Grandes obras sociais e desafios a enfrentar põem em evidência o
legado de Irmã Dulce, um dos maiores ícones de religiosidade no Brasil,
no seu centenário de nascimento.
Por Lina de Albuquerque, para o valor, de salvador
Cem anos de Solidariedade
A figura de Irmã Dulce ficou tão ligada às importantes obras sociais que criou
e deixou de herança ao Brasil que o foco das celebrações de seu centenário de
nascimento recairá sobre elas. Primeira beata baiana, a freira, que nasceu em 26 de
maio de 1914, em Salvador, está em processo de canonização pelo Vaticano. Para
ganhar o título de santa, um novo milagre precisa ser comprovado. Estudiosos da
causa, contudo, crêem que a multiplicação do trabalho por ela iniciado, por si só, já
representa o maior dos milagres, uma vez que se transformou no maior complexo
gratuito de saúde do Nordeste e Norte, com cerca de quatro milhões de atendimento
ambulatoriais por ano a usuários do Sistema Único de Saúde (SUS).
Irmã Dulce morreu em 13 de março de 1992, aos 77 anos, deixando um
legado de obras que não pararam de crescer. “Nosso maior desafio é manter a
saúde financeira de um complexo mantido especialmente com o apoio dos governos
e recursos provenientes de doações privadas”, diz Maria Rita Pontes, sobrinha de
irmã Dulce que se tornou a sucessora e superintendente da instituição.
No balanço dos cem anos, o que ocorre é que ambas as fontes de
fornecimento oscilam sua regularidade. O governo se faz presente, mas nem
sempre mantém a constância necessária, com atrasos e suspensões de verba,
como na gestão da prefeitura anterior, o que levou algumas de suas unidades a
operar no vermelho, além de ficarem, na ocasião, com valores a receber
acumulados em R$ 24 milhões de reais. Até dezembro, por exemplo, se acumulou
um prejuízo da ordem de R$ 8,7 milhões, o que torna urgente um reajuste imediato
no contrato de prestação de serviços no SUS. As doações, por sua vez, costumam
aumentar em período de maiores visibilidade. Na década de 1980, isso ficou claro
quando ela foi tema de um “Caso Verdade” campeão de audiência da Rede Globo
em 1983 e também por ocasião da sua indicação para o Prêmio Nobel da Paz, em
1988.
Mas recentemente, o fluxo de contribuições melhorou significativamente, de
acordo com Maria Rita, quando Irmã Dulce recebeu o título oficial de beata. Isso
ocorreu em maio de 2011, quando se concluiu o processo de análise de um milagre
pelo Vaticano que durou 11 anos e envolveu dez peritos médicos brasileiros e seis
italianos. Um parêntese: a causa da beatificação foi atribuída à sergipana
Cláudia Santos Araújo, que sofreu forte hemorragia no pós-parto. Na tentativa
de reanimá-la, o obstetra Antônio Cardoso, então um católico não praticamente,
avisou a família que apenas “uma ajuda divina” poderia salvar a vida dela. Um
padre, José Almí, foi chamado e fez uma corrente de orações na pequena cidade de
Itabaiana, em Sergipe, pedindo a intercessão da freira conhecida como “Anjo Bom
da Bahia”. A hemorragia cessou. Anos mais tarde, a filha do obstetra foi residente
na instituição.
O ritmo de crescimento das obras continuou firme. Diz-se que na gestão de
Maria Rita os serviços prestados praticamente quadruplicaram. Assim, é
compreensível que também aumentem os desafios, até para a sua atual
manutenção, especialmente levando em conta a perspectiva financeira.
A conta se faz duas vezes. De um lado, está a história real de irmã Dulce, que
parece mesmo um filme. Aliás, vai virar um, com filmagens já iniciadas pela mesma
produtora de “Nosso Lar”, adaptação para a tela do romance psicografado de Chico
Xavier, e possivelmente concluída até o fim do ano. De outro, estão as Obras
Sociais Irmã Dulce. Traduzidas pela sigla Osid, respondem pelo maior hospital
filantrópico 100% SUS da Bahia, o Hospital Santo Antônio, e ainda por uma rede de
núcleos que prestam assistência à população de baixa renda nas áreas de saúde,
assistência social, pesquisa científica e educação. O Santo Antônio é ainda um
hospital-escola que oferece atividades acadêmicas regulares para o internato do
curso de medicina e dispõe de 14 programas em outras áreas, como enfermagem,
psicologia, serviço social, fisioterapia e nutrição.
A área de residência médica tornou-se uma das mais disputadas da Bahia. O
cirurgião Sandro Cal Barral, diretor do corpo clínico do Hospital Santo Antônio e
mestre em cirurgia-geral, foi um residente há 16 anos. Não se pode dizer que fechou
os olhos para as dificuldades. Como quando compara a eventual utilização de
aparelhagens médicas mais em conta: “Não temos uma Ferrari, mas um carro
simples que funciona bem e precisa de constante manutenção”. Por trás desse
funcionamento estão hoje 300 médicos efetivos, nas áreas de cirurgia-geral,
pediatria, ginecologia, anestesiologia, otorrinolaringologia, geriatria, mastologia,
cirurgia bucomaxilofacial, oncologia, entre outras. Ali não necessariamente se
mistura medicina com religião, embora esteja comprovado que a fé muitas vezes
interfere nos processos de cura. Barral participou da análise do milagre que
levou à beatificação. “Não posso assegurar se houve ou não milagre. O que
posso dizer é que, do ponto de vista da medicina, não há explicação para a
cura súbita”.
De acordo com o Ministério da Saúde, a Osid é um dos maiores centros
filantrópicos do país. Já a tradição do povo baiano resume a proporção de grandeza
de modo simples. Dizem que irmã Dulce construiu o maior hospital da Bahia a partir
de um pequeno galinheiro. Não se trata de inverdade. De fato, a origem do Hospital
Santo Antônio, assim batizado com o nome do santo de quem era devota, foi mesmo
essa. Em 1949, irmã Dulce recolheu, num galinheiro instalado ao lado do seu
convento, no bairro de Roma, na Cidade Baixa de Salvador, os primeiros 70 doentes
que seriam tratados no que hoje se converteu num hospital de 1.005 leitos. O antigo
cercado das poedeiras também abriga Hospital da Criança, Centro Geriátrico,
Centro Especializado em Reabilitação e Centro de Acolhimento a Pessoas com
Deficiência, Centro de Acolhimento w Tratamento de Alcoolistas e Unidade de Alta
Complexidade em Oncologia, o filho mais novo da Osid, que em breve vai oferecer
serviço de radioterapia gratuito.
Só no chamado Complexo Roma são realizados por ano dois milhões de
atendimentos ambulatoriais. Um número que salta à vista numa capital de 3,5
milhões de habitantes. Além disso, a Osid avançou para realizar a gestão de quatro
hospitais públicos localizados na Bahia, cada um também com desafios financeiros a
enfrentar e alguns sofrendo de superlotação, como os Hospitais São Jorge, em
Salvador; do Oeste, em Barreiras; Eurides Sant’anna, em Santa Rita de Cássia; e
Regional, em Irecê.
É impossível, contudo, compreender essa multiplicação simplesmente num
salto, desvinculando das obras a impressionante trajetória da freia. Irmã Dulce
nasceu com o nome de Maria Rita de Souza Brito Lopes Pontes. Conta-se que o
interesse dela pela vida religiosa começou a se manifestar na adolescência, quando
já atendia doentes ao portão de sua casa, no bairro de Nazaré. Em 1933, a jovem
ingressou na Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe
de Deus, no Convento do Carmo, em São Cristovão, em Sergipe. No mesmo ano,
recebeu o hábito e adotou, como era tradição entre as freiras, um nome em
homenagem à sua mãe, que se chamava Dulce. Também se chamava Dulce a irmã
a quem era muito ligada, mãe da atual superintendente da Osid, Maria Rita.
Em 1935, a freira partiu para realizar um trabalho assistencial nas
comunidades carentes de salvador, especialmente a de Alagoas, um conjunto de
palafitas do bairro de Itapagipe. Nessa época, começou a atender numerosos
operários do bairro, criando um posto médico e fundando, no ano seguinte, a União
Operária São Francisco, a primeira organização operária do Estado, que depois deu
origem ao Círculo operário da Bahia.
A prática de encaminhar os mais necessitados espalhados pela cidade logo
se imprimiu como marca no seu caminho. Ela foi muitas vezes humilhada e expulsa
dos terrenos desocupados onde recolhia os doentes. Costumava acomodá-los em
casa e nos arcos da Igreja do Bonfim. Ao mesmo tempo em que o seu mito se
espalhava, autoridades se enraiveciam ao ver as chagas abertas da saúde pública.
Irmã Dulce não era uma unanimidade. Resistente às humilhações, estendia
ramificações de sua obra por outros municípios.
Em Simões Filho, conhecido por exibir o maior índice de violência da região
metropolitana de Salvador, ela montou , há 50 anos, um orfanato para abrigar
crianças e adolescentes sem referência familiar. O lugar tornou-se o Centro
Educacional Santo Antônio, o Cesa, unidade que atende hoje, em parceria com as
Secretarias de Educação do Estado e do Município, cerca de 750 jovens em
situação de vulnerabilidade social. Planejado como uma unidade de sustentabilidade
local, conta com o diferencial de manter um centro de panificação, onde produzem e
comercializam diferentes tipos de pães e panetones.
O Cesa, no entanto, também apresenta desequilíbrio nas finanças. No ano
passado, não foi possível renovar o convênio com o Estado, o que acarretou perda
de recursos em torno de R$ 500 mil. “Fechamos 2013 com um prejuízo histórico de
cerca de R$ 1,3 milhões”, informou Sérgio Lopes, gestor operacional da Osi. “Mas
estamos apresentando novo projeto para a retomada do convênio, visando a
redução do prejuízo neste ano”. Nos quatro hospitais públicos geridos pela Osid,
nota-se ainda outro paradoxo. O mesmo poder público que muitas vezes comparece
com a Constância necessária costuma pedir socorro do grupo em período de
emergência.
Outro aspecto relevante, neste balanço centenário, diz respeito ao
turismo religioso em torno de irmã Dulce. Ele não para de crescer e deve
aumentar com a possível canonização da beata, Na Osid, a torcida é que se
comprove um segundo milagre para que ela se torne santa até a próxima visita
do Papa ao Brasil, prevista para 2017. O museólogo Osvaldo Gouveia, assessor
de Memória e Cultura das Obras, não teme em colocar o dedo na ferida. Também
faltam recursos para manter e ampliar o museu organizado com a história e acervo
pessoal de irmã Dulce, instalado ali mesmo, no Complexo Roma.
Em janeiro, cerca de sete mil visitantes foram conhecer a exposição
permanente, roteiro que se estende ao Santuário de Irmã Dulce, localizado ao lado.
Na véspera dos festejos do Bonfim, a praça em frente do complexo passou a se
chamar praça Irma Dulce e ganhou um monumento de 8 metros de altura e 20
toneladas com o rosto da freira. A obra foi assinada por Bel Borba, um dos artistas
contemporâneos de mais expressividade na Bahia. A expectativa é que o local se
torne centro de cultura e sedie missas campais. No ano passado, deixaram seu
registro no memorial e no santuário da freira baiana 81.334 visitantes, entre
católicos, evangélicos, espíritas e gente simplesmente interessada em obter
informações sobre a trajetória da beata.
“As agências incluem a visita à Capela e ao Memorial como parte de suas
programações sem doar nada pó isso”, diz Gouveia. Irma Dulce, segundo ele, esta
cada vez mais se tornando um difusor do turismo na Bahia. A sua fama não teria
ganhado tamanho vulto não fosse o que plantou e continuou se expandido depois
que ela se foi.
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