos de expressões emitidas por transeuntes ao observarem nas ruas de São
Paulo, um número cada vez maior de pessoas vivendo nelas.
Como aponta Wanderley, no prefácio do livro “Vidas de Rua”, de Cleisa Rosa
(2005:11), “de mendigo a excluído social, de marginal a trabalhador precário, é
diversificado e eivado de significados o elenco de denominações utilizadas para
designar as pessoas que vivem nas ruas, habitando espaços públicos, produzindo e
reproduzindo suas vidas”.
Os moradores de rua não constituem uma “população
homogênea”. A multiplicidade de características pessoais, que
esse segmento social apresenta, dificulta a utilização de uma
definição unidimensional. A variedade de soluções dadas à
sobrevivência e formas de abrigo, o tempo de permanência na
rua, a trajetória anterior à situação de rua, a herança cultural e
social (os valores vividos anteriormente) o tempo e as formas
de rompimento dos vínculos familiares/ comunitários, os tipos
de socialização que se consolidam na rua, a rotina espacial, o
uso de substâncias químicas (álcool e/ou drogas) e o seu grau
de comprometimento, as condições da auto-estima, o sexo, a
idade, a escolaridade e as formas de reintegração que
almejam, são fatores que dificultam uma conceituação que não
seja reducionista ou mesmo unifocal e nos conduz à idéia de
uma tipologia dentro dos moradores de rua na cidade. (BORIN,
2003:44)
57
Dessa maneira, se hoje fizéssemos uma pesquisa sobre como a população
explica e avalia o fenômeno pessoas morando nas ruas, teríamos quais tipos de
explicações para essa situação?
É notório que
[...] a rua tem mudado bastante nos últimos anos. A população
que hoje ocupa logradouros públicos, ruas, praças, terrenos e
imóveis abandonados não corresponde mais à figura do
andarilho ou do mendigo tradicional, que pede esmolas, e
também não é um fenômeno exclusivo da cidade de São Paulo.
(SOUSA apud VIEIRA, BEZERRA, ROSA, 2004:11)
Isso se justifica por podermos encontrar pessoas vivendo nas ruas em todas
as grandes capitais do país e, talvez, em menores proporções, mas também em
pequenas cidades.
Existem dois sentidos que a rua pode ter, apontados por Vieira, Bezerra e
Rosa (2004:93): a constituição de abrigo ou em um modo de vida. Assim, as autoras
identificam diferentes situações em relação à permanência na rua: “FICAR NA RUA”,
“ESTAR NA RUA” e “SER DA RUA”. “Ficar na rua” reflete a circunstancialidade, um
momento em que o indivíduo, além de não ter como pagar uma pensão, não
consegue vaga em um Albergue. Possivelmente por fruto do desemprego, é um
grupo que, sentindo-se desvalorizado perante a sociedade, busca saída através de
atendimento do Serviço Social e procura bicos/empregos para garantir uma pensão.
“Estar na rua”, por sua vez, expressa a situação daqueles que adotam a rua
como local de pernoite, já sem medo, mas ainda recente nessa condição. Com o
convívio com os outros que estão na rua, conhecem novas alternativas para a sua
sobrevivência.
Também
procuram
empregos/bicos;
são
trabalhadores
desempregados.
Já “ser da rua” é um processo de caráter permanente e mais difícil à
proporção que aumenta o tempo de vida na rua. A pessoa vai sofrendo física e
mentalmente, em função da má alimentação, precárias condições de higiene e pelo
uso constante do álcool, do cigarro, de drogas etc. Expostos a todos os tipos de
violência ─ da polícia, do trânsito e até mesmo dos próprios companheiros ─, já
apresentam dificuldades na busca pelo bico/trabalho e a rua ganha cada vez mais
espaço nas relações pessoais e obtenção de recursos.
58
Tabela 5 - Esquema das situações de permanência na rua
Ficar na Rua
Estar na Rua
Ser da Rua
Moradia
Pensões , albergues ,
alojamentos
(eventualmente rua)
Rua, albergues,
pensões
(alternadamente)
Rua, mocós
(eventualmente
albergues, pensões)
Trabalho
Construção civil,
empresas de
conservação e
vigilância
Bicos na construção
civil, ajudante geral,
encartador de jornal,
catador de papel
Bicos, especialmente
de catador de papel,
guardador de carros,
encartador de jornal
Grupo de
Referência
Companheiros de
trabalho, parentes
Companheiros de rua e
de trabalho
Grupos de rua
Fonte: VIEIRA, BEZERRA, ROSA, 2004:95.
Vale destacar que “[...] o tempo de rua se torna variável central, uma vez que
quanto maior a inserção nas redes sociais constituídas na rua, o horizonte de saída
dela fica mais difícil e, portanto mais distante” (BORIN, 2003:50). A autora
acrescenta ainda que
Quanto mais tempo na rua, mais as memórias do passado
desaparecem gradualmente, sendo substituídas por novas
experiências que se diferenciam em muito das vividas até
então. Da mesma forma que o passado e o presente vão se
tornando desvinculados um do outro, também as relações do
presente com o futuro perdem continuidade e clareza. Em
última instância, passado e futuro se aniquilam no presente,
sendo reduzida na dimensão do hoje, do aqui e do agora, onde
não há um amanhã programado. (BORIN, 2003:50)
Pereira (1997:71) reforça ainda o pensamento anterior quando coloca que:
Diferentemente dos que passam pela rua circunstancialmente,
os que já moram nela possuem um modo de vida próprio, ou
seja, desenvolvem formas específicas de garantir a
sobrevivência, de conviver e ver o mundo. Têm sobre a cidade
olhar, atribuindo novas funções aos espaços públicos, às
instituições.
59
Ainda considerando a definição de quem são as pessoas que utilizam as
ruas como espaço de moradia e/ou sobrevivência, o Relatório da FIPE (2003) faz um
alerta já que a definição de população em situação de rua é, sabidamente, difícil. A
multiplicidade de condições pessoais, a diversidade de soluções dadas à
subsistência e moradia, as diferenças de tempo em que os vínculos familiares
dissolveram-se e novas formas de socialização consolidaram-se, são alguns dos
inúmeros fatores que dificultam a formulação de conceitos unidimensionais e livres
de ambiguidades. (FIPE, 2003:06)
Sposati (1999:66) aponta que:
[...] o morador de rua acaba na situação de exclusão por uma
série de perdas: o emprego, auto-estima e o rompimento ou a
fragilidade das relações familiares. Os olhos discriminadores e
preconceituosos veem o morador de rua com repulsa, como
estorvo ou como marginal/bandido, sem levar em conta seu
passado: nas ruas da cidade de São Paulo, a maioria já teve
carteira de trabalho assinada e é alfabetizada.
Nesse sentido, retomamos Paugam (2007:67), quando coloca que a pobreza
é “considerada intolerável pelo conjunto da sociedade, [...] reveste-se de um status
social desvalorizado e estigmatizado”.
Giorgetti (2006:20) explica que:
[...] recentemente, o Serviço Social em São Paulo, pensando
em ressaltar o caráter processual da vida nas ruas, criou a
expressão pessoas em situação de rua, para delimitar as
trajetórias (idas e vindas) e enfraquecer a idéia predominante e
(pejorativa) de que se trata de pessoas de rua, que não têm
outra característica senão o fato de pertencer às ruas da
cidade [...].
Na percepção dessa autora, essa definição apresenta um problema já que
falar em situação de rua nem sempre se garante concretamente a reversão dessa
situação. Ela acrescenta, ainda, que as pessoas que se encontram, de fato, em
situação de rua são poucas, problematizando as chances reais da saída da rua.
Em sua pesquisa, Giorgetti (2006:25) adota a seguinte definição: “Todo
indivíduo migrante, imigrante ou nascido em uma grande metrópole, que tem o seu
‘fundo de consumo [completamente] dilapidado’ (PESSANHA apud GIORGETTI,
2006:25), e não consegue mais repor tal fundo e promover o seu bem-estar.”
60
No entanto, para esta pesquisa, adotar a terminologia de “pessoa em
situação de rua” em substituição ao “morador de rua” e “pessoa de rua” visa
começar a contribuir para uma mudança de mentalidade na sociedade, remetendo
às trajetórias pessoais e a uma situação que poderá ser modificada, já
que essa é
uma premissa desta pesquisa.
Exemplos de como a população em geral considera esse público, reitera a
importância da discussão desse tema.
Em um fórum na internet5, perguntaram: Você mataria um mendigo por 1
milhão de reais? Do total de participantes do fórum, 43,64% responderam “é óbvio
que sim”; e 56,36% responderam “não, não conseguiria viver depois disso”. Vale
destacar que, dentre os comentários redigidos no site, dentre as pessoas que
assinalaram “não”, seguia a justificativa de que “não vale tirar a vida de ninguém,
mesmo que seja de um mendigo”. Ou seja, podemos perceber que, mesmo dentre
aqueles que não tirariam a vida, ainda existe um grau de preconceito na própria
justificativa de não cometerem esse ato6.
O relatório de pesquisa da FIPE - Fundação Instituto de Pesquisas
Econômicas de 2003 considera como população de rua
[...] o segmento de baixíssima renda que, por contingência
temporária ou de forma permanente, pernoita nos logradouros
da cidade – praças, calçadas, marquises, jardins, baixos de
viaduto –, em locais abandonados, terrenos baldios, mocós,
cemitérios e carcaça de veículos.
Como também aqueles que pernoitam em albergues públicos ou de
organizações sociais.7
Esclarecemos que essa é a mesma concepção adotada para a realização do
Censo da população em situação de rua (2009) e para o documento “Caracterização
socioeconômica da população de moradores de rua da área central de São Paulo”,
elaborado também pela FIPE. Em 2009, também foi levantada a “Trajetória de vida
da população atendida nos serviços de acolhimento para adultos em situação de rua
5
TIBIABR.COM. Fórum: Você mataria um mendigo por 1 milhão de reais? Disponível em:
<http://forums.tibiabr.com/showthread.php?t=300549>. Acesso em: 11/04/2010.
6
Considerando que a internet é um veículo de formação de opinião, pesquisas como essas alertam
para uma concepção de sociedade na qual a pobreza tem que ser tratada como punição.
7
FIPE, 2009:05 (Caracterização Sócioeconômica dos Moradores de Rua da Cidade de São Paulo). A
mesma definição é dada por VIEIRA, BEZERRA, ROSA, 2004.
61
no município de São Paulo”, elaborado pelo CERU - Centro de Estudos Rurais e
Urbanos. Os resultados obtidos servirão para orientar a política de atendimento a
esse público.
O relatório com os principais resultados do Censo 2009, elaborado por Silvia
Shor e Maria Antonieta Vieira, aponta um total de 13.666 pessoas vivendo em
situação de rua, sendo 6.587 (48,2%) nas ruas e 7.079 (51,8%) acolhidos na rede
socioassistencial.
Esse mesmo órgão indicou que o número de pessoa em situação de rua na
cidade de São Paulo era de 10.399 indivíduos nessas condições no ano 2003. Com
relação ao segmento dessa população, compreende “população em situação de rua”
crianças, adolescentes, jovens, homens, mulheres e idosos que utilizam espaços
públicos da cidade como local de habitação. (VIEIRA, BEZERRA, ROSA, 2004:68)
O resultado apontado pelo novo Censo encontra-se em consonância com a
estimativa levantada pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento
Social da Prefeitura da Cidade de São Paulo (SMADS) que já informava que número
de pessoas morando nas ruas tinha chegado a 13.000 pessoas, com um
crescimento de 15,4% nos últimos dois anos.
Dentre as primeiras pesquisas que trazem o perfil das pessoas em situação
de rua, destaca-se a publicação do livro “População de Rua - Quem é, Como Vive e
Como é Vista?”, organizado por Maria Antonieta Vieira, Eneida Bezerra e Cleisa
Rosa. Nele constata-se que as pessoas em situação de rua tinham, no início dos
anos 1990, características bem próximas, como em relação à idade, sexo, cor, e
mesmo em relação ao trabalho. Constatou-se que 90% eram homens e cerca de
65% jovens (com faixa etária abaixo de 40 anos). A proporção de analfabetos e
semianalfabetos era de 13% constituindo na sua grande maioria pessoas com o
1°grau incompleto.
Diferente dos dias atuais, os primeiros estudos indicavam que a grande
parte migrou da região nordeste do Brasil na tentativa de uma vida melhor. Esse
fato, tanto na Caracterização Socioeconômica das pessoas que vivem em situação
de rua na região central (FIPE, 2009), como no Censo realizado em 2003, mostra
que essa informação hoje é um mito, já que grande parte da população que se
encontra nas ruas é da própria região Sudeste do país. Nesse sentido, destacamos,
62
na caracterização realizada em 2009, a informação de que 27,5% nasceram na
cidade de São Paulo e, apenas, 33,1% migraram da região Nordeste.
Comparando-se os dados 2009-2003, temos um aumento de pessoas
acolhidas, uma vez que, em 2003, das 10.399 pessoas em situação de rua
levantadas na pesquisa da FIPE (2003), 4.213 (40,5%) pernoitavam nas ruas e
demais logradouros da cidade, enquanto 6186 (59,5%) encontravam-se albergados.
Esses dados, em 2009, alteram-se para 48,2% de pessoas na rua e 51,8% de
pessoas acolhidas.
Constataram-se nos levantamentos que ainda é predominantemente do sexo
masculino (84,4% em 2003 e 79,7% em 2009) as pessoas que vivem em situação
de rua. No entanto, destacamos o aumento de quase 5% do número de mulheres
em situação de rua nos últimos anos.
Quanto à idade, enquanto no Censo 2003 a maioria encontrava-se entre 26
e 40 anos (32,2%) e entre 41 e 55 anos (35%), os dados referentes à caracterização
realizada em 2009 apontam que 25,8% estão entre os 18 e 30 anos, 50,2% entre 31
e 49 anos e 24% com 50 anos ou mais. A idade média encontrada é de 40 anos. A
idade mínima – 18 anos e a máxima – 85 anos. No Censo (2009), 77,9% foram
identificados como adultos em situação de rua.
O relatório da caracterização socioeconômica das pessoas que vivem na
região central apresenta aumento de pessoas mais novas e também crescimento
de pessoas acima de 50 anos, se considerarmos o levantamento realizado em 2000.
A maior parcela presente nos albergues no Censo de 2003 tinha entre 41 e
55 anos, já na rua a maior faixa etária encontra-se entre 26 e 40 anos de idade. Com
esses dados, podemos afirmar que a maioria encontra-se dentro da População
Economicamente Ativa.
Também são considerados “em situação de rua” aquelas pessoas que
utilizam os albergues ou outros equipamentos municipais destinados a esse público,
já que
O albergue se constitui, também, em alternativa de pernoite
para alguns migrantes de passagem pela cidade, sem renda
suficiente para arcar com os custos de uma pensão ou hotel. A
esses, somam-se as
famílias desalojadas por despejo,
demolição ou por dificuldades pessoais. Há também, entre os
63
albergados, aqueles que perderam o emprego e que, sem
amparo familiar, esperam um novo posto de trabalho.8
As principais razões levantadas pela pesquisa da FIPE (2003) para as
pessoas que, na data da entrevista, estavam pernoitando nas ruas e não albergadas
temos que 20,2% responderam que não iam para albergues porque não aceitavam
as regras da instituição. Em seguida, justificaram por problemas com outros usuários
(tendo em vista a heterogeneidade do grupo, o que, por vezes, causa conflitos entre
eles). Apenas 8,8% apontam a falta de vagas como uma razão para não estarem em
albergues.
Do total de 4213 pessoas entrevistadas que pernoitam nas ruas (2003),
34,2% disseram nunca terem dormido em albergues, mas esse número pode ser
maior, podendo chegar até 43,3%, se forem consideradas as pessoas que não
responderam a essa questão, pois têm um mesmo padrão.
Considerando ainda a concepção de que as pessoas albergadas fazem
parte da parcela das pessoas ainda em situação de rua, convém a busca por dados
mais atualizados acerca dessa população que utiliza esses equipamentos na cidade
de São Paulo.
Nesse sentido, a FIPE realizou outra pesquisa no período de Dezembro de
2005 a Janeiro de 2006, em vinte e dois albergues conveniados com a PMSP –
Prefeitura Municipal de São Paulo─ por meio da SMADS – Secretaria Municipal de
Assistência e Desenvolvimento Social9 - para delinear o perfil dessa população.
No que tange à faixa etária, apresenta-se uma tendência ao envelhecimento.
Usando como base o censo de 2000, em que a média dos homens adultos era de
42,1 anos, a pesquisa realizada nos anos de 2005 e 2006 aponta para um aumento
da idade média dos usuários para 44,7 anos.
Esse dado remete-nos a duas reflexões acerca do envelhecimento dessa
população e quanto ao tempo de estada na rua, pois os dados demonstram que as
pessoas em situação de rua não estão saindo dessa condição; outra reflexão é
quanto à expectativa de vida da própria população.
8
FIPE, 2009:05 (Caracterização Sócioeconômica dos Moradores de Rua da Cidade de São Paulo). A
mesma definição é dada por VIEIRA, BEZERRA, ROSA, 2004.
9
Os dados apresentados a seguir foram retirados de slides em apresentação oficial da SMADS e
disponibilizados para a realização deste trabalho. A análise dos entrevistados sobre os albergues,
também explorada nessa pesquisa, será retomada no segundo capítulo.
64
Com relação à escolaridade, podemos perceber que a maioria tem ensino
fundamental incompleto, chegando a atingir o percentual de 61% desse público.
Segundo a FIPE, esses dados vêm desmistificar a concepção de que a maioria das
pessoas em situação de rua seja analfabeta e sem instrução escolar, já que há
apenas um percentual de 5% de pessoas nessas condições. Encontramos ainda
pessoas com ensino médio completo e incompleto (25%) e ensino superior completo
(2%) e incompleto (5%) entre os freqüentadores de albergues durante o período
pesquisado. Destacamos ainda que a escolaridade é mais alta entre os mais novos
(até 30 anos) e o percentual de analfabetos, na faixa etária de 55 anos ou mais,
chega a 8%.
Mais uma vez esta pesquisa também desmistifica o local de origem, ou
como a pesquisa coloca a procedência de onde vêm essas pessoas, já que temos
um imaginário que essas pessoas são oriundas da região Norte e Nordeste do país.
O aspecto que surpreende nesta pesquisa é que a maioria, em um percentual de
49% dos entrevistados, é da própria região Sudeste, sendo 36% do Estado de São
Paulo e uma parcela considerável nascida na própria capital (19%). Com relação aos
outros pesquisados, temos os seguintes dados: 41% são da região Nordeste, a
maioria dos Estados da Bahia e Pernambuco; com relação aos estrangeiros, temos
apenas uma minoria de 1%, vindos, em sua maioria, de países como Bolívia,
Paraguai e Argentina.
Apesar de a maioria das pessoas julgarem que os indivíduos em situação
de rua e albergados são “vagabundos”, a pesquisa mostra que, em sua
maioria,exercem algum tipo de atividade profissional, sendo que 74% dos
albergados trabalham, porém, assim como na sociedade em geral, apenas uma
minoria no mercado formal. A pesquisa revela ainda que apenas 5% desses s
trabalhadores têm seus direitos garantidos, enquanto 69% estão no mercado
informal. Comumente, esses trabalhadores não se veem como tal, pois acham que
para ser trabalho é necessário o registro em carteira, por isso, referente às
atividades profissionais que desempenham, costumam denominá-las de “bicos”.
Dentro dessa
categoria de trabalho, temos como principais atividades a
catação de materiais recicláveis como latinhas de alumínio, papelão, entre outros,
com um percentual por volta de 36%, fato que se mantém conforme os dados já
levantados pela FIPE em 2003.
65
Quanto aos entrevistados que disseram não estarem trabalhando, as
principais razões apontadas foram: não encontrar emprego (48,8%) e problemas de
saúde (28,2%).
A saúde traz um dado alarmante sobre as condições de vida dessa
população, e isso está diretamente relacionado às condições em que vivem. Dos
entrevistados, existe um número muito grande de jovens que declaram ter algum
problema de saúde (45%); entre a população adulta, o índice é de 67% com algum
problema de saúde; e dentre os idosos, esse percentual sobe para 77%. O problema
de saúde mais apontado foi hipertensão (22%) seguido de problemas na coluna
(20%).
Ainda dentro dessa
abordagem, ao se perguntar
sobre o uso de
substâncias como o álcool e drogas, a pesquisa revela que 50% dos albergados
declararam já ter feito uso continuado de álcool durante a vida. A pesquisa afirma
que o uso de drogas é maior entre os jovens, com um índice de 40% de jovens que
afirmaram fazer uso continuo de drogas. Já o uso de álcool é mais frequente entre
os mais velhos (49%).
Com relação à experiência de rua, a pesquisa apontou que 25,9% não
chegou a ter essa vivência. 20,1% declararam pouca experiência na rua; 23,8%
indicaram uma experiência significativa; e outros 16,3% responderam que tiveram
uma experiência muito significativa na rua.
Essa pesquisa da FIPE ajuda a delinear o perfil dos frequentadores dos
albergues da cidade de São Paulo e, a partir dessas informações, podemos
confirmar alguns aspectos já revelados na pesquisa realizada nos anos 1990 e
publicada no livro “População de Rua - Quem é, Como Vive e Como é vista”.
Apesar da reconhecida diversidade, as pessoas em situação
de rua partilham de inúmeras características. São todos muito
pobres e com uma trajetória de vida cheia de fracassos
pessoais e desamparo institucional. Sem casa e sem lar
reinventam diariamente as soluções para a sua subsistência:
alimentos, abrigo, dinheiro, bebida e segurança”, diz Silvia
Schor – Socióloga e Coordenadora Geral da pesquisa FIPE
2002 e 2003.
Apesar de se tentar quantificar e traçar um perfil das pessoas em situação
de rua, torna-se muito difícil essa tarefa e muito pouco se avançou nesse sentido
66
como apontado na reportagem veiculada pela Folha de São Paulo, em 09/11/2005:
“O censo, no entanto, pouco avançou [...]” e aponta como uma das principais
dificuldades a fator da falta de domicilio fixo e ainda enfatiza “[...] os moradores de
rua são cidadãos ‘invisíveis’, excluídos do universo pesquisados nos censo oficiais”.
O atual perfil dos acolhidos
Com o objetivo de aprofundar o conhecimento sobre a população em
situação de rua, principalmente com relação às
causas de ruptura familiar e
comunitária, o Centro de estudos Rurais e Urbanos realizou um estudo
antropológico traçando a trajetória de vida da população atendida nos serviços de
acolhimento para adultos na cidade de São Paulo.
De acordo com a amostra dessa
pesquisa, o perfil predominante nos
Centros de Acolhida, pode ser definido a seguir:
- 94% da população é cadastrada, ou seja, frequenta sistematicamente os serviços;
- 84% do sexo masculino, com idade média entre 40 e 45 anos, em sua maioria
(67%) solteiros;
- 47% nasceram na cidade de São Paulo; dentre os que não nasceram nessa
cidade, a maioria está há mais de 5 anos. Destacamos 39% que moram em São
Paulo há mais de 10 anos;
- 96% da população é alfabetizada , sendo que 35% tem o ensino fundamental
incompleto;
- 50% mantêm contato com a família há menos de 1 ano;
- 90% têm profissão, 20% ainda a exerce; destaque para 35,9% que deixaram de
exercê-la há 1 ou 2 anos ; dentre as profissões apontadas, 10,4% indicam a de
ajudante/serviços gerais, auxiliares de cozinha; 7% pedreiro e 6,4% motorista.
- Com relação às atividades desempenhadas atualmente, a maioria (5,2%) declara
ser vendedor ambulante, seguido dos que trabalham como: ajudante de pedreiro
(5%), descarregador de caminhão (4,5%), auxiliar de serviços gerais (4,5%); catador
de recicláveis (4,5%) e entregador de panfletos (3,4%).
- 80% residem nos Centros de Acolhida entre 01 e 06 meses; 13% entre 7 meses e
12 meses e 10% mais de um ano;
67
Esse recente estudo conclui a existência de um número significativo de
pessoas que nunca passaram pela rua, ou ainda que ficaram pouco tempo nessa
situação (10 - 15 dias), ou seja, parcela significativa dos albergados é formada por
trabalhadores desempregados que sobrevivem de trabalho temporário, de baixa
remuneração, que impossibilita o pagamento mínimo de um aluguel.
Aqui se confirma a teoria de Paugam quando diferencia a classificação dos
momentos dos usuários da assistência social, uma vez que a parcela estudada “não
se ‘mistura’ com drogados ou viciados em bebida e sempre que conseguem renda
suficiente deixam o albergue e vão morar em pequenos hotéis e pensões, mesmo
que por pouco tempo, até acabar o dinheiro” (CERU, 2009/2010). Isso por
acreditarem que lá não seja o seu lugar, alternam a permanência dentro e fora da
rede, por já terem feito parte da categoria trabalhador do sistema produtivo.
O estudo conclui ainda a necessidade de a rede contemplar a
heterogeneidade dessa população, diversificando-a para torná-la mais acolhedora e
adaptada à diversidade dos usuários.
Pessoas em situação de rua e a região central da cidade de São Paulo
Já na primeira pesquisa, publicada no livro “População de Rua, Quem é,
Como Vive e Como é Vista”, foi apontado que a preferência pelo centro da Cidade
de São Paulo deve-se a fatores como locais para pernoitar (marquises, baixo de
viadutos, imóveis abandonados, praças, logradouros etc), acesso mais fácil à
alimentação, as chamadas “bocas de rango”, locais de distribuição gratuita de
alimentos, como restaurantes que dão suas sobras, as sopas servidas em locais
estratégicos por pessoas e instituições filantrópicas. No caso específico do centro da
cidade de São Paulo, ainda podemos citar a catação de legumes, verduras e frutas
em torno do Mercado Municipal. Umas das pioneiras organizações de São Paulo a
desenvolver trabalho com essa população foi a Organização de Auxílio Fraterno
(OAF), que preparava sopas comunitárias com a participação ativa da população.
Outra questão de bastante relevância pela escolha do centro da cidade
como moradia é a própria pressão da sociedade, pois muitas pessoas não gostam
de tê-los como “vizinhos” e a região central não é uma parte da cidade que seja
predominantemente residencial. Dentre os fatores que marcam essa posição,
68
podemos citar como possibilidade o acúmulo de materiais recicláveis que a
sociedade vê apenas como lixo, mas que a maioria utiliza para venda e mesmo
como forma de abrigo; o barulho que alguns grupos fazem devido ao consumo de
bebidas alcoólicas e uso de drogas faz com que o poder público seja acionado
através de órgãos como a Prefeitura e a Polícia para fazerem a remoção dessas
pessoas.
No âmbito das relações, outra característica que marca esse segmento
social é a formação de grupos, e quanto a isso as autoras Maria Antonieta Vieira,
Eneida Bezerra e Cleisa Rosa afirmam que:
A pessoa que usa o espaço público para pernoite sofre
violência também de seus iguais, dada à diversidade de
segmentos que compõem o mundo da rua. Dormir em grupo,
portanto, representa segurança, num certo sentido. Entretanto,
quanto maior o grupo de pernoite, maior é o risco de se tornar
alvo de denúncias por parte da vizinhança [...]. (VIEIRA,
BEZERRA, ROSA, 2004:58)
Ainda destacam na pesquisa que o agrupamento dessas pessoas não se dá
apenas pelo fator da segurança e sobrevivência, mas numa busca do resgate de
uma identidade pessoal e social, tendo em vista que estão em uma mesma situação
e têm uma trajetória de vida em muitos aspectos parecidos.
A região central da cidade, com grande concentração de
atividades de comércio e de serviços (que podem facilitar as
estratégias de sobrevivência na rua) e onde existem muitas
áreas em processo de degradação urbana, reunia cerca de
70% dos moradores de rua recenseados em 2003. [...] a
distribuição espacial dos pontos de pernoite dessa população,
indicando que os distritos que compõem a subprefeitura da Sé,
bem como seus arredores (Brás, Mooca, Belém, Barra Funda,
Perdizes), são aqueles com maior presença de moradores de
rua em São Paulo. (OLHAR SÃO PAULO, 2007:50)
As pesquisas da FIPE, tanto em 2003 como em 2009, trazem referência
quanto ao uso do Centro da cidade de São Paulo já que dentre os 10.399, 6.405
estavam na região do Centro e Norte (Santana). Fazendo uma comparação quanto à
distribuição dessas pessoas nos 29 distritos pesquisados, a FIPE constatou que não
houve uma mudança muito significativa ao se comparar os anos de 2000 e 2003.
Nesse sentido, o Censo de 2009 também indica a grande concentração na região
69
central da cidade, principalmente de pessoas em situação de rua vivendo,
principalmente, nos distritos da República (38,4%), Sé (29,2%), Santa Cecília (7,5%)
e Brás (6,1%).
O mapa a seguir melhor exemplifica essa concentração:
Mapa 2 - Total de pessoas em situação de rua (2000) e distribuição espacial
MAPA
A ausência de políticas públicas em diversas áreas da cidade, como vimos
no item anterior, também dificulta a sobrevivência nas ruas em outras regiões da
cidade, o que pode nos confirmar a hipótese da escolha não aleatória pelo Centro da
cidade, mas um local onde a oferta de políticas públicas é maior do que em outras
áreas da cidade.
Para melhor compreensão do perfil das pessoas que vivem na região
central, uma caracterização socioeconômica realizada pela FIPE (2009) ainda ponta
os seguintes dados, ou seja, moram na rua, na região central da cidade:
- predominantemente pessoas do sexo masculino (86%), não brancos (64%), com
média de idade de 40 anos;
70
- Baixa escolaridade (9.5% de analfabetos, 62,8% com ensino fundamental
incompleto); entre eles, 9% que possuem ensino médio completo, 2,3% com nível
superior incompleto e 1,9% com curso superior concluído;
- 33% estão na companhia de alguém, no entanto apenas 13% vivem com
companheiros e 0,8% com filhos, mesmo que quase 60% indicaram ter filhos, não
estão com eles. 61% têm parentes na cidade, no entanto, apenas 31% mantiveram
contato com eles
nos últimos 6 meses. Quanto mais tempo na rua, mais se
espaçam os contatos estabelecidos, ou seja, ainda existem laços familiares ativos
para parcela desse grupo; 61,2% indicam ter parentes na cidade de São Paulo e
62,7 tiveram contato com eles há menos de 1 ano;
- Dentre os que não nasceram na cidade de São Paulo, 19,9% chegou na cidade há
1 ano e a grande maioria (47,5%) está aqui há mais de 10 anos;
- A maioria (79,1%) já dormiu em albergues, sendo que 64,2% apontam ser esse o
local onde têm dormido;
- 84% morava com algum membro da família na última moradia fixa em que
residiram; desses 60,4% já moravam em São Paulo e 39,6% vieram de outros
municípios paulistas;
- 28,3% trabalhavam na construção civil antes de viver nas ruas, seguidos dos
13,8% que trabalhavam com serviços de limpeza, 12,9% que atuavam com serviços
técnicos e administrativos e 12,5% que já trabalhavam no comércio informal;
- apenas 14% declaram sobreviver, exclusivamente, de esmolas e 66,9% declaram
obter dinheiro com o trabalho, em sua maioria (62,1%) fruto da coleta seletiva;
- Apenas 25,6% declararam não usar álcool ou drogas. 37% declararam o uso
apenas do álcool, 9,7% apenas da droga e 27,7% declararam o uso de álcool e
drogas.
- 47,5% não passaram por nenhum tipo de instituições; já 26,8% indicaram ter
passado pela casa de detenção, 25,1% passaram por clínicas de recuperação,
11,2% passaram pela antiga FEBEM e 8,2% indicaram a passagem em hospitais
psiquiátricos;
- Dentre os serviços mais frequentados estão o restaurante popular (44,3%), seguido
das casas/centros de convivência (28,1%) e albergues (23,7%). 32,1% indicam não
frequentar nenhum tipo de serviço.
-42,6% indicam não possuir nenhum documento pessoal;
71
- 66,7% indicam já terem sofrido violência na rua, sendo 46,3% de um outro morador
de rua, 27,9% da polícia e 13,6% de transeuntes; dentre as violências sofridas,
44,3% indicaram o espancamento/briga/luta corporal, 31,6% agressão verbal e
27,2% roubo/furto.
- Apenas 24% indicaram conhecer o Movimento Nacional da População de Rua.
E o que leva uma pessoa a viver nas ruas?
A trajetória de vida que os levou às ruas desenha sempre uma
seqüência de fracassos pessoais e desamparo institucional.
Sem casa e sem lar, reinventam diariamente as soluções para
sua subsistência: alimentos, abrigo, dinheiro, bebida, remédios
e segurança. (FIPE, 2003)
Conforme ressaltamos anteriormente, a complexidade em conceituarmos
exclusão e pobreza, cujas definições implicam múltiplas dimensões, reflete-se na
dificuldade de se conhecer a gama de fatores que leva uma pessoa a utilizar os
espaços da rua como sobrevivência. Perda de emprego, de moradia, fragilidade de
vínculos são alguns exemplos que, isolados ou agregados, podem contribuir para
que a rua seja a única alternativa.
A presença de moradores de rua é um fenômeno cada vez
mais freqüente em São Paulo e suas causas são bastante
complexas, pois envolvem a sobreposição de dimensões
variadas, desde aquelas que dizem respeito ao ciclo de vida
pessoal – condições de saúde física e mental, rompimento de
laços familiares – até as que se referem a circunstâncias mais
abrangentes, de convívio social e de inserção no mundo do
trabalho. O desemprego e o estreitamento das oportunidades
para aqueles que possuem baixos níveis de escolaridade e de
qualificação profissional são fatores a serem levados em conta
na análise do fenômeno. (OLHAR SÃO PAULO, 2007:50)
Borin (2003), em sua tese “Desigualdades e rupturas sociais na metrópole:
os moradores de rua em São Paulo”, trabalha depoimentos levantados na ocasião
da pesquisa realizada pela FIPE (2000), quando foram questionados “fale sobre o(s)
motivo(s) que o(a) levaram a deixar sua casa, permanecendo na rua/albergue até os
dias de hoje”. Ao lermos os depoimentos, torna-se evidente uma condição anterior
de inclusão precária, pois muitos trazem a
presença de moradias insalubres,
72
vínculos
familiares
e
comunitários
instáveis,
fragilidade
nas
relações
de
trabalho/emprego etc.
Já Pereira (2005), em sua tese “Caminhos em construção: encontro entre
população em situação de rua e o MST - São Paulo - 1999-2003”, pondera, em seu
primeiro capítulo, que falar nesse segmento implica compreendermos as relações de
trabalho, moradia, devendo ser lembrada a questão da saúde por meio de
significativos autores e atores sociais que discutem a questão, que retomaremos
ainda nos capítulos seguintes.
A mesma autora (1997), em sua dissertação de mestrado “A população de
rua, as políticas assistenciais públicas e os direitos de cidadania: uma equação
possível?”, reforça a ideia de que chegar até a rua “pressupõe um caminho, um
processo a ser percorrido” (PEREIRA, 1997:65). Acrescenta ainda que “[...] embora
os fatores materiais exerçam papéis de fundamental importância, outros como a
subjetividade humana, têm que ser resgatados, no sentido de um melhor
entendimento da problemática” (PEREIRA, 1997:65-66).
Pessoas em situação de rua: levantamento nacional
Em 29 de abril de 2008, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate
à Fome – MDS - divulgou o resultado da Pesquisa Nacional sobre a População em
Situação de Rua10 realizada nos municípios com mais de 300 mil habitantes. Foram
excluídos do universo os municípios que já realizaram levantamento semelhante
(Belo Horizonte - MG, São Paulo - SP, Recife - PE e Porto Alegre - RS). A pesquisa
identificou 31.922 pessoas (maiores de 18 anos) vivendo nessa condição em 71
municípios, sendo 23 capitais e 48 municípios. Ao considerar esse total, juntamente
com as pesquisas já realizadas nas cidades mencionadas, é possível estimar um
número aproximado de 45.000 pessoas nas capitais de Estado (e Distrito Federal) e
municípios com mais de 300 mil habitantes do Brasil. A Pesquisa apontou que
0.061% da população das cidades pesquisadas encontra-se em situação de rua.
10
Essa síntese apresentada foi retirada do Sumário Executivo de: BRASIL. Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Pesquisa Nacional sobre a População em Situação
de Rua. Brasília, 2008. E a consulta ao relatório oficial da pesquisa em visita realizada em Brasília.
73
Dentre os dados apresentados na pesquisa divulgada, podemos destacar:
● 82% das pessoas em situação de rua são homens;
● a maioria (53%) está entre os 25 e 44 anos;
● o cruzamento idade e sexo demonstra que, dentre as mulheres, existe uma
concentração maior, entre as faixas de 18 a 34 anos, somando 52.2%, para
43.3% de homens, nessa mesma faixa etária.
● 39,1% das pessoas em situação de rua declararam-se pardas para 29.5%
que se declararam brancos e 27.9% consideraram-se negros;
● 74% dos entrevistados sabem ler e escrever. 17,1% não sabem escrever e
8,3% apenas assinam o próprio nome. A maioria é alfabetizada, já que os
analfabetos e analfabetos funcionais correspondem a 25,4%. Apenas 3,2%
concluíram o segundo grau.
● 69,6% dormem nas ruas e apenas 22,1% nos albergues; preferem dormir na
rua 46,5% dos entrevistados, enquanto 43,8% manifestaram preferência por
dormir em albergues; Entre aqueles que manifestaram preferência por dormir
na rua, 43,9% apontaram a falta de liberdade como o principal motivo da não
preferência por dormir em albergue. O segundo principal motivo foi o horário
(27,1%) e o terceiro a proibição do uso de álcool e drogas (21,4%);
● Os principais motivos pelos quais essas pessoas passaram a viver e morar
na rua referem-se aos problemas de alcoolismo e/ou drogas (35,5);
desemprego (29,8%) e desavenças com pai/mãe/irmãos (29,1%).
● 45,8 % sempre viveram no município em que foram interpelados (enquanto
30,3% viveram em outros municípios do mesmo estado), dado que desmistifica
a migração como única responsável pelo fenômeno de população em situação
de rua;
● 48,4% estão há mais de dois anos dormindo na rua ou em albergue;
● Apenas 29,7% dizem ter problemas de saúde; sendo apontadas as doenças:
hipertensão (10,1%), problema psiquiátrico/mental (6,1%), HIV/Aids (5,1%) e
problemas de visão/cegueira (4,6%). 18,7% fazem uso de algum medicamento;
● 24,8% das pessoas em situação de rua não possuem quaisquer documentos
de identificação;
74
● 51,9% dos entrevistados possuem algum parente residente na cidade onde
se encontram. 38,9% deles não mantêm contato com esses parentes e 14,5%
mantêm
contato em períodos espaçados; 34,3% mantêm
contatos mais
frequentes (diários, semanais ou mensais); 23,1% mantêm contatos com
parentes que vivem fora da cidade em que se encontram.
● 70,9% exercem atividade remunerada; dentre elas, destacam-se: catador de
materiais recicláveis (27,5%), flanelinha (14,1%), construção civil (6,3%),
limpeza (4,2%) e carregador/estivador (3,1%). Pedem dinheiro como principal
meio para a sobrevivência apenas 15,7% das pessoas;
● 52,6% recebem entre R$ 20,00 e R$ 80,00 semanais. 58,6% dos
entrevistados afirmaram ter alguma profissão, ainda que não a estejam
exercendo no momento.
● 1,9% dos entrevistados afirmaram estar trabalhando atualmente com carteira
assinada. 47,7% dos entrevistados nunca trabalharam com carteira assinada.
● 90%
dos
moradores
de
rua
não são
atendidos
por programas
governamentais, como a aposentadoria, Bolsa Família e o Benefício de
Prestação Continuada (BPC).
● Um dos motivos que leva as pessoas a viverem nessa condição é
desemprego.
● 79,6% conseguem fazer ao menos uma refeição ao dia;
● 54,5% das pessoas em situação de rua entrevistadas já sofreram algum tipo
de discriminação, principalmente por meio do impedimento de sua entrada em
estabelecimentos;
● 95,5% não participam de qualquer movimento social.
O Relatório do Instituto Meta, responsável pela pesquisa, faz a distinção de
dois grupos que moram nas ruas: dormem nas ruas, em sua maioria: homens,
pessoas que se consideram pardas ou pretas, de faixas etárias mais baixas, sem
instrução e com níveis de renda mais baixos. Nos albergues, encontra-se uma
proporção maior de mulheres, de pessoas que se consideram brancas, de faixas
etárias mais elevadas, de níveis de escolaridade e renda mais elevados. Outra
diferença dentre os que dormem nos albergues é a proporção maior de documentos
de identificação. Também recebem em maior proporção o Programa Bolsa Família e
75
aposentadoria. A incidência é maior ainda de pessoas que possuem uma profissão,
de pessoas que trabalham e/ou que já trabalharam com carteira assinada e que se
alimentam diariamente.
Podemos perceber, com os resultados da pesquisa, que algumas
desmistificações puderam ocorrer. Dentre elas, a presença de pessoas oriundas da
própria cidade e com vínculos familiares estabelecidos, a presença de certo grau de
escolaridade, mesmo mínimo e também do número reduzido de pessoas que se
utilizam da mendicância.
No entanto, afirmamos que
No Brasil, sem dúvida, os moradores de rua expressam uma
situação limite de pobreza, provocada por uma trajetória
perversa de inclusão social, que acarretou falências e
desvinculações sociais, conduzindo à precarização de suas
condições de vida, na qual não encontraram suporte nem no
âmbito privado e nem tão pouco no público, para que
pudessem reagir, embora pela Constituição Brasileira, todo
cidadão tenha direito à uma vida “digna”. (BORIN, 2003:59)
O perfil de quem vive nas ruas é, de certa forma, heterogêneo em sua
complexidade, o que demanda níveis diferenciados de intervenção social. A imagem
do mendigo “tradicional” já não podia ser encontrada na primeira pesquisa realizada,
publicada no livro “População de Rua - Quem é, Como vive e Como é vista”,
tampouco na pesquisa da FIPE (2000 e 2003) e se legitima no Brasil todo como
demonstra o Censo realizado nacionalmente.
Como então pensar a saída da situação de rua? Como demonstra o Editorial
do Jornal o Trecheiro11, de outubro de 2005:
Sair da situação de rua não é como cair nela. O processo de se
levantar é longo e duro. Voltar a viver a rotina de uma casa, de
um trabalhador, mesmo informal, ou até de um desempregado
que vive com a solidariedade da família não é tão simples
como se imagina. A sociedade não está preparada para o
retorno. É como se o lugar daquele ou daquela que foi morar
na rua já estivesse ocupado.
11
Jornal publicado pela Rede Rua de Comunicação mensalmente.
76
Então, discutir esse tema torna-se relevante e indispensável, já que “muitos
duvidam, alguns não acreditam, outros não sabem, e muitos não estão preocupados
com isso [...]” (O TRECHEIRO, 2006). Discutiremos isso nos próximos capítulos.
Finalmente, outros conceitos ainda serão tratados no decorrer deste
trabalho. No entanto, com vistas a concluir o cenário desta
pesquisa, objetivo
principal deste primeiro capítulo, reforçamos alguns pontos e traremos alguns
questionamentos sobre o exposto até o momento.
Assim como o conceito de exclusão, pobreza e vulnerabilidade são
complexos e remetem-nos a um processo e não apenas uma condição de renda,
pensar o perfil das pessoas que hoje utilizam a rua como espaço de sobrevivência e
moradia, além de ser um desafio, deve ser analisado levando-se em consideração
os processos que culminaram nessa condição, fruto de um sistema capitalista.
Pensar a segregação urbana que ocorre em uma metrópole como São Paulo
também é um desafio. E, nesse sentido, alguns dados aqui apontados remetem-nos
à compreensão de algumas razões pelas quais as pessoas em situação de rua
acabam “escolhendo” a região central da cidade para sobreviverem. Isso se justifica
em função dos dados levantados que mostram a região da Sé, por exemplo, como
uma das regiões da cidade de São Paulo com maior acesso a algumas políticas
públicas, se comparada a outras regiões da cidade.
Assim, a discussão e compreensão das pessoas em situação de rua na
cidade de São Paulo não pode ser feita e pensada isoladamente. Afinal, dados
demonstrados neste
capítulo
permitem-nos afirmar até a própria similaridade
existente entre o perfil das pessoas que estão em situação de rua com o perfil geral
do morador da cidade de São Paulo, principalmente ao considerarmos a situação
educacional e os vínculos de trabalho.
O próprio déficit habitacional e o percentual de pessoas vivendo em
assentamentos precários, loteamentos irregulares, favelas e cortiços também é um
dado relevante ao pensarmos no atual perfil das atuais pessoas que estão em
situação de rua na cidade de São Paulo.
77
Dessa forma, pensar a saída da condição de rua requer reconstituir um
cenário marcado por processos vividos, muitas vezes marcados por uma situação de
vulnerabilidade social e exclusão anteriormente vivenciados e que, para serem
revertidos, demandarão uma somatória de ações para que, de fato, a reinserção
social dessas pessoas aconteça efetivamente.
78
FOTO
CAPÍTULO II - PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA: RESGATE HISTÓRICO
DO ATENDIMENTO A ESSE PÚBLICO EM SÃO PAULO E O
RESPALDO LEGAL EXISTENTE
O Abrigo Noturno
Soube que em Nova Iorque
Na esquina da Rua 26 com a Broadway
Todas as noites do inverno há um homem
Que arranja abrigo noturno para os que ali não tem teto
Fazendo pedidos aos passantes
O mundo não vai mudar com isso
As relações entre os homens não vão melhorar
A era da exploração não vai durar menos
Mais alguns homens têm um abrigo noturno
Por uma noite o vento é mantido longe deles
A neve que cairia sobre eles cai na calçada.
Não ponha de lado o livro, você que me lê
Alguns homens têm um abrigo noturno.
A neve que cairia sobre eles cai na calçada.
Mas o mundo não vai mudar com isso
As relações entre os homens não vão melhorar
A era da exploração não vai durar menos.
Bertolt Brecht
79
Neste capítulo, abordaremos um breve histórico do atendimento às pessoas
em situação de rua na cidade de São Paulo, com maior ênfase no período entre os
anos 2000 e 2010, delimitação desta pesquisa. Também apresentaremos,
igualmente, a legislação vigente que visa à garantia de direitos a esse público.
2.1 O HISTÓRICO DO ATENDIMENTO ÀS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA NA
CIDADE DE SÃO PAULO E SUA RELAÇÃO COM A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA
SOCIAL
Falar em atendimento às pessoas em situação de rua na cidade de São
Paulo é também repensar a trajetória da implantação da política de assistência
social nesse município e, por que não dizer, no país.
Nesse sentido, resgatar as formas encontradas de assistência a pessoas em
situação de rua remete-nos a compreensão dos momentos vividos pela assistência
social no Brasil, já que atender a esse segmento sempre foi função dessa política.
No Brasil, a assistência social transitou “[...] no campo da solidariedade,
filantropia e benemerência, princípios que nem sempre representam direitos sociais,
mas apenas benevolência paliativa” (MESTRINER, 2001:21). Assim, as primeiras
ações desenvolvidas às pessoas em situação de rua também remetem-nos a ações,
em sua maioria, de cunho solidário, filantrópico, benemerente e, em grande parte,
religioso.
Do período imperial até o início da República, as obras pias eram as
organizações que frequentemente surgiam junto às igrejas e conventos para o
atendimento a órfãos, inválidos, enfermos e delinquentes, e que cresceram
sobremaneira no decorrer do tempo. A essas instituições também eram delegados
os cuidados daqueles que perambulavam pelas ruas das cidades.
Destacamos, a título de exemplo, a presença da Irmandade de Misericórdia
de São Paulo (1560) – seis anos após a fundação da cidade. Atendendo escravos e
homens livres com uma pequena enfermaria, foi responsável pelos primeiros asilos,
hospitais e manicômios, baseando-se nas sete obras corporais: curar os enfermos,
remir os cativos, visitar os presos, cobrir os nus, dar de comer aos famintos, dar de
beber a quem tem sede, dar pouso aos peregrinos e enterrar os mortos (GARCIA,
apud LANDIM, 1993:14).
80
Na
Primeira
República
(1889-1930),
iniciaram-se
os
atendimentos
específicos para cada público-alvo: crianças – orfanatos; idosos – asilos; doentes –
sanatórios e dispensários, entre outros. Esse período foi
higienismo, em que
marcado por forte
os objetivos das ações prestadas eram a assistência, a
prevenção e a segregação dos “inválidos” para a sociedade. O social não era
considerado como uma função pública e a questão social era considerada como
“caso de polícia”. Adiante retomaremos essa análise, uma vez que, atualmente, na
cidade de São Paulo, pessoas vivendo nas ruas voltaram (como nesse período) a
ser tratadas como caso de polícia, já que a abordagem àqueles que estão na rua
vem sendo feita pela Guarda Civil Metropolitana (GCM)12.
Entre 1930 e 1945, período conhecido como Getulismo, as formas de
assistência social são classificadas por Mestriner (2001) como filantropia
disciplinadora. Cria-se, em 1938, o Conselho Nacional de Serviço Social (CNSS),
primeira regulamentação da assistência social no país, por intermédio de órgãos de
cooperação do Ministério da Educação e Saúde.
A subvenção, auxílio financeiro da esfera governamental para organizações
sociais, foi a característica principal do papel do Estado perante suas obrigações
sociais ao longo da história do Brasil. A presença do Estado, após os anos 1930,
expressa-se na legislação previdenciária13 e trabalhista.
O trabalho é, então, concebido como forma de valorização do indivíduo,
passando a ser direito e dever do homem, mediante o qual conseguirá lugar na
sociedade e na relação com o Estado. Dessa forma, as organizações trabalhavam
para o atendimento dos desempregados e dos sem possibilidades de inserção ao
mercado de trabalho.
Em 1942, cria-se a Legião Brasileira de Assistência – LBA, como órgão
responsável em prestar ajuda “aos necessitados”.
Mestriner classifica o período do Estado Democrático Populista, de 1946 a
1964, como um período da filantropia partilhada profissionalizante. Inclusive, foi
nesse período que foram criadas três instituições pelo Estado, o SENAC (Serviço
12
A esse respeito, ver reportagem publicada no Jornal da Tarde (em 14/04/2010 – caderno 3A), sob o
título “Em São Paulo, morador de rua vira assunto de polícia”, que trata da regulamentação da
Guarda Civil Metropolitana como responsável não só pela abordagem, mas também pelo
encaminhamento da população para a rede de serviços.
13
Criam-se, também, setores estatais no âmbito da assistência social, como: Departamento de
Assistência Social do Estado (1935) e o Serviço de Assistência ao Menor (1941).
81
Nacional de Aprendizagem do Comércio), o SESC (Serviço Social do Comércio) e o
SESI (Serviço Social da Indústria), macro-organismos que propiciavam a ocupação
da burguesia no social. Não bastavam as organizações de benemerência e ação
voluntária do primeiro-damismo. Era preciso um novo aparato social aliançado com
a elite industrial emergente (MESTRINER, 2001:117).
Fazendo um retrospecto a meados do século XX, recorremos a Corrêa
(2009), que, ao estabelecer uma cronologia do atendimento às pessoas em situação
de rua por meio da atuação da sociedade civil e do poder público, destaca em 1950
a concepção preconceituosa existente ao referirem-se a essas pessoas como
mendigos, vadios e pessoas perigosas. A ação da sociedade civil era realizada pela
Igreja Católica e a do Estado, pela Delegacia de Vadiagem e Mendicância.
O Estado autoritário de 1964 a 1988 caracteriza-se pela filantropia de
clientela e apadrinhamento. Amplia-se o número de congregações católicas que
vinham da Europa para se instalar no Brasil, como também instituições de outras
correntes religiosas, organizações de amparo ao migrante e organizações de apoios
especiais, para situações específicas, como: alcoolismo, deficiência, entre outras.
Destacamos, em 1970, o trabalho pioneiro da OAF – Organização do Auxílio
Fraterno14, instituição vinculada à
Igreja Católica, que iniciou atendimento às
pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo e amplia sua atuação junto a
esse público nesse período.
Vale também destacar a criação, pelo Governo do Estado de São Paulo, em
1972 (Decreto 52.897), da Central de Triagem e Encaminhamento, órgão
pertencente à Coordenadoria dos Estabelecimentos Sociais do Estado, da
Secretaria da Promoção Social, que visava
[...] centralizar e sistematizar os serviços de triagem e
encaminhamento dos grupos humanos desprovidos de
recursos econômico-financeiros que, residentes na Capital ou
em trânsito por ela, necessitam de auxílio e orientação.
(Secretaria de Promoção Social, 1978:09)
14
Criada, em 1955, pela Fraternidade das Oblatas de São Bento para trabalhar com pessoas em
situação de rua; no início da década de 1970, intensifica esse atendimento.
82
Esse serviço tinha como objetivo adaptar e reabilitar o indivíduo socialmente,
sendo o “[...] CETREM a primeira alternativa para abrigar os que chegam à cidade
[...]” (PEREIRA, 1997:68).
Na década de 1980, “[...] as ações voltadas ao segmento se restringiam aos
‘famosos’ sopões, atividades estas vinculadas aos diversos grupos religiosos e sem
nenhuma alternativa no âmbito do poder público” (PEREIRA, 1997:43). Intensificase, nessa década, a participação de grupos religiosos.
Alderon Pereira da Costa e Arlindo Pereira Dias, no prefácio do livro “Vidas
de Rua” (ROSA, 2005:16), destacam que:
As décadas de 1970 e 1980 estão marcadas pela hostilidade e
agressão do poder público em relação à população em tela.
Administrações como a do prefeito Jânio Quadros
desenvolveram ações truculentas de despejos e perseguição
sistemática a essa população. Os fatos mais graves foram a
proibição de catar papelão, a expulsão das praças com jatos de
água de carros-pipa e o cerceamento do direito de ir e vir
mediante o gradeamento de praças e baixos de viadutos,
dando início à chamada arquitetura da exclusão.
A transição democrática vivida pelo país entre 1985 e 1993 caracteriza-se
pela filantropia denominada por Mestriner de vigiada. Nesse período, são realizados
grandes eventos de discussão acerca da assistência social no país e diversos
núcleos de pesquisas são instalados. Nesse sentido, a prática de muitas
organizações sociais também passou a ser revista, já que as ações desenvolvidas
não estavam mais dando conta das reais necessidades da população atendida.
Dessa forma, essas discussões auxiliaram no embasamento da nova
configuração da política de assistência social no país, quando as práticas
assistencialistas começavam a ser reestruturadas. Essas discussões também
tiveram repercussão em São Paulo, junto àqueles que atuavam com pessoas em
situação de rua. Destacamos, segundo Corrêa (2009):
- 1987 - início da atuação do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, com
trabalho de convivência e reinserção social para pessoas em situação de rua;
- 1989 - criação do Fórum das Organizações que trabalham com pessoas em
situação de rua;
83
- 1990 - Decreto 28.649 reconhece o trabalho dos catadores de papel organizados
oficialmente em cooperativas;
- 1991 - instituição, em 10 de maio,do Dia de Luta da População de Rua;
- 1993 - as organizações sociais passaram a realizar o Fórum, criado em 1989, sem
a participação do poder público.
Enfatizamos, como marco para uma nova concepção da assistência social
enquanto política de direitos, a Constituição Federal de 1988 e a Lei Orgânica da
Assistência Social. A LOAS,criada em 1993, por um lado, avança na compreensão
da assistência social enquanto política; por outro, mesmo se tornando um status de
direito, sofre as conseqüências da reforma do Estado, que opera uma série de
reduções da função estatal, desresponsabilizando-se de suas atribuições.
Vale destacar que a Lei Orgânica da Assistência Social traz, em seu artigo
1º,
[...] a assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é
Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os
mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de
iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento
às necessidades básicas.
Especificamente em São Paulo, destaca-se a gestão da prefeita Luiza
Erundina (1989 - 1992) como a marca de grande avanço na construção de formas
de atendimento pelo poder público aos que viviam em situação de rua. Foi um
período assinalado pelo questionamento às práticas assistencialistas desenvolvidas
até então para esse público, “[...] cujo ponto analítico apontava para a idéia dessas
pessoas serem vítimas de um modo de produção, que as fabricava. Não havia a
perspectiva de culpá-los individualmente” (PEREIRA, 1997:44).
A autora também esclarece que esse
pensamento era uma construção
difícil, já que não havia um posicionamento homogêneo, além da própria dificuldade
em
romper
com
práticas
repressivas,
autoritárias,
preconceituosas,
estigmatizadoras, por exemplo, além das ideias de “[...] inutilidade de tais
intervenções, considerada a população em situação de rua como algo sem solução”
(PEREIRA, 1997:45).
84
Foi possível visualizar no período assinalado inúmeras
iniciativas, avançando na elaboração de políticas sociais
públicas voltadas a esse segmento – abrigos, casas de
convivência, albergues. Uma gama de atividades foi realizada
no âmbito municipal, disponibilizando recursos financeiros,
assim como profissionais para atuarem na área. (PEREIRA,
1997:45)
Giorgetti (2006:138) destaca nesse período (1989-1992):
● Reconhecimento do Poder Público do problema: criação dos convênios com
as entidades religiosas, dando origem à rede de serviços15;
● Organização do 1º Fórum Nacional de Estudos da população de rua;
● Organização do 1º Fórum das Entidades envolvidas;
● Realização da primeira pesquisa sobre população de rua.
Aqui, apontamos
como resultado do 1º Fórum/Seminário Nacional a
publicação (no ano de 1995) do livro “População de Rua: Brasil e Canadá”,
organizado por Cleisa Rosa. Nele, concretiza-se a problematização central em
qualificar as práticas existentes no Brasil a esse público. Como apresentado no
prólogo, por David Capistrano Filho, então prefeito de Santos/SP, que inicia a
publicação pontuando que
[...] compreender a importância de se ter uma política para a
população de rua no Brasil é compreender a diferença entre
caridade e justiça [...] do ponto de vista da justiça, atender a
população de rua é reparar um erro moral (e, portanto cometido
conscientemente), é combater uma distorção provocada pelo
modo com que nossa sociedade se organiza econômica e
politicamente. (ROSA, 1995:09)
Já Luiza Erundina afirma que não há mais lugar para o tratamento
repressivo e assistencialista tradicionalmente dado a essa população (ROSA,
1995:11).
15
Pereira (1997:82) aponta, com relação a isso: “Essas entidades, até então não possuíam qualquer
vínculo entre si, nem tampouco institucionalmente com a Prefeitura Municipal de São Paulo, seja
através de um intercâmbio técnico, seja através de concessão de auxílios e estabelecimento de
convênios.”
85
Na ocasião do Seminário, Sposati fala sobre a população de rua frente às
questões das políticas públicas e da gestão da cidade, fazendo quatro
considerações. A primeira acerca da selvageria do capitalismo brasileiro, ou seja,
[...] nós não estamos falando de um caso, de uma situação
particular, mas de um processo excludente, onde quem não
está sendo objeto imediato da extração da mais-valia fica
invisível [...] a luta pela dignidade do homem de rua [...] é uma
luta que se liga a lutas maiores [...] o caráter intersetorial da
questão [...].
A segunda consideração da autora diz respeito à reconstrução do Estado
brasileiro que garanta, para todos, padrões mínimos. Já a terceira, relaciona-se à
população de rua e à gestão da cidade, garantindo as especificidades das regiões,
preocupação com a dinâmica da cidade, com a manutenção da vida das pessoas. A
quarta, a legalização do dever do Estado (ROSA, 1995:182-185). Lembrando que,
na ocasião, a LOAS ainda não havia sido decretada.
E foi assim que, na década de 1990, o tema “pessoas em situação de rua”
ganhou mais destaque na imprensa, fomentando “[...] a necessidade de voltar a
atenção para esse segmento, no sentido de elaborar e executar políticas sociais”
(PEREIRA, 1997:42) que atendessem essa população. Destacam-se, também nesse
período, diversos questionamentos sobre as formas de atendimento a esse público
que oscilava entre a idéia conservadora de adaptação à sociedade ou ainda a
resignação e/ou imobilismo com a aceitação da situação. Todo um movimento
realizado na gestão de Luiza Erundina
Procurou tirar a carga de culpabilidade do âmbito estritamente
individual, apontando para outros fatores de análise, como a
própria sociedade que propicia o aparecimento de situaçõeslimite como essa. [...] Forçou ainda o Estado, entendido como
gestor de políticas sociais públicas, a repassar recursos
financeiros para o atendimento da questão. Isso não foi pouco.
(PEREIRA, 1997:109)
O período de efetivação das reformas ocorridas na política de assistência
social, entre 1994 e 2000, é classificado por Mestriner como o período da filantropia
democratizada, com a expansão dos conselhos setoriais, das organizações não governamentais, dos centros de defesa de direitos e das fundações empresariais.
86
No entanto, mesmo com essa importante conquista para o país, em São
Paulo, o que havia avançado, a partir de 1993 na gestão de Paulo Salim Maluf,
trouxe novamente a repressão a essa população.
No período de 1993/96, a administração malufista assumiu a
denominada “limpeza das ruas”, onde até jatos d’água foram
utilizados para retirar as pessoas de seus locais de abrigo,
como marquises de lojas e bancos, e viadutos. (PEREIRA,
1997:47)
A gestão de Celso Pitta (1997-2000), embora com a mesma concepção
política de Maluf, retoma a política pública iniciada no governo de Luiza Erundina, no
entanto sem o resultado esperado, pois predominaram ações fragmentadas e
setorizadas. Destacamos a votação da Lei 12.316/97, de autoria da então vereadora
Aldaíza Sposati (que, em 1994, foi vetada por Maluf).
Giorgetti (2006:138) destaca nesse período (1993-2001):
● Regulamentação do dispositivo Calahan (normatização e diretrizes para os
serviços da rede);
● Aprovação da Lei 12.316/97;
● Criação de rubrica orçamentária específica para população de rua;
● Primeira Frente de Trabalho para população de rua;
● Surgimento da Revista Ocas;
● Proliferação, durante todo o período, de ações higienistas de expulsão e
remoção sem contrapartida, realizadas pela Prefeitura;
● Confrontos entre as diversas Igrejas e a Prefeitura, em virtude das ações
higienistas.
Corrêa (2009) acrescenta nesse mesmo período:
- 1994: Quarto ano consecutivo do Dia de Luta – apresentado à Câmara Municipal o
Projeto de Lei de Atenção à população de rua (número 207), resultado de várias
tribunas populares e audiência com o Fórum de população de rua e a própria
população;
87
- 1998: em maio, são contadas 2260 vagas em albergues e abrigos e foram
encontradas 6.453 pessoas em situação de rua, 85% realizando alguma atividade
remunerada.
Em 2001, o primeiro ato da Prefeita Marta Suplicy foi a regulamentação da
Lei 12.316/97 e a criação do decreto nº 40.232, em 02 de janeiro de 2001. Também
merece destaque, nessa gestão, a criação de um padrão mínimo para a oferta dos
atendimentos a esse público, estabelecida pela então SAS – Secretaria de
Assistência Social..
Giorgetti (2006) aponta a importância da Lei 12.316/97, quando problematiza
a impossibilidade de se propor tratamento político-institucional de qualidade para
uma população que não tem seus direitos reconhecidos.
Nesse sentido, a lei 12.316/97 é muito oportuna para os
moradores de rua da cidade de São Paulo, porque contém a
possibilidade de eles terem a dignidade respeitada; entretanto,
traz, ao mesmo tempo, em seu bojo as marcas de uma
“metamorfose” que indica – segundo Wanderley (1997) – que
houve “inegáveis avanços na legislação”, mas que a situação
na qual vivem essas pessoas pouco se alterou. (GIORGETTI,
2006:143)
Simões (2007:321) resume os seguintes princípios da Lei:
● respeito e garantia de dignidade e cidadania;
● direito da pessoa a um espaço digno para estar, pernoitar e se referir, na
cidade, assegurada a privacidade, como condição inerente à sua vida e
cidadania;
● supressão de qualquer ato de violência, bem como da comprovação
vexatória do Estado de necessidade;
● não-discriminação, por motivo de origem, raça, cor, orientação sexual, sexo,
idade e outros, no acesso a bens e serviços municipais, sem tratamento
degradante, vexatório ou humilhante;
● garantia de unidade familiar, na prestação dos serviços, vedada a
desintegração familiar, para fins de atendimento;
88
● direito ao restabelecimento de sua dignidade e autonomia, bem como à
convivência comunitária;
● direito à participação em organizações representativas, na proposição e
controle das ações de seu interesse.
A Lei também institui o Conselho de Monitoramento16 da política de direitos
das pessoas em situação de rua e estabelece programas e serviços como: abrigos
emergenciais, albergues ou abrigos especiais, centros de serviços, restaurantes
comunitários, casas de convivência, moradias provisórias, habitações definitivas,
oficinas, cooperativas de trabalho e comunidades produtivas, além de programas
integrados e projetos sociais. (SIMÕES, 2007:322)
O ano de 2004 marca, no cenário nacional, mais um avanço no sentido de
legitimar a Política de Assistência Social como uma política de direitos: a criação da
Política Nacional de Assistência Social (PNAS), que prevê a proteção social devendo
garantir as seguranças de sobrevivência (de rendimento e de autonomia), de
acolhida, de convívio ou vivência familiar. Vale frisar que, dentre os princípios dessa
política, temos previsto: “Igualdade de direitos no acesso ao atendimento, sem
discriminação de qualquer natureza, garantindo-se equivalência às populações
urbanas e rurais.“ (IV Princípio da Política Nacional de Assistência Social - BRASIL,
2004)
A PNAS prevê enquanto proteções afiançadas: a proteção básica e a
proteção especial. A proteção social básica tem como objetivos e destina-se a
[...] prevenir situações de risco por meio do desenvolvimento de
potencialidades e aquisições, e o fortalecimento de vínculos
familiares e comunitários. Destina-se à população que vive em
situação de vulnerabilidade social decorrente da pobreza,
privação (ausência de renda, precário ou nulo acesso aos
serviços públicos, dentre outros) e, ou, fragilização de vínculos
afetivos – relacionais e de pertencimento social (discriminações
etárias, étnicas, de gênero ou por deficiências, dentre outras).
(BRASIL, 2004:31-32)
É na proteção social especial que se enquadram as ofertas de atendimento
às pessoas em situação de rua
16
Conselho de Monitoramento é instituído pelo Decreto 43.277/2003.
89
[...] que tiverem seus direitos violados e, ou, ameaçados. [...]
No caso da proteção social especial, à população em situação
de rua serão priorizados os serviços que possibilitem a
organização de um novo projeto de vida, visando criar
condições para adquirirem referências na sociedade brasileira,
enquanto sujeitos de direitos. (BRASIL, 2004:35)
Exemplo de serviço de média complexidade (atendimento àqueles cujos
direitos foram violados, mas vínculos ainda não rompidos) para pessoas em situação
de rua é a abordagem na rua. Já entre os serviços de alta complexidade (que
garantem proteção integral) estão os albergues, repúblicas e casas de passagem,
por exemplo.
Em 2004, em São Paulo, assina-se o primeiro Protocolo de Intenções
Intersecretarial entre as Secretarias de Assistência Social, Saúde, Habitação e
Trabalho, sendo previstas ações para o atendimento das pessoas em situação de
rua, em todas as Secretarias. Destaque para a criação do projeto “A gente na Rua”,
da Secretaria da Saúde, no qual pessoas em situação de rua são capacitadas e
contratadas como agentes comunitários de saúde para atuarem nas ruas17.
Vale lembrar a promulgação da Lei 11.258, de 30 de dezembro de 2005, que
inclui, no artigo 23º da Lei Orgânica da Assistência Social (Lei 8.742, de 07 de
dezembro de 1993), a criação de programas de amparo às pessoas que vivem em
situação de rua, sendo essa a meta para todo o país.
Visando cumprir uma das diretrizes da Política Nacional de Assistência
Social no que tange à primazia da responsabilidade do Estado na condução da
política de assistência social em cada esfera de governo (PNAS), o MDS conduziu e
empreendeu um processo que culminou na criação da Política Nacional para a
Inclusão Social das Pessoas em Situação de Rua, para garantir a organização do
atendimento a esse público de forma intersetorial. Assim, o decreto Nº- 7.053, de 23
de Dezembro de 2009, institui a Política Nacional para a População em Situação de
Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras
providências.
Nesse
decreto, conceitua-se em seu artigo 1º - parágrafo único, essa
população:
17
Convém esclarecer que essa não foi a primeira iniciativa em São Paulo de um trabalho intersetorial,
já que, na Gestão de Luíza Erundina, várias tentativas também foram realizadas.
90
Para fins deste Decreto, considera-se população em situação
de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em
comum a pobreza extrema, os vínculos familiares
interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia
convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as
áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de
forma temporária ou permanente, bem como as unidades de
acolhimento para pernoite temporário ou como moradia
provisória.
Também se torna necessário o conhecimento de seu artigo 5º, pois se trata
dos princípios da Política Nacional para a População em Situação de Rua, que, além
da igualdade e equidade, prevê:
I - respeito à dignidade da pessoa humana;
II - direito à convivência familiar e comunitária;
III - valorização e respeito à vida e à cidadania;
IV - atendimento humanizado e universalizado; e
V - respeito às condições sociais e diferenças de origem, raça,
idade, nacionalidade, gênero, orientação sexual e religiosa,
com atenção especial às pessoas com deficiência.
O artigo 7º apresenta os objetivos da Política Nacional para a População em
Situação de Rua:
I - assegurar o acesso amplo, simplificado e seguro aos
serviços e programas que integram as políticas públicas de
saúde, educação, previdência, assistência social, moradia,
segurança, cultura, esporte, lazer, trabalho e renda;
II - garantir a formação e capacitação permanente de
profissionais e gestores para atuação no desenvolvimento de
políticas
públicas
intersetoriais,
transversais
e
intergovernamentais direcionadas às pessoas em situação de
rua;
III - instituir a contagem oficial da população em situação de
rua;
IV - produzir, sistematizar e disseminar dados e indicadores
sociais, econômicos e culturais sobre a rede existente de
cobertura de serviços públicos à população em situação de rua;
V - desenvolver ações educativas permanentes que contribuam
para a formação de cultura de respeito, ética e solidariedade
entre a população em situação de rua e os demais grupos
sociais, de modo a resguardar a observância aos direitos
humanos;
VI - incentivar a pesquisa, produção e divulgação de
conhecimentos sobre a população em situação de rua,
contemplando a diversidade humana em toda a sua amplitude
étnico-racial, sexual, de gênero e geracional, nas diversas
áreas do conhecimento;
91
VII - implantar centros de defesa dos direitos humanos para a
população em situação de rua;
VIII - incentivar a criação, divulgação e disponibilização de
canais de comunicação para o recebimento de denúncias de
violência contra a população em situação de rua, bem como de
sugestões para o aperfeiçoamento e melhoria das políticas
públicas voltadas para este segmento;
IX - proporcionar o acesso das pessoas em situação de rua aos
benefícios previdenciários e assistenciais e aos programas de
transferência de renda, na forma da legislação específica;
X - criar meios de articulação entre o Sistema Único de
Assistência Social e o Sistema Único de Saúde para qualificar
a oferta de serviços;
XI - adotar padrão básico de qualidade, segurança e conforto
na estruturação e reestruturação dos serviços de acolhimento
temporários, de acordo com o disposto no art. 8o;
XII - implementar centros de referência especializados para
atendimento da população em situação de rua, no âmbito da
proteção social especial do Sistema Único de Assistência
Social;
XIII - implementar ações de segurança alimentar e nutricional
suficientes para proporcionar acesso permanente à
alimentação pela população em situação de rua à alimentação,
com qualidade; e
XIV - disponibilizar programas de qualificação profissional para
as pessoas em situação de rua, com o objetivo de propiciar o
seu acesso ao mercado de trabalho.
Os objetivos acima permitem-nos afirmar uma mudança de paradigmas na
forma de atendimento a esse público das últimas décadas para a atualidade.
Merece também nossa consideração o artigo 8º, que prevê o padrão básico
de qualidade, segurança e conforto da rede de acolhimento temporário devendo
observar
limite
de
capacidade,
regras
de
funcionamento
e
convivência,
acessibilidade, salubridade e distribuição geográfica das unidades de acolhimento
nas áreas urbanas, respeitado o direito de permanência da população em situação
de rua, preferencialmente nas cidades ou nos centros urbanos. Enfatizamos os
parágrafos:
§ 1o Os serviços de acolhimento temporário serão
regulamentados nacionalmente pelas instâncias de pactuação
e deliberação do Sistema Único de Assistência Social.
§ 2o A estruturação e reestruturação de serviços de
acolhimento devem ter como referência a necessidade de cada
Município, considerando-se os dados das pesquisas de
contagem da população em situação de rua.
§ 3o Cabe ao Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome, por intermédio da Secretaria Nacional de
92
Assistência Social, fomentar e promover a reestruturação e a
ampliação da rede de acolhimento a partir da transferência de
recursos aos Municípios, Estados e Distrito Federal.
§ 4o A rede de acolhimento temporário existente deve ser
reestruturada e ampliada para incentivar sua utilização pelas
pessoas em situação de rua, inclusive pela sua articulação com
programas de moradia popular promovidos pelos Governos
Federal, estaduais, municipais e do Distrito Federal.
O Artigo 9º institui o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e
Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua,
integrado por representantes da sociedade civil e de diversos órgãos, com a
coordenação da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da
República. Também irão compor esse
Comitê: o Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome; o Ministério da Justiça; o Ministério da Saúde; o
Ministério da Educação; o Ministério das Cidades; o Ministério do Trabalho e
Emprego; o Ministério dos Esportes; e o Ministério da Cultura.
A garantia de uma Política Nacional a esse segmento é fruto de décadas de
luta de diferentes setores da sociedade civil e prioridade do atual Governo Federal,
que, desde 2005, por meio da Secretaria Nacional de Assistência Social – Ministério
do Desenvolvimento Social e Combate à Fome -, organizou encontros e pautou esse
segmento dentre as prioridades de governo. Como exemplo, citamos a instituição do
GTI – Grupo de Trabalho Interministerial, em outubro de 2006, coordenado pelo
MDS, com a articulação de diversas áreas, para a elaboração dessa Política,
reunindo representantes dos Ministérios da Saúde, Educação, Cidades, Trabalho e
Emprego, Cultura e Secretaria Especial dos Direitos Humanos, que culminou na
política já descrita anteriormente.
Mesmo com o avanço relatado até o momento, principalmente no que tange
a uma política de direitos e com padrões mínimos a serem garantidos, visando o
atendimento digno a essa população, a cidade de São Paulo não tem acompanhado
a mesma discussão empreendida nacionalmente. Assim, merecem análise os
serviços de atendimento às pessoas em situação de rua, oferecidos pela política de
assistência social em São Paulo nos últimos anos.
93
2.2 A POLÍTICA DE ATENDIMENTO ÀS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA NA
CIDADE DE SÃO PAULO: 2000-2010
Em 1992, havia, na cidade de São Paulo, 02 albergues e 04 casas de
convivência; já em 2001, a rede de serviços a esse público aumentou para 11 Casas
de Convivência, 14 albergues, 2 abrigos para idosos, 01 oferta de curso
profissionalizante, 2 cooperativas de catadores e um serviço 24 horas de abordagem
e encaminhamento (nas ruas).
Os números acima permitem-nos afirmar que a forma mais encontrada de
atendimento a esse público, em São Paulo, consiste em albergues e casas de
convivência. Giorgetti (2006) conceitua albergues e casas de convivência:
Albergue: trata-se de serviço emergencial destinado a todas as
pessoas que se encontram nas ruas e não têm meios para
satisfazer suas necessidades básicas; destina-se, sobretudo,
às pessoas que não apresentam nenhuma ou têm poucas
condições para se manter sozinhas sem o apoio de uma
instituição social.
Casas de Convivência: esses serviços funcionam apenas
durante o dia e propiciam aos moradores de rua a possibilidade
de cuidar da higiene pessoal, lavar suas roupas e guardar seus
pertences; dá-se, porém, nesse espaço, maior ênfase às
atividades socioeducativas, de socialização e organização em
grupo, visando aumentar a auto-estima de seus beneficiários.
(GIORGETTI, 2006:137)
A autora apresenta oportuna reflexão, quando aponta que, entre 1992 e
2001,
[...] os equipamentos sociais, além de concentrarem ações
emergenciais e socioeducativas, não tinham propostas
referentes à moradia e à inserção profissional. Acrescenta-se a
isso, o fato de não haver na cidade serviços que levassem
em conta a diversidade da população de rua quanto a sexo,
idade, tempo de rua. (grifos nossos)
Acrescenta, ainda, que os diferentes graus de autonomia também não eram
considerados, já que a rede não diferenciava pessoas que acabavam de chegar a
essa situação daqueles que não conseguiam mais viver sem o apoio institucional.
A forma como esse atendimento era prestado também foi alvo de reflexão
dessa autora, constatando práticas predominantemente assistencialistas.
94
Em relação aos princípios de universalidade, respeito e
dignidade, equidade e integralidade, a rede de proteção social
implementada deixava a desejar. Em primeiro lugar, porque não
atendia a toda a população de rua, e muitos, dos equipamentos
sociais não conseguiam realizar serviços que levassem em
consideração o respeito à dignidade dessa população,
oferecendo, em alguns casos, serviços de “segunda mão”. As
situações mais urgentes não eram priorizadas; o morador de
rua não era considerado como um todo, e a maior parte do
trabalho realizado era um atendimento de massa. Muitos
albergues tinham capacidade de atendimento para mais de
trezentas pessoas e se encontravam debaixo de viadutos.
(GIORGETTI, 2006:141)
Assim, durante muito tempo, em São Paulo, a questão das pessoas em
situação de rua ficou a cargo das organizações religiosas; o poder público, com o
papel de financiamento dessas ações, que não eram padronizadas; e a oferta dos
serviços ia de acordo com a concepção de cada um do que deveria ser o trabalho
social a ser desenvolvido.
Giorgetti (2006:144) também aponta o problema na desarticulação dessa
“causa”, já que “o setor composto pelos representantes das instituições de São
Paulo não consegue se mobilizar para se fazer ouvir, tampouco tornar o problema do
morador de rua como uma prioridade do município” .
Nesse
item, serão também apresentados os resultados das principais
pesquisas que avaliaram a oferta do atendimento prestado à população em situação
de rua pela política de assistência social na cidade de São Paulo, nesse período.
Dessa forma, dividiremos os períodos de acordo com as diferentes gestões
municipais, destacando avanços e apontando limites constatados de acordo com os
levantamentos realizados, tanto bibliográficos, quanto documentais e empíricos.
2.2.1 Entre 2000 e 2004: a padronização dos serviços de atendimento às
pessoas em situação de rua
Como já citado neste capítulo, ênfase merece ser dada à conquista de
padrões mínimos de referência no âmbito dos serviços prestados pela política de
assistência social, incluindo o atendimento ao segmento pessoas em situação de
rua.
95
Nesse sentido, em 2003, a Secretaria Municipal de Assistência Social
publicou, fruto de uma consultoria da Fundação Carlos Chagas e do Instituto
Florestan Fernandes, o Subsídio para padrões de qualidade dos serviços de
assistência social.
Com relação aos serviços de atendimento às pessoas em situação de rua,
destacamos:
● Abrigo para adultos sob cuidados especiais: com o objetivo de acolher
pessoas em processos terapêuticos físicos ou mentais, com padrões de
dignidade, até que seja possível o alcance de um grau de autonomia pessoal.
Destinado ao abrigamento de homens e mulheres, incluídos idosos e pessoas
com deficiências, de ambos os sexos, em situação de rua [...] que necessitam
de cuidados de saúde, após alta hospitalar recebida da rede pública de saúde
(serviço desenvolvido em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde).
● Abrigo Especial de Mulheres: visando acolher mulheres, oferecendo-lhes
condições para o desenvolvimento de sua autonomia pessoal e social,
oferecendo abrigamento para mulheres, acompanhadas ou não de seus filhos,
que se encontram em situação de rua ou em situação de vulnerabilidade e
risco social. A oferta de atendimento
dá-se ininterruptamente, em regime
aberto e co-gestão.
● Moradia Provisória: um serviço com o objetivo de acolher e fortalecer a
pessoa para alcançar sua autonomia pessoal em moradias independentes
(pensões, casas de famílias, locação social, casa própria etc.). Destinada para
grupos de, no máximo, 20 pessoas, entre homens, mulheres e idosos, em
situação de rua ou abandono, e em processo de reinserção social, a partir de
18 anos, ou ainda famílias, com ou sem crianças e adolescentes. Destinada
para pessoas independentes e socialmente ativas, são atendidas, nessa
modalidade, mediante encaminhamento da rede socioassistencial de acolhida.
● Núcleo de Serviços com Albergue: com o objetivo de acolher por meio de
abrigamento provisório, homens, mulheres e famílias que se encontram em
situação de rua. Divide-se em 4 tipos:
○ Albergue: atende em período noturno;
○ Núcleo de Serviços/Convivência: atende em período diurno;
96
○ Núcleo de Serviços com Albergue I (funcionamento 24 horas);
○ Núcleo de Serviços com Albergue II (funcionamento 24 horas, incluindo
a oferta de abrigamento de pessoas com necessidades especiais).
Esclarecemos que, na padronização desses serviços, consta a descrição
das ofertas, além da explicação do trabalho social e do trabalho socioeducativo a
serem desenvolvidos nesses locais.
Em linhas gerais, são ofertas do trabalho social a ser desenvolvido:
recepção,
escuta,
orientação
individual/grupal/familiar,
orientações
e
encaminhamentos, orientação para obtenção de documentação pessoal, referência
e contrarreferência por meio da articulação com os serviços locais e os Centros de
Referência da Assistência Social, além do banco de talentos (oferta de cadastro de
potencialidades e capacidades operativas dos usuários).
Fazem parte do trabalho socioeducativo: a capacitação e preparação para o
mundo do trabalho e o desenvolvimento do convívio, por meio da oferta de espaços
para estar e para lazer, bem como a inserção em atividades culturais, desportivas e
de lazer, além da participação em fóruns, conselhos e debates do segmento
relacionados à defesa da cidadania.
Além da oferta desses serviços, destacamos a presença do Programa
Acolher – Reconstruindo Vidas, que, durante a gestão da prefeita Marta Suplicy, era
o responsável pela abordagem das pessoas nas ruas e encaminhamento para a
rede de serviços.
Na ocasião, o serviço a esse público era divulgado no site da Secretaria de
Assistência Social da seguinte forma:
População de rua: serviço desenvolvido pela Central de Atendimento Permanente,
que visa à abordagem das pessoas em situação de rua para informação dos
serviços prestados pela Prefeitura e encaminhamentos para abrigamento, quando a
pessoa desejar. Conhecido como Serviço Permanente de Recolhimento e Proteção
Especial, conta também como serviços de retaguarda: Casas de Convivência,
Abrigos, Albergues, Moradia Provisória e projetos de Qualificação Profissional.18
18
Recorte elaborado a partir da pesquisa realizada no período, no site da Secretaria de Assistência
Social, apresentada na minha dissertação de mestrado, defendida em 2002.
97
Como
qualificação
profissional,
entende-se
programas
de
inserção
produtiva, voltados à geração de renda ou capacitação profissional. Também
contávamos, no período, com um Restaurante Comunitário (inaugurado na gestão
Pitta e com o objetivo de oferecer alimentação em condições dignas como
alternativa às organizações que serviam alimentação nas ruas) e o bagageiro
municipal.
2.2.2 Entre 2005 e os dias atuais
Com a posse de José Serra, em janeiro de 2005, a Secretaria de Assistência
Social é substituída pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento
Social (SMADS). Logo no início dessa gestão, vale o destaque no aumento no
número dos então chamados “agentes de proteção social” – antigos agentes de
acolhida, com a criação do Programa Presença Social nas Ruas – São Paulo
Protege.
O número de agentes comunitários de saúde para pessoas em situação de
rua também aumentou no início desse período e foram criadas 1.300 vagas em
frentes de trabalho para esse público.
Vale lembrarmos que, mesmo com diferentes tentativas de realização de um
trabalho intersetorial a esse público (já a partir de 1992), sempre coube SMADS
(antigas Secretaria do Bem-Estar Social/Assistência Social) a coordenação e
articulação dessas ações a esse segmento.
Com a mudança de governo, algumas nomenclaturas foram alteradas para
serviços que já eram realizados na gestão anterior, mas,em linhas gerais, as formas
de atendimento sofreram pouca alteração. São os seguintes serviços de
atendimento às pessoas em situação de rua no período (2005-2008) que sofreram
alterações:
- Presença Social nas Ruas: compondo as ações do Programa São Paulo Protege,
visando à abordagem das pessoas em situação de rua e, por meio da escuta e
vínculo,
estabelecer
propostas
alternativas
à
situação
de
encaminhamentos variados de acordo com a situação apresentada;
rua
ou
ainda
98
- Alteração da nomenclatura de Moradia provisória para República Social, no
entanto, mantendo-se as mesmas prerrogativas;
- Surgimento da modalidade Hotel Social: cujo abrigamento se dá em hotéis sociais
conveniados para pessoas com alguma fonte de renda e autonomia;
- Fechamento da Casa de Cuidados (com retaguarda da Secretaria da Saúde),
inaugurada na gestão anterior.
Vale apresentar os dados de uma pesquisa da FIPE, que estudou a rede
dos albergues conveniados com a então SMADS, cujo trabalho de campo foi
realizado entre maio e junho de 200619.
Dessa
forma,
foram
entrevistados
os
coordenadores,
os
agentes
educacionais e os assistentes sociais de todos os albergues e núcleo de serviços
com albergues conveniados. Foram utilizados como instrumentos de pesquisa:
questionários, roteiro de observação dos pesquisadores, além de formulário
preenchido pelas organizações.
Dentre os objetivos da pesquisa, enfatizamos a descrição das condições de
atendimento à população e a sugestão de indicadores para construção de um
manual de operações para acompanhamento das organizações conveniadas.
Foram analisados, na pesquisa, três conjuntos de indicadores:
● Condições físicas e materiais: relacionadas à oferta de espaço físico e
acomodações;
● Organização e funcionamento: que analisou a capacidade, público atendido,
regras gerais de funcionamento e principais problemas apontados pelos
responsáveis pelos serviços;
● Trabalho social e educativo: analisou o quadro de recursos humanos para a
execução dos trabalhos, atividades desenvolvidas (treinamento e supervisão) e
também as condições de estímulo à aquisição de autonomia dos albergados.
19
Material disponibilizado para este estudo por funcionários da SMADS.
99
Como características gerais dos albergues, levantadas na pesquisa, temos:
- Dentre os 26 albergues pesquisados, 38,5% atendem até 100 pessoas, 30,8%
atendem entre 101 e 200 pessoas, 15,4% entre 201 e 300 pessoas e 15,4%
atendem entre 301 e 550 pessoas;
- Dentre os 17 núcleos de serviços pesquisados, 47,1% atendem até 100 pessoas,
47,1% entre 101 e 200 pessoas e 5,9%, entre 201 e 300 pessoas;
- em albergues, eram ofertadas, no período,4824 vagas, sendo: 4050 masculinas,
460 femininas e 314 para famílias;
- Apenas 53% dos albergues apontaram a realização de, pelo menos, uma reunião
por mês, com o objetivo dos usuários participarem na definição e alteração das
regras do serviço;
- A maioria dos desligamentos automáticos davam-se em função de agressão física
a funcionários (96%), faltas consecutivas sem justificativa (92%) e ainda agressão
física a outro usuário (92%);- com relação ao quadro de recursos humanos,em 50%
dos albergues, o número de funcionários é igual ao previsto (pela Portaria
15/2004);em 42%, é maior que o previsto e, em 8%, é menor do que o previsto;
- A média de usuários por assistente social encontrada na pesquisa é de 133,
enquanto a legislação prevê 1/100;
- A média de usuários, por agente educacional, é de 26,5, enquanto o previsto seria
1/50;
- Com relação a ações voluntárias, foram encontradas, na pesquisa, 114 pessoas
em 20 albergues, sendo 56 em funções de rotina e 58 em funções complementares.
Em 11 albergues, foram encontrados entre 01 e 11 usuários como voluntários;
- O tempo de trabalho dos funcionários indica que, em todas as funções, existe
grande número de funcionários há mais de um ano trabalhando no albergue,
conforme os dados: 79% dos coordenadores encontram-se há mais de um ano no
albergue; e ainda, 64% dos assistentes sociais, 78% dos agentes educacionais e
74% dos auxiliares de coordenação;
- Em 69% dos albergues, a supervisão dos agentes educacionais é feita pela
coordenação, auxiliar de coordenação e serviço social. Em 57% dos albergues, a
100
supervisão do Serviço Social é feita pela coordenação, e, em 26%, indicam a
supervisão se SAS20 e SMADS.
O trabalho social nos albergues, apontado na pesquisa, se dá-se por meio
da acolhida, escuta, atendimento individual, elaboração do projeto de vida do
usuário, atendimento em grupo e encaminhamentos.
A pesquisa aponta, ainda, que 96% dos atendimentos individuais acontecem
na ocasião do cadastramento; 96%, quando solicitado; 92%, no retorno dos
encaminhamentos; 76%, no ato do desligamento; e 68%, mensalmente.
Com relação aos encaminhamentos, 100% são para a área da saúde e
aquisição de documentação; seguidos de 84% para a área da educação; 77% para o
Centro de Referência de Assistência Social (CRAS); 69% para trabalho; 65% para
moradia; e 53% para cultura.
Para que os usuários consigam encaminhamento para moradia provisória,
91% utilizam como critério a presença de um emprego e renda.
Com relação às atividades de lazer e socioeducativas,
realizadas nos
albergues, 92% indicam a presença da televisão; 73%, jogos; 53%, palestras; 46%,
cinemas; e 23%, passeios.
Os agentes educacionais entrevistados apontam como o principal problema
enfrentado no trabalho (58%) o uso de álcool e drogas pela população; na
sequência, 27% indicam a sobrecarga de trabalho inerente à própria função. No
entanto, a pesquisa agrupou os problemas apontados pelos agentes educacionais e
76,9% indicam como principal problema o perfil do usuário.
O mesmo também aconteceu no levantamento realizado junto aos
coordenadores dos serviços. Nos albergues, 72% dos coordenadores indicaram o
comportamento e o perfil dos usuários como um problema e essa frequência chega
a ser de 53% para os coordenadores dos núcleos de serviços.
Com relação aos problemas ocorridos nos albergues e núcleos de serviços
no mês anterior à pesquisa, são apontados pelos albergues, em 96,2%, a presença
de pessoas alcoolizadas. Também é alto o índice de pessoas com problemas
agudos de saúde, apontado por 84,6% dos serviços pesquisados. 76,9% também
indicam a presença de agressão e violência por parte dos usuários.
20
SAS - Supervisão de Assistência Social: em função da descentralização do atendimento, cada uma
das 31 subprefeituras possuía uma SAS.
101
Nos Núcleos de Serviços, o álcool também é o problema mais
identificado,76,5%; seguido de pessoas dependentes químicas (52,9%).
No que tange às dificuldades apontadas em relação ao quadro de
funcionários, 50% indicam o número insuficiente deles. Apenas 23% apontam a
necessidade de qualificação e treinamento dos funcionários.
Novamente, quando questionados acerca dos problemas na realização do
trabalho social e socioeducativo nos albergues e núcleos de serviços, tanto os
albergues (69%) quanto os Núcleos de Serviços (35%), indicam o problema de
comportamento dos usuários. Ressaltamos ainda que 47% dos Núcleos de Serviços
apontam como problema o funcionamento insuficiente e desarticulado da rede.
Com a troca de gestão, no início de 2009, novamente algumas mudanças
acontecem. E a atual configuração do atendimento às pessoas em situação de rua
dá-se dessa forma, de acordo com informações obtidas no site oficial da atual
Secretaria de Assistência Social, resumidas a seguir:
Central de Atendimento Permanente e de Emergência: Serviço de prontidão 24
horas para atender as ocorrências de responsabilidade da Assistência Social. Sua
estrutura operacional foi criada tanto para estar presente em caráter de urgência em
calamidades públicas, ao lado da Defesa Civil, como para supervisionar o
acolhimento de usuários que procuram a rede, já que esse órgão também presta
atendimento a “moradores em situação de rua”, visando o atendimento daqueles
que precisam de acolhimento imediato. Essa solicitação pode ser feita por qualquer
munícipe. As equipes percorrem as áreas de maior incidência de moradores em
situação de rua para efetivar o acolhimento.
De acordo com a PNAS, o atendimento à chamada “população de rua” é
organizado pela Coordenadoria de Proteção Social Especial, que “[...] possui uma
rede de atendimento socioassistencial voltado à população adulta em situação de
rua, atuando no âmbito da criação de políticas públicas em consonância ao SUAS Sistema Único de Assistência Social”.
102
Os serviços apresentam as seguintes ofertas: abordagens sistemáticas nas
ruas e pontos de concentração dessa população visando o encaminhamento para os
núcleos de serviços e convivência, centro de acolhida e centros de acolhida
especiais para o atendimento a idosos, mulheres e catadores.
Podemos perceber a mudança de nomenclatura dos albergues para centros
de acolhida. Os serviços de incentivo à geração de renda e capacitação profissional
permanecem , destacando-se a criação de três novos serviços:
- Atenção Urbana: que consiste em um espaço de Convivência, na região Central de
São Paulo, com funcionamento diário das 9h às 21h. Também, nesse serviço, há
presença da educação social de rua, com abordagem e encaminhamentos de
pessoas adultas no centro de São Paulo para a rede se serviços;
- Jardim da Vida ou Espaço de Convivência “Dom Luciano Mendes de Almeida”:
serviço alternativo com funcionamento diário visando o fortalecimento do convívio;
- Morada Nova Luz: um Centro de Acolhida Especial para o atendimento de idosos
independentes.
Mantém-se o serviço denominado “Operação Baixas Temperaturas”,
conhecido também, em outras gestões, como Frentes Frias, Operação Inverno,
dentre outras nomenclaturas, visando o acolhimento da “população de rua” sempre
que a temperatura for igual ou menor a 13 graus centígrados, sendo as vagas
ampliadas nos Centros de Acolhida.
Durante a pesquisa documental para a realização deste item, pudemos
perceber
ausência de cuidados quanto à terminologia encontrada para esse
público, muitas vezes sendo identificados como: “moradores em situação de rua” ou
“população de rua”, não se mantendo uma concepção teórica única na escolha de
sua utilização e/ou identificação, já que, em cada documento, uma expressão
diferente era apresentada sem a cautela de uma uniformidade metodológica.
A rede de atendimento a esse
público conta, hoje, com 40 serviços e
capacidade para 8.000 atendimentos. Em documento disponibilizado em entrevista
com representante da Coordenadoria de Proteção Especial, pudemos dividi-los da
seguinte forma:
103
Tabela 6 - Distribuição de vagas – serviços durante a noite
Tipo de
serviço noite
VagasVagasVagasVagasIdososIdososMisto
masculinas femininas crianças famílias masculino feminino
Centros de
Acolhida
4.756
550
20
Zero
35
25
Zero
Centro de
Acolhida
Especial
118
210
Zero
80
294
76
Zero
Repúblicas
146
24
Hotel
Social
153
112
A tabela acima permite-nos afirmar que a maior oferta de vagas ainda é
masculina, já que, do total de vagas oferecidas durante a noite, 11,8% são
destinadas às mulheres. Convém dizer que o atual Censo (2009) indica a presença
de 15,5% de mulheres em situação de rua.
Tabela 7 - Distribuição de vagas – serviços durante o dia
Tipo de serviço - dia
Vagas masculinas
Vagas femininas
Misto
Centros de Acolhida
526
90
1060
Núcleo de incentivo à
economia solidária
530
Núcleo de convivência
940
Núcleo de convivência com
restaurante
500
Bagageiro
236
Presença Social nas ruas
2.130
Já na oferta dos atendimentos durante o dia, a maioria das vagas são
mistas. Apenas com relação aos Centros de Acolhida, do total ofertado de vagas,
17,1% são destinadas às mulheres.
104
Tabela 8 - Vagas noturnas, segundo a Relação dos Serviços – Proteção Especial
RESUMO
NOITE
DIA
TOTAL
Centros de Acolhida
5.386
1.676
7.112
Centro de Acolhida Especial
778
778
Repúblicas
282
282
Hotel Social
153
153
Total
6.599
1.676
8.295
Retomamos os dados apresentados no capítulo anterior, no que tange ao
número de pessoas em situação de rua levantado no último Censo (2009), quando
foram identificadas 13.666 pessoas em situação de rua, estando apenas 51,8%
acolhidos em alguma modalidade de atendimento e 48,2% nas ruas.
Tabela 9 - Vagas diurnas, segundo a Relação dos Serviços – Proteção Especial
Núcleo de incentivo à economia solidária
530
530
Núcleo de convivência
940
940
Núcleo de convivência com restaurante
500
500
Total
1.970
Presença Social nas ruas
2.130
Os dados apresentados na última tabela permitem-nos constatar que a maior
oferta de atendimento encontra-se no período noturno. Ainda analisando os
documentos disponibilizados pela SAS – equipe de Proteção Especial, constatamos
que 1.534 vagas nos Centros de Acolhida estão na região central (área
compreendida pela Subprefeitura da Sé). Ainda nessa região temos: 248 vagas em
Casas de acolhida especial e 212 em República. Desta última modalidade, 112
vagas seriam fechadas até o final desta pesquisa. O maior número de vagas na
região central consiste nos núcleos de convivência – 470 – e ainda as 500 vagas do
refeitório comunitário. As vagas juntas somam 2852, sendo 1882 vagas noturnas e o
restante diurnas..
105
Com relação ao número de pessoas em situação de rua, apontado no último
censo,
vivendo
na região que compreende a subprefeitura da Sé (distritos:
República, Sé, Liberdade, Santa Cecília, Consolação, Bom Retiro, Bela Vista,
Cambuci e Barra Funda), temos:
Tabela 10 - Pessoas em situação de rua na região Central (Subprefeitura Sé)
Distritos
Moradores de rua
%
Acolhidos
%
Barra Funda
66
1,3%
-
-
Bela Vista
138
2,1%
125
1,8
Bom Retiro
165
2,5%
290
4,1
Cambuci
53
0,8%
-
-
Consolação
175
2,7%
-
-
República
1570
23,8%
200
2,8
Sé
1195
18,1%
139
2
Liberdade
128
1,9%
286
4
Santa Cecília
309
4,7%
1025
14,4
Total
3801
57,9%
2065
29,1
A tabela sintetizada acima demonstra que 57,9% dos que se encontram na
rua estão na região central compreendida nos distritos referentes à subprefeitura da
Sé. Ao mesmo tempo, do total de pessoas acolhidas levantadas pelo Censo (2009),
7079 pessoas, 29,1% estão acolhidos na região central, ou seja, há um déficit de
vagas nessa região para atender toda a demanda existente.
De acordo com os valores de repasses financeiros mensais21 destinados à
assistência social, temos R$ 22.694.265,97, em 933 convênios,
com
meta de
165.488 atendimentos. A Região da Sé possui o maior número de convênios – 59 –
e o maior repasse: R$ 2.287.322,25. Se dividirmos em proteção básica e especial,
desses 59 convênios (9.885 meta de atendimento), 23 são convênios de proteção
básica (5.344); 17, convênios de proteção especial de média complexidade (2.152
21
Fonte: SMADS, dez. 2008 - SÃO PAULO (Município). Secretaria Municipal do Planejamento.
Infocidade. Disponível em: <http://sempla.prefeitura.sp.gov.br/infocidade/>.
106
meta de atendimento); e 19, de proteção especial de alta complexidade (2.389 meta
de atendimento). A região da Sé é a que possui o maior número de convênios de
proteção especial da cidade.
2.3 SERVIÇOS DA REDE SOCIOASSISTENCIAL PESQUISADOS
Visando melhor compreender a dinâmica dos atuais serviços de assistência
social que atendem pessoas em situação de rua, bem como entrar em contato com o
que pensam os funcionários sobre a população atendida, foi elaborado questionário,
aplicado, por amostragem, nas modalidades de atendimento existente, buscando
também garantir a diversidade dos funcionários, com ênfase à coordenação, serviço
social e agentes educacionais.
Nesse sentido, foram visitados 10 serviços, sendo: 01 República, 01 Centro
de Acolhida Especial, 01 Núcleo de Serviços, 01 Núcleo de Serviços com Refeitório
e 06 Centros de Acolhida.
Durante as visitas, foram entrevistados 11 agentes educacionais, 6
assistentes sociais, 04 coordenadores e 02 agentes operacionais, totalizando 23
funcionários.
Desse total, destacamos o perfil a seguir:
Tabela 11 - Quanto ao sexo dos funcionários pesquisados
Função
Masculino
Feminino
Total
Assistente Social
02
04
06
Coordenação
01
03
04
Agentes educacionais
10
01
11
Agentes operacionais
02
00
02
Total
15
08
23
%
65,2
34,8
100
107
Segundo a tabela acima, podemos afirmar que tentamos garantir, no
universo pesquisado, a incidência de funcionários homens e mulheres. No entanto,
dentre os agentes educacionais, houve incidência muito maior de funcionários,
sendo encontrados, nos serviços pesquisados, muito mais homens atuando nessa
função do que mulheres.
A tabela a seguir mostra o grau de escolaridade dos entrevistados. Vale o
esclarecimento que o alto índice de pessoas com o ensino superior completo tratase de uma exigência, tanto para a função de assistente social, quanto para o cargo
de coordenação.
Tabela 12 - Quanto à escolaridade dos funcionários pesquisados
Ensino
Fundamental
Ensino
Médio
Completo
Completo
Assistente
Social
-
Coordenação
Superior
Incompleto
Superior
Completo
Pósgraduação
-
-
03
03
-
-
-
03
01
Agentes
educacionais
01
02
05
03
-
Agentes
operacionais
01
01
-
-
-
Total
02
03
05
09
04
%
8,7
13,1
21,7
39,1
17,4
Função
Vale
também
o
esclarecimento
que,
de
acordo
com
a
portaria
30/SMADS/GAB/2007, para a função de agente educacional, existe a possibilidade
para a execução da função de pessoas com ensino médio ou com superior
completo. Já para as funções de apoio, como cozinheiro e agente operacional, a
exigência é ser alfabetizado. Apenas para a função administrativa, exige-se o nível
médio. Apenas um agente educacional pesquisado não possui a escolaridade
exigida.
108
Tabela 13 - Quanto ao tempo de trabalho no local da entrevista dos
funcionários pesquisados
Função
Menos de
6 meses
Entre 6
meses e 01
ano
Entre 01
e 02 anos
Entre 2 e
5 anos
Mais de
5 anos
Mais de
10 anos
Assistente
Social
-
03
01
01
01
-
Coordenação
-
-
-
-
02
02
Agentes
educacionais
02
01
-
07
01
-
Agentes
operacionais
-
-
-
02
-
-
Total
02
04
01
10
04
02
%
8,7
17,4
4,3
43,5
17,4
8,7
A tabela anterior demonstra que apenas 26,1% trabalham no local
pesquisado há menos de um ano. Já a tabela a seguir mostra o tempo que os
entrevistados trabalham com pessoas em situação de rua. Destaque para 82,6% que
trabalham com esse público há mais de 2 anos; e mais de 50%, há mais de 5 anos,
conforme descrito abaixo:
Tabela 14 - Quanto ao tempo de trabalho com pessoas em situação de rua
dos funcionários pesquisados
Função
Menos de
6 meses
Entre 6
meses e 01
ano
Entre 01
e 02 anos
Entre 2 e
5 anos
Mais de
5 anos
Mais de
10 anos
Assistente
Social
-
02
--
01
02
01
Coordenação
-
-
-
-
-
04
Agentes
educacionais
01
01
-
05
01
03
109
CONTINUAÇÃO
Agentes
operacionais
-
-
-
01
01
-
Total
01
03
Zero
07
04
08
13,1
-
30,4
17,4
34,8
%
4,3
Dentre os 23 funcionários entrevistados, mais de 70%, independente do
tempo, encontraram com esse público o primeiro emprego, sem experiência anterior
na área social. Esse fator também foi observado e analisado por Giorgetti (2006),
em sua tese, quando pesquisou as instituições sociais paulistanas e estabeleceu um
estudo comparativo com as parisienses.
Com relação a isso, a autora aponta que:
[...] essa formação técnica ainda não ter sido consolidada
enquanto prática obrigatória, sobretudo em São Paulo, ocorre
porque esta cidade, assim como o resto do país, sofre uma
carência de políticas sociais que colabora para que tudo o que
se refira ao social permaneça inexplorado. [...] esse dado
justifica o fato de a maioria dos funcionários das instituições
sociais paulistanas nunca ter realizado um trabalho social com
os moradores de rua antes do emprego atual [...].
(GIORGETTI, 2006:173)
Dividiremos as respostas das perguntas abertas em três blocos, sendo eles:
- Limites e possibilidades da função exercida;
- Avaliação do serviço oferecido pelas casas de acolhida;
- Respostas ligadas à concepção do trabalho e ao público atendido;
Também apresentaremos o cruzamento das respostas, de acordo com as
funções entrevistadas, ou seja, separadas pelos grupos: assistentes sociais, agentes
educacionais, coordenadores e agentes operacionais.
110
2.3.1 Limites e possibilidades da função exercida
Com relação à função desempenhada, podemos destacar, entre os
coordenadores, um papel administrativo, de monitoramento e de controle das ações
desenvolvidas no serviço pelos outros funcionários, além da representatividade
institucional, apontada pela maioria dos coordenadores entrevistados. Assim,
pontuamos entre as respostas as funções exercidas pela coordenação dos serviços,
a saber: coordenação da equipe, organização da parte burocrática, representações
em Fóruns, prestação de contas, acompanhamento/auxílio no desenvolvimento das
atividades, entre outras.
Ao serem questionados sobre as dificuldades no desempenho da função, o
leque de respostas amplia-se, já que são analisados desde fatores inerentes ao
perfil da população atendida, como também problemas relacionados à falta de
recursos, infraestrutura e dificuldade na própria implantação e gestão da política
pública, como podemos destacar nos depoimentos abaixo:
[...] álcool, crack generalizado, pessoas mais irritadas, não
consegue estabelecer limites, as pessoas que se encontram
em situação de rua devido aos albergues e a assistencialismo
se tornam infantilizadas [...]. (C01)
São Paulo iniciou tarde o processo de implantação do SUAS
em relação a outros Estados, fora isso no meu entendimento a
Lei não estabeleceu os processos para sua reestruturação, da
mesma forma que é um processo que o traz para rua, a saída
também necessita ser bem estruturada, planejada
(atendimento multidisciplinar)visando, resgatar estima, saúde,
elevação da escolaridade, profissionalização, família. Acredito
que a Assistência criou vítimas durante muito tempo, todos os
serviços estão para atender o básico e primordial, atualmente é
comum as pessoas serem conhecedoras de seus direitos, mas
esquecem de seus deveres, esse tem sido o maior desafio
para romper esse círculo vicioso. (C02)
[...] não tem tido muitas, só a ansiedade que eles saiam para
um lugar melhor, o resto dá para contornar. (C03)
Posso apontar muitas dificuldades, como a baixa remuneração
dos funcionários e a própria vulnerabilidade da população
atendida, já que o perfil é muito diversificado: são crianças e
adolescentes, pessoas idosas, pessoas de outros países,
pessoas que vieram de várias situações, tem crescido muito o
número de egressos – um público que não pode ficar na rua,
mas não tem vagas para encaminhar. Faltas de vagas nos
111
centros de acolhida. Isso dá muito desânimo, funcionários
pedem demissão e, de certa forma, para o gestor do projeto,
isso tem relação com o seu trabalho com a equipe. O álcool e a
droga também são um problema. (C04)
Quando perguntamos sobre o êxito do trabalho realizado, 100% dos
coordenadores apontam a resposta “em partes”, estabelecendo uma análise mais
ampla entre os resultados obtidos e a oferta do atendimento frente a uma política
pública mais ampla. Merece destaque uma coordenação que separa as funções da
organização conveniada e do poder público, quando diz:
[...] enquanto organização social, eu obtenho êxito, agora falta
empenho do poder público, por isso minha resposta é em
partes... (C03)
Acrescentou, ainda, que “suporte da entidade nós temos, falta da prefeitura,
por exemplo capacitar os funcionários, aumentar os salários”.
Com relação ao trabalho desenvolvido pelos assistentes sociais, destacamse o atendimento individual (na maioria das vezes), atendimentos em grupos e
encaminhamentos, como listamos a seguir:
- acolhida dos usuários, relatório social, captação de recurso, reuniões em grupo,
recepção de
pessoas encaminhadas pelo CRAS, confecção de cadastramento,
entrevistas individuais, encaminhamento para tratamentos de saúde, tratamento nas
clínicas
para
álcool
e
drogas,
obtenção
de
documentos,
auxílio
BPC,
estabelecimento de contato com a família e possível retorno ao convívio familiar. E
também
encaminhamento
para
trabalho,
realização
autoconhecimento e autoestima, encaminhamento
de
grupos
como
para cursos (por exemplo:
elétrica mecânica, e pintor).
Com relação às dificuldades encontradas na função, a mesma análise feita
na fala dos coordenadores entrevistados também pode ser observada no discurso
dos assistentes sociais, já que as dificuldades enfrentadas vão desde o perfil e
complexidade da população atendida, problemas institucionais, até problemas nos
encaminhamentos adequados em função da ausência de retaguarda da política
112
pública municipal. Dentre os depoimentos dos assistentes sociais quanto a essa
questão destacamos:
[...] carência de recursos para efetivar os encaminhamentos e
para facilitar a saída do usuário do albergue, encontrar algum
local para encaminhar um usuário que não tem perfil para a
moradia provisória mais trabalha, tem uma carência de
recursos. (AS01)
[...] transporte, número de funcionários para acompanhar
alguns usuários ao médico, ao banco. Usuário é meio
acomodado [...]. Tem aquele povo que não quer nada. (AS02)
Vieram de albergues então ainda há muitas brigas, elevador
sempre quebrado, idosos que não conseguem descer as
escadas, não tem carro, sempre tem que chamar o SAMU ou
um táxi , falta respaldo da prefeitura. E os idosos sentem-se
bravos por ter alguém dando ordem, o que causa alguns
atritos. (AS04)
Falta de comunicação entre os serviços da prefeitura, falta de
políticas públicas, burocracia (ex: SAMU demora a atender e
tem preconceito contra a população em situação de rua e o
bom prato que tem filas enormes e eles não conseguem
almoçar). (AS05)
Trabalhar para uma entidade religiosa, o que influencia de certa
forma para o exercício da profissão. É quase um retorno às
origens do Serviço Social, antes da Reconceituação. A
categoria não tem uma hegemonia. O não reconhecimento, ou
melhor, desconhecem qual o trabalho de um assistente social
como profissão, muitas vezes ainda associando este
profissional à ajuda, àquele “que passa a mão na cabeça”.
(AS06)
Ao perguntarmos quanto ao êxito do trabalho que realizam, 66,6% apontam
“em partes”, justificando a questão estrutural da política pública oferecida, como a
AS01, que responde “em partes porque eu não consigo que todos saiam do albergue
por uma questão de autonomia, não consigo que todos saiam por esse motivo. Às
vezes, ele sai para voltar para rua, então é em partes porque eu não alcanço a
totalidade”.
Os que afirmam obter êxitos com o trabalho separam a sua atuação
profissional dos entraves maiores, contabilizando os sucessos, mesmo que, por
vezes, pequeno:
113
Sim, pois pelo menos quatro ou cinco saem por mês, e no
serviço prestado buscam o bem estar. (AS05)
Sim, porque sei da limitação exterior, portanto não me
responsabilizo por não ter um êxito pleno dado ao histórico
como são constituídos os serviços. O que me alimenta o
enfrentamento, ao que me compete, para ir em busca da
realização. (AS06)
A função dos agentes educacionais foi a que maior apresentou diversidade
na lista de tarefas desempenhadas desde a proposta de atividades, em sua maioria,
ligadas à experiência do educador, até o acompanhamento da rotina do serviço,
como dar suporte na limpeza, acompanhamento do banho, da entrada e das
refeições dos usuários, como destacamos a seguir:
Cadastro e pernoites. Levo ao médico. (AG01)
Atendo pernoite, de manhã acompanho o almoço e as pessoas
que necessitam de médico chamo o SAMU22. (AG02)
No socioeducativo quase nada, é mais o serviço social que faz,
fico na portaria, recepção, entrego kit de higiene. Quando tem
que fazer algum acompanhamento, faço. (AG03)
Ver se está tudo em ordem, manutenção, quartos limpos,
refeitórios e vejo a necessidade deles. O que eles precisam
falam para mim. (AG04)
Tudo, de enfermeiro a psicólogo, limpo o que se faz, depende
da situação. (AG05)
Pau pra toda obra. Atendimentos, distribuição de roupa,
distribuição de funções, administrar conflitos. (AG06)
[...] deveria estar fazendo atividade de educador mesmo, mas
eu faço entrada do pessoal, a recepção. (AG10)
Com relação às dificuldades no desempenho da função, destacamos:
A princípio fui lidar com os alcoólatras. Foi um desafio. (AG01)
A dificuldade mesmo é a comunicação com a chefia, devido à
carga horária (21h30 às 09h30). Quase não encontro, se
acontece algo grave, ligo na casa dos coordenadores, pois
22
SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) é um programa que tem como finalidade
prestar o socorro médico à população em casos de emergência.
114
quase não nos encontramos, é difícil. Horários de reuniões são
fora do horário de expediente da gente. (AG02)
Falta de segurança, estar vulnerável e pegar doenças (piolho,
muquirana). (AG03)
Mais problema com a coordenação que não se afina com a
equipe. Anota e vê o que pode ajudar. (AG04)
Definição do perfil do que é morador de rua. Não tem como
definir, vai da necessidade. (AG05)
Dois pontos: Poder público entende que o morador de rua só
tem direito, quando fala de deveres... Por que não tem
contrapartidas? (AG06)
[...] falta de interesse. Muitos deles não têm interesse em
melhorar de vida, sai desse albergue, vai para outro, e assim
vai. Faz uma turnê entre os albergues e acaba voltando para
cá. Outro problema, não dá para atender todo mundo. A
demanda é maior do que a oferta, isso gera tumulto, discussão
na porta, o pessoal xinga você, é você que está regulando as
vagas e assim vai. (AG07)
[...] a pessoa começa a trabalhar, mas é viciado – dependente
químico – usa tudo, arruma emprego, mas não consegue se
estruturar por causa disso. (AG09)
[...] a falta de verbas, políticas púbicas, pois as que têm não
dão conta da demanda existente. (AG11)
Podemos perceber, de acordo com os depoimentos acima, que, dentre os
agentes educacionais, existe muito mais a responsabilidade individual pela situação
de rua do que uma análise mais ampla. Isso repercute diretamente na função
realizada e ainda em como veem o público atendido. Dessa maneira, como esses
trabalhadores sociais poderão pensar em uma ação que seja educativa, baseando
esse atendimento na concepção e no entendimento do perfil dos atendidos enquanto
um problema para o trabalho a ser realizado? Essa questão voltará a aparecer
quando retomarmos a discussão de como compreender a situação de rua e como
veem a saída dessa condição.
Com relação ao êxito do trabalho que realizam, 45% afirmam que sim;
enquanto 27% declararam em partes; e 9%, que não; outros 18% não souberam
responder a questão. Exemplificamos:
115
Não. Albergue em si é um erro porque promove um ciclo
vicioso na pessoa e deixa a pessoa sem ter vontade . O cara
que está aqui hoje não tinha o que ele tem hoje e encontrou
aqui. Por que mudar essa realidade cômoda? (AG06)
Em partes, porque nem todo o objetivo final é alcançado, ele
tem projeto de vida, porém o fim não é bem trabalhado, aí
ocorrem recaídas de álcool, drogas e volta para a rua. Direitos
negados, sobra para eles a rua. Aqui é o mínimo que o
convivente pode ter. (AG11)
Sim. A gente aprende muito com essas pessoas. Nós
reclamamos e conhecemos cada história e pensamos em
reclamar da vida. (AG03)
Com relação a sugestões para o melhor desempenho de sua função,
destacamos um depoimento:
A escuta, pois através dela que nós temos elementos para
trabalhar a função da saída das ruas. O convivente tem uma
situação X e você tem que estar aberto para escutar, é o
primeiro passo para diagnosticar, para entender e apontar
caminhos para essa pessoa. (AG11)
2.3.2 Opinião sobre o trabalho das Casas de Acolhida
Outro item considerado no questionário aplicado foi a percepção dos
funcionários dos serviços oferecidos pelas atuais Casas de Acolhida, também
chamadas, por alguns, de albergues. Sobre esse assunto, um ponto em comum foi
encontrado nas respostas. Qualquer que seja a função, existe uma crítica à forma
como esse serviço vem sendo prestado.
O albergue serve para aumentar o número de pessoas em
situação de rua. (AS02)
Acolher, dar o básico para a sobrevivência, porém ir mais além
dar educação (cidadania e escolar). (AS04)
Dar condições para a saída da rua e não ser assistencialista.
(AS05)
[...] importante para quem chega, é a porta de entrada, algo
imediato, mas deveria aumentar o número de técnicos deste
serviço, senão não tem como dar conta, é muita gente, tem alta
rotatividade, não dá para ter um trabalho sistematizado. (C03)
116
[...] acolher pessoa em situação de rua em estado crítico,
encaminhar para tratamento de saúde, para obter
documentação, colocar a pessoa em pé de novo. (AS03)
[...] hoje o papel dos “centro de acolhida” é muito mais a
manutenção mesmo desta situação, porque não tiram as
pessoas da situação em que estão [...] já começa pela
infraestrutura e é absolutamente decadente, desde a qualidade
de prestação deste atendimento até as atividades que levem
esta pessoa a acordar para a vida mesmo, pois é claro que
existem casos de acomodações, então atividades que
estimulassem estas pessoas a tomar as rédeas de sua vida.
(C04)
[...] acolhida emergencial e temporária, esse é o papel principal,
não deveria ter muito mais coisa. Se fosse levado ao pé da
letra, pensaríamos mais em saídas permanentes, a saída
mesmo. O albergue acaba virando uma coisa mais
permanente. Se o albergue fosse emergencial, pensaríamos
mais na saída definitiva, como a moradia provisória. O albergue
seria um fluxo, a pessoa entra e sai, seria só uma passagem
mesmo. Deveríamos ter esse pensamento. O albergue não
teria que fortalecer a permanência na rua. (AS01)
A pessoa se acomoda. Usuário tem que ter aquilo na cabeça. É
uma passagem. É o primeiro e último que eu entro. Ele não
pode sair desse e ir para o outro, ele se acomoda. Se ele não
tiver uma perspectiva de vida, não vai melhorar nunca. (AG07)
O papel do albergue é acolher, e acolher bem! Isso
categoricamente, mas politicamente o papel do albergue é
muito mais que acolher, é apontar caminhos de saída, propor
atividades socioeducativas, e fazer com que cada convivente
reflita sobre a atual situação que ele está vivendo e que não é
culpa dele e sim de um sistema que gira e ele está inserido
nesse contexto. O papel do albergue é fazer o convivente
perceber-se como pessoa, inserido nesse contexto atual, que é
o desemprego, a política, política da assistência social, do
SUAS, da política nacional para a população em situação de
rua, ganhar o direito que pode virar lei. Enfim, os albergues têm
como principal papel de informar a esse cidadão que existem
direitos, não somente deveres e sim direitos. Albergue não é
política pública. (AG11)
O caráter emergencial e de provisoriedade permeia a maior parte dos
depoimentos, no entanto, muitas pessoas continuam nessa condição tempo maior
do que o desejado por ela mesma e, também, um tempo maior do que a gestão
pública desejaria. Alguns entrevistados apontam algumas sugestões, dentre elas,
destacamos:
117
Dividir espaços. Criar mais moradias provisórias. (AS02)
Que a lei de atenção seja cumprida, se fosse como é prevista,
teríamos êxito. Trabalho intersecretarial, por exemplo. (AS01)
O reconhecimento que o “morador de rua” é um cidadão,
portanto um sujeito de direitos e não apenas morador de rua. A
categoria tem que rever sua atuação e o Estado (poder público)
ser cobrado dos seus deveres, conquista da sociedade na
Constituição. (AS06)
Quando perguntamos, em linhas gerais, como classificam o atendimento das
casas de acolhida, se satisfatoriamente ou insatisfatoriamente, e ainda totalmente ou
parcialmente, 43,5% dos entrevistados apontam que parcialmente;e 47,8% afirmam
ser insatisfatório o atendimento prestado. Apenas 26% apontam como um serviço
satisfatório. Vale esclarecer que algumas pessoas apontaram mais de uma resposta
e que a avaliação do serviço como
satisfatório
deu-se, principalmente, pelos
agentes operacionais e alguns agentes educacionais.
Totalmente, satisfatoriamente. O papel do albergue sim, mas
depende da vontade do usuário. Nós que o procuramos para
sair da situação, é a minoria que quer sair da situação, pois
acaba se acomodando. (AG03)
Percebemos que a melhoria na prestação desse
serviço encontra-se
atrelada a uma concepção de política pública que deve ser transformada. Nesse
sentido, para que isso aconteça, a percepção sobre o trabalho realizado e como a
população atendida é compreendida pelos trabalhadores sociais são elementos
centrais para a mudança concreta da forma como os atendimentos vêm sendo
prestados.
2.3.3 Concepção do trabalho realizado e do público atendido
Neste item, apresentaremos as respostas referentes à concepção que os
funcionários têm quanto ao público atendido, bem como se acreditam na
possibilidade de saída da situação de rua. Aqui, também apresentaremos alguns
comentários que apareceram durante a entrevista, mesmo não respondendo
diretamente a alguma questão, denotam o pensamento dos trabalhadores sociais
entrevistados.
118
Com relação à definição de quem são as pessoas em situação de rua,
podemos enfatizar:
Sinto prazer em trabalhar com a população. São pessoas que
por algum motivo estão na rua, alcoolismo, família. (AG01)
Acomodados: conflito família, alcoolizados,
Necessitados: idosos, doentes. (AG02)
drogados.
Muitos do que eu vejo são pessoas que passaram por conflito
familiar, drogas, ex-presidiário, álcool, por isso essa situação.
(AG03)
Desequilíbrio que pode ser momentâneo ou para sempre,
emocional, hormonal, difere muito de cada pessoa. (AG04)
Não existe definição. Hoje: pessoas viciadas em drogas,
traficantes, ex-presidiários que estão fugindo, problemas
psiquiátricos e ainda os acomodados. (AG05)
Ele é responsável pela vida dele. Público de albergue é
malandro que rouba no farol. Público de rua que não vem para
cá. O morador de rua não vem para o albergue. (AG06)
Estamos longe de ter um perfil. Hoje temos pessoas em idade
produtiva, capacitados para o trabalho, diferente de
antigamente que era quem vinha para SP trabalhar na
construção civil, hoje vemos homens sarados, um pouco de
oportunismo (não da maioria), mas ele entra na rede e não sai
mais, qual a responsabilidade que o usuário tem? Outro
problema é que não vejo eles gratos pelo atendimento
recebido. Não podemos dizer que são pessoas que vêm do
Nordeste. Tem pessoas com nível superior, pessoas que já
cursaram curso superior... são pessoas que tiveram dificuldade
na vida em algum momento e não tiveram o devido suporte.
(C03)
[...] são vários os motivos, bebida, drogas, desemprego,
ausência da família, todos nós corremos o risco. (AS03)
[...] pessoa que deve ser tratada com a maior dignidade
possível, não deve ser encarado como algo definitivo, é
transitório, são capazes. (AG08)
[...] está difícil diferenciar quem é de quem não é situação de
rua. O albergue deveria ser usado para quem realmente
precisa. Tem cara vistoso, boa aparência, não consigo entender
o que ele faz ali. (AG09)
São pessoas. Povo corajoso, pessoas que têm uma história
sofrida, histórias de luta. Pessoas confusas. Faltou orientação
119
adequada. Pessoas que perderam o poder aquisitivo. Tem
dificuldade de retornar. São pessoas sensíveis. (C01)
Vejo sim grupos distintos, desde jovens até os mais idosos, de
analfabetos a com superior completo, o saudável do doente, os
com desordem psicológica até doenças severas em psiquiatria,
portanto não é uma missão tão fácil, mesmo se a casa
atendesse o recomendado pela Lei. (C02)
[...] a maioria das pessoas que acabam procurando a gente são
pessoas que têm algum problema, uso de álcool ou drogas, a
grande maioria, tem uma parte que está passando por uma
questão econômica, a questão do desemprego, não tinha uma
moradia própria, estava morando em pensão, sofreu despejo,
nem passou pela situação de rua veio para a situação de
albergue direto. Algumas pessoas são migrantes, chegaram
agora na cidade e não têm referência nenhuma familiar e
acaba procurando a gente. Casos de transtornos psiquiátricos,
que ficam vagando por aí, sem nenhuma referência de
atendimento de saúde, acabam vindo aqui para o albergue.
(AS01)
Como eu vejo? Ahh, problema familiar, problema com vícios,
desgosto com quem ele gosta, (silêncio) acho que é mais isso,
desgosto. (AG07)
Uma pessoa em busca de oportunidades, não é culpa da
pessoa e sim do Estado que não garante os direitos. (AS05)
Uma pessoa em situação de vulnerabilidade pessoal e social.
(AS05)
O indivíduo desprovido de conhecimento político e de seus
direitos negados. (AG11)
Está difícil de diferenciar quem é, quem não é de albergue.
Deveria ser usado por quem realmente está precisando. Tem
cara vistoso, boa aparência, não consigo entender o que faz
aqui. (AG09)
Podemos perceber que, dentre os depoimentos selecionados acima, de
acordo com os agentes educacionais pesquisados, a maioria analisa as situações
individualmente, sendo poucos os que estabelecem
relação com uma estrutura
social excludente. Nesse sentido, as presenças do álcool e da droga são as
explicações para terem chegado a essa condição.
A opinião que predomina entre os brasileiros é que o
alcoolismo constitui o fator desencadeante desse processo. O
indivíduo começa a beber, rompe com a família e perde o
emprego. Essa maneira de enxergar a trajetória do morador de
120
rua é peculiar, pois atribui aos indivíduos a responsabilidade
por sua situação [...] é um problema pessoal que extrapola para
outras esferas da vida [...]. (GIORGETTI, 2006:187-188)
Com relação aos coordenadores e aos assistentes sociais, existe a
percepção de um problema estrutural que gera
vulnerabilidade, no entanto a
presença da heterogeneidade desse grupo dificulta a concretização de um trabalho
mais efetivo no cotidiano profissional. Na pesquisa de Giorgetti (2006), quanto
menor o grau de escolaridade, maior se dá a explicação pelo alcoolismo, enquanto
entre os profissionais de nível superior a explicação é o desemprego.
Giorgetti (2006), em sua pesquisa, também aponta que “[...] observa-se, nas
respostas dos funcionários das instituições sociais de São Paulo, um forte contraste
entre, de um lado, as representações sobre os moradores de rua e, de outro, as
atitudes praticadas no dia-a-dia dentro da instituição social”. Acrescenta, ainda, que:
[...] apesar de os funcionários das instituições sociais de São
Paulo associarem os moradores de rua à imagem de um
cidadão cujos direitos são incontestáveis, eles assumem em
seu dia-a-dia algumas atitudes que muito se afastam da
concepção de cidadania absoluta. (GIORGETTI, 2006:135-136)
Com relação a acreditarem que a saída da situação de rua seja possível,
destacamos:
[...] é capaz de sair, mas dentro das capacidades dele, não tem
como cobrar, por exemplo, de quem tem baixa escolaridade.
Eu trabalho dentro da possibilidade dele. Existe uma questão
psicológica, psiquiátrica, casos muito sérios, mas precisa
assumir que existe esse problema psiquiátrico, psicológico,
então, eu trabalho dentro das possibilidades deles. (C03)
É possível sair da rua sim, a pessoa com certeza já teve um lar,
a grande maioria conheceu a segurança de uma moradia como
algo bom, se tiverem a chance de retornar, não vão querer
mais continuar na rua, isso através do trabalho [...] Garantir
mais cursos de qualificação, mais ofertas de empregos, que se
estabelecesse um acesso mais fácil de quem é atendido.
(AS03)
[...] conseguem sim, falta mesmo é educação, tratamento para
álcool e drogas, trabalhar com registro, no geral, a escolaridade
é muito baixa, eles não vão frequentar a escola regular, eles
têm vontade, mas não têm tempo. Querem um trabalho formal,
121
aqui tem endereço, buscam
conseguem o informal. (AG08)
trabalho
formal,
mas
só
[...] usuário é meio acomodado, não vai porque é longe. Em
casos de conseguir emprego, não tem como ir porque não
recebeu ainda para pagar a condução, falta suporte. E mudou
muito o perfil dos usuários, muitos saradões. (C03)
Outra dificuldade é a frustração nossa: o que eu quero, não é o
que o usuário quer. Se ele não tem a vontade de trabalhar, de
fazer um tratamento médico, pessoa não se predispõe a se
auto-ajudar. E nos usa como muletas. (AS02)
Pensam que se o trouxeram até aqui, quer que levem até um
outro lugar, COHAB, por exemplo. (C03)
Quanto a saída, eu acredito sim, mas para aquele que está
há pouco tempo na rua e ainda não está impregnada pelo
tempo e pelo uso dos recursos assistenciais disponíveis que de
"forma muito gratuita", lhe permitem a subsistência, mas não a
DIGNIDADE. (C02)
[...] desde que o usuário tenha consciência de melhorar,
trabalhando, não caindo nos vícios. [Depende só dele?] Sim,
de estrutura, mas mais dele também. [É questão de força de
vontade?] Sim, com certeza, tem que vir da pessoa. Nós só
damos um empurrãozinho, o resto ele tem que fazer a parte
dele. (AG07)
Sim porque já tivemos casos aqui e foi pelo tripé: moradia,
trabalho e vínculo pessoal. A pessoa começou a construir
vínculos e desses vínculos ela conseguiu trabalho e daí ela
conseguiu sair da situação de rua. Temos pessoas que saíram
e estão em moradia até hoje. (AS01)
Sim, pois há opções como um encaminhamento para moradias,
para emprego, aqui é mais difícil, pois são idosos. (AS05)
É possível ter autonomia trabalhando, tendo dinheiro, tendo
família ou laços sociais. (AS02)
Mais ou menos, muitos estão acostumados com essa vida.
(AG01)
Sim, com certeza, basta ele querer, o que se percebe! Tá
dentro da gente mudar o modo de vida, a gente dá o apoio,
acolhe, dá prazo, mas não sai disso. Sai de manhã, volta de
tarde, tem pessoas aqui há 02 anos, são pessoas idosas,
doentes, estão aqui por conflitos de família, de álcool e droga.
(AG02)
Sim. A pessoa tem que ter força de vontade, mesmo com as
portas fechadas. Exemplo: endereço para arrumar emprego
não tem. (AG03)
122
Tenho certeza que sim. Coisa mais difícil que as pessoas não
entendem é a aproximação. As pessoas que trabalham aqui
possuem essa dificuldade de caminho. (AG04)
É o primeiro perfil para ser trabalhado. Histórico de origem,
relação econômica (do que ele pensa sobre isso) engaja
nunca, dependendo do que ele pensa sobre isso. (AG05)
Não com essa política que está aí atualmente: contrapartida é
social. (AG06)
A análise dos depoimentos acima
indica-nos que a maioria acredita na
possibilidade de saída dessa situação. No entanto, o maior “peso” recai sobre a
vontade do usuário, já que entendem que a “situação é resultado de uma escolha
pessoal, que cabe à pessoa decidir qual é o melhor modo para continuar a viver”
(GIORGETTI,
2006:189).
Proporcionalmente, foram
em
menor número os
pesquisados que condicionaram a saída da situação de rua à oferta de
condicionantes mais estruturais relacionados a ofertas de políticas públicas
intersetoriais.
Perguntado aos assistentes sociais sobre a freqüência da procura
espontânea pelo atendimento social, foi consenso dizer que é um grupo muito
pequeno que o faz, sendo que a maioria “se apresenta” de acordo com a
periodicidade exigida segundo as normas da casa.
Quando perguntamos acerca da periodicidade na busca pelo emprego
(formal),
apontam
dificuldades
na
sua
concretização,
como
presença
de
comprovante de residência para abertura de uma conta, além do próprio preconceito
em aceitarem pessoas que se encontram acolhidas institucionalmente. Isso faz com
que a renda seja proveniente do acesso a atividades relacionadas ao mercado
informal.
Destacamos ainda das entrevistas os depoimentos:
Tem muita falta de interesse mesmo, você vê que a pessoa não
quer melhorar. Eu fico desmotivado. A pessoa não quer ajuda,
eu vou fazer o quê? Vem para comer e dormir e esperar o
Homem lá de cima chamar. (AG07)
Cuidado para não vitimizar, romantizar a situação. Todo mundo
corre o risco de cair em uma situação desta. Todo mundo pode
sair, mas nem todos vão, depende do que vai se fazer para
sair. (AS01)
123
Pessoas que são muito acomodadas. Percebe-se que algumas
não se sentem parte, donos então sujam, não colaboram outros
já pedem para ajudar, mas o CRAS não deixa. (AS04)
Só faz a entrevista de emprego se o serviço social cobra. Há
ainda aqueles que sempre colocam um empecilho. (AS02)
Com relação ao tempo de utilização dos serviços, Giorgetti (2006) levanta,
em sua pesquisa, dois pensamentos que apareceram com relação a isso. O grupo
que culpa o indivíduo, dizendo que eles não querem deixar as ruas pela facilidade
que a rede oferece, e o segundo grupo, que responsabiliza os próprios serviços, ou
seja, o próprio sistema não encontra soluções para o “rodízio dos albergues”.
Outros pontos comuns à pesquisa realizada por Giorgetti (2006) e os
encontrados neste levantamento podem ser estabelecidos, já que muitos
entrevistados citaram a frustração cotidiana frente às dificuldades enfrentadas.
[...] como a realidade dos moradores de rua é muito dura e,
muitas vezes, o trabalho realizado não atinge o ideal almejado,
esses profissionais lidam continuamente com os sentimentos
de dor e frustração, que com o tempo podem interferir: no
modo como esses profissionais representam o morador de rua;
nas atitudes tomadas em relação a eles e na qualidade do
serviço prestado. (GIORGETTI, 2006:170)
A autora acrescenta ainda que “[...] o descontentamento em relação aos
serviços da rede e o modo como a política social é conduzida pelo Poder Público
podem gerar sentimentos de impotência que transparecem no serviço que prestam a
essa população, bem como levar à desmobilização” (GIORGETTI, 2006:139).
Outro ponto levantado pela autora, e que merece destaque, é a inexistência
de serviços que contemplem a diversidade do perfil, que ofereçam um atendimento
que não faça a pessoa sentir-se desvalorizada, que contribua para a autoestima, ou
seja, ter o direito a reivindicar um tratamento adequado que não abale sua
autoestima, já que a “noção equivocada do conceito de cidadania, pois, ao propor
esse tipo de serviço [assistencialista], negam a eles a possibilidade participativa,
submetendo-os a uma condição permanente de dependência” (GIORGETTI,
2006:197).
124
Essa dependência identificada pela autora pode ser interpretada como uma
acomodação ou falta de vontade.
A questão da falta de salários dignos também apareceu em nosso
levantamento e é analisada por Giorgetti, que estabelece uma relação direta com a
falta de profissionais qualificados.
[...] a idéia de que, quando o direito a ter um salário digno e
uma boa qualificação são negados, isto é, quando algumas
condições para o exercício da cidadania são relegadas a
segundo plano, a auto-estima do trabalhador social diminui,
pois ele se vê impotente diante da complexidade da vida
quotidiana. (GIORGETTI, 2006:165)
Podemos perceber, por meio dos conteúdos apresentados neste capítulo,
que, embora exista um respaldo legal que prevê a garantia de direitos a um
atendimento digno dessa população, alguns entraves presentes no cotidiano dos
serviços prestados inviabilizam sua eficiência, sua eficácia e sua efetividade
e,
consequentemente que esse serviço seja potencialmente um facilitador para a saída
da situação de rua.
Dessa forma, o capítulo a seguir apresentará a análise dos depoimentos de
pessoas que saíram da situação de rua e em que medida o atendimento recebido na
rede socioassistencial contribuiu para isso.
125
FOTO
CAPÍTULO III - SAÍDAS PARA A SAÍDA DA SITUAÇÃO DE RUA
Por muito tempo procurei a verdade sobre a
vida dos homens entre si
Esta vida é muito complicada e difícil de compreender
Trabalhei duramente para compreendê-la, e então
Disse a verdade, como a encontrei.
(Bertolt Brecht)
126
Este capítulo apresenta os depoimentos das pessoas que saíram da
situação de rua e o significado atribuído por elas ao processo vivenciado que
culminou em uma nova condição de vida. Dessa maneira, um dos objetivos deste
capítulo é trazer a verificação das hipóteses desta pesquisa, sejam elas:
- Assim como existem momentos/ fatos (processos) que culminam na “situação de
rua”, existem momentos/fatos/estímulos (processos) que incentivam a saída da
“situação de rua”.
- Esses momentos podem ser estimulados, de acordo com a metodologia de
trabalho adotada no atendimento a esse público.
Este capítulo visa, também,responder a pergunta central desta tese: quais
fatores objetivos e subjetivos contribuem para o processo de saída da rua?
Assim, foram entrevistadas oito pessoas que viveram em situação de rua
em diferentes momentos de suas vidas e, em situações diversas, encontraram outro
caminho e refletiram sobre isso nos depoimentos que aqui serão apresentados. Por
tratar-se de pesquisa qualitativa, não se consiste em uma pesquisa com grande
número de sujeitos e “[...] temos a possibilidade de compor intencionalmente o grupo
de sujeitos com os quais vamos realizar a pesquisa” (MARTINELLI, 1999:24).
Como aponta também Martinelli (1999:21-22), este tipo de pesquisa “[...] tem
por objetivo trazer à tona o que os participantes pensam a respeito do que está
sendo pesquisado, não só a minha visão de pesquisador em relação ao problema,
mas é também o que o sujeito tem a me dizer a respeito”.
Vale destacarmos alguns esclarecimentos com relação à escolha dos
sujeitos. Inicialmente,
eles foram identificados pela pesquisadora em função do
trabalho desenvolvido com essa população ao longo de sua trajetória profissional.
Após cada entrevista, pedia-se a indicação de alguma outra pessoa que também
tivesse saído dessa situação. Vale esclarecer que também ocorreram indicações
realizadas pelos entrevistados nos centros de acolhida tratados no segundo capítulo.
O conhecimento dos sujeitos da pesquisa é apontado por Martinelli
(1999:22) como condição importante, já que
127
Se queremos conhecer modos de vida, temos que conhecer as
pessoas. Esse é o motivo pelo qual as pesquisas qualitativas
privilegiam o uso de uma abordagem em que o contato do
pesquisador com o sujeito é muito importante. (MARTINELLI,
1999:22)
Explicamos algumas dificuldades encontradas no decorrer do levantamento
destes dados. Merecem destaque alguns sujeitos entrevistados que, ao longo do
período de desenvolvimento desta pesquisa, retornaram para a situação de rua, e
ainda sujeitos que, embora saíram da situação, não quiseram conceder a entrevista,
por não querer relembrar o período e as dificuldades que passaram.
Vale apontar o respeito a alguns pressupostos no uso de pesquisas
qualitativas adotados neste trabalho e indicados por Martinelli (1999), que são:
- o reconhecimento da singularidade do sujeito: nesse sentido, cada pesquisa é
única;
- o reconhecimento da importância de se apreender a experiência social do sujeito
enquanto conhecimento de seus modos de vida, ou seja, seus sentimentos, valores,
crenças, costumes e práticas sociais cotidianas;
- o reconhecimento de que conhecer o modo de vida do sujeito pressupõe o
conhecimento de sua experiência social.
Finalmente, esta pesquisa apresenta o esforço em buscar os “[...]
significados de vivências para os sujeitos [...] [ou seja] a realidade do sujeito é
conhecida a partir dos significados que por ele lhe são atribuídos” (MARTINELLI,
1999:23). Assim, foram observados nos depoimentos: o perfil dos entrevistados,
garantindo-se a presença de homens e mulheres e também a proximidade de um
perfil para compor um universo de análise.
Apresentamos o resultado dos depoimentos colhidos a partir das entrevistas
de maneira a obter três blocos de questões.
O primeiro, responsável por analisar o processo que culminou na saída da
situação de rua. O segundo, relacionado à passagem e avaliação da rede
socioassistencial e o terceiro, que tange aos sentimentos vivenciados durante o
período em que estiveram em situação de rua.
128
3.1 APRESENTANDO OS SUJEITOS DA PESQUISA
Dentre os oito sujeitos entrevistados, seis são homens e dois são mulheres.
Dentre os homens, três completaram o ensino fundamental ; um cursa o ensino
médio; um completou o ensino médio ; e um cursa o ensino superior. Já as mulheres
cursaram o supletivo do ensino fundamental, no entanto ainda não o concluíram.
Com relação à faixa etária dos entrevistados, as mulheres têm entre 30 e 40
anos. Entre os homens, três estão entre 30 e 40 anos; um, entre 20 e 30 anos; e
dois, entre 40 e 45 anos.
A amostra é composta por pessoas que viveram tempos diferenciados na
rua, desde um mínimo de dois meses até mais de dez anos. Para preservar a
identidade dos sujeitos, não serão apresentados seus nomes.
Destacamos, a seguir, o perfil dos sujeitos:
- S1: mulher, 33 anos, três meses em situação de rua – não chegou a morar na rua,
apenas em albergue/centros de acolhida, já saiu da situação há 10 anos. Diz ter
ficado em situação de rua em função da separação de seu ex-companheiro, que,
além de usar drogas, era violento. Nasceu na região Nordeste e veio para São Paulo
em busca de trabalho e melhores oportunidades. Atualmente, é auxiliar de serviços
gerais em um dos serviços da rede socioassistencial e vive em uma moradia
alugada com sua filha.
Eu vim da Bahia com as minhas primas, comecei a trabalhar
em casa de família, ganhava bem, mas o meu motivo mesmo
foi por causa de separação. Logo fui morar com um rapaz né,
Aí os dois primeiros anos foi tranqüilo, até que ele começou a
usar drogas, ele é usuário de drogas, eu engravidei, na hora
que eu estava quase separando, saí grávida. Saí meio que
fugida da casa porque ele era um cara muito violento, nunca
me agredi. Depois que o nenê nasceu, eu tentei voltar, mas não
deu certo. Então, o que acontece... assim, quando você é mãe
e tem uma criança pequena fica com mais dificuldades para
arrumar emprego. Então eu fiquei na casa de uma amiga
minha e fiquei trabalhando, mas não era um trabalho certo.
Mas não deu muito certo, então eu deixava minha filha com
uma amiga minha, que eu não queria incomodar. A casa era
pequena, minha filha de dez meses e eu dormia no albergue,
dormi três meses, mas eu fazia bico, faxina, panfletava. A
menina ficava na creche, aí minha amiga, de confiança, falou,
deixa ela comigo à noite, porque albergue não é ambiente bom
129
pra criança. Eu tinha muito medo de tomarem, assim aí ela
ficou um tempo com minha amiga, até que eu me restabeleci.
(S1)
- S2: mulher, 39 anos, viveu dos 9 aos 23 anos de idade em situação de rua e, após
esse período, passou por alguns serviços da rede socioassistencial. Nasceu na
cidade de São Paulo e sua família veio do interior do Estado. Conheceu as ruas
ainda criança, quando passou a esmolar com os irmãos para levar as coisas que
faltavam. “[...] vendo que faltava as coisas dentro de casa e eu saia pra arrumar,
uma dessas vezes eu conheci um grupo de crianças que morava na rua ai comecei
a sair e me enturmar com essas crianças, aí comecei a fugir de casa”. Atualmente,
vive na comunidade do Moinho, com seus três filhos. Deseja ter o quarto, pois quer
uma filha, pois tem três meninos. Trabalha como agente de proteção às pessoas em
situação de rua. Seu maior sonho é escrever um livro sobre o que passou e mostrar
que sair das drogas é possível.
Minha história começa desde quando eu nasci. Minha mãe diz
que eu fui andar com três anos, tive problemas de saúde e só
fui andar com três anos, daí em diante não parei mais. Quando
eu tinha mais o menos cinco, seis anos eu saía para pedir
esmola nas casas, para ajudar minha mãe dentro de casa
porque a gente passava necessidade. Meu pai bebia e (meu
padrasto, né) gastava o dinheiro tudo com bebida. O que
acontecia, faltava as coisas dentro de casa e eu via minha mãe
sofrendo, correndo atrás das coisas, trabalhando, fazendo um
biquinho aqui, um biquinho ali para não faltar comida dentro de
casa. Nós, em casa, com sete irmãos, oito comigo, então eu
me sentia na obrigação de ajudar minha mãe, eu juntava meus
irmãos menores até um pouco menores também. E saía para
pedir. (S2)
- S3: homem, 43 anos, cinco anos em situação de rua (entre a própria rua e alguns
Centros de Acolhida). Durante a entrevista, apresentou muito receio em revelar
informações pessoais. Diz estar prestes a retornar para a rede socioassistencial,
pois trabalhava registrado, mas foi demitido e não está mais conseguindo pagar o
aluguel. Também foi o desemprego que o levou à situação de rua pela primeira vez.
Nasceu no interior do estado de São Paulo.
130
Vivi quase cinco anos em situação de rua, a maioria em
albergues, mas, muitas vezes, chegando a dormir na rua por
falta de vaga ou por já possuir “passagem”. (S3)
- S4: homem, 36 anos, viveu em situação de rua durante 12 anos, entre “idas e
vindas”. Durante esse período, destaca “fugas de casa” em função do crack, ao qual
atribui sua primeira saída de casa para a rua, quando começou a namorar uma
menina que era traficante na “Cracolândia”, viveram juntos três anos e dois dias.
Nasceu na cidade de São Paulo e aos 17 anos morou em uma pensão no bairro da
Luz com essa menina, que tinha 19 anos. Segundo ele,ela é uma pessoa que
marcou sua vida, mas perderam contato quando a prenderam enquanto ele estava
dormindo. Ela cumpriria 10 anos e 6 meses de prisão por tráfico e corrupção de
menores, porém foi morta na prisão. Após esse acontecimento, ele entrou em
depressão. Atualmente, vive com a família e está esperando o deferimento de auxílio
assistencial em função de problema de saúde.
Peguei tudo que eu tinha em casa e fui pra rua. Fui parar na
Rodoviária do Tietê e lá me deram encaminhamento para o
albergue “Quarentinha”, que fiquei um ano e meio. Depois fui
para outro albergue. (S4)
- S5: homem, 35 anos, viveu em situação de rua por aproximadamente cinco anos
em função de problemas financeiros ocasionados
pelo rompimento de uma
sociedade, somados ao desejo de conhecer melhor o Brasil. Nascido na região
Centro-oeste do país, hoje mora de aluguel e trabalha em projeto de geração de
renda para pessoas em situação de rua.
Depois de tudo o que aconteceu comigo, deixei minha família e
saí andando pelo mundo. (S5)
- S6: homem, 41 anos, viveu dois meses na rua e quatro em casas de acolhida,
após sofrer um acidente de trabalho. Como era autônomo, não conseguiu
estabilidade financeira para se manter. Atualmente, mora de aluguel e trabalha com
arte e cultura em projetos ligados às pessoas em situação de rua.
Fiquei na rua dois meses só e quatro anos em albergues.
Quando eu fui parar na rua, eu estava ’destrancado’ de
trabalho, como eu trabalhava para mim mesmo e não recolhia
131
INSS, nem nada, não tive seguro, nem como me segurar, pagar
o aluguel e como fazer mais nada. Aí acabei indo morar nas
ruas por causa da fome que eu estava passando. Demorei
mais tempo para sair porque eu tive que fazer uma cirurgia e só
isso tive que ficar mais dois meses em albergue, no primeiro
fiquei [...] um mês porque estava tentando arrumar uma
fisioterapia. (S6)
- S7: homem, 35 anos, viveu quatro
anos em situação de rua. Atribui a um
deslumbramento que teve quando chegou a São Paulo, com 19 anos, vindo do
Nordeste do país, onde nasceu. Hoje, trabalha como agente de saúde e cursa
Serviço Social.
Eu vim de Feira de Santana na Bahia para São Paulo com 19
anos. Eu morei no interior de lá e o máximo que eu tinha visto é
um prédio de dois ou três andares. Aí eu chego numa cidade
desse tamanho, muito novo, e comecei a me deslumbrar com a
cidade na verdade. Eu trabalhava de segurança, ganhava 100
reais lá na Bahia, e aqui meu primeiro salário eu já recebi 400,
com a possibilidade de comprar um tênis de 200 reais, ir para
onde você quisesse... Eu comecei a me afastar cada vez mais
da minha família. No começo, eu ia pra casa a cada seis
meses, depois passou para um ano. Depois dois, três e eu
cheguei ficar oito anos sem ver a minha mãe. Eu acho que foi
uma completa alienação na verdade, um processo de
alienação, de deslumbre das ruas, de achar que tudo era
possível... Chegou um momento que eu nem me conhecia
mais, eu estava completamente irreconhecível. Mentia para as
pessoas, aquela coisa de você sair muito, balada, boate,
chegou uma hora que eu não sabia mais quem eu era. Tinha
que mudar e de que forma mudar? Como voltar para casa
depois de oito anos com a quarta série, e tinha um momento
que eu tinha vergonha, 26 anos, trabalhando de ajudante de
segurança na época, dia sim, dia não, patrão te pagava quando
queria e se você tivesse que ir embora, como fazer? Um
segurança hoje precisa do nível médio, e você nem o
fundamental tem? Eu era um
semianalfabeto na maior
metrópole do país. Então não era fácil, foi isso que me levou
para as ruas. Chegou a hora eu disse basta, ou eu mudo ou eu.
(S7)
- S8: homem, 27 anos, viveu quatro anos em situação de rua, dos 14 aos 18 anos.
Na fase adulta, não chegou a ficar em situação de rua. Atualmente, trabalha em uma
indústria e cursa o ensino médio.
132
Normalmente, eu trabalhava em um semáforo, antes de entrar
em situação de rua eu vendia bala no farol, bala, chiclete,
passar rodinho, para ajudar minha família a pagar o aluguel.
Para ajudar financeiramente. O meu padrasto era alcoólatra, eu
não tinha bom relacionamento com ele, eu era pequeno, aí
uma vez eu fui para o farol e não voltei mais, eu permaneci.
Minha mãe ia falar para eu voltar pra casa, mas eu sabia como
era a situação lá, e fiquei de vez na rua. (S8)
Com esse
panorama geral dos entrevistados, analisaremos, agora, os
blocos de respostas, segundo os eixos identificados nas entrevistas. Para tanto,
dividimos em dois itens: o primeiro apresenta os fatores apontados nas entrevistas
entre objetivos e subjetivos; o segundo aponta a reflexão sobre os serviços
prestados pela rede socioassistencial por onde passaram os sujeitos entrevistados.
3.2 OS FATORES SUBJETIVOS E OBJETIVOS QUE INCENTIVARAM O
PROCESSO DE SAÍDA DA RUA
Neste item, apresentaremos os fatores identificados pelos entrevistados em
seus depoimentos, ao serem questionados sobre o processo de saída da rua.
Merece destaque a palavra processo, uma vez que, mesmo indicando algum fator ou
evento concreto, a maioria dos entrevistados narra o resultado de um processo
desencadeado por eles ou por fatores externos que incentivaram a saída da
situação, ou seja, apontam a existência de uma oportunidade atrelada a um
movimento interno (desejo/vontade).
Vale, novamente, reiterar o que já foi exposto na apresentação e no primeiro
capítulo sobre a não responsabilização do indivíduo pela situação de rua, já que “o
fenômeno população em situação de rua é uma expressão inconteste das
desigualdades sociais resultantes das relações sociais capitalistas, que se
desenvolvem a partir do eixo capital/trabalho [...]” (SILVA, 2009:27). A mesma autora
coloca, ainda, que se refere a uma situação ou condição social produzida pela
sociedade capitalista, no processo de acumulação do capital, não devendo ser
designada a uma situação ou condição resultante de fatores subjetivos, vinculados
à sociedade e à condição humana, como é comumente considerada. (SILVA,
2009:27)
133
Mesmo nesse contexto, torna-se de suma importância pensar formas de
saída da situação de rua e, por que não dizer, prevenir que mais pessoas vivam
nessas condições? Essa é a finalidade deste trabalho e, nesse sentido, pesquisar
junto àqueles que saíram dessa situação pode sinalizar alguns caminhos.
Assim, dividiremos em dois os blocos de respostas. Um, daquelas pessoas
que identificam um motivo concreto, como o emprego/ trabalho, a família que aqui
chamaremos de fatores objetivos. Outro, daqueles fatores mais subjetivos,
relacionados ao desejo de mudança da situação, por exemplo.
3.2.1 Os fatores objetivos apontados nos depoimentos
Os fatores objetivos foram os mais apontados por todos os entrevistados.
Mesmo sendo resultado de um processo, a saída da rua foi relacionada pela maioria
a motivo concreto que aconteceu em suas vidas. Dentre todos os fatos
apresentados, a presença de trabalho ou emprego foi a que mais apareceu nos
depoimentos.
Vale apontarmos que, para Marx e Engels, o trabalho é tido como “[...]
elemento central no processo de sociabilidade humana e na determinação de seu
modo de vida” (MARX, ENGELS apud SILVA, 2009:39).
Para Silva (2009), que estabeleceu a relação entre trabalho e população em
situação de rua, “[...] o trabalho é uma marca distintiva do ser humano e uma
atividade central em sua vida e na história da humanidade, em qualquer forma
social; é também determinante na estruturação das relações sociais” (SILVA,
2009:43-44).
Tomemos os exemplos a seguir:
Então, eu consegui, trabalhava de faxina, aí me indicaram a
casa de umas freiras, fiquei trabalhando lá como voluntária
duas vezes na semana, aí elas me indicaram pra trabalhar
registrada na região do ABC, aí depois consegui trabalhar aqui
na rede mesmo. Depois de quatro anos, voltei para a Bahia,
porque minha mãe ficou doente, pedi as contas e fui embora.
Depois de seis meses, minha mãe ficou bem, voltei para São
Paulo e trabalhei em dois lugares. Um era uma galeria e outro
em casa de família, até que me localizaram e perguntaram se
eu não queria voltar. Eu estava bem no outro emprego,
ganhava bem mais, mas como eu gosto muito daqui, acabei
134
voltando e já faz dois anos que estou aqui de volta. Aqui
trabalho com serviços gerais. (S1)
S1 trabalha, atualmente, como auxiliar de serviços gerais em um serviço da
rede socioassistencial da prefeitura de São Paulo, que atende pessoas em situação
de rua. Enfatiza a importância que o trabalho formal teve em sua vida para sair
daquela condição. Merece destaque o tempo em que atuou como voluntária antes
de conseguir uma indicação para um trabalho formal, prática comum entre as
organizações sociais, caracterizando-se como um teste não só de aptidão, mas
daqueles que realmente querem sair da situação de rua.
Nesse ponto, vale a ressalva da preocupação na forma como essas ações
voluntárias são organizadas pelas instituições e a maneira como podem se tornar,
ao mesmo tempo, um impulso para o mercado formal, também podem gerar o
oposto. Isso porque a ação voluntária pode se transformar em mais uma das tantas
explorações de mão-de-obra, que, além de desestimular o indivíduo em função do
trabalho não remunerado, pode se tornar mais um fator para a manutenção do
indivíduo na situação de rua, inclusive pelo vínculo gerado com o serviço
socioassistencial.
Outro destaque no depoimento é o retorno de S1 para trabalhar com esse
público, como certa identificação pelo que passou, já que escolheu ganhar menos e
trabalhar com essa população.
Ao perguntarmos a S1 sua percepção sobre o que leva uma pessoa a viver
em situação de rua, ela responde:
Falta de oportunidade mesmo, apoio da família é muito
importante. Eu não tive porque meus irmãos nem sabiam,
porque foi uma situação muito delicada. Eu saí grávida e me
virei sozinha, mas eu acho que o apoio da família é tudo.
Talvez se eu tivesse procurado meus pais lá na Bahia, lógico
que eles vinham me buscar, mandar dinheiro, eu sempre tive
conta conjunta com meu pai lá no estado da Bahia, mas eu não
podia, como eu ia explicar? Falei que eu estava desempregada
e que fazia um bico, mas eu nunca cheguei a comentar isso
com meus pais, nem com meus irmãos aqui de São Paulo. (S1)
O receio de S1 que sua família saiba que viveu nessa situação apareceu
em dois momentos da entrevista. O primeiro, inicialmente, quando perguntou sobre a
divulgação da
entrevista e ressaltamos que sua identidade seria preservada; e
135
outro, quando contou que não quis solicitar o apoio a seus familiares, pois não
queria que soubessem pelo que ela estava passando. Assim, quando ela disse
“ninguém sabe que eu passei por essa situação” (S1), garantimos que estes dados
tinham apenas finalidade acadêmica.
Paugam (2007:74) afirma que a “desclassificação social é uma experiência
humilhante, ela desestabiliza as relações com o outro, levando o indivíduo a fecharse sobre si mesmo [...] mesmo as relações no seio da comunidade familiar podem
ser afetadas, pois é difícil para alguns admitir que não esteja à altura das pessoas
que o cercam”.
Acrescenta ainda:
O morador de rua recusa todo tipo de contato com os membros
de sua família, pois não se considera capaz de corresponder às
expectativas de seus parentes, preferindo isolar-se, a se
humilhar, indo ao seu encontro para pedir ajuda. No momento
em que sua situação melhora e conseguem retomar a
confiança em si mesmos, os moradores de rua reatam os laços
com a sua família. (PAUGAM, 2007:78)
Outro entrevistado que aponta o trabalho formal como fator principal para a
saída da situação de rua foi S3, que, ao ser questionado sobre as possibilidades de
saída da rua, responde, veementemente, que “falta previdência”23. Acrescenta,
ainda, “falta o crescimento do mercado formal, já que a informalidade não deve ser
fortalecida. Viver de assistencialismo? Viver de latinha?” (S3). Explica que a inclusão
deve ser econômica e cita seu exemplo, “mando um monte de currículo, depois que
passei dos 40...”. O entrevistado mostra grande preocupação na forma como a
inclusão pela geração de renda vem sendo feita nos serviços socioassistenciais.
Esclarece que, na maioria das vezes, as ofertas giram em torno do mercado informal
e relacionadas à coleta seletiva, não sendo oferecidas outras propostas de acordo
com a formação e a aptidão das pessoas.
Nesse
sentido, podemos retomar Paugam (2007:69), quando cita Coser
(1965), com relação à “estigmatização dos assistidos” (COSER apud PAUGAM,
2007:69), quando o “apelo permanente à assistência social condena a massa de
pobres para carreiras específicas, alterando sua identidade e transformando suas
23
Vale esclarecer aqui que se trata da previdência social, um dos tripés da seguridade social.
136
relações com os outros num estigma [...], um status social desvalorizado” (PAUGAM,
2007:69).
S3 apresenta-se bastante preocupado, uma vez que diz estar prestes a
retornar para a rede socioassistencial. Trabalhava com registro formal, mas foi
demitido e não está mais conseguindo pagar o aluguel. Durante quase toda a
entrevista, fala da dificuldade da reinserção social. Diz que quando alguém sai da
rua, principalmente, é difícil conseguir vencer a burocracia, como “abrir um crediário
para comprar alguma coisa, abrir conta em banco, ter que encontrar fiador para
conseguir alugar uma casa”. Destaca, várias vezes, que a saída da situação de rua
não é o mercado informal e sim a inserção no mercado formal para que haja
garantias aos trabalhadores em momentos como o desemprego, doenças etc, ou
seja, um respaldo previdenciário.
Critica, ainda, a frente de trabalho municipal, apontando que não deveria ser
aula de “varreção” (referindo-se ao trabalho executado pelos participantes da frente
de trabalho). Diz que a resposta tem que ser da sociedade inteira, pois pobreza só
vai gerar violência e crime, já que “ninguém quer trabalhar por um salário mínimo”
(S3). Aqui, novamente, reflete sobre precárias condições de oferta de projetos de
inserção social e que o problema vivido pela sociedade é muito mais amplo.
Diz que a saída da situação de rua é a mudança da mentalidade do mercado
de trabalho, ou seja, o aumento de ofertas no mercado formal e ainda a capacitação
dos trabalhadores para que isso aconteça. Ilustra que, hoje, famílias que não estão
nas ruas, alimentam-se da oferta de entidades assistenciais que distribuem
alimentos nas ruas, pois não sobra dinheiro para comprarem alimentos. “[...] Tem
renda formal ou informal, mas não dá pra viver” (S3).
Essa preocupação de S3 pode ilustrar o processo de desqualificação social
elaborado por Paugam, já que é um “movimento de expulsão gradativa, para fora do
mercado de trabalho, de camadas cada vez mais numerosas da população [...]”
(PAUGAM, 2007:68). Preocupação que perpassa as consequências da precarização
do trabalho presente nas sociedades.
O depoimento de S3 salienta não apenas o trabalho como necessário à
saída da situação de rua, mas a garantia de um sistema de proteção àqueles que
contribuem, acrescentando ainda que a mudança de mentalidade em lidar com a
situação de rua requer pensar em como a pobreza vem sendo tratada.
137
Já S2 divide a saída da situação de rua em dois momentos. O primeiro deles
quando se descobre grávida e percebe que teria que sair dessa situação de rua e
de dependência química para poder cuidar de seu filho e, o segundo, anos mais
tarde, a saída da rede socioassistencial que se efetivou pelo acesso ao trabalho.
Eu engravidei, foi assim tive várias internações em hospitais
psiquiátricos para parar com a droga, sempre tinha recaídas...
No dia 6/07/2001, foi a grande mudança na minha vida, eu pedi
ajuda ao Projeto X, agradeço muito ao projeto X, foi a pessoa
que me ajudou muito, ele trata com crianças de rua,
adolescentes envolvidos com drogas, e eu, por já ser de maior
na época, eles continuaram me ajudando, não desistiram de
mim, me ajudaram, me internaram no hospital de Diadema. Eu
acho que fiquei uns três meses, por aí, ou mais ou menos, mas
aí eu tava decidida a nunca mais usar drogas, que eu ia parar,
aí [...] Foi em outubro que eu sai de lá, aí nunca mais eu usei,
até hoje, mas pra mim conseguir parar a minha motivação de
tudo isso pra foi o meu filho, P.V.S, de nove anos, no dia 13, na
sexta feira treze de 1999. [...] e eu devo tudo isso a Deus e em
segundo lugar meu filho, que foi por ele que eu comecei a fazer
as coisas para sair dessa vida. (S2)
No entanto, antes mesmo da decisão de parar de usar drogas ter sido
fortalecida, em outubro de 1998, foi presa e narra todas as dificuldades passadas na
prisão, dentre elas a violência que quase a fez perder a criança. Após a saída da
prisão, novamente se viu em situação de rua, agora com um bebê em suas mãos,
recorrendo, então, à rede socioassistencial.
Meu bebê tava com quatro meses quando cheguei lá, e hoje,
e agora, ele tá com seis anos, ai arrumei o serviço que eu tô
até hoje lá, trabalhei três vezes na frente de trabalho, na última
vez foi para trabalhar no CAPE como agente de proteção
social, [...] aí terminou, ai uma ONG [...] pegou a gente e
registrou [...] então, sim foi o trabalho, porque se não fosse o
trabalho eu tava lá no albergue ainda. (S2)
Devemos resgatar, também, no depoimento de S2, a presença marcante do
atendimento e do acompanhamento recebido por instituição que desenvolve trabalho
social com crianças e adolescentes em situação de rua e com problemas com álcool
e drogas. Nesse sentido, a experiência de projeto social ou serviço por onde
passaram foi destaque nos depoimentos a seguir:
138
Tinha uma organização que vinha na rua e perguntava se eu
queria ir para um projeto e uma vez eu me interessei e fui eu e
mais uns colegas. Aí eu fiquei, fiquei, eu e mais três até os 18
anos. Era um projeto social do antigo governo Pitta. Tinha
escola, educadores, assistentes sociais. Eu ficava o tempo
todo, tinha curso lá dentro e freqüentava a escola fora. Tinha
passeio no final de semana, se quisesse ir para família no final
de semana, eles levavam e depois retornava. Só que eu nunca
ia. Projeto X, perto da Luz no Bom Retiro. Eu tinha mais
contato com os educadores, tratavam a gente bem, como se
fosse uma família, tinha reunião para fazer alguma melhoria,
eles conversavam com todos. (S8)
Na verdade, posso dizer pra você, francamente, que o projeto
Y me deu essa... esse ponto de partida como eu já falei, porque
o Y, ele... ele acreditou, ele acreditou que eu poderia ser capaz
de mudar minha vida, eu mesmo posso mudar a minha vida,
por exemplo, eles me deram a oportunidade pra que eu
voltasse a estudar, me levantou a auto-estima pra voltar a
estudar, fazer cursos, né? A fazer uma série de coisas, e ai eu
percebi que eu poderia... isso me estimulou, né? Vi que eu era
capaz de mudar a minha vida novamente, começar de novo,
né? De fazer uma série de coisas, deixar de viver na rua,
deixar de ficar mendigando, né, entendeu? Por que a partir do
momento que você passa a depender, a pedir alguma coisa
para alguém, você está mendigando, né? Então você deixa de
mendigar pra buscar a sua própria dignidade, né? Que é o
trabalho, que uma rota de alguma das formas eu te falei que é
o trabalho que traz a auto-estima, então, o Yl me ensinou a
buscar, né? A ser humano, eu tentei voltar a começar tudo de
novo, é como se fosse uma criança. Eu aprendi como se fosse
doze anos, né? Para poder obter alguma responsabilidade que
a vida traz a responsabilidade então eu voltei a começar de
novo. Então o que me estimulou mesmo, de verdade, foi esta
oportunidade que me deram, de fazer cursos, de compreender,
de voltar novamente à sociedade de uma maneira mais digna,
né? Aprender de novo, né? Entendeu? (S6)
Mesmo citando o exemplo de um albergue como fator diferencial para a
saída da situação de rua, S6 salienta o acesso ao trabalho como importante para a
recuperação da dignidade de ser humano.
Segundo Silva (2009:257), “o trabalho é ação transformadora da natureza,
realizada pelos humanos de forma consciente orientada para o fim de atender a
suas necessidades, tanto as necessidades de garantia de subsistência e reprodução
da vida material, por meio da produção de objetos materiais e relações sociais,
como outras necessidades sociais historicamente construídas, inclusive a de dar
continuidade ao conjunto da vida social a um determinado estágio de sociabilidade.
Assim, como atividade do processo de trabalho, é condição natural e vital do gênero
139
humano, em qualquer forma social. É central na história da humanidade e
indispensável à manutenção da vida, além de ser estruturante da sociabilidade
humana”.
Podemos constatar o que Paugam (2003) concluiu em seus estudos com
relação ao trabalho na vida das pessoas, já que “a falta de perspectivas profissionais
torna a vida insuportável, sobretudo aos que ainda não viveram a experiência do
fracasso e da desqualificação social e cuja atividade anterior lhes permitiu alcançar
um início de ‘aburguesamento’ (PAUGAM, 2003:94).
O autor acrescenta ainda que “[...] a precariedade da vida profissional está
correlacionada com uma diminuição da sociabilidade”, colocando ainda que “a
conseqüência disso tudo é que o risco de enfraquecimento dos vínculos sociais é
proporcional às dificuldades encontradas no mercado de trabalho” (PAUGAM,
2007:72).
Nos dois depoimentos apontados, podemos também perceber que o
estímulo de um trabalho social adequado acarretou não apenas a saída da situação
de rua, mas o acesso a outras relações. Isso aconteceu com S8 que, após sair do
projeto onde foi atendido por três anos, retomou o contato com a mãe e outros
familiares, arrumou um emprego, teve um relacionamento do qual nasceu sua filha,
decidiu encontrar seu pai em outro Estado, agora trabalha e retomou os estudos,
continuando o ensino médio.
Para S4, a saída da rua também foi motivada por orientações recebidas de
alguns profissionais e pelo forte vínculo que possui com sua mãe.
Hoje estou há três anos em casa. O que me motivou foram os
conselhos de uma assistente social e de um pastor, o pastor
J.A.P, que me chamava de ‘burro da rua’, porque ele não
entende até hoje o que eu vim fazer na rua. Depois, eu parei e
comecei a pensar em tudo o que eu já fiz de errado, que são
muitas coisas, como roubar o próprio pai, agredir a própria
mãe, machucar irmãs, e aí voltei, pedi perdão pra meu pai,
minha mãe e irmãs. E o que eu acho que mais me levou a
voltar mesmo foi que eu não consigo ficar longe da minha mãe,
por mais que eu queira. (S4)
Acrescenta ainda:
Eu estava revoltado comigo mesmo, eu tinha mágoa de
pessoas da minha família, tá certo que o errado foi eu, foi eu
140
que aprontei, mas eu guardava mágoa, era revoltado comigo
mesmo. Eu me achava auto-suficiente porque ninguém da
minha família me mandou embora, fui eu que peguei as minhas
coisas e saí. Eu simplesmente vim em casa, peguei uma mala,
minhas coisas e disse ‘tchau’. Nesse tchau, foi mais de um
ano... Eu senti um pouco de solidão. Eu sou uma pessoa que
não gosto de ficar sozinho. Eu odeio não ter atenção, se estou
em um lugar que não me dão atenção, eu vou pra um lugar que
possam me dar atenção. Mas eu gosto de estar rodeado de
pessoas. Senti saudades da minha mãe. Eu tenho uns atritos
com meu pai, com minhas irmãs, mas, quando eu estava na
rua, a saudade que eu mais sentia era da minha mãe, se não
fosse ela eu já estaria morto. (S4)
Já S7 coloca que a sua saída foi resultado de um processo que começou
com o retorno
aos estudos e, como consequência, o trabalho como agente de
saúde. No entanto, enfatiza a importância do trabalho social e psicológico que
recebeu durante esse retorno ao trabalho formal.
Para mim, foi um processo mesmo. Quando eu fui para as
ruas, eu tinha só o ensino fundamental incompleto, depois que
eu fiquei nas ruas é que eu passei a voltar a estudar e terminei
o ensino fundamental e médio e, logo depois, veio o trabalho.
Com o trabalho, veio o acompanhamento psicossocial e, no
meu caso, foi um processo mesmo na área da educação,
cultura e lazer. Mercado de trabalho. Também contribuiu a
parceria com a prefeitura, só o setor privado eu acho que não
daria conta. (S7)
S7
destaca ainda que a importância do acompanhamento psicológico e
social evitou que muitos desistissem e voltassem para as ruas, em função da
discriminação e do preconceito pelos quais estavam passando.
No momento da contratação, eu comecei a trabalhar como
agente comunitário de saúde de população de rua e uma das
reivindicações do parceiro, CSNSB, junto à prefeitura, era que
os agentes comunitários que fossem contratados tivessem
acompanhamento psicossocial. Não fosse só um emprego em
si... Era uma posição da entidade ter esse acompanhamento
psicológico, psiquiátrico, saber quem eram os agentes
comunitários, como era a família, como se encontravam e o
distanciamento da família. A partir do primeiro mês que fomos
contratados – os agentes comunitários –, tínhamos uma
conversa mensal com a psicóloga, com a assistente social.
Tinha uma avaliação e cada um era encaminhado segundo a
necessidade. Eu acho que isso ajudou muito a não voltar para
as ruas novamente. Porque a gente se sente tão discriminado,
141
com tanto preconceito, que esse atendimento é muito
importante. (S7)
Além dos depoimentos acima, que podem sinalizar fatores objetivos que
contribuíram para a saída da situação de rua, outros, menos “palpáveis” merecem
ser discutidos, a esses chamaremos de fatores subjetivos.
3.2.2 Os fatores subjetivos apontados nos depoimentos
Em
diferentes
momentos
das
entrevistas,
dados
mais
subjetivos
apareceram, tanto quando os sujeitos respondiam sobre o processo de saída da
situação de rua, quanto a relação estabelecida entre o que viveram e o que
acreditam.
Dentre os depoimentos, destacamos o de S5, que enfatiza, durante todo o
tempo, que o primeiro fator importante para sair da situação de rua é querer sair e
ser firme e forte frente aos desafios que forem surgindo.
São dois fatores que ajuda a pessoa a sair da rua, o primeiro
se ela realmente quer sair da situação de rua, ela, primeiro
antes que as pessoas ajudem ela, né? Dá oportunidade pra
ela, ela tem que dar oportunidade pra ela mesma, né? Que
seria ela querer receber essa ajuda, esse é o primeiro ponto. E
as oportunidades sempre vêm, algumas vezes com muita
dificuldade, não vêm assim, como é como eu posso dizer pra
você? as oportunidades muitas vezes, ela não vêm assim
completa, tem os passos de tempo para conquistar cada coisa.
Por exemplo, o primeiro passo do cidadão, quando ele quer
sair da rua, geralmente ele começa aos poucos, ele vai, ele
aluga um quartinho, ele começa a se organizar, ele começa a
realmente a integrar a uma vida normal, certo? Que são
pessoas que têm responsabilidade, com dívidas? Voltar a
questão da reinserção social, que é um trabalho
completamente diferente. E pra ele voltar a essa rotina normal,
né?Ele tem que estar preparado psicologicamente, né?, estar
tranquilo , ele tem que ter paciência com algumas coisas, né?,
e o fato dele, às vezes, estar morando no quartinho, pra ele
avançar um pouco mais, ele tem que começar a vencer alguns
desafios, que seria a questão de voltar a cozinhar, voltar a ter a
responsabilidade de casa, começar a ter uma vida normal,
embora que ele fica desempregado, mas ele tem que entender
que ele tem que buscar outro emprego pra poder não cair na
mesma situação, e ser forte e firme pra poder acarretar esse
desafio, né?, e o mais importante de tudo, pra uma pessoa sair
da rua, ele tem que querer realmente ser ajudado, por que
você pode ter milhões de oportunidades, mas o ser humano
142
tem a opção do querer tá, tem que ter o querer, esse é um dos
fatores. (S5)
Já S6 afirma que não teve nenhuma influência direta para sair da situação
de rua, já que “[...] desde que eu fui parar nas ruas, eu nunca tive vontade de estar
lá, sempre tive vontade de sair o mais rápido possível. Quando as coisas
começaram acontecer na área da cultura, aí apareceram oportunidades, aí eu tive
vontade de tocar para frente”. Embora S6 tenha apontado a questão cultural como
fator motivador, em sua entrevista, muitas vezes aparece a questão da vontade, de
acreditar, de retorno a ter sonhos e novas perspectivas.
Outras informações muito subjetivas aparecem quando os sujeitos analisam
seu modo de vida antes da rua, na rua e agora, como o que diz S1, ao comparar
como se via antes da situação de rua:
A experiência que a gente sente na pele. Eu era muito novinha,
arrogante... (S1)
O mesmo acontece quando ela analisa a razão de ter saído da situação de
rua, ao comparar com outras pessoas que continuam nessa condição.
Acho que saí, não sei, talvez porque eu não tivesse vício, pois
você sabe que uma pessoa viciada fica mais difícil. Graças a
Deus, eu nunca usei drogas na minha vida, nunca, eu acredito
que, sei lá, se eu tivesse entrado nos vícios das drogas, minha
filha poderia estar hoje no Conselho tutelar e eu estaria
zanzando por aí pela rua. (S1)
Nesse sentido, ao perguntarmos o que diferencia quem sai da rua de quem
não sai, ela responde:
É como eu te falei, 90% é o vício né? E a pessoa tem que ter
interesse também. Não pode ficar frequentando o que eles
chamam de boca de rango. Eu não frequentava estes lugares.
Eu sempre arrumava algo pra fazer. Eu panfletava, fazia uma
faxina. A minha ex-patroa me ajudou muito, eu tive apoio de
uma pessoa amiga, uma referência. (S1)
O trecho acima remete-nos a duas questões. A primeira refere-se à fase da
fragilidade negociada (PAUGAM, 2003:94), quando a pessoa estabelece a distinção
entre ela e as outras pessoas na mesma situação, frequentemente, quando recém-
143
chegada a essa situação comparando-se com os outros e não se colocando na
mesma condição. Já a segunda, relaciona-se à
importância dos vínculos nas
relações sociais, ou seja, a presença de uma pessoa de referência. O depoimento a
seguir mostra a percepção de um dos entrevistados em distinguir três momentos
diferenciados em sua vida: enquanto na rua, enquanto usuário da rede
socioassistencial (albergue) e agora com sua família.
Agora, pós albergue, pós situação de rua, né?O que que muda
na vida de uma pessoa, pós albergue, né?A vida dela, ela
muda, ela dá um salto bem maior, né?Porque ela se sente mais
humana, andando no meio da comunidade, no meio do povo,
né? Ela se sente mais humana, né? Que nem eu te falo, e o
convívio com as outras pessoas, por que quando ela passa a
ter uma integração, e ter uma identidade novamente, e a
pessoa, ela perde esta identidade, é como começar de novo,
ter uma vida nova [...]. (S6)
Na rua, passei por coisas que até Deus duvida. Na minha casa,
agora está bem, com minha mãe está bem. Eu e o meu pai
quase não nos falamos. Eu e minha irmã mais velha mais
brigamos do que conversamos, o normal de família... No
começo do ano, vou procurar algo pra fazer, apesar de não
poder trabalhar por ter transtorno bipolar e estou fazendo
tratamento, por enquanto estou lá, até me dar na veneta, sou
meio de lua [...]. (S4)
S4 reflete ainda que houve um processo para a retomada desses vínculos
familiares, nem sempre compreendidos pelo profissional que realiza o atendimento.
[...] tem vínculos que você tem rompidos e tem vínculos que
você pode reatar, como aconteceu comigo, eu voltei pra casa e
minha mãe me recebeu muito bem. O que me ajudou a voltar
foi a saudade que eu sentia da minha mãe, a solidão que eu
sentia, os conselhos que eu recebi. Não consigo ficar muito
tempo sem minha mãe.
Uma vez, uma assistente social falou pra eu voltar pra casa e
eu respondi que falar de fora era fácil, vem viver o que eu estou
vivendo...
Uns conselhos eu guardei, outros eu fui pro vaso sanitário e dei
descarga.
Eu só ouvia os conselhos que queriam me derrubar. Hoje, no
mundo, você encontra mais pessoas pra te derrubar do que pra
te levantar. Agradeço aos que me ajudaram a levantar, os que
quiseram me derrubar, eu continuo de pé e eles continuam
caídos. (S4)
144
Além de apontar a presença de uma pessoa que tenha ajudado a superar a
condição, novamente aparece a questão do interesse em sair da situação.
Acrescenta ainda:
Você imagina, você sai de um albergue, aí você vai para casa,
um lugar comum, à tarde tem o café, e você não procura nada,
fica ali, eu acho que é melhor ocupar a mente, como eu te falei
né? Eu poderia estar aí drogada, em péssimas companhias, eu
não tenho amiga, sempre me virei sozinha. (S4)
Finalmente, S1 coloca a necessidade da busca por alternativas e não só
esperar o que é oferecido. S5 também menciona, em seu depoimento, a importância
de acreditar que possa sair da situação e, atrelado a isso, a oferta de oportunidades
seria a fórmula para sair da situação de rua.
Nunca o sujeito acredita que possa sair desta situação. Não
acredita nas ONGs, ONG nenhuma, até falo, poder público,
ninguém no mundo consegue tirar ninguém da rua se a pessoa
não quiser que isso aconteça, então, se a própria pessoa tiver
iniciativa e buscar alternativa. J é um exemplo, J hoje tem a
sua própria casa, tem o seu carro, tem a sua família e vive
muito bem e muitos e muitos outros que saíram da situação de
rua, entendeu? Vou te dar um exemplo maior aqui na cidade de
São Paulo, pessoas que trabalham com negócio de cartucho,
vídeo game e tal na Santa Efigênia, na rua, na região central...
Será que este pessoal não quer trabalhar? É uma contradição
muito grande, entendeu? O pessoal não quer trabalhar? O que
está faltando para o morador de rua é oportunidade de
verdade, uma alternativa de verdade. O que existe aí é uma
grande enganação. Cursos fingidos que não tira morador de
rua de lugar nenhum. Muitas das pessoas já ganharam
caminhão de dinheiro, milhões, bilhões de dinheiro e nunca
fizeram nada para a população de rua. (S5)
Sebastião Nicomedes, um dos representantes e líderes das pessoas em
situação de rua, afirma, em reportagem na Revista Época, “Compreendi que a chave
entre quem sai da rua e quem nunca vai sair é a perda da capacidade de sonhar” (cf.
BRUM, 02/10/2006).
Já o depoimento de S7 complementa o anterior, uma vez que percebeu que
o caminho seria o estudo, pois, antes disso, mesmo se houvesse uma oportunidade,
não teria aproveitado de maneira adequada.
145
E eu vi que a saída era voltar a estudar. Que mesmo na rua, se
eu pegasse um trabalho qualquer naquela época, eu ia ver que
não significaria nada, era mais que querer sair da rua, eu
queria fazer algo voltado para essa população, conheci um
pouco essa população. Eu era completamente alienado. (S7)
S7 também menciona a necessidade de acreditar que algo possa ser feito
para melhorar a vida das pessoas que estão em situação de rua quando diz “eu
costumo falar assim, pode ter 99% de coisas ruins, mas se tiver um grupo com
aqueles 1% [de coisas boas], pode acreditar que a gente reverte isso. [...] Eu acho
que se acreditarmos, vamos fazer a diferença” (S7).
Ao ser questionado sobre o vínculo com sua família, S7 afirma que o
retomou e ainda acrescenta que sua visão de família mudou após o período em que
esteve em situação de rua.
[...] graças a Deus, sempre, ela [a mãe] veio para cá o ano
passado, ela passou 60 dias aqui comigo, tenho uma irmã em
Itu e um irmão meu também morando aqui. Tenho um contato
com eles muito mais frequente, e eu olho para minha família
como eu nunca olhei antes. Eu acho que a rua foi necessária
para eu perceber a importância da família. Quando eu estava
na rua, eu não queria falar com a minha mãe por estar nessa
situação e tinha pessoa na rua que queria voltar para a família
e a família não aceitava, sobrou para eles foi a rua. E isso, para
mim, é uma dor horrível. (S7)
Dentre os oito entrevistados, podemos citar duas pessoas que iniciaram a
vivência na rua ainda crianças. De acordo com os depoimentos, pudemos perceber
que a rua cumpria uma função em suas vidas, em contraponto a uma situação de
violência ou ausência dentro de suas famílias.
A parte boa da rua é que você vive solta, livre, leve e solta, não
tem ninguém pra te mandar acordar cedo, você arruma as
coisas a hora que você quer, na hora que você não quer, você
não arruma. O mal, o lado mau da rua é que você sempre tem
que ter alguém pra te defender, sempre tem uns mais bom, os
mais fortão que quer te aproveitar, por você pra roubar, pra
conseguir dinheiro para eles, pra arrumar comida pra eles, mas
a rua tem seu lado legal, por isso que muitas crianças que
saem de casa ficam na rua, é difícil sair, porque é gostoso, mas
tem o lado negativo também, né? (S2)
146
S2 conta seu primeiro dia na rua, ainda criança:
No primeiro dia, eu senti arrependimento, eu quase voltei pra
casa, mas aí vinha aquele negócio na cabeça: se eu voltar pra
casa, meu pai vai bater na minha mãe de novo, bate na gente,
bota a gente pra fora, pra dormir na rua, a polícia vai lá, leva,
no outro dia, ele volta e bebe de novo, bate na mãe de novo,
tanto que eu perdi um irmãozinho, nessa muvuca toda, eu perdi
um irmãozinho de onze meses. Meu pai chegou bêbado em
casa, pegou meu irmãozinho e colocou em cima da mesa, aí
ele caiu e deu traumatismo craniano, mas aí ele não morreu
ainda Minha mãe estava estendendo roupa e mandou segurar
o neném, aí eu caí em cima do neném. Eu devia ter uns sete
anos por aí, o neném já tinha tido uma queda na 1° vez, aí teve
essa queda, ele entrou em óbito. Minha mãe sofreu muito por
causa disso, ela perdeu o emprego, ela trabalhava de faxineira
no hospital. Trabalhava na Brasanita, empresa Brasanita de
faxineira no hospital, aí ela começou a ter problema de saúde,
depressão, aí ela perdeu o emprego, depois disso a vida piorou
mais ainda, que era daí que eu tirava o sustento, porque se
dependesse do dinheiro do meu pai, era tudo pra bebida. (S2)
Relembrando a relação com sua mãe, S2 explica:
Não tenho muito contato assim, ela ta lá em Nova Lençóis e eu
tô aqui, mas, mas, assim, não tenho vontade de ficar perto de
família. Ela sente minha falta, mas assim ó, eu vivi 14 anos na
rua, que hoje eu não sinto falta de afetivo de família, pra mim
minha família é só meus filhos, que é o que eu convivo, que eu
tenho carinho. (S2).
Podemos perceber que, após o rompimento de alguns vínculos, outros
podem ser construídos suprindo a necessidade anterior e que, mesmo em situação
de rua, novas relações são estabelecidas, inclusive diminuindo determinados
sofrimentos daqueles que partilham da mesma condição.
Não senti preconceito não. [...] Normalmente é de momento,
né? Se estivesse usando alguma droga, tinha muita união entre
a gente, nos distraíamos. Só se eu ficava sozinho pensava na
vida e via que aquilo não estava bom pra mim. Quando estava
no momento de solidão, né? Não tinha muito a mente
desenvolvida, né? Então não via a solução, só me perguntava
o porquê daquela situação. (S8)
147
Ao ser questionado se já sofreu algum tipo de discriminação, S6 responde
que não, mas existem muitas queixas de outras pessoas sobre esse assunto. Conta
como foi chegar a um albergue pela primeira vez.
Eu não me considerava cidadão, mas para cada caso é
diferente, tem gente que aceita numa boa, tem gente que não
admite e tem gente que prefere não ter ajuda. Eu, no meu
caso, eu até me emocionei quando eu encontrei ajuda, porque
eu precisava urgente. Eu ia operar o meu braço e queria estar
em um albergue quando fosse operar, pois eu tinha medo de
ter que amputar o braço. Então foi meio sem graça pra mim
quando eu fui pela primeira vez na fila do albergue, mas tinha
que fazer aquilo e, para mim, foi uma surpresa, não sei se
peguei a assistente social em dia feliz, eu fui muito bem
recebido, toda a turma que estava ali foi bem recebido.
Ganhamos roupas e muitas outras coisas. (S6)
Ao ser questionado sobre o que sentiam enquanto estiveram em situação de
rua, S6 considera uma pergunta difícil.
Pergunta difícil... O que eu posso te dizer é que eu não me
sentia bem por aquela situação, no começo foi difícil assimilar,
que eu estava no meio de moradores de rua, que eu era igual a
todo mundo, que estava todo mundo ferrado e eu também.
Essas foram as coisas difíceis de assimilar, as dificuldades. Era
como eu tivesse duas personalidades, você sabe que sua
situação era outra e você procura lembranças do que já foi e
agora a situação é outra. Eu não me considerava um cidadão e
nem um morador de rua. Demorou para eu entrar em um
consenso. Dava vontade de comer alguma coisa, de comer o
que eu quero na hora que eu quero e tinha que esperar alguém
te trazer e o que te traz, no começo foi difícil. Você tem que
assumir a consequência, que é alguém que está precisando
mesmo, para poder conviver. Comida em garrafa pet, pote de
leite, marmita que te dava diarréia, muitas coisas diferentes. Eu
cheguei ao ponto de achar que comer comida do lixo era
normal, mas demorou tempo para isso acontecer. (S6)
Novamente, nesse depoimento, aparece a fase chamada por Paugam de
fragilidade negociada, ou seja, a difícil fase da compreensão sobre a situação que
está vivendo e as diferentes formas de reação que podem ter. Em pesquisa
realizada com pessoas em situação de rua, na França, o autor destaca que
148
[...] Se, de um lado, os indivíduos que se tornaram moradores
de rua recentemente manifestam a sua necessidade de
integração social e procuram junto aos assistentes sociais
saídas para seus problemas, por outro lado os indivíduos que
estão nas ruas há mais de três anos tendem a desconfiar das
instituições sociais, definirem-se como marginais, sofrer com a
falta de banho, o frio, e considerar como prioridade no seu
quotidiano encontrar alguém para conversar. (PAUGAM,
2007:79)
Como resgatar a cidadania de uma pessoa que não se considera um
cidadão? Como retomar a dignidade de pessoas que, após um tempo, poderão
considerar a sua condição normal? Nesse
sentido, Paugam (2003:87) escreve
sobre a adaptação individual a uma condição miserável. São algumas questões para
serem refletidas ao trabalharmos com essa população.
Além da discriminação já citada em alguns depoimentos neste trabalho, o
descaso também é frequente entre os sentimentos de quem se encontra nessa
condição, como exemplifica o depoimento de S7:
Eu não senti discriminação, eu senti descaso, as pessoas te
olham como se você não significasse nada. No serviço, eu
também não senti essa discriminação, a palavra é descaso,
não olhar para as pessoas em quem você é, se você fala, você
é punido. Não é bom olhar para alguém sujo, é um descaso e
um desconhecimento. (S7)
S7 fala em vários momentos sobre a necessidade de preparação das
pessoas para trabalhar com esse público, seja nos postos de saúde, seja a polícia
etc, para se evitar o constante preconceito existente.
A questão do preconceito tinha que ser trabalhada nos postos
de saúde. Tinha que preparar as pessoas. Quando falaram que
eram agentes comunitários que viveram nas ruas, sofremos
preconceito por parte de médicos, de você chegar e a pessoa
estar com o armário aberto e fecharem o armário, porque você
chegou. Você ia na cozinha tomar água e as pessoas ferviam o
copo que você tomava água. Foi preconceito mesmo. Achavam
que todo mundo que morava na rua eram ex-presidiários.
Chegou um momento que umas das meninas que começou a
trabalhar queria desistir por causa disso. [...] o
acompanhamento psicossocial foi muito importante. Nós
saíamos no final da tarde uns cacos [...]. (S7)
149
Explica ainda que o trabalho social e psicológico foram importantes, pois
auxiliaram o grupo a entender
[...] que eu não podia ter raiva daquela pessoa porque ela
desconhece o caso e você morrendo de vontade de pegar a
garrafa de café e despejar na cabeça dela. Despejava e ia
embora para a rua de novo [...] Depois de um tempo desse
acompanhamento psicossocial, fui perceber que podíamos
mudar aquela situação. Para mim, foi difícil, muito difícil,
entender que era eu que tinha que mudar aquela atitude, que a
pessoa desconhecia, por causa disso discriminava. Eu não
esperava, como eu tinha saído da rua, eu achava que eram
aquelas pessoas que tinham que me dar oportunidade. (S7)
S7 esclarece, assim, em seu depoimento, a necessidade e importância de
também passar a compreender a reação das pessoas frente a questão da rua.
Quando S7 passou a utilizar os albergues, pensou que seria o fim de tudo:
Eu sentia que não tinha mais saída, no P, fica embaixo do
viaduto, você não ter liberdade para tomar um banho. Eu
pensava ‘perdi a dignidade, perdi o respeito, perdi o amor
próprio, e não tem mais saída’. Você saia de manhã e via as
pessoas andando em cima do viaduto para ir trabalhar e você
saindo de dentro de um buraco, saindo dele. (S7)
O trecho acima demonstra o que Paugam (2003:99) chama de fragilidade
interiorizada já que nela, com relação ao uso dos serviços sociais, “a freqüência a
essas instituições provoca, geralmente, dentro deles, um certo mal-estar, que
reaviva o sentimento de decadência e a angústia do fracasso [...] a humilhação “
E foi com esse sentimento de não ter mais saída, de achar que era o fim,
de, com seis
meses conhecer
pessoas que já sabiam da lista de todos os
albergues da cidade. “Falavam tem esse, esse, esse, você pode passar cinco, seis,
anos, e eu pensava, mas eu não quero isso”. S7
Já essas pessoas que indicavam a ele a lista de albergues já passam pela
fase intitulada por Paugam (2003:37) de dependência em função do hábito adquirido
em viver nos serviços socioassistenciais.
Para escapar dos sentimentos que possuía, S7 escrevia poesias. Conta que
escreveu “várias poesias na época, milhões e milhões de poesias. Estou procurando
uma editora, material eu tenho. Eu vi uma mãe na rua, chorando porque ela estava
com saudades do filho, aí olhando para ela eu comecei a escrever. Chegando nela,
150
ela disse que queria morrer. Eu disse ‘olha, na hora que a senhora encontrar seu
filho, não fala nada, leva um café’ ”. Recitou neste momento:
Eu sou você quando pensa
Eu sou você quando vê
Eu sou você quando ouço
Eu sou você quando acorda
Eu sou você ao dormir
Eu sou você quando chora
Eu sou você quando ri
Eu sou você na saudade
Eu também sinto solidão
Mas fico mesmo feliz
Se ti vejo sem ingratidão
Eu choro com as tuas lágrimas
Eu sofro com a tua dor
Mas choro quando tu diz
Ainda morro de amor
Eu choro por te ver amando
Eu choro por te ver chorar
Eu choro de alegria
Por te ensinar a amar
E mesmo depois do choro
Se lágrimas ainda sobrar
Vai e continua chorando
Mas chora de tanto amar
Disse que queria ter dado algo para aquela mulher, no entanto, só possuía a
palavra.
Falar disso hoje ainda me emociona, porque eu, vendo aquilo,
eu lembrava da minha mãe. Só conseguíamos nos abraçar.
Quantas mães queriam abraçar seus filhos e não podiam,
quantas crianças morrem na rua e a gente não pode fazer
nada? A rua me deu a certeza do que eu queria no mundo
acadêmico. (S7)
S3 se indigna e conclui:
Vai ter aquela parcela que não vai se incluir, mas tem que ser a
maioria? (S3)
Com relação ao uso de drogas, S7 desabafa:
Olha, só Deus ou algo muito forte para você estar na rua e não
se drogar e aí eu te digo, a droga lícita e ilícita, né? Para
151
aguentar a violência, há poucos dias, duas pessoas foram
assassinadas a pauladas. Imagina para quem estava na rua e
presenciou isso? Aí tem o frio, tem tudo, é difícil você ficar na
rua e não se drogar. Eu escrevia muito, e para dormir sem
tomar álcool é muito difícil. (S7)
S7 finaliza dizendo:
Tem pessoas que olham para mim hoje e falam, não, você não
morou na rua. (S7)
Dentre os depoimentos apresentados, destacamos o sentimento de
reencontrar
novo espaço na sociedade, de indignação por saber que pessoas
continuarão vivendo nessas
condições, lembranças das agruras pelas quais
passaram e reconhecer que conseguiram galgar outra condição, melhor que a
anterior, são a maioria dos sentimentos que permearam as entrevistas.
3.3
A
AVALIAÇÃO
DA
REDE
SOCIOASSISTENCIAL
APONTADA
NOS
DEPOIMENTOS
Durante as entrevistas, além da preocupação em recuperar o processo de
saída da rua, houve também o cuidado em estabelecer a relação dessa saída com a
oferta dos serviços socioassistenciais, visando à compreensão da contribuição dos
serviços por onde passaram ao processo de saída da situação de rua.
Nesse sentido, os depoimentos foram bastante categóricos na crítica às
formas de atuação utilizada pela maioria dos serviços da rede socioassistencial,
sendo apenas apontado um único serviço com um diferencial metodológico, por mais
de um entrevistado.
Destacamos o depoimento a seguir:
Olha, eu não tenho do que reclamar, mas também eu ficava
assim, chegava lá na hora de entrar, no outro dia de manhã
saia e já ia trabalhar, depois eu vinha, passava na casa da
minha amiga, pegava minha filha e deixava na creche, ficava
no Brás né? Então me virava, né? (S1)
Novamente, o depoimento de S1 aponta para a relação “entre não ter
problema” associado a sua postura individual, ou seja, em ficar o menor tempo
152
possível no serviço e “correr atrás de suas coisas”. No entanto, S1 menciona a
discriminação que sofreu entre os próprios usuários dos serviços.
Fui muito bem atendida, só senti um pouco de discriminação
das outras pessoas que dormiam lá, porque tinham uns que me
viam chegar assim arrumadinha, e eu não fazia muita amizade.
Teve um dia que um cara me seguiu e eu fui até o apartamento
da minha amiga, e viu eu pegando uma criança e saindo de lá.
Eu lembro que, nesse dia, ele chamou o assistente social e
falou. E eu fui chamada lá. Perguntou se a criança era minha e
falei que era filha e tal, mas, assim, eu não sei qual era a dele
né? Eu tive que levar a menina, os documentos. Ele achou que
sei lá, que eu poderia ser uma babá, que não podia dormir no
emprego e estava ocupando lugar de alguém porque eu
sempre andava bem arrumadinha, de salto, era novinha na
época, ou ela achou que eu ia abandonar a menina, daí minha
amiga veio e também conversou, foi tranquilo... (S1)
Muitos depoimentos também apresentam sentimentos contraditórios com
relação ao atendimento recebido pelo Serviço Social, além de uma crítica aos
procedimentos internos, como demonstra o depoimento de S2:
[...] quis bater na assistente social, dá até vergonha de falar, na
hora fiquei com muita raiva dela, mas depois perdoei ela, na
2°vez que eu voltei, fui morar na invasão, fiquei dez meses na
invasão, não deu certo, eu voltei pra lá e ela me aceitou de
volta. (S2)
S2 explica que dividia o quarto com outra mulher e seus filhos e as brigas
em função do relacionamento das duas eram constantes. Dentre as vantagens
pontuadas por ter saído do albergue, ressalta não precisar mais pedir doações e
nem se sujeitar a regras rigorosas como sair cedo, “fazendo chuva ou sol”, com seu
filho pequeno.
[...] depois que eu sai do albergue e consegui esse emprego,
minha vida melhorou, melhorou no sentido, assim, de eu não
precisar mais ficar pedindo as coisas para os outros, não
precisar sair pra rua em baixo de vento com meu filho, porque
no albergue você tem que sair cedo, tendo filho ou não [...].
(S2)
153
Giorgetti aponta que “o apego excessivo às regras pode constituir em muitos
casos um empecilho para o trabalho social – desviando-se de seus objetivos iniciais,
a saber, relembrar aos moradores de rua as regras básicas de convivência, tal
apego pode se tornar um meio para aplacá-los ainda mais, pasteurizando seus
hábitos e a sua personalidade” (GIORGETTI, 2006:224). Dessa maneira,
dependendo da forma como o trabalho social é conduzido, poderá lembrar a
degradação vivida pela pessoa, fazendo com que a situação seja reiterada e, ainda,
com que se sintam mais oprimidos e perdendo ainda mais a vontade de viver.
A necessidade da mudança da forma como o trabalho vem sendo oferecido
pelos albergues, para efetivar a saída da situação de rua, é apontada pela maioria
dos entrevistados, como vemos a seguir:
Mudar a metodologia do sistema da Assistência Social, quase
tudo que existe é acolhimento e quase nada pra pessoa ter
saída e tocar a vida para frente, então tudo que se pensa em
forma de renda, hoje, está ligada a um serviço inteiro pra
prestar serviço para a pessoa e não tem uma renda para
aquela pessoa tentar ir pra frente sozinha Então, falta isso para
poder se adequar. (S6)
Podemos, também, perceber que não se trata apenas de novas ofertas de
atendimento, uma vez que o próprio acolhimento dos albergues precisa ser
repensado.
90% dos albergues que passei foram pouco acolhedores, não
prestavam atenção em você, não queriam saber quem é você.
Você é tratado/chamado por número, não como pessoa. Se a
assistente social precisa conversar com você, ela grita “408”,
que é o leito que você dorme e só. Acompanhamento? Muito
pouco, uma avaliação individual das pessoas para saber a real
necessidade, o que eu enxergo na maioria dos albergues é que
as pessoas estão preocupadas em preencher vagas na
verdade, preocupadas mais com números e não com pessoas.
Não que todos sejam assim, mas o que eu senti, o diferencial
só um dos três albergues que passei primeiro, foi um só. Eu
queria terminar o ensino fundamental e por causa do horário de
entrar no albergue não podia. Se o albergue ficasse na região
central e o colégio na Zona Leste, na Estação Belém, não
chegava. Não dava nem pra tentar carona no metrô. Eu acho
uma má vontade, das pessoas que trabalham com pessoas em
situação de rua principalmente nos albergues, em querer que
ela volte a um mundo normal, tido como normal. Geralmente, o
assistente social que quisesse fazer um trabalho diferenciado,
154
acabava sufocado pela direção. É uma cobrança, ele tem que
atender de forma individual, não pode falar muito, então o
profissional, às vezes, fica condicionado às pessoas que
comandam. (S7)
Dentro do albergue, você não consegue ter um diálogo, você
tem um monólogo. É o que o coordenador quer e pronto,
acabou o assunto, você não pode nem expor a suas condições,
o que você quer e o que você não quer. O coordenador é lei,
ele se acha o dono do mundo. Por isso, muita gente não gosta
de albergue. Então, como tem maus profissionais nos
albergues, tem nas casas de convivência, que eu também já
presenciei. Enfim, todos os lugares. (S4)
Com relação aos depoimentos acima, recorremos à pesquisa realizada por
Giorgetti, quando coloca que existe, em algumas organizações sociais, a opção pelo
assistencialismo – não enquanto falta de verba, mas “ao priorizarem a quantidade
em vez da qualidade; ao não se importarem com o conforto e o bem-estar de seus
usuários, tampouco com o desenvolvimento de suas habilidades e com a sua autoestima” (GIORGETTI, 2006:205).
Complementando o depoimento acima, S6 acrescenta que a forma de
atendimento dependia do profissional e também de quem estava sendo atendido.
Para mim, foi boa, mas tem gente que não ficou tanto tempo
quanto eu fiquei no albergue, depende do profissional que
atende e de quem é atendido. Eu não tive nenhum tipo de
ajuda diferenciada, nenhum privilégio, o que tinha pra mim
tinha para todo mundo. (S6)
S5 também remete à questão da forma do atendimento oferecido pelos
albergues e apresenta a discussão da necessidade de serviços diferenciados para
aqueles que sofrem de algum problema de saúde, como dependência química e
problemas psiquiátricos. Faz a crítica em relação a todos receberem o mesmo tipo
de atendimento e ainda à falta de qualificação dos serviços para oferecer boas
oportunidades de geração de renda.
[...] eu tive algumas experiências nos albergues dos bairros que
não foram nada boas, né? Mas isso aconteceu comigo... [...]
Por exemplo, vou te dar um exemplo bem maior, existia uma
pessoa, ela que fazia um trabalho à noite, o que aconteceu,
ganhava até razoavelmente, o cara era operador de máquina,
né? [...] era um cara super esforçado e ele só queria um mês
para poder se organizar . Neste dia que aconteceu, eu estava
155
junto com ele, então eu vi, tá, então eu sou testemunha disso, o
que aconteceu? A coordenadora do albergue municipal falou
para ele arrumar outro lugar pra se virar porque ela não poderia
fazer nada por ele. Oh! Se eu quero trazer uma pessoa para
poder trabalhar, tá comprovando que tá trabalhando, será que
o Estado realmente tem um trabalho sério realmente, que esta
pessoa saia da rua e eu tenho uma opinião sabe que é assim
eu posso até ta errado, desculpa falar, mas não é o albergue.
Eu tive que desistir de um paternalismo muito grande que vicia,
ou força um círculo vicioso nesta população que ela, ao invés
de ajudar a diminuir a miséria, aumenta o quadro. Eu não tô
querendo culpar ninguém, mas a igreja, entendeu? Ela é um
exemplo disso. [...] E já observando por este lado, eu conheço
gente que já trabalha com população de rua há mais de 70
anos e nunca conseguiu tirar ninguém da rua. Por que será?
Será que eles têm algum interesse que este povo saia da
situação de rua? Eu acho que não [...] eu posso falar
francamente, eu não tenho medo de falar, mas isso acontece, é
uma realidade, Um cara que tá em situação de rua, que tinha
sua família, mas que tem jeito de tirar, mas é com trabalho, não
é com paternalismo. Dá comida é importante? É, mas num
caso de emergência. Albergue também é um caso de
emergência, mas tem que ensinar, incentivar a pessoa a voltar
a viver. Eu não digo as pessoas que têm problema com álcool,
que precisa fazer um tratamento, sofreu problema psíquico,
precisa fazer um tratamento mais sério, um caso de saúde,
uma pessoa que está doente ou até mesmo o caso do idoso
que não tem condição de trabalhar, [...] mas no meio desta
massa existem trabalhadores e este trabalhador precisa de
aproveitar este momento para fazer uma geração de renda
para ele... não tem no mundo uma entidade que eu conheça
que tenha um trabalho de geração de renda de verdade para
esta população. Esta é a grande verdade, o que às vezes vira
um circulo vicioso, muitas das vezes, o cara, ele até quer sair
da rua, mas certas atitudes que a gente vê nos albergues, em
algumas casas de convivência, né? [...]. (S5)
Com relação ao depoimento acima, Giorgetti coloca que “além dos
problemas
de
infra-estrutura,
alguns
equipamentos
apresentam
problemas
ocasionados não tanto pela falta de verba, mas, sobretudo, por escolhas que dizem
respeito à filosofia/metodologia de trabalho adotada nas instituições” (GIORGETTI,
2006:204). Como exemplo, a autora cita o fato de reunirem, no mesmo espaço, uma
população heterogênea, com as características diferentes e em diferentes etapas de
vida, além da proposital escolha pela não formação de vínculos.
Em São Paulo, há, de um lado, os problemas de infra-estrutura
ocasionados sobretudo pela falta de verbas, como a ausência
de materiais, de locais adequados e de articulação entre os
diferentes serviços,e, de outro, aqueles relacionados à filosofia
156
assumida pelas instituições, a saber, o assistencialismo, a
infantilização, a tendência em reagrupá-los num mesmo espaço
sem levar em conta suas especificidades. Além disso, o
tratamento institucional dedicado à população se afasta da
noção de cidadania na medida em que não se preocupa com a
sua auto-estima. (GIORGETTI, 2006:204-205)
Embora S5 tenha feito a mesma análise tanto para os albergues como para
as casas de convivência, S7 acredita que os trabalhos sejam diferenciados.
Apesar de, na casa de convivência, só ter a comida e o dia
para você ficar, é totalmente diferenciado dos albergues. [...] os
profissionais conversam mais com você, de perto, se
aproximam mais para saber quem é você.. A primeira casa de
convivência que eu fiquei foi a SML e, por incrível que pareça,
era o lugar onde eu saia do colégio e ia e almoçava lá. Sempre
de portas abertas, não precisa de documento, pergunta seu
nome na entrada e deixa você à vontade, para procurar o
serviço e eles estão á sua disposição. Não tem muita
exigência, né? Quanto ao horário de chegada e saída, mas eu
acho que quem trabalha numa casa de convivência tem um
olhar diferenciado para essa população. (S7)
Merece destaque a crítica feita pela maioria dos entrevistados, ao atual
papel dos educadores dos serviços:
Educadores está acontecendo aos poucos, na minha época
não tinha, eram só monitores, com função única, como se
fossem inspetores, só diziam o que pode e o que não pode. O
que nós tínhamos como educadores eram alguns professores
específicos de cursos que davam, os outros eram só
monitores. (S6)
90% agem como se estivessem em um presídio, agem como
carcereiros e não como educadores sociais. ‘6 horas, hora de
levantar, senhores’, andar com as mãos nas costas, falar sim
senhor para tudo, como se fosse um sistema de presídio. As
pessoas saem dos albergues e se comportam dessa forma,
com as mãos nas costas e, quando chega a polícia, já estão de
cabeça baixa. Elas acabaram de sair do presídio e no albergue
continuam na mesma condição. (S7)
Ele não tem, na verdade, eles não são qualificados para
trabalhar com a população de rua, né? Essa é verdade. Não
existe educador no mundo, ninguém, entendeu? Que possa
trabalhar com população de rua, por quê? O que acontece hoje
existe só o cabide de emprego. É fazer um projetinho, só para
arrecadar dinheiro e pra ter cabide de emprego e [...] Mas eles
não querem realmente fazer um trabalho sério, mas a culpa
157
não é do educador. É da pessoa, do diretor e presidente de
ONG e estas religiões que estão infiltradas no meio, né? (S5)
Primeiro, eu já mudaria o nome porque eles não educam
ninguém, eu chamaria eles de monitores, porque, se você tem
um funcionário pra ser educador, ele tem que ser profissional
no que faz, não ele chegar à noite, quando você está dormindo,
ele mexer na sua bagagem e depois não sei quem foi. Pra ser
educador, lidar com o público não é fácil, mas se você escolheu
aquela profissão, ninguém tem culpa dos seus problemas
particulares. Você está dentro do albergue, deixa os seus
problemas em casa e não é o que acontece na maioria. Então,
eu acho que devia ter uma qualificação, coisas que já foi
prometidas e não foram cumpridas. Numa média de 0 a 10, dos
educadores que eu já presenciei, eu daria 0.5. (S4)
Eu já sofri discriminação, já sofri agressão, eu já fui xingado, já
me bateram dentro de serviços, o próprio monitor, já fui jogado
contra a porta. Discriminação por você ser morador em
situação de rua você tem em várias áreas, mas nos albergues
é a principal. Porque, como eu já disse, você vale cifras e não
o que é. (S4)
Podemos perceber, nos exemplos acima, a necessidade da qualificação da
função, para que, efetivamente, construam uma prática educativa que não se
restrinja ao controle e punição. Nesse sentido, a pesquisa de Giorgetti concluiu que
“os funcionários reconhecem [...] que não possuem uma formação técnica para lidar
com o morador de rua e que necessitam completar a sua formação nessa área”
(2006:174)
S7 traz essa necessidade no planejamento de uma política de atendimento
a esse
público, afirmando que ultrapassa a capacitação para lidar com essa
população e sim com todas as diferenças que encontramos atualmente na
sociedade.
Acho que as pessoas tinham que se preparar na formação para
atender as diversas formas de diferenças – e não é só com
morador de rua, essa população de alta vulnerabilidade –, é
também a questão do homossexualismo, com travestis,
prostitutas, eles não são preparados na academia a encarar
essa realidade. Eles são treinados para enfrentar e combater.
Tá feio – você tem a obrigação de limpar – então tem essa
agressão sim. (S7)
Fala também da importância de um trabalho articulado, além da necessária
formação já citada para profissionais que atuam com o público.
158
Quando começarmos a reivindicar isso na formação policial
mesmo, pelo menos os militares, a guarda civil metropolitana,
profissionais que também foram controlados, prestaram
concurso para também atender essa população e não maltratála, ser agressivo. Muitas vezes, descobrimos que a pessoa está
com tuberculose,aí de um lado, fazemos um super trabalho
para tratar a tuberculose e, do outro lado, querem o viaduto
limpo, levam documentos, levam roupas, a mochila do cara,
levam o remédio dele. Então, acaba sendo você secar gelo na
verdade, mas quando houver essa articulação, nós vamos
respeitar o mínimo da individualidade que cada pessoa tem
debaixo do viaduto, que é a sua mochila, o seu papelão e isso
não é respeitado. Quer limpar, tudo bem, mas fale – a gente vai
fazer isso, mas naquele momento ele precisa dar uma resposta
para a sociedade. Mas vamos esperar ele pegar a sua mochila,
sua sacola, seu documento. (S7)
Já com relação ao trabalho desenvolvido pelo Serviço Social, destacamos:
Em locais com assistentes sociais com maior tempo de
formação, por exemplo, alguém com cinco anos de formado
atua diferente do que aquele com vinte anos de formação, ele
é mais truculento, ele pensa mais no assistencialismo da
pessoa, não vê outras necessidades como a saúde, a
educação. Os outros profissionais mais novos, já acima dos
45/50 anos, são mais truculentos e não acompanham a
mudança que ocorre na sociedade, a mudança do perfil das
pessoas que vêm para as ruas, por exemplo, eu acho que
quem vinha para as ruas antes era quem não queria trabalhar
(algumas, né?) ou que saiam dos presídios, hoje a realidade é
outra, desemprego, violência em casa, maus-tratos dos pais,
abuso sexual. E albergues tem pouquíssimos na cidade, se
fecharem, vai sobrar é as ruas, Essas pessoas não estão
atentas ainda para esse olhar. Os profissionais formados de
cinco anos para cá estão mais atentos para isso, mais abertos,
mas as pessoas que estão comandando essas casas não dão
abertura para esses profissionais agirem. E temos que
considerar que a maioria dessas casas de acolhida são
mantidas por entidades religiosas, então, tem um olhar mais no
assistencialismo. Você não está atrás de religião, e sim atrás
de um acompanhamento de políticas públicas mesmo. Religião
você vê depois, mas até para você ser atendido você precisa
aceitar a religiosidade. (S7)
S7 reflete sobre a importância do Serviço Social atualizar-se, principalmente
com relação à mudança no perfil das pessoas que hoje estão em situação de rua. A
questão religiosa apontada nesse trecho será retomada em outro depoimento.
S7 acrescenta, ainda, com relação ao Serviço Social, que "hoje, mais do
que nunca, quem disser que Serviço Social é só assistencialismo, eu vou brigar até
159
o fim, porque não é”, explica que escolheu cursar Serviço Social para mostrar um
outro lado das pessoas em situação de rua a esses profissionais, pois não concorda
em escutar um assistente social “dizer que todo mundo é vagabundo, que não tem
jeito... Tratam a população de rua como se fosse homogênea – é tudo drogado – ou
tudo bêbado”. Pretende ser um assistente social e mostrar o contrário.
Outros depoimentos analisam a atuação desse profissional:
A partir do momento que você vai fazer o Serviço Social, o
Serviço Social, ele tem que saber quem é o morador de rua,
primeiro. Tem até assistente social que tem até nojo de pegar
na mão de morador de rua. Quer melhor do que isso? Pessoa
que, quando vai falar com o morador de rua, ela mantém até
distância. Você quer melhor do que isso? Entendeu? Tem gente
da organização que tem preconceito com o morador de rua.
Tem preconceito com o morador de rua, entendeu? Até pra
falar, fala bem longe, bem longe. E no poder público, ela pede
dinheiro pra cuidar da população de rua. Entendeu? (S5)
Alguns falam que pessoas acham que albergue é privilégio e
por isso o albergue deveria cobrar uma contrapartida dos que
lá estão. Com relação aos assistentes sociais, pode ser
corintiano, são paulino, baiano, o que tem em comum é o ódio
a assistentes sociais. (S3)
Ao solicitar esclarecimento com relação ao depoimento acima, S3 explica
que “acho que não fraseei direito ou você não gravou e compreendeu mal a frase”.
Resolveu explicar:
Explicando o
ódio às assistentes sociais, não só pela
População em Situação de Rua, como a julgar pela atuação da
atriz Katiuscia Canoro, em sketch no programa do Jô. A
sociedade inteira odeia as ditas cujas e pelos mesmos motivos,
falta de resolutividade das ações, visão tutelar dos assistidos,
ou até preconcebida e preconceituosa. [...] A população de rua
reclama que a assistente trata-os como débeis mentais quando
buscam atendimento ou como criancinhas quando usam
albergues, o que é inaceitável pra cultura machista dos
brasileiros, falta tato na abordagem. Elas mesmas afirmam que
não estão lá para oferecer abrigo enquanto política pública
assistencialista, mas, sim, para "tutelar", como se os homens e
mulheres adultos em situação de rua fossem "menores
carentes".
As assistentes descartam e até zombam das experiências dos
usuários como se fossem devaneios completos de pacientes
mentais, generalizam todos que não têm moradia como
preguiçosos, dependentes químicos, alcoolistas, malandros,
punguistas, vagabundos. Essa também foi a minha experiência:
160
analfabeta, pouco ou mal-instruída, demente/ dependente/
viciada ou não, a População em Situação de Rua tem tanto
cérebro quanto qualquer outro, não está completamente alheia
do mundo que a cerca, e consegue assimilar fatos, analisar e
concluir que as políticas públicas e a prática do Serviço Social
não funcionam. (S3)
Falta de resolutividade, visão tutelar e preconceituosa são explicações que
S3 utiliza para justificar a “raiva da sociedade” para com os assistentes sociais. De
fato, segundo os depoimentos apresentados nesta pesquisa, “poucos profissionais
se salvam”, como vemos a seguir:
Tem serviços que têm assistentes sociais ótimas, tanto do lado
do poder público como do lado dos albergues. Tem assistentes
sociais que valem à pena. Agora tem serviços também, que
tem assistencialista social, ela sabe que ela tem o salário dela
no final do mês, ela sabe que está com o emprego, digamos
assim, garantido, então, pra ela tanto faz, como tanto fez,
atender ou não atender. Pra ela, pegou, assinou o ponto,
pronto. Tá ganhando. Tem assistentes sociais que acham que
os usuários dos albergues são como aqueles sacos de lixo que
você põe na porta e chuta. Eu diria que são os maus, pelo que
eu presenciei são os maus. Eu diria que numa média de 0 a
100, você tira no mínimo umas 40 boas. (S4)
Após a conclusão acima, solicitamos a S4 um exemplo vivenciado de “mau
atendimento”. Conta, então:
Eu estava na porta do albergue X, eu namorava com uma
usuária de albergue, e levei uma facada no braço, no dia do
meu aniversário, no dia 19 de março, belo presente. Procurei a
assistente social do albergue, o que eu ouvi dela foi “É morador
de rua? Que pena que foi no braço”. Eu levei essa facada às 4
horas da tarde, fui procurar a assistente social 4h05, mais ou
menos, ela falou “Peraí que eu vou chamar o resgate, já que eu
sou obrigada a chamar”. Ela ligou para 192 e identificou que
era morador de rua e a resposta que veio do SAMU foi “Nós
não atendemos morador de rua, chame o corpo de bombeiro”.
E lá dentro desse albergue tem o pessoal da Guarda Civil
Metropolitana, que eu costumo dizer que GCM é Guarda Cata
Maloqueiro, e o guarda da GCM falou “Ele levou a facada só no
braço? Que pena, vamos ver o que a gente pode fazer” e eu lá
todo sangrando, enrolaram e já era 8 horas da noite. A outra
assistente social que entrou, que de inteligente não tinha nada,
me viu e falou “Ah, você levou uma facada, né? Foi o que
passaram pra mim, espera aí que eu vou ver o que dá pra
fazer”. (S4)
161
S4 destaca, ainda, “tem as que já foram bem educadas comigo [...]”.
Com relação ao serviço que foi apontado como diferencial nos depoimentos,
destacamos com relação à sua atuação:
Lá é um lugar que realmente... eu não gosto da palavra
reinserção social, porque eu acho que na rua você está
inserido socialmente, no mundo capitalista e de modo cruel,
então para você ser recolocado no mercado de trabalho e na
vida, digo a vida organizada, a vida social organizada, ele te dá
oportunidade. Se você quer, eu acho que lá é a porta de saída.
Porque há um acompanhamento diferenciado. Você explica a
sua situação, as pessoas realmente prestam atenção na sua
situação, depois de 90 dias, eles te chamam novamente para
saber qual foi a sua dificuldade na entrada, porque você não
conseguiu chegar naquele objetivo. Não tem aquela coisa, é o
único lugar que não trabalha com prazo determinado, você
entra lá, são seis meses entre aspas, porque se você chegar e
contar o seu caso, o que você quer da vida, o que você quer
planejar para sua vida, isso é reavaliado.No meu caso, foi
reavaliado, durante quase dois anos, então eu eliminei o ensino
fundamental e médio lá. Você é avaliado pelos profissionais de
acordo com seu interesse de ser inserido no mercado
financeiro. (S7)
Visando compreender melhor essa atuação diferenciada, S7 esclarece:
Eu acho que pelas condições que há lá dentro. É um lugar
enorme, mas desde a dormida, banho, opções de acesso que
você tem lá dentro, como acessar a biblioteca, a internet, na
hora de dormir, o espaço entre as camas são maiores, e o
aspecto higiênico também conta muito, tem uma alimentação
diferenciada, não sei se tem nutricionista, mas tem pessoas
que você percebe que a alimentação é diferenciada. O café da
manhã é diferenciado, é diferenciado lá. Se você não quer ver
televisão, você pode pegar um livro, se você não quer o livro,
tem uma sala de jogos. Se você tem um trabalho e precisa se
ausentar, você pode passar três ou quatro dias fora,
trabalhando. E se você precisar desse tempo, você não perde
a sua vaga. Você é obrigado a permanecer lá porque, se
passar três dias, você perde a sua vaga. Você tem essa
garantia. (S7)
Conta ainda sobre a atuação do assistente social que o atendeu nesse
serviço:
Ela perguntou: “o que você quer da sua vida?” Eu não posso
esquecer disso porque fez toda a diferença. Ela disse assim:
162
“se você quiser, aqui tem isso, isso, isso”. Ela não falou as
regras para depois te acolher. Não, primeiro ela perguntou o
que eu queria. E eu não acreditava em nada. Quando ela me
perguntou aquilo e eu falei meus objetivos, aconteceu tanta
coisa e ela disse que eu não acreditava. Eu, no albergue, falei
para ela que eu tinha conseguido um curso de Francês. Ela me
perguntou que horário. Eu falei toda quarta das 7 às 11 da
noite. Ela falou “tudo bem, está autorizado”. Você chegar em
casa 11 da noite. Você ter direito a jantar e depois tomar um
banho, isso contou muito. (S7)
S7 explica que:
Os outros albergues avaliam você primeiro e aí decide se você
vai ficar ou não. Lá eles conversam com você, você fala a sua
necessidade, e eles vão trabalhar em cima disso e dizem
assim: “olha, o seu problema é droga, a gente tem uma casa
que pode te cuidar, se o seu problema é o álcool, tem o ALC
que você tem que participar”. Então é assim, você está com
problema de saúde, você vai passar no posto. Então, não dá
nem pra acreditar que aquilo acontece no setor público. E é
aquilo que você sonha para todo mundo, né? (S7)
Vale lembrar que esse
também é o local apontado por S5 como fator
importante e decisivo em seu processo de saída da situação de rua. Em função
desses
dois apontamentos, realizamos uma entrevista com o responsável pelo
serviço indicado e questionamos o que o mesmo teria como diferencial dos outros. A
responsável nos esclareceu:
O X possui uma linha filosófica muito determinante em suas
ações. O fato de ter suas raízes na Europa e uma visão
diferente do assistencialismo, com certeza contribui para uma
cultura da co-responsabilidade junto a pessoa acolhida, o lema
da entidade é "Fazer o Bem, Bem Feito". É acreditar que a
pessoa tem direito de receber um serviço, mas que isso não
pode ser utilizado até o final de sua vida, acreditando que o ser
humano pode e deve ser trabalhado para autonomia e
independência.(C02)
Acrescenta, ainda, que acredita que as pessoas que saíram dessa situação
“[...] estavam dispostas e concretizaram seu processo de recuperação e autonomia,
elas estavam abertas, foram estimuladas e acreditaram em si, costumo dizer que a
casa pode servir ouro em pó, mas se não orientarmos para o bom uso, ele se perde
e a dependência continua [...]”. (C02)
163
Discutir sobre o que é autonomia e a preocupação com o caráter
assistencialista de alguns serviços oferecidos às pessoas em situação de rua,
também são temas trabalhados por Giorgetti em sua pesquisa.
Na pesquisa de Giorgetti (2006), autonomia é entendida enquanto a
capacidade de tomar decisões de acordo com o próprio arbítrio, assumindo todas as
responsabilidades de seus atos. Esclarece, ainda, que “autonomia contrapõe-se a
idéia de dependência. A fim de exercer plenamente a sua cidadania, o indivíduo não
deve depender de nenhuma instituição ou pessoa” (2006:223).
Além disso, acrescenta
que algumas instituições que não valorizam a
autonomia tornam-se cárceres “ao estimularem a dependência em relação aos
serviços sociais e ao adotarem uma metodologia que leve invariavelmente à
infantilização, negam ao morador de rua a possibilidade de desenvolver a sua
autonomia” (GIORGETTI, 2006:198-199).
Merece destaque a contribuição de S4, quando fala da diversificação das
pessoas que estão nos albergues.
Há pessoas lá dentro que têm possibilidades, dentro dos
albergues, que têm possibilidades de sair e têm chance de
lutar pra sair, mas muitos não querem, outros não sabem como
fazer e outros são os que realmente necessitam. Como houve
uma reunião com a Secretária A.M.A., ela falou que 50% dos
que estão nos albergues são porque querem ficar, e não é isso,
ninguém quer ficar, são situações, é o emprego. Uma vez um
rapaz me falou que era esperto por ficar em albergue, não
pagava luz, não pagava água, tinha tudo de graça, e ele era
esperto e a mulher estava na casa dele. Eu falei pra ele tua
mulher tá na sua casa e você no albergue, quem é o mais
esperto da história? Porque quem está em albergue eles
recebem, que eu presenciei vamos assim dizer discriminação
dos próprios funcionários de albergues, não todos, mas de
alguns funcionários que discriminam. Sofrem discriminação das
pessoas que dizem ser da sociedade, sofrem discriminação,
desatenção do poder público, mais precisamente da área social
e de saúde, e sofrem também da iniciativa privada que, se você
se candidatar pra uma vaga e fala que é de albergue, esquece.
Tem funcionários que, dentro dos albergues, pelo menos dentro
dos que eu passei, que agem da seguinte forma, se eles verem
que você tem condições de sair, eles começam tipo uma
exploração. (S4)
164
Com relação aos sofrimentos citados
no trecho acima, ou seja, a
discriminação por parte da sociedade, dos próprios funcionários dos serviços, S4
exemplifica as formas de exploração que já presenciou:
Se a pessoa tem dia certo de pagamento e o funcionário vê
que a pessoa tem algum benefício ou faz algum bico e recebe,
você só entra ou permanece na vaga se você pagar alguma
coisa pra ele no portão. Eu já presenciei isso em alguns
albergues. Posso até citar nomes. No C é assim...
Agora aqueles que não sabem como sair, os funcionários lá
também não ensinam como você sair, porque no albergue você
não é um nome, você é uma cifra, quanto mais a coordenação
do albergue colocar lá dentro, mais verbas ela pode arrancar
da secretaria, da prefeitura. E tem aqueles que querem, mas
não conseguem, porque não tem o apoio que precisam:
primeiro da família, depois não tem apoio do poder público,
depois não tem apoio dos amigos, podemos dizer assim. (S4)
O exposto acima demonstra a necessidade de criação de novas práticas
para que os serviços possam, de fato, contribuir para a saída da situação de rua.
Destacamos, ainda, do depoimento de S7, a reflexão sobre a saída da rua
quando menciona que “[...] está completamente atrelada ao tempo que você fica
nela”. (S7). Quando pensamos no tempo em que a pessoa está vivenciando a
situação de rua, podemos relacionar às diferentes fases do processo de
desqualificação de Paugam, que irá demandar formas diferenciadas de intervenção.
Quanto antes se fizer um trabalho, melhor. Por isso eu te falo
do olhar diferenciado dos profissionais que trabalham nos
albergues. Eles podem fazer um diferencial na vida das
pessoas. (S7)
A saída da situação de rua também está atrelada a um processo, não
isolada a um único fator, mas a uma somatória de condições que faz com que a
pessoa novamente se reencontre na sociedade e vá em busca de novas
necessidades.
Por isso, o papel dos serviços socioassistenciais por onde passam torna-se
de grande importância, inclusive Paugam aponta que quem presta atendimento deve
[...] reconhecer a possibilidade de uma negociação da
desqualificação social, ou, em outras palavras, a existência de
uma margem de autonomia no interior da qual os atores sociais
165
podem atuar. Eles podem participar da revalorização de sua
identidade pessoal – reinterpretando, por exemplo, os traços
negativos de seu status social – no contato com grupos que
dividem a mesma posição social objetiva, com instituições que
lhes assistem e com o resto da sociedade. (PAUGAM, 2003:
86)
Com relação às hipóteses levantadas neste trabalho, podemos afirmar que
ambas são verdadeiras, uma vez que os depoimentos analisados permitem-nos
afirmar a presença de momentos/fatos/processos que incentivam a saída da
situação de rua e ainda que esses momentos poderão ser estimulados segundo a
forma do atendimento prestado a essa população.
De acordo com os dados objetivos analisados, que incentivaram a saída da
situação de rua, pode ser constatado, como consenso entre os entrevistados, a
questão do trabalho e do emprego. Já com relação a questões mais subjetivas
apontadas nos depoimentos pelos sujeitos entrevistados, temos o desejo/vontade e
o “acreditar” em si na capacidade de sair da situação.
3.4 APROXIMAÇÕES METODOLÓGICAS
Considerando os dados das entrevistas realizadas com alguns profissionais,
trabalhados no segundo capítulo, e ainda, a reflexão daqueles que saíram das ruas
sobre os serviços socioassistenciais por onde passaram, apontaremos neste item,
algumas aproximações metodológicas para o atendimento a essa população.
Neste sentido, também dividimos este item em fatores estruturais e
pressupostos para o atendimento, uma vez que não só as mudanças de algumas
práticas profissionais tornam-se necessárias, mas a oferta de uma política pública de
qualidade deverá ser o fator inicial para mudanças efetivas.
3.4.1 Fatores estruturais
Pudemos perceber, de acordo com o material aqui apresentado e analisado,
que, inicialmente, uma mudança na organização da oferta de serviços enquanto
política pública torna-se de suma importância. Vale destacar que, embora o
Ministério de Desenvolvimento Social e Combate a Fome esteja trabalhando para a
implantação da tipificação dos serviços a esse público em todo o território nacional, a
166
cidade de São Paulo tem uma trajetória nesse atendimento, por isso algumas bases
de ação que melhor respondam às necessidades dessa população precisam ser
garantidas.
Nesse sentido, tanto nas falas dos profissionais, quanto nos depoimentos
daqueles que saíram da rua, bem como na bibliografia estudada, concluímos que os
serviços são pensados para um público “homogêneo”, não se garantindo uma oferta
de atendimento que contemple a heterogeneidade dessa população, nem tampouco
as fases em que se encontram na rua.
Podemos exemplificar essa questão ao pensarmos que o mesmo serviço é
oferecido àqueles que acabaram de entrar em situação de rua e àqueles que já
possuem mais vínculos rompidos, e que, inclusive, se recusam a frequentar os
serviços da rede socioassistencial, permanecendo a maior parte do tempo na rua.
Vale destacar que aqueles que se encontram em situação de rua e não
procuram os serviços da rede necessitam de uma intervenção na rua de maneira
diferenciada daqueles que aceitam o encaminhamento para os serviços, bem como
daqueles que estão nos centros de acolhida e não chegaram a viver nas ruas.
Outro fator importante que devemos pontuar é a ausência de políticas
específicas eficientes, eficazes e efetivas que previnam que indivíduos cheguem a
viver nessa
situação. Inclui-se aqui, como exemplo, a oferta de atendimento
adequada a situações que requerem uma intervenção da saúde, ─principalmente a
saúde mental,─ ao tratamento da dependência química, ao fortalecimento da família,
à geração de renda após o afastamento do mercado de trabalho, a questão do idoso
etc.
Assim como a oferta da política pública deverá ser pensada de uma maneira
intersetorial, uma política adequada ao atendimento das necessidades daqueles que
se encontram em situação de rua também precisa ser pensada intersetorialmente, já
que a oferta apenas da assistência social não efetivará o processo de saída da
situação de rua.
Oferta de trabalho, saúde, educação, cultura, lazer e habitação, são apenas
alguns exemplos de acesso aos direitos para iniciarmos a discussão da saída e
permanência de pessoas fora da situação de rua. Vale ainda esclarecer que para a
saída da situação de rua, além de políticas sociais, apenas uma mudança estrutural
evitaria que pessoas chegassem a viver nessas condições. Isso também vale para
167
aqueles que saíram das ruas e retornaram para as mesmas, após não terem
conseguido manter-se nas mesmas condições de vida.
Quando citamos a permanência fora da rua, evitando-se a tão comum
“recaída”, exemplificamos com a atual situação de nossos entrevistados. Atualmente,
S3 retornou ao atendimento da rede socioassistencial, pois o desemprego,
novamente, o impossibilitou de arcar com as despesas de aluguel. Apenas S1 e S8
estão há oito e dez anos fora da situação de rua. Já S2, S4, S5, S6 e S7 estão fora
da rua entre três e cinco anos.
Vale esclarecer que o acompanhamento realizado a esses sujeitos, durante
o período de realização desta pesquisa, constatou a oscilação existente em função
do enfrentamento de problemas cotidianos. Nesse sentido, o acompanhamento
psicológico e social que alguns desses sujeitos tiveram, mesmo já tendo saído da
situação de rua, foi de fundamental importância para se evitar o retorno às ruas.
Pontuamos, também, a hipótese sobre a efetividade do atendimento
oferecido a crianças e adolescentes na cidade de São Paulo por algumas
organizações sociais como fator importante a ser considerado pelos entrevistados
que destacaram esta experiência. Isso se fundamenta pelo depoimento de dois
sujeitos que viveram a maior parte do tempo nas ruas enquanto crianças e
adolescentes e que indicam que o atendimento oferecido foi fundamental para a
saída da rua.
O mesmo não pode ser dito com relação ao atendimento oferecido aos
adultos entrevistados, uma vez que apenas dois sujeitos indicam a presença de um
serviço socioassistencial que tenha contribuído ao processo de saída da rua.
Finalmente, destacamos a responsabilidade do poder público em oferecer
condições adequadas às organizações sociais que atendem essa população, desde
locais mais apropriados, capacitação a funcionários, melhor remuneração etc.
3.4.2 Pressupostos ao atendimento
Considerando a necessidade de uma mudança estrutural na oferta das
políticas públicas, também pontuamos neste trabalho a importância em possibilitar a
contribuição na construção de novas mediações nos atendimentos que são
realizados a este segmento. Isto se justifica pela maioria dos depoimentos que
168
fomentou a reflexão acerca da importância de construção de alguns pressupostos ao
atendimento desse público, já que a prática vivenciada não tem contemplado as
atuais necessidades vividas por esta população.
Assim, retomamos a necessidade de o trabalhador social possuir um olhar
mais ampliado com relação à heterogeneidade desse público, “não colocando todos
na mesma peneira”24.
Preocupou-nos, também, algumas falas de profissionais que, além de
pontuarem que a dificuldade no trabalho é o próprio atendimento a esse público, não
acreditam no trabalho que realizam.
Como pautar uma ação na incredibilidade de seu trabalho? Será que
conseguimos propor ações educativas a pessoas adultas? Como efetivamente
estimulamos a busca por novos projetos de vida?
A necessidade de sustentação de práticas mais pedagógicas a esse público
e ainda a crença que a transformação pode ocorrer na fase adulta, remeteu-nos à
busca de autores que pudessem contribuir para essa discussão.
Foi então identificada a contribuição de Reuven Feuerstein, psicólogo
romeno, diretor do Hadassah-Wizo-Canada Reserch Institute em Israel, que parte
da premissa básica que a inteligência sempre pode ser desenvolvida (inclusive na
fase adulta). Feuerstein considera fundamental prover as pessoas de ferramentas
cognitivas que lhes possibilitem sentir-se como partes de um processo de
transformação que nunca para. A isto denomina Teoria da Modificabilidade Cognitiva
Estrutural.
[...] melhorar as ferramentas que compõem nosso sistema
cognitivo. É preciso aprender a pensar, coletar dados, á,
resolver problemas, usar raciocínio indutivo e dedutivo,
formular hipóteses, testá-las e comunicar-nos. Além disso, é
preciso incentivar as pessoas a usar abstrações e conceitos.
[...] Temos de saber olhar para dentro de nós mesmos e nos
perguntarmos o que fazer para acertar. Precisamos nos mover
como pessoas capazes de gerar informações, e não somente
de consumi-las. [...] Uma sociedade deve ter a capacidade de
não excluir, de fazer cada pessoa sentir-se bem-vinda, porque
todos precisam dela. (apud SOUZA, DEPRESBITERIS,
MACHADO, 2004)
24
Esta frase foi ouvida várias vezes durante a realização desta pesquisa, citada por pessoas que
estão nas ruas como crítica à oferta dos serviços e à forma como os trabalhadores sociais tratam as
pessoas em situação de rua.
169
O princípio norteador dessa teoria é a crença na modificabilidade25, ou seja,
todo ser humano é capaz de modificar-se, independentemente de sua idade,
condição genética, origem e etnia, sendo capaz de reagir ativamente a estímulos,
elaborando ações conscientes e com significado.
Essa modificação deverá ser produto da interação entre pessoas, implicando
a presença de um mediador, seja ele pai, mãe, professor ou alguém interessado em
selecionar estímulos.
Neste estudo, propomos que o mediador seja o trabalhador social em
contato direto com esse público.
O ser humano apresenta
alto nível de capacidade de se adaptar para
sobreviver, mesmo em situações extremamente desfavoráveis. Experiências
realizadas com crianças portadoras de Síndrome de Down, vítimas do holocausto,
comprovaram que atividades de natureza cognitiva aumentaram os sinais de
vontade de viver, aprendendo a lidar melhor com os fatos e com as relações ao seu
redor. No processo cognitivo, ao mexer-se numa parte, todas as outras são
influenciadas.
Dessa forma, esse autor apresenta a experiência de aprendizagem
mediada, sendo esta uma possibilidade de intervenção com a população adulta em
situação de rua.
Assim, pontuamos alguns princípios necessários à ação de profissionais
que lidam com esse público, segundo os critérios de mediação estabelecidos por
esse autor:
- Intencionalidade e reciprocidade: o processo de aprendizagem deve ser intencional
e não incidental, envolvendo troca, permuta e auxílio na compreensão da relação
que está sendo proposta. Assim, a construção de vínculos é fundamental na garantia
desse processo;
Nesse sentido, as ações oferecidas no atendimento a esse público deverão
ser planejadas de acordo com a intenção que se quer obter com o que está sendo
25
Modificabilidade à mudança estrutural que se processa na mente de uma pessoa, mesmo que ela
apresente problemas em sua etiologia. A modificabilidade refere-se à capacidade de o organismo
mudar um caminho que estaria predeterminado, devido a deficiências genéticas, neurofisiológicas
e/ou experenciadas. Assim, o que diferencia uma pessoa da outra é seu potencial, em maior ou
menor grau, para se modificar.
170
oferecido, ou seja, minha ação deverá ser orientada para estimular a reflexão sobre
a saída da situação de rua.
- Transcendência: uma interação mediada não se limita a satisfazer as necessidades
imediatas ou a resolver problemas, mas em fornecer subsídios que ajudem o
mediado a responder a novas experiências e demandas. Esse critério garante a
superação da visão episódica da realidade, exigindo um pensamento reflexivo sobre
o que está subjacente à situação, de modo a estendê-la para outros contextos.
Podemos perceber que a forma de atendimento atual a esse público não
propicia/ estimula que as pessoas consigam resolver seus problemas sozinhas,
culpabilizando os outros, e mesmo o Estado, por sua situação; dependendo dos
outros, e do Estado, a solução de seus problemas. A transcendência propõe que se
veja além da necessidade ou situação aparente e que, ao mesmo tempo, o
atendimento realizado não se limite ao momento ou à necessidade emergencial,
mas que se estabeleça uma relação com o projeto de vida futuro.
- Significado: o mediador não assume uma atitude neutra. Demonstra interesse e
envolvimento emocional, sensibilizando o mediado para a ação realizada.
O levantamento realizado nesta pesquisa permite-nos afirmar que, além da
impossibilidade em se estabelecer um vínculo na relação de atendimento, até pelo
alto número de pessoas atendidas nos serviços e um número reduzido de
profissionais, prejudica a qualidade das ações desenvolvidas. Dessa maneira, a
reversão deste quadro proporcionará, além da qualificação do atendimento, novos
significados, que poderão ser atribuídos nos serviços prestados.
-
Sentimento
de
Competência:
implica
envolvimento
do
mediador
no
desenvolvimento da autoconfiança do mediado, aumentando sua auto-estima, a
crença em suas capacidades, a vontade de realizar e a determinação para continuar
buscando novas realizações.
Segundo os depoimentos daqueles que saíram da situação de rua, podemos
afirmar que, nos serviços da rede socioassistencial da cidade de São Paulo,
algumas ações desenvolvidas apresentam o caráter oposto ao que propõe o
sentimento de competência. Isso porque são práticas que reiteram a incapacidade
171
na mudança da situação, reforçando o estigma e, ainda, diminuindo a auto-estima
daqueles que estão sendo atendidos.
Com relação a isso, retomamos os estudos de Snow e Anderson (1998:322323) que afirmam que, dependendo da forma como o serviço é oferecido, reiteram à
lembrança do lugar que ocupam na sociedade.
- Auto-regulação e controle do comportamento: visam a encorajar o mediado a
assumir a responsabilidade e participação no pensar, aplicar e, assim, resolver os
seus problemas;
Destacamos aqui a reflexão sobre a responsabilidade do indivíduo em
participar ativamente do processo de mudança de sua condição, o que se torna
inviável se adotarmos práticas assistencialistas e não emancipatórias.
- Compartilhamento: ou promoção da socialização. Compartilhar envolve a escuta
atenta e aberta do ponto de vista do outro.
É evidente que a forma atual de organização dos serviços socioassistenciais
não otimiza e permite a escuta atenta, ou seja, o processo de socialização, tanto
pelo número reduzido dos profissionais como pelo número elevado de pessoas
atendidas. No entanto, a escuta e consideração do ponto de vista do outro é
fundamental para a participação ativa e autonomia dos indivíduos atendidos.
- Individuação e diferenciação psicológica: o mediado deverá se perceber enquanto
ser único, autônomo. A mediação da individuação encoraja a autonomia e a
independência em relação aos outros, dando lugar à diversidade das pessoas.
Neste item, deveremos garantir, nos atendimentos, as diferenças, ou seja, é o
momento da heterogeneidade, de destacarmos a particularidade e a singularidade
de cada um.
- Planejamento para o alcance de objetivos: orientação para o mediado explicitar o
que quer e como alcançará o desejado.
Muitas vezes, nos atendimentos, incorremos no erro de sobrepor o nosso
desejo à vontade das pessoas que atendemos. No entanto, é papel do trabalhador
172
social contribuir para que as pessoas atendidas alcancem seus objetivos, por meio
de orientação e encaminhamentos adequados.
- Desafio: envolve a motivação para ousar e perseverar em algo difícil, cabendo ao
mediador ajudar o mediado a superar o medo do desconhecido e a adquirir
resistência para se manter em situações que proporcionam desequilíbrio.
É natural do ser humano o receio a mudanças e o medo do que não
conhecemos. Nesse sentido é papel do trabalhador social apresentar este desafio a
quem atendemos.
- Automodificação: o mediado deve perceber as transformações pelas quais está
passando, reconhecendo que a mudança ocorre de dentro para fora e de que é
sempre possível se modificar.
No processo de atendimento, torna-se também necessário e importante que a
pessoa atendida perceba o caminho já percorrido e quanto já se modificou e poderá
se transformar ainda mais.
- Otimismo: acreditar na possibilidade de resolver problemas, vencer obstáculos,
corrigir deficiências. Uma perspectiva otimista induz a pessoa a manter uma visão
ampla e a buscar soluções, encarando as coisas de maneira realista, indicando-lhe
que problemas podem ocorrer, que fazem parte do desenvolvimento da vida e que,
muitas vezes, podem ser suplantados.
Aqui, destacamos que esse
otimismo deverá vir, em primeiro lugar, dos
trabalhadores sociais, que precisam acreditar na ação educativa que desempenham;
caso contrário, não conseguirão que as pessoas atendidas sintam esse otimismo.
- Sentimento de pertencer: implica inclusão. Ao ser excluído de um grupo, o
indivíduo busca refúgio em outro por necessidade de sobrevivência das pessoas e
de representação social.
Percebemos, neste estudo, que, mesmo não estando mais em situação de
rua, a maioria dos aqui entrevistados sentem-se responsáveis pela prestação de
algum tipo de atendimento a esse
público. Talvez seja um sentimento de
pertencimento. Dessa maneira, o sentimento de pertencer é de suma importância
173
no processo de inclusão, já que, mesmo na rua, os indivíduos buscam formas de
novos pertencimentos e de outros vínculos, alternativos aos que foram rompidos.
As diretrizes expostas não poderão ser garantidas sem adequadas condições
estruturais, de responsabilidade pública. No entanto, merece espaço neste trabalho,
uma vez que ações e posturas profissionais mais adequadas poderão contribuir para
a saída da situação de rua.
Finalmente, vale também pontuar, o importante papel do Serviço Social no
atendimento a esse público, que, além de também poder pautar suas práticas nos
princípios apontados acima, tem papel fundamental em construir novas práticas
sociais ou consolidá-las e fortalecê-las quando já existentes, reconhecendo-as, de
acordo com Martinelli (2001:147), uma prática social que seja:
- expressão do saber: ou seja, teoria em movimento, articulação de saberes, uma
vez que “o saber que decorre da própria prática e que acumulamos na vivência com
os sujeitos usuários das instituições é extremamente valioso e, se bem soubermos
utilizá-los, teremos aí excelente material para a produção de novas mediações,
capazes de nos permitir atingir os objetivos buscados” (MARTINELLI, 2001:147).
- prática educativa: já que toda prática social (deverá) ser uma prática educativa,
pois “é a expressão concreta da possibilidade de trabalharmos com os sujeitos
sociais na construção de seu real, de seu viver histórico” (MARTINELLI, 2001:147).
A autora acrescenta, ainda, que essa prática deverá ser despojada da visão
assimétrica dos sujeitos cujo posicionamento deverá considerá-los como cidadãos
construtores de suas próprias vidas.
- prática política: já que apresenta “a possibilidade de operar com projetos políticos
que tenham por horizonte a consolidação da democracia e o fortalecimento da
cidadania” (MARTINELLI, 2001:147).
Encerramos com o apontado por Abreu (2002:197), que trata da dimensão
pedagógica do trabalho do assistente social:
É possível, pois, admitir possibilidades concretas de
redimensionamento da função pedagógica da prática
profissional do assistente social num sentido emancipatório, no
contexto da prestação de serviços e benefícios sociais,
mediante construção de estratégias de efetivação de direitos, a
174
partir da incorporação das necessidades dos usuários como
parte das dinâmicas dos serviços institucionais, sejam públicos
estatais, privados filantrópicos etc., mediante participação dos
mesmos na gestão desses serviços e politização de
problemáticas e relações usuários/instituições. (ABREU,
2002:197)
175
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Eu, que nada mais amo
Do que a insatisfação com o que se pode mudar
Nada mais detesto
Do que a insatisfação com o que não se pode mudar.
Bertolt Brecht
176
Pensar o que motivou o início de um processo para a saída da situação de
rua, foi um dos desafios do presente trabalho.
Inicialmente, salientamos a relevância deste estudo, uma vez que a maioria
da bibliografia pesquisada apresenta informações principalmente do momento de
chegada à situação de rua e ainda o perfil daqueles que se encontram nessa
condição, ou seja, poucas produções discutem o processo de saída da rua.
Assim, o objetivo geral deste trabalho consistiu em identificar quais fatores
contribuem para a saída da rua. Por essa razão, foi estudado o significado apontado
pelos entrevistados sobre a experiência de saída da condição de rua, além de
também relacionar em que medida a política de assistência social da cidade de São
Paulo , voltada a esse público, tem contribuído para isso.
Alguns pressupostos embasaram o referencial teórico desta pesquisa. O
primeiro deles é que a situação de rua é resultado de um processo excludente que
apresenta como consequência a ruptura de vínculos sociais.
Dessa maneira, a contribuição de Paugam foi fundamental para o
embasamento desta pesquisa. Um dos exemplos dessa contribuição é a tipificação
dos usuários da assistência social na França, que nos remete à reflexão da
diversidade ─ não podemos olhar as pessoas em situação de rua uniformemente,
uma vez que cada uma pode estar vivenciando essa
situação em estágios
completamente diferenciados.
Vale destacar, ainda, que, além de estágios diferenciados, cada pessoa, em
sua singularidade, possui uma história de vida e necessidades diversas.
Consequentemente, a forma de intervenção também não poderá ser a
mesma e dependerá do momento ─ situação vivida pela pessoa atendida e,
principalmente, do tempo em que está na rua e a forma como se relaciona com os
serviços socioassistenciais.
Frisamos, ainda, que a pobreza não diz respeito apenas à ausência de bens
ou a aspectos de ordem econômica. Logo, se existem outros fatores a serem
considerados na concepção de pobreza aqui adotada e não apenas ausência de
renda, não será apenas uma questão econômica que tirará uma pessoa da situação
de rua, já que a oferta econômica não necessariamente garantirá a permanência
fora dela.
177
Martins (2003), quando pontua os processos de exclusão e nos dá pistas
para refletir sobre essa questão, inspira-nos a estabelecer uma analogia ao que
chamaremos aqui de “processos de inclusão”, pois, se existe um processo que leva
à exclusão, certamente também haverá um processo para que haja novamente a
inclusão.
Pensando nesses processos, algumas informações trazidas na bibliografia
estudada e nos depoimentos dos entrevistados, tanto daqueles que saíram da rua
como de profissionais que atuam com esse público, podem contribuir para algumas
reflexões.
A primeira delas é o entendimento da multidimensionalidade da situação de
pobreza, a diversidade de situações que podem dela decorrer, as vulnerabilidades,
mas, igualmente, os desafios e potencialidades que se emaranham na complexidade
dessas situações, são fundamentais para a orientação de uma política pública que
se aproxime às reais necessidades da população atendida.
Considerando a cidade de São Paulo, os dados apresentados no primeiro
capítulo indicam extrema desigualdade na oferta de bens e serviços na garantia de
direitos, o que, consequentemente, aumenta a vulnerabilidade e exposição à ruptura
de vínculos em determinadas regiões da cidade, por exemplo, e ainda a escolha de
regiões com maior oferta de atendimento para “se morar”, mesmo na rua.
Pensar na trajetória da assistência social no país e compreender a evolução
do atendimento prestado às pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo,
mesmo com avanços e retrocessos, remete-nos ao reconhecimento da necessidade
de atendimento a esse público como uma responsabilidade da política pública. O
avanço legal já existe, como pudemos apontar no capítulo 2, tanto no que tange à
política nacional de assistência social, como na criação e implantação de um
atendimento para esse público no país. Resta-nos trabalhar no aperfeiçoamento de
metodologias, ou seja, formas de atendimento que contemplem as reais demandas
dessa população.
Práticas
assistencialistas,
discriminatórias
e
incipientes,
ainda
são
encontradas, mesmo com todo o esforço das equipes que atuam junto a esse
público. O que pode ser explicado por diversos problemas estruturais da rede
socioassistencial, dentre eles a do atendimento e a falta de qualificação
especializada aos profissionais.
178
Nesse sentido, o levantamento realizado junto a uma pequena amostragem
de trabalhadores sociais pode legitimar a relevância de aperfeiçoamento técnico que
a complexidade da situação de rua exige de seus profissionais para que haja
resultado mais efetivo.
Validando a análise já feita pelos trabalhadores sociais entrevistados, os
sujeitos que saíram da situação de rua também apresentaram, em seus
depoimentos, uma crítica ao trabalho desenvolvido pelos serviços socioassistenciais,
principalmente a atuação dos assistentes sociais e educadores, o que reforça a
necessidade de qualificação para os que atuam com esse segmento.
Atualmente, o termo casas de acolhida renomeou os antigos albergues, no
entanto, de fato, pouco acolhem. Não se trata, aqui, de culpabilizar os trabalhadores
sociais, mas, sim, de alerta para a reflexão da necessidade e importância de se
requalificar essas práticas cujo norte seja o fortalecimento do processo de saída da
situação de rua.
Dessa maneira, convém lembrarmos que, assim como existe um processo
vivido pelas pessoas que culmina na situação de rua, apenas um processo pode ser
o responsável pela saída dela.
Neste sentido, a análise dos depoimentos daqueles que saíram da situação
de rua, indicam como principal fator objetivo que contribuiu para este processo a
inserção no mercado de trabalho e como fatores subjetivos: a retomada de vínculos,
principalmente familiares e ainda a crença nas potencialidades de cada um. Merece
destacarmos que mesmo indicando um fator de contribuição ao processo de saída
da rua, todos sustentam uma trama de acontecimentos, ou seja, um caminho
percorrido e não um episódio único.
Assim, este processo não se restringe apenas à oferta de mecanismos
geradores de renda, ou seja, a oferta e garantia do emprego formal ou informal, mas
à
requalificação
mais
ampla,
englobando
a
retomada
de
vínculos
ou
restabelecimento de outros, novos.
Requalificação que pode ser estimulada por ações educativas que visem à
reflexão e à reconstrução de novos projetos de vida, pautados principalmente no
desejo do outro, respeitando suas particularidades e sua história de vida.
179
Essas mudanças dependerão de todos nós, ou seja, uma mudança de
mentalidade da sociedade no tratamento dessa situação atrelada à oferta de
políticas públicas mais adequadas. Quem sabe, assim, a tão sonhada “porta de
saída” da situação de rua não seja tão estreita e as ruas sirvam para a circulação de
pessoas e não como moradia.
180
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