PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO
SOBRE O PRIVADO - DESTRUIÇÃO, RECONSTRUÇÃO OU
ASSIMILAÇÃO?
Alexandre Aboud
O presente artigo tem como mote a tese da aniquilação do princípio
da supremacia do interesse público sobre o interesse privado.
Renomados publicistas sustentam a necessidade da "busca do
melhor interesse público", professorando a defesa da eficácia e efetividade
dos direitos fundamentais, em claro movimento pela constitucionalização
do direito. É o caso do Professor Gustavo Binenbojm 1, segundo o qual:
"O
melhor interesse
público
só
pode
ser obtido
a
partir de
um
procedimento racional que envolva a disciplina constitucional de interesses
individuais e coletivos específicos, bem como um juízo de ponderação que
permita a realização de todos eles na maior extensão possível".
E prossegue o Mestre:
“Deve o administrador, à luz das circunstâncias peculiares ao caso
concreto, bem como dos valores
constitucionais concorrentes, alcançar
solução ótima que realize ao máximo cada um dos
interesses públicos em
jogo.” 2
Para os defensores dessa corrente, as bases de um Estado
Democrático
de
Direito
tornam
imprescindível
a
desconstituição
do
princípio da supremacia do interesse público sobre o privado.
1
Interesses Públicos versus Interesses Privados: desconstruindo o princípio da
supremacia do interesse público, 2ª tiragem, Lumen Juris, p. 167.
2
Ob. cit., p. 151.
1
De outro lado, Alice Gonzáles Borges 3 defende que tal princípio deve
ser reconstruído, nunca destruído.
Daí a pretensão de demonstrar que, apesar das críticas, o princípio
da supremacia do interesse público sobre o interesse privado encontra-se
intacto em sua real dimensão, mais cristalino do que nunca, não carecendo
de destruição, tampouco de reconstrução.
DOS PRINCÍPIOS
Para Robert Alexy 4:
“Princípios
são
normas
que
ordenam
algo
que,
relativamente
às
possibilidades fáticas e jurídicas, seja realizado em medida tão alta quanto
possível. Princípios são, segundo isso, mandamentos de
otimização,
assim caracterizados pelo fato de a medida ordenada de seu cumprimento
depender não só das possibilidades fáticas, mas também das jurídicas.”
Na mesma linha, a lição de Canotilho 5:
Princípios
compatíveis
são
normas
com
vários
jurídicas
graus
impositivas
de
de
uma
concretização,
optimização,
consoante
os
condicionamentos fácticos e jurídicos.
Para o Mestre português, os princípios se distinguem das regras pelo
fato destas últimas serem "normas que prescrevem imperativamente uma
exigência (impõem, permitem ou proíbem) que é ou não é cumprida".
Os princípios orientam e implementam o direito por caminhos
abstratos, que dão rumo a todo um sistema normativo. Constituem-se,
3
Supremacia do Interesse Público: desconstrução ou reconstrução? Porto Alegre:
Revista Interesse Público, v. 37, pp. 29-48, 2006.
4
Constitucionalismo Discursivo, Livraria do Advogado, p. 123.
5
Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6. ed., p. 1147, Almedina.
2
portanto, normas hierarquicamente privilegiadas, com predominância sobre
outras regras por formarem o arcabouço do ordenamento jurídico.
Encontram-se os princípios previstos expressa ou implicitamente. Na
primeira hipótese, a Lei Maior expressamente os declara, transformandoos em verdadeiras normas constitucionais. Já os implícitos têm sua
existência consagrada no próprio bojo do ordenamento jurídico.
E, apesar de os princípios expressos possuírem maior grau de
concretude, sendo essa a única distinção com os princípios implícitos,
ambos têm força de norma constitucional.
Essa noção básica de princípio é de suma importância para a
compreensão do princípio da supremacia do interesse público sobre o
interesse privado.
DO PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O
INTERESSE PRIVADO
Consoante lição de Celso Antônio Bandeira de Mello 6:
“O princípio da supremacia do interesse público sobre o privado é princípio
geral de Direito inerente
a qualquer sociedade. É a própria condição de
sua existência. Assim, não se radica em dispositivo específico algum da
Constituição, ainda que inúmeros aludam ou impliquem manifestações
concretas dela, como, por exemplo, os princípios da função social da
propriedade, da defesa do consumidor ou do meio ambiente (art. 170, III, V
e VI), ou tantos outros. Afinal, o princípio em
causa é um pressuposto
lógico do convívio social. Para o Direito Administrativo interessam apenas
os aspectos de sua expressão na esfera administrativa. Para não deixar
sem
referência
especificamente
6
constitucional
dispostas
na
Lei
algumas
Maior
e
aplicações
pertinentes
concretas
ao
Direito
Curso de Direito Administrativo, Malheiros, p. 87.
3
Administrativo,
basta
requisição (art. 5º,
referir
os
institutos
da
desapropriação
e
da
XXIV e XXV), nos quais é evidente a supremacia do
interesse público sobre o privado.”
Assim, apesar de implícito, esse princípio vige e é de suma
importância para a compreensão do sistema jurídico brasileiro, em especial
do Direito Administrativo.
O interesse público tem dimensão diversa daquela dada pelo
administrador, eis que não pode ser confundido com o interesse do
administrador, mas sim, com o da coletividade.
Nesse diapasão, a lição de Marçal Justen Filho 7:
“O interesse público não se confunde com o interesse do Estado, com o
interesse do aparato
administrativo ou do agente público. É imperioso
tomar consciência de que um interesse é
reconhecido como público
porque é indisponível, porque não pode ser colocado em risco, porque
suas características exigem a sua promoção de modo imperioso.”
Afirma-se que o princípio da supremacia e indisponibilidade do
interesse público é o alicerce fundamental do Direito Público, o que seria
suficiente para legitimar as decisões adotadas pelos administradores.
Ora, juridicamente, o titular do interesse público é o povo, a
sociedade (no seu todo ou em parte).
Mas os governantes refugiam-se
neste princípio para evitar o controle de seus atos pela sociedade.
Fundamentar decisões no interesse público produz a adesão de
todos, elimina a possibilidade de crítica. Mais ainda, a invocação do
interesse público imuniza as decisões estatais ao controle e permite que o
governante faça o que ele acha deve ser feito, sem a comprovação de ser
7
O Direito Administrativo Reescrito: problemas do passado e temas atuais. Revista
Negócios Públicos, ano II, nº 6, p. 39.
4
aquilo, efetivamente, o mais compatível com a democracia e com a
convivência coletiva.
Há que se dividir o interesse público em primário e secundário.
O interesse público primário deve ser compreendido como um
transporte para a realização dos interesses de todos e de cada um de
nosso corpo social. Ou seja: constituem-se os legítimos interesses da
coletividade, refletindo aquilo que Rousseau chama de vontade geral.
De outra parte, o interesse público secundário reflete a vontade da
Administração, não desfrutando, portanto, de supremacia sobre o interesse
privado. Isto é: deve subordinar-se aos princípios fundamentais de
regência.
Para Luís Roberto Barroso 8:
“O interesse público primário é a razão de ser do Estado, e sintetiza-se
nos fins que cabe a ele promover: justiça, segurança e bem-estar social.
Estes são os interesses de toda a sociedade. O interesse público
secundário é o da pessoa jurídica de direito público que seja parte em uma
determinada relação jurídica – quer se trate da União, do Estado-membro,
do Município ou das
suas autarquias. Em ampla medida, pode ser
identificado como o interesse do erário, que é o de
maximizar a
arrecadação e minimizar as despesas.”
DO INTERESSE PÚBLICO CONTIDO NO PRINCÍPIO
O que os juristas propõem destruir é algo que nunca existiu como
princípio, e sim, a utilização do princípio da supremacia do interesse
público sobre o interesse privado como razão do Estado. Ou seja: o
8
Prefácio à obra Interesses Públicos versus Interesses Privados: desconstruindo o
princípio da supremacia do interesse público, 2ª tiragem, Lumen Juris, p. XIV.
5
autoritarismo na prática de atos administrativos e judiciais com fundamento
em tal princípio.
Nessa linha, correta a lição de Alice Gonzalez Borges 9 ao afirmar
que:
“É preciso não confundir a supremacia do interesse público – alicerce das
estruturas democráticas, pilar do regime jurídico-administrativo – com as
suas manipulações e desvirtuamentos em prol do autoritarismo retrógrado
e reacionário de certas autoridades administrativas. O problema, pois, não
é do princípio: é, antes, de sua aplicação prática.”
Ademais,
não
se
discorda
que
"há
necessidade
do
uso
da
proporcionalidade, por meio da ponderação, para evitar a tensão dos
princípios fundamentais em conflito". Não obstante, deve o critério da
ponderação ser utilizado somente quando se tratar de interesse público
secundário.
Note-se que é impossível falar em direitos fundamentais sem
entender o aspecto da colisão. Aliás, pode, e às vezes deve, o interesse
individual sobrepor-se ao interesse público secundário.
Os direitos coletivos não são adversários dos direitos individuais,
configurando-se, por vezes, pressupostos para o seu fomento. Se, de fato,
o interesse coletivo deve respeito a um direito individual, nisso reside a
supremacia do interesse público sobre o privado. Vale citar aqui o exemplo
manifestado pelo Professor Gustavo Binenbojm 10: "manipulação do aparato
policial em defesa de um cidadão, situação que prestigia o valor segurança
individual".
9
Ob. cit..
Ob. cit., p. 148.
10
6
Não se negue, ainda, a necessária observância do princípio da
proporcionalidade. Alexy cita em sua obra o dever de as indústrias de
tabaco colocarem em seus produtos advertências sobre prejuízos à saúde,
como
uma
intervenção
na
liberdade
do
exercício
profissional
dos
produtores de tabaco, que é um direito fundamental. A justificativa dessa
intervenção reside na "proteção da população diante de riscos à saúde",
isto é, de um bem coletivo: a vida e a saúde do particular.
No caso, valeu-se o aplicador da norma da fórmula do peso. Ou seja:
tomou em consideração o peso abstrato de um princípio em confronto com
outro, evidenciando-se o uso do princípio da proporcionalidade.
Pela lei da ponderação, quanto mais alto o grau do prejuízo pelo
não-cumprimento de um princípio, tanto maior deve ser a importância e o
cumprimento do outro. Todavia, no caso de conflito com interesse público
primário, deve este prevalecer. A solução está no prefácio do livro
Interesses Públicos versus Interesses Privados, de autoria do eminente
Professor Luís Roberto Barroso, que afirma:
“O interesse público primário consubstanciado em valores fundamentais,
como justiça e segurança, há de desfrutar de supremacia em um sistema
constitucional e democrático. (...). O interesse público primário desfruta de
supremacia, porque não é passível de ponderação. Ele é o parâmetro da
ponderação. Em suma: o interesse público primário consiste na melhor
realização possível, à vista da situação concreta a ser apreciada, da
vontade constitucional, dos valores fundamentais
que ao intérprete cabe
preservar ou promover.”
DA FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Todo ato, administrativo ou judicial, necessita de fundamentação –
pressuposto da legalidade do próprio ato.
7
Tanto isso é verdade que dois dos requisitos do ato administrativo
são a finalidade e o motivo. Falando do primeiro requisito, Hely Lopes
Meirelles 11 ensina:
Outro requisito necessário ao ato administrativo é a finalidade, ou
seja, o objetivo do interesse público a atingir. Não se compreende ato
administrativo sem fim público. A finalidade é, assim, elemento vinculado
de todo ato administrativo – discricionário ou regrado – porque o Direito
Administrativo não admite ato administrativo sem finalidade pública, ou
desviado de sua finalidade específica.
Para o motivo, o saudoso administrativista dita que:
“O agente da Administração, ao praticar o ato, fica na obrigação de
justificar a existência do motivo, sem o que o ato será inválido ou, pelo
menos, invalidável, por ausência de motivação.”
A motivação não é uma mera liberalidade do administrador, mas sim,
condição de legalidade do próprio ato.
Nos dias atuais, não há que falar mais em vontade pessoal do
monarca com força de lei, pois vivemos em um Estado Democrático de
Direito, no qual impera a vontade da norma.
Com efeito, o agente público deve justificar sua ação, indicando os
fatos que ensejam o ato e seus efeitos jurídicos.
Tanto isso é verdade que todo ato administrativo vincula-se aos
motivos expostos, por justificarem a sua realização.
11
Direito Administrativo Brasileiro, Malheiros, 20. ed., p. 135.
8
CONCLUSÃO
Com todo respeito aos defensores da corrente que pretende a
desconstituição do princípio da supremacia do interesse público sobre o
interesse privado, acredita-se que a questão é meramente semântica.
Aliás, a motivação do ato administrativo, por si só, invalida essa idéia.
Vale lembrar que os atos administrativos fundados no princípio da
supremacia do interesse público sobre o interesse privado não têm
validade jurídica. Para ter eficácia, a supremacia do interesse público deve
ser demonstrada no caso concreto, devidamente motivado.
É certo que há entendimentos no sentido de que a chancela da
autoridade administrativa basta para validar o ato como razão do Estado.
Isto, porém, não é verdade: a legalidade é que deve nortear o ato
administrativo.
Conclui-se do exposto que o princípio da supremacia do interesse
público sobre o interesse privado deve mais do que nunca ser respeitado,
sob pena de aniquilação, ainda que vagarosa, do Estado Democrático de
Direito.
De outro lado, apesar de concordar com o texto apresentado pela
Professora
Alice
Gonzáles
Borges 12,
creio
que
a
saída
não
é
a
reconstrução do princípio da supremacia do interesse público sobre o
interesse privado, mas a compreensão de sua dimensão, ou seja, assimilálo.
12
Supremacia do Interesse Público: desconstrução ou reconstrução, Revista Interesse
Público, Notadez, p. 29.
9
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Discursivo.
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do
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10
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