LETRAMENTO E ENSINO DE
GÊNEROS
Vanessa Souza da Silva1
Resumo
Este artigo apresenta a relevância do letramento como
horizonte ético-político para o trabalho pedagógico
no ensino da língua. Primeiramente adota o conceito
letramento como resultado da ação de ensinar ou de aprender
a ler e escrever, ou seja, o estado ou a condição que adquire
um grupo social ou um indivíduo como consequência de
ter-se apropriado da escrita; em seguida, distingue-o de
alfabetização; apresenta dados dos censos sobre o índice de
analfabetismo realizados no país de 1872 a 2003 e destaca
o ensino dos gêneros para alcançar o letramento dos alunos.
Palvras-chave: Letramento; Analfabetismo; Alfabetização;
Censos; Ensino de Gêneros.
Abstract
his article presents the relevance of literacy as an ethicalpolitical horizon for the pedagogical work in language
teaching. First of all it adopts the literacy concept as action
result of teaching or learning how to read and write,
in other words, the state or the condition that a social
group or individual acquires as consequence of having
appropriated of the writing, right after, distinguishes it of
alphabetization; it presents census data about illiteracy rates
done in the country from 1872 to 2003 and it highlights
the teaching of genres to reach the students literacy.
Key-words: Literacy, Illiteracy, Beginning Literay, Census,
Teaching of Genres.
1
Integrante do Grupo de Pesquisa (CNPq) FALE - Formação de Professores,
Alfabetização, Linguagem e Ensino da UFJF, integrado ao NUPEL (Núcleo
de Pesquisa e Ensino em Linguagem) da Faculdade de Educação. Mestre em
Educação pela Universidade Federal Fluminense e doutoranda em Letras
(UERJ). E-mail: [email protected]. Endereço: Rua Ademar
Santana de Lima, 930 – Gulf, Comendador Levy Gasparian – RJ. Telefone: (24)
8114-1058.
[...] o índice de letramento de uma sociedade ou de um
grupo social é um dos indicadores básicos do progresso
de um país ou de uma comunidade (SOARES, 2002,
p.112)
Vanessa Souza
da Silva
1 INTRODUÇÃO
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Vivemos numa sociedade que vai se tornando cada vez
mais centrada na escrita e que exige de seus falantes saber
praticá-la. Com isso, defrontamo-nos, constantemente,
com uma relexão sobre o uso da língua escrita na vida e na
sociedade e sobre a questão da inclusão ou exclusão que os
indivíduos sofrem em virtude desse uso.
Sendo a linguagem o “caminho de invenção da cidadania”
(FREIRE, 1993, p.41), é comum a preocupação sobre como
isso acontece no Brasil, tendo em vista que participamos de
uma sociedade que tem a linguagem como “arame farpado
mais poderoso para bloquear o acesso ao poder” (GNERRE,
1985) e, por extensão, à vida social. Ainal, é na linguagem,
pela linguagem e com a linguagem que o homem produz
mundos e nele se produz, havendo um destaque para o uso
social da palavra nesse contexto.
Ao se falar em linguagem, logo a escrita emerge para o
estudo e o tema da alfabetização entra em campo. Sabemos que
apenas decodiicar palavras é insuiciente para a participação
em práticas sociais que envolvem a língua escrita, é necessário
algo mais: saber utilizar a leitura e a escrita de acordo com as
contínuas exigências sociais. Esse algo mais é o que se vem
designando letramento.
O letramento é um tema que se torna relevante
como passaporte para o pleno exercício da cidadania, e,
consequentemente, da inclusão social. Destacaremos aqui
uma forma que acreditamos ser a mais fértil para alcançar esse
letramento: uso dos gêneros em sala de aula. Segundo Silva
(2008b), conhecer os gêneros do discurso é um imperativo se
queremos efetivar práticas de letramento em nossa vida, uma
20
vez que todo texto que lemos ou produzimos pertence a um
determinado gênero.
Letramento
e ensino de
gêneros
2 LETRAMENTO: CONCEITO
Como conceituar letramento? O letramento é uma
palavra ainda não dicionarizada, tendo chegado ao vocabulário
da Educação e das Ciências Linguísticas na metade dos anos
80. Trata-se da versão para a língua portuguesa da palavra
inglesa literacy, que designa a condição de ser literate, ou seja,
designa aquele que vive em estado ou condição de saber ler e
escrever. É um tema que vem ganhando visibilidade no cenário
educacional e mundial como sinônimo de desenvolvimento e
aptidão linguística para muitos educadores.
O termo letramento parece ter sido utilizado pela
primeira vez, no Brasil, por Mary Kato, na apresentação de
sua obra No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística,
em 1986. Seu livro tem o objetivo de destacar quais aspectos
de ordem psicolinguística estão envolvidos na aprendizagem
da linguagem escolar de crianças. O termo letramento está
relacionado à formação de cidadãos “funcionalmente letrados”,
capazes de utilizar a linguagem escrita para sua necessidade
individual do ponto de vista cognitivo e atendendo à demanda
social da sociedade que prestigia a língua padrão:
A função da escola, na área da linguagem, é introduzir
a criança no mundo da escrita, tornando-a um cidadão
funcionalmente letrado, isto é, um sujeito capaz de
fazer uso da linguagem escrita para sua necessidade
individual de crescer cognitivamente e para atender
às várias demandas de uma sociedade que prestigia
esse tipo de linguagem como um dos instrumentos de
comunicação. Acredito ainda que a chamada normapadrão, ou língua falada culta, é consequência do
letramento, motivo por que, indiretamente, é função da
escola desenvolver no aluno o domínio da linguagem
falada institucionalmente aceita (KATO, 1986, p.7)
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Mary Kato parece associar o termo letramento ao
domínio individual do uso da linguagem escrita. Está
intimamente ligado à habilidade de usar a língua na sua
variedade culta, pois a norma-padrão seria “consequência
do letramento”. Pode-se inferir desse contexto que é letrado
aquele que domina essa variedade da língua.
Depois de Mary Kato, uma contribuição valiosa
para o tema é trazida por Leda V. Tfouni. Em Adultos não
alfabetizados: o avesso do avesso (1988)2, a autora apresenta
o termo letramento centrado nas práticas sociais de leitura
e escrita e nas mudanças geradas por essas práticas em uma
sociedade, quando esta se torna letrada. Ao estudar a linguagem
de adultos não alfabetizados, segundo uma abordagem de
caráter psicolinguística, Tfouni situa o letramento no âmbito
do social, distinguindo-o da alfabetização, que se situaria no
âmbito individual:
Vanessa Souza
da Silva
A alfabetização refere-se à aquisição da escrita enquanto
aprendizagem de habilidades para leitura, escrita e
as chamadas práticas de linguagem. Isto é levado a
efeito, em geral, através do processo de escolarização, e,
portanto, da instrução formal. A alfabetização pertence,
assim, ao âmbito do individual.
O letramento, por sua vez, focaliza os aspectos sóciohistóricos da aquisição da escrita. [...] tem por objetivo
investigar não somente quem é alfabetizado, mas
também quem não é alfabetizado, e, neste sentido,
desliga-se de veriicar o individual e centraliza-se no
social mais amplo. (TFOUNI, 1988, p.9)
A autora retoma essas relexões em Letramento e
alfabetização, conceituando o termo em confronto com
alfabetização: “Enquanto a alfabetização ocupa-se da aquisição da
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Esta obra, resultado de uma investigação da autora baseada em uma abordagem
de caráter psicolinguística, estuda as relações entre escrita, alfabetização e
letramento através da explicitação de alguns aspectos do desenvolvimento
cognitivo de um grupo de adultos brasileiros não alfabetizados. Tfouni evidencia
que, além de o tema ser uma questão complexa em sociedades letradas, não
há total identiicação entre analfabeto e iletrado no âmbito das relações entre
pensamento e linguagem.
escrita por um indivíduo, ou grupo de indivíduos, o letramento
focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição de um sistema
escrito em uma sociedade” (2005, p.20). TFOUNI reairma
a diferença entre alfabetização e letramento, destacando, mais
uma vez, o caráter individual daquela e o social deste. Ela o toma
como sendo as consequências sociais e históricas da introdução
da escrita em uma determinada sociedade, enfatizando as
“mudanças sociais e discursivas que ocorrem em uma sociedade
quando ela se torna letrada” (op. cit).
Ângela Kleiman, por sua vez, em Os signiicados de
letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da
escrita (1995)3, considera que o letramento são práticas de
leitura e escrita, e analisa duas concepções dominantes de
letramento4, relacionando o termo com a situação de ensino
e aprendizagem da língua escrita por parte de crianças,
adolescentes e adultos.
Letramento
e ensino de
gêneros
Podemos deinir hoje o letramento como um conjunto
de práticas sociais que usam a escrita, enquanto
sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos
especíicos, para objetivos especíicos [...]. As práticas
especíicas da escola, que forneciam o parâmetro de
prática social segundo a qual o letramento era deinido,
e segundo a qual os sujeitos eram classiicados ao longo
3
4
Esta obra, organizada por Ângela Kleiman, é uma coletânea de dez artigos que
apresentam resultados de pesquisas que analisam, sob diferentes perspectivas,
variadas concepções de letramento. Na primeira parte, trata das concepções
dominantes de letramento e sua relação com a pesquisa e o ensino da escrita.
Na segunda, das relações entre oralidade e escrita, através dos modos de
participação da oralidade no letramento. Na terceira, apresenta as relações do
sujeito não-escolarizado na sociedade brasileira e, por último, trata da ideologia
do letramento na mídia e seus relexos na constituição do analfabeto adulto.
Com base, principalmente em Brian Street (1984, 1993), a autora apresenta
duas concepções de letramento: o modelo autônomo e modelo ideológico.
O primeiro modelo diz respeito às práticas de uso da escrita da escola. Esta
concepção pressupõe que “[...] há apenas uma maneira de o letramento ser
desenvolvido, sendo que essa forma está associada quase que causalmente com
o progresso, a civilização, a mobilidade social” (1995, p.21). Contrapondose ao o modelo autônomo, o modelo ideológico pressupõe que há práticas de
letramento, no plural, que são social e culturalmente determinadas, “[...] e,
como tal, os signiicados especíicos que a escrita assume para um grupo social
dependem dos contextos e instituições em que ela foi adquirida” (op. cit.).
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da dicotomia alfabetizado ou não alfabetizado, passam
a ser, em função dessa deinição, apenas um tipo de
prática – de fato, dominante – que desenvolve alguns
tipos de habilidades, mas não outros, e que determina
uma forma de utilizar o conhecimento sobre a escrita.
(KLEIMAN, 1995, p. 19)
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Em texto posterior, a autora apresenta o letramento
“[...] como as práticas e eventos relacionados com uso, função
e impacto social da escrita” (KLEIMAN, 1998, p.181).
Segundo essa concepção, o letramento são as práticas sociais
da escrita e leitura. São os eventos nos quais essas práticas são
colocadas em ação, bem como as consequências delas sobre a
sociedade em geral.
Enquanto Tfouni considera o letramento como sendo
as práticas sociais e históricas da introdução da escrita em
uma sociedade, considerando o impacto social da escrita na
sociedade, Kleiman inclui as próprias práticas sociais de leitura
e escrita e os eventos em que elas ocorrem na caracterização
do letramento. Ambas as autoras, no entanto, consideram
que o núcleo do conceito de letramento está além da simples
aquisição da escrita e seu código (alfabetização). Em outras
palavras, apenas saber ler não basta.
Entretanto, gostaria de destacar aqui o conceito de
letramento atribuído por Magda Soares em Letramento:
um tema em três gêneros (1998). A autora mantém o foco
nas práticas sociais de leitura e de escrita e em algo além da
alfabetização. Mas o letramento, para ela, (i) não são as próprias
práticas de leitura e escrita ou (ii) os eventos relacionados com
o uso dessas práticas (KLEIMAN, 1995), (iii) não se focaliza
no impacto ou as consequências da escrita sobre a sociedade
(TFOUNI, 2005), (iv) nem está relacionado à formação de
cidadãos “funcionalmente letrados” (KATO, 1988), capazes
de utilizar a linguagem escrita para sua necessidade individual
apenas. Para Magda Soares (1998), o letramento pode ser
entendido como resultado da ação de ensinar ou de aprender
a ler e escrever, ou seja, o estado ou a condição que adquire um
grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se
apropriado da escrita. Para a autora, é considerado letrado
aquele indivíduo que usa socialmente a escrita e a leitura,
que as pratica, respondendo às demandas sociais que elas
implicam.
Em texto posterior, Soares (2002) ratiica essa concepção
de letramento, considerando-o para além da alfabetização,
como sendo “[...] o estado ou condição de quem exerce as
práticas sociais de leitura e de escrita, de quem participa
de eventos em que a escrita é parte integrante da interação
entre pessoas e do processo de interpretação dessa interação
– os eventos de letramento” (p.145). Isso nos sugere que o
letramento confere ao indivíduo um estado ou condição de
inserção no mundo letrado que vai além das simples práticas
de leitura e escrita:
Letramento
e ensino de
gêneros
Indivíduos ou grupos sociais que dominam o uso da
leitura e da escrita e, portanto, têm habilidades e atitudes
necessárias para uma participação viva e competente em
situações em que práticas de leitura e/ou escrita têm
uma função essencial, mantêm com os outros e com
o mundo que os cerca formas de interação, atitudes,
competências discursivas e cognitivas que lhes conferem
um determinado e diferenciado estado ou condição em
uma sociedade letrada. (SOARES, 2002, p.146)
Em suma, a autora vê, imbricada ao conceito de
letramento, a condição ou estado de quem exerce efetivamente
as práticas sociais de leitura e escrita, de quem participa de
eventos de letramento. Por se tratar de uma palavra recente,
pode-se notar que nem sempre são idênticos os signiicados
que se vêm atribuindo ao termo letramento. Nesse texto, ao
utilizarmos essa palavra, estaremos nos referindo à concepção
da educadora Magda Soares. Como a noção de letramento está
intimamente ligada à de alfabetização e, consequentemente,
ao conceito de analfabetismo, desenvolveremos melhor esses
conceitos a seguir.
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3 LETRAMENTO, ALFABETIZAÇÃO E ANALFABETISMO
Vanessa Souza
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O conceito de letramento se distingue de alfabetização.
Considera-se a aquisição do conjunto de técnicas necessárias
para a prática da leitura e da escrita como alfabetização. É
o processo pelo qual se adquire habilidades para a leitura e
escrita. Costuma-se considerar alfabetizado aquele que sabe
ler e escrever.
Segundo o dicionário Aurélio Júnior (2005), alfabetizado
é aquele que sabe ler e a alfabetização é a ação de alfabetizar,
de propagar o ensino da leitura. Já segundo o dicionário
Houaiss da Língua Portuguesa (1949)5, alfabetizado é aquele
que aprendeu a ler e a escrever e alfabetização é o ato ou efeito
de alfabetizar, de ensinar as primeiras letras. É esse o conceito
de alfabetização utilizado aqui, ou seja, a habilidade de ler e
escrever, sendo alfabetizado aquele que consegue fazê-lo.
O letramento é, por outro lado, um processo mais amplo
que a alfabetização, embora intimamente relacionado com a
existência e ação do código escrito. Pressupõe o uso efetivo
das práticas sociais que envolvem a língua escrita. Assim, o
indivíduo pode ser alfabetizado, mas não ser letrado, ou seja,
ele pode dominar o sistema de escrita (alfabético, ortográico)
e não atender às demandas sociais do mundo letrado. Entra
aí o conceito de analfabetismo funcional, deinido pelo IBGE
e pelo INEP que, de modo geral, caracteriza o sujeito que foi
exposto a algum tipo de metodologia da alfabetização, mas
não consegue fazer uso social da língua materna, não sendo
capaz de redigir um requerimento, uma declaração, escrever
uma carta, encontrar informações em um catálogo telefônico,
ler e compreender um contrato de trabalho, por exemplo.
Àquele que não possui a habilidade de ler e escrever
costuma-se chamar analfabeto. Segundo o dicionário Aurélio
Júnior, o analfabetismo é o estado ou condição do analfabeto,
falta absoluta de instrução e analfabeto é aquele que não
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Apud MORTATTI, Maria do R. L. Educação e letramento. São Paulo: UNESP,
2004, p.130.
conhece o alfabeto ou que não sabe ler e escrever. Mortatti
(2004) apresenta a evolução do signiicado dessas palavras,
segundo o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa:
Letramento
e ensino de
gêneros
Analfabeto adj. s.m. (a 1710) 1. Que ou aquele que
desconhece o alfabeto, que ou aquele que não sabe ler
nem escrever 2. que ou aquele que não tem a instrução
primária 3. p. ext.. que ou o que é muito ignorante,
bronco, de raciocínio difícil. 4. p. ext. que ou aquele que
desconhece ou conhece muito mal determinado assunto.
Analfabeto funcional PED pessoa alfabetizada apenas
para entender na área na qual trabalha, a sua função,
sendo completamente despreparada para entender textos
ou problemas de outras áreas do saber, o que conigura
uma espécie de tecnicização do conhecimento. ANT.
alfabetizado, como adjetivo, culto, polido.
Analfabetismo. s.m. (1899) estado ou condição de
analfabeto; falta de instrução, sobretudo elementar (ler
e escrever) ETIM. Analfabeto + -ismo; f. hist. (1899)
analphabetismo. ANT. alfabetismo, instrução.
De modo geral, o analfabeto é considerado aquele
que não domina o código da escrita. Entretanto, os termos
analfabetismo e analfabeto, muitas vezes, costumam ir além
do acesso ou não do código escrito da língua, denotando
ignorância e atribuindo-se aos analfabetos estereótipos
pejorativos. Nota-se que o termo analfabetismo carrega ainda
outros predicativos e sentidos, como nos aponta Freire:
A concepção, na melhor das hipóteses, ingênua do
analfabetismo o encara ora como “erva daninha” – daí
a expressão corrente: “erradicação do analfabetismo” –,
ora como uma “enfermidade” que passa de um a outro,
quase por contágio, ora como uma “chaga” deprimente
a ser “curada” e cujos índices, estampados nas estatísticas
de organismos internacionais, dizem mal dos níveis
de “civilização” de certas sociedades. Mais ainda, o
analfabetismo aparece também, nesta visão ingênua e
astuta, como a manifestação da “incapacidade” do povo,
de sua “pouca inteligência”, de sua “proverbial preguiça.
(FREIRE, 2001, p.15)
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“Erva daninha”, “enfermidade” ou “chaga”, dentre
outros, são termos que estabelecem estigmas para designar a
todos aqueles que não conseguiram passar pelo processo de
escolarização para ter acesso ao mundo da escrita. Isso nos
prova que o tema letramento e sua promoção extrapolam
questões individuais de acesso à escrita e transcendem os
portões das escolas. O termo analfabetismo, que é o contrário
do letramento, carrega todo um peso social que marca aqueles
que não tiveram o domínio do código escrito. Segundo Silva
(2007a), o analfabetismo é uma questão de exclusão social:
Vanessa Souza
da Silva
Isso porque a “luta” que seria contra um fenômeno
social e histórico no Brasil (analfabetismo), acaba
“parecendo” uma “briga” contra os analfabetos. Mas
ainal, o analfabeto cria a história ou é a história que
cria o analfabeto? É uma questão não difícil de ser
respondida, que aponta para a competência nacional,
indo além das habilidades individuais. E se “ainda”
existem analfabetos “contaminando” a sociedade
é porque a palavra de ordem não foi dada. Ainal,
problemas relacionados à leitura e à escrita acabam se
relacionando a outros problemas, como a desigualdade
social, déicit de escolarização, má distribuição de
renda e oportunidades, falta de acesso ao bem comum
cultural, entre diversos outros. O acesso às letras é, na
verdade, uma questão de inclusão ou exclusão social.
(SILVA, 2007a, p. 10)
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Como vivemos em uma sociedade grafocêntrica, “[...]
ensinar a ler e a escrever signiica promover a inserção social”
(BOZZA, 2005, p.249) e signiica diminuir a exclusão a
que milhares de homens e mulheres estão sujeitos por não
serem letrados. Quando nossas escolas brasileiras promovem
o letramento, elas estão, na verdade, promovendo a inclusão
social e dando ao aluno condição para o pleno exercício da sua
cidadania. Como destaca Silva (2007a, p. 2) “[...] promover
o letramento é mais que uma política social, é uma palavra de
ordem para a participação na vida em sociedade”.
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Goulart (2000) vai um pouco além. A autora airma
que a noção de letramento deve ser tomada como horizonte
ético-político para o trabalho pedagógico. Isso signiica que
o ensino da língua materna deve possibilitar que o educando
use a linguagem socialmente, respondendo adequadamente às
demandas sociais de leitura e escrita que a sociedade lhe impõe
e a use como instrumento de luta social e a partir dessa noção
de letramento que entendemos o trabalho a ser realizado com
a língua materna na escola.
4 ANALFABETISMO
Letramento
e ensino de
gêneros
E LETRAMENTO: O QUE DIZEM OS
CENSOS
A questão do analfabetismo no país nos sinaliza como
é tratada a questão do letramento num contexto geral. Mas
para sabermos isso, é necessário recorrermos aos censos sobre
os índices de analfabetismo realizados no decorrer de nossa
história. Para investigarmos o analfabetismo e o letramento
do país ao longo dos censos, tomaremos os censos realizados
desde 1872 até o de 2003.
O analfabetismo se torna nosso centro de análise, pois
ele nos mostra a falta total de práticas de leitura e escrita e
uso dessas práticas na vida social. Se o letramento consiste na
condição ou estado de quem exerce essas práticas em nossa
sociedade grafocêntrica, a ausência desse estado ou condição
com certeza nos aponta a necessidade de novos rumos. Como
isso aconteceu em nosso país? Veremos isso através dos censos.
Os levantamentos da população existem no Brasil
desde o período colonial, mas somente “[...] em meados
do século XIX a necessidade de censos populacionais
ganhou força, acompanhando uma prática que se vinha
espalhando pelo mundo ocidental desde os ins do século
XVIII” (MORTATTI, 2004, p.19). O primeiro censo, O
Recenseamento Geral do Império, foi realizado em 1872;
em 1890, no período republicano, o segundo; em 1900, o
terceiro; em 1920, o quarto. E não parou mais. A partir de
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1940, com o Instituto Brasileiro de Geograia e Estatística
(IBGE), fundado em 1936, começa a produção de estatísticas
sistemáticas e especializadas com a introdução de questões
mais detalhadas, utilizando procedimentos em vigor nos
censos até os nossos dias.
Em princípio, os censos se baseavam na declaração
das pessoas a respeito de sua capacidade de ler e escrever o
próprio nome. Esse foi o critério utilizado até 1940 para
saber se o indivíduo era alfabetizado. A partir de 1950, o
critério mudou: era alfabetizada a pessoa que fosse capaz de
ler e escrever um bilhete simples no idioma que conhecesse.
Os critérios utilizados a partir desse censo (1950), passaram
a se basear nas deinições de alfabetização/analfabetismo da
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência
e a Cultura (United Nations Educational, Scientiic and
Cultural Organization – Unesco), ou seja, numa deinição
mais ampliada de alfabetização, segundo a qual apenas escrever
o próprio nome não bastava.
Na verdade, os censos, ao longo dos séculos, apenas
revelam os dados. Realizados desde 1872, eles reletem a
preocupação do país com o acesso às letras ou o seu descaso
em relação à alfabetização do povo. O que se sabe é que até o
im do Império, o Brasil afunilou o acesso à escola e consagrou
o sistema dual de ensino, valorizando um ensino com o
mesmo timbre classiicatório e colonial de séculos, icando
considerável parcela da população sem acesso às letras. O país
não reconhecia, ainda, a educação como um direito universal.
Ainal, para ser mão-de-obra numa sociedade alicerçada em
uma economia de base agrícola, sobre a qual se assentavam a
monocultura e o latifúndio, não era “necessário” priorizar o
acesso às habilidades de ler e escrever. Considerando que, para
que o indivíduo que use socialmente a escrita e a leitura, que as
pratique, respondendo às demandas sociais que elas implicam,
tal como entendemos o letramento, é necessário ter ultrapassado
a barreira do analfabetismo. Parece que o nosso país encontrou
bastante diiculdade (e tempo) para reconhecer essa necessidade.
O analfabetismo da sociedade brasileira só emergiu
como um problema por questões políticas. Somente no
inal do Império, com a Lei Saraiva, de 18826, que proibia
o voto dos analfabetos7, é que o analfabetismo foi visto
como entrave e “[...] se fortaleceu pela maior circulação de
ideias do liberalismo e pelo sentimento patriótico suscitado
pela divulgação internacional da taxa de analfabetismo
revelada pelo censo de 1890, já no período republicano”
(MORTATTI, 2004, p.17). É claro que, desde o período
colonial, existiam muitos analfabetos no país. Mas parece
que isso não “incomodava”.
A imposição da habilidade de ler e escrever como
condição para votar e ser votado “despertou” o Brasil para
a realidade: mais de 82% da população era analfabeta
(FERRARO, 2003). Segundo Ferraro (2002, p.33), as taxas
de analfabetismo a partir de 1872, para a população de 5 anos
ou mais, eram “[...] taxas extremamente elevadas e estáveis (em
torno de 82,5%) do período que vai do primeiro ao segundo
censo (1872 a 1890)”. Com o advento da 1ª República, parece
que não mudou muita coisa:
Letramento
e ensino de
gêneros
As últimas estatísticas organizadas sobre a instrução dão
desânimo e desesperança: em todo o Brasil, de 1000
habitantes em idade de cursar escolas primárias, em
1907 somente 137 estavam matriculados, e somente
96 frequentavam as aulas; para 10.000 de todas as
idades, havia somente 6 escolas com 7 professores,
com 294 alunos de todas as idades, o que quer dizer
que englobadamente, estimando-se toda a população, a
relação de todos os alunos era de 29 por 1000.
Entramos no século XX e os censos ainda apontam
um número muito elevado de analfabetismo no país. Ferraro
(2003, p.198) nos dá uma ideia da quantidade de analfabetos
quando airma que, em 1920, “[...] a taxa de analfabetismo
6
7
Lei da Câmara de Deputados de 1881/ Lei Saraiva, de 1882.
O voto (facultativo) dos analfabetos somente voltou a ser garantido na
Constituição de 1988, ou seja, mais de século depois.
31
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no Brasil continuava superando os 2/3 (exatos 64,9%) da
população de quinze anos ou mais”. Levando em consideração
que, nessa conta, somente entram as pessoas de quinze anos
ou mais, a queda do analfabetismo em relação aos censos
anteriores (de 1972 e 1890) sinaliza que o país ainda caminha
lentamente rumo ao letramento:
Vanessa Souza
da Silva
Em 1920, de um total de 17.557.282 pessoas, temos
o número de 11.401.715 analfabetos de quinze anos
ou mais8. Isso porque a população com menos de
quinze anos não entrou na conta. Com quinze anos se
espera basicamente que o ensino secundário já esteja
em andamento e o nosso povão não sabe ler e escrever!
Qualquer discurso inovador para a educação das massas,
nesse período, e para o seu letramento parece uma
falácia! Se contarmos a população de cinco anos ou mais,
teremos de um total de 26.042.442 a quantidade de
18.549.085 analfabetos, ou seja, 71,2% da população9.
Apesar de haver quem diga que houve um entusiasmo
pela educação nessa Primeira República, os resultados
são muito tímidos para as classes populares. (SILVA,
2007, p.11)
Após quatrocentos e quarenta anos de história, indando
a década de 1930, o censo de 1940 nos apresenta os números
de analfabetismo no país: da população de 5 anos e mais, de
34.796.665 pessoas temos 21.295.490, o que corresponde a
61, 2% do povo; da população de 10 anos ou mais, de um
total de 29.037.849 temos 16.452.832, o que corresponde a
56,7%; da população de 15 anos ou mais, das 23.709.769
temos 13.242.172 analfabetos. Resultado: 55,9% do povo
brasileiro sem o domínio das primeiras letras na faixa etária
de 15 anos ou mais. Já se passou quase meio milênio e ainda
temos mais da metade da população analfabeta.
8
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32
Dados retirados de Ferraro (2003, p.200) com base no recenseamento Geral do
Brasil em 1920.
Dados de Ferraro (2002, p.34), com base no Recenseamento Geral do Brasil em
1920.
Se a “história se faz com a vontade dos homens e daqueles
que os lideram”, como airma Cristovam Buarque (2004),
parece que houve, então, uma lacuna no que diz respeito
à boa vontade dos que governaram o país da Colônia até o
período enfocado até agora. O acesso à leitura e à escrita no
país acaba sendo um problema histórico, “[...] um problema
que acompanha (também, mas não somente) a história do
país, particularmente ao longo de mais de um século desde a
proclamação da República, em 1889, e da instalação do modelo
republicano de escola pública” (MORTATTI, 2004, p.28).
Ferraro (2002, p.34) nos mostra números precisos dos
censos mais atuais. O censo de 1950 aponta que, da população
de 15 anos ou mais, tivemos 15.272.632 analfabetos, o que
corresponde a 50,5% da população (não alfabetizada). O
censo de 1960 aponta para 15.964.852 de analfabetos nessa
faixa etária, que signiica 39,6%. O censo de 1970 mostra
18.146.977 de analfabetos, correspondendo a 33,6%. Já o
de 1980 apresenta 18.716.847 analfabetos, que representam
25,5% da população entre 15 anos ou mais. Em 1991, o
censo acusou 18.587.446 de analfabetos, ou seja, 19,4% da
população na faixa etária em questão. Em 2000, os números
registram 16.294.889 analfabetos, que representam 13,6%.
Com base nesses dados e em outras informações de Ferraro
(2002), teríamos o seguinte quadro de 1920 a 2000, contando
as pessoas a partir dos 15 anos de idade:
Ano do censo
1920
1940
1950
1960
1970
1980
1991
2000
População de 15
anos ou mais
17.557.282
23.709.769
30.249.423
40.278.602
54.008.604
73.542.003
95.810.615
119.533.048
População
analfabeta
11.401.715
13.242.172
15.272.632
15.964.852
18.146.977
18.716.847
18.587.446
16.294.889
Letramento
e ensino de
gêneros
%
64,9
55,9
50,5
39,6
33,6
25,5
20,10
13,6
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Não se pode negar que os dados dos censos registram
um avanço signiicativo na diminuição de pessoas analfabetas
ao longo dos anos. De 64,9% em 1920, passamos para 13,6%
da população analfabeta em 2000. Entretanto, tais dados não
nos permitem comemorações, tendo em vista que o número
de analfabetos subiu. Em 1920, tínhamos 11.401.715
analfabetos e, em 2000, 16.294.889. São milhares de pessoas
excluídas dos eventos de letramento e impedidas de romper
socialmente através da palavra escrita. Houve um aumento
continuado do número de analfabetos desde o primeiro censo
de 1872 (82,5% da população era analfabeta). Partindo da
premissa de que o letramento é “um direito de todos” (SILVA,
2007b), observa-se que por mais de cem anos esse é um direito
que foi “negado” a inúmeros cidadãos brasileiros ao longo de
nossa história.
Segundo dados do IBGE10, na pesquisa de 19932003, indicadores educacionais brasileiros melhoraram nos
últimos anos. As taxas de escolarização subiram em todas as
faixas etárias: chegando a 82,4% dos brasileiros, com alguns
desníveis, pois a taxa é 75,8% para os pobres e 98,3% para
os ricos. Entretanto, mesmo com essa melhoria, o país supera
somente as nações mais pobres da América Latina. Ainda
11,8% da população (de 15 anos ou mais) eram analfabetos
em 2002, o que corresponde a um total de 14,6 milhões de
pessoas analfabetas em pleno século XXI. “Além de 11,8%
serem analfabetos, tivemos, no Brasil, em 2002, um total de
32,1 milhões de analfabetos funcionais11, o que coloca 26%
da população entre 15 anos ou mais de idade sem condições
Vanessa Souza
da Silva
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11
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Conira www.ibge.gov.br.
Dados do IBGE apresentam o analfabeto funcional como a pessoa que tem
menos de quatro anos de estudos completos. O analfabetismo funcional,
segundo a acepção da UNESCO, “[...] diz respeito à impossibilidade de
participar eicazmente de atividades nas quais a alfabetização é requerida; remete,
portanto, aos usos sociais da escrita e a tipos e níveis variáveis de habilidades
de acordo com as demandas impostas pelo contexto. A partir desse enfoque, a
problemática deixa de concernir apenas às populações adultas que não tiveram
acesso à escola – os chamados analfabetos absolutos - , aplicando-se também às
populações escolarizadas, e, portanto, à escola de maneira geral e não apenas aos
programas de alfabetização de adultos” (RIBEIRO, 2006, s/p).
de concorrer ao mercado de trabalho” (SILVA, 2008, p.133).
Como se pode observar nas informações dos censos, parece
que o letramento ainda se constitui uma dívida histórica do
país com o seu povo.
Letramento
e ensino de
gêneros
5 LETRAMENTO E ENSINO DOS GÊNEROS
Conhecer os gêneros do discurso é um imperativo se
queremos efetivar práticas de letramento em nossa vida. Todo
texto que lemos ou produzimos pertence a um determinado
gênero. Dessa forma, defendemos que o ensino dos gêneros
é um instrumento poderoso para fomentar e alcançar o
letramento. Mas o que são os gêneros?
Na Grécia Antiga, se observarmos o campo da Literatura,
o termo gênero literário foi usado para fazer distinção entre
três categorias de enunciado, a saber, o épico, o dramático e o
lírico. No século XX, o termo gênero tornou-se um conceito
teórico de grande valia no campo da Linguística Textual, que
faz referência a gêneros textuais.
De acordo com a concepção dialógica da linguagem,
com base em Mikhail Bakhtin (2003), teremos o conceito
gêneros do discurso, que tem como premissa a noção de que
todo enunciado tem em comum o fato de que remete a um
sujeito, a uma fonte enunciativa e que esse mesmo enunciado
provém de um querer dizer orientado ao seu enunciador, sendo
regido por normas. Segundo o autor, os gêneros do discurso
são tipos relativamente estáveis de enunciados orais e escritos
e organizam a nossa fala da mesma maneira que organizam as
formas gramaticais. Aprendemos a moldar nossa fala às formas
do gênero e, ao ouvir a fala do outro, sabemos de imediato,
bem nas primeiras palavras, pressentir-lhe o gênero, adivinharlhe o volume (a extensão aproximada do todo discursivo), a
cada estrutura composicional, prever-lhe o im.
Bakhtin (2003) salienta que a heterogeneidade dos
gêneros do discurso inclui desde um relato do dia-a-dia até um
documento oicial, como é o caso das propostas curriculares.
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“A riqueza e a diversidade dos gêneros são ininitas porque
são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade
humana” (op. cit. p. 262), o que nos leva a incluir os gêneros
do discurso entre as categorias utilizadas nessa investigação.
Segundo o autor, se não existissem os gêneros do discurso
e se tivéssemos que criar cada enunciado que utilizamos, a
comunicação verbal seria quase impossível. Isso nos leva a
concluir que os gêneros fazem parte do repertório discursivo
dos falantes. São tão indispensáveis para a compreensão mútua
dos falantes quanto as formas da língua. Ele acrescenta
Vanessa Souza
da Silva
Os gêneros do discurso organizam o nosso discurso
da mesma forma que organizam as formas gramaticais
(sintáticas). Aprendemos a moldar nosso discurso às
formas do gênero e, ao ouvir a fala do outro, sabemos de
imediato, bem nas primeiras palavras, pressentir-lhe o
gênero, adivinhar-lhe o volume [...], uma determinada
estrutura composicional, prevemos o im, isto é, desde
o início temos a sensação do conjunto do discurso que
em seguida apenas se diferencia no processo da fala.
(BAKHTIN, 2003, p.302)
Qual a importância dos gêneros do discurso para o
letramento? Signiica que quanto mais gêneros do discurso
dominarmos, exerceremos efetivamente as práticas sociais de
leitura e escrita, participando de diversos eventos de letramento.
Como resultado, teremos a capacidade de ler e produzir diferentes
textos, de gêneros diversos como contos, crônicas, romances,
entrevistas, editoriais, reportagens, poemas, resumos, resenhas,
etc., interagindo com eles de forma prazerosa e crítica. Além
disso, seremos capazes de ativar o nosso conhecimento textual
e o nosso conhecimento de mundo de forma mais dinâmica e
diversa. Ainal, pretendemos um nível de letramento que nos
possibilite não apenas ser um decifrador de sinais, mas mobilizar
nossos conhecimentos para dar coerência às possibilidades do
texto e, consequentemente, da vida.
Educ. foco,
Juiz de Fora,
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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como nos informam os censos realizados no país,
ainda estamos longe de alcançar o letramento pleno da nação
brasileira. Apesar de parecer uma utopia, o analfabetismo ainda
é uma realidade que persistiu (e ainda persiste na atualidade),
marcando a história da educação brasileira, dividindo águas
e somando injustiças sociais, multiplicando o número dos
excluídos da sociedade, os quais Mortatti (2004) chama de
excluídos da participação social, cultural e política no Brasil.
Além dos censos, testes que averiguam o desempenho
de nosso país no que diz respeito às suas habilidade de leitura
e escrita também nos mostram semelhante realidade. No ano
de 2006, o Brasil obteve média que o colocou na 48ª posição
entre 56 países no exame do PISA (Programa Internacional de
Avaliação de Alunos). Em outras palavras, estamos longe da
efetivação do letramento em nossa sociedade.
A persistência desse problema evidencia, entre tantas
outras coisas, as diiculdades do Estado de efetivar seu dever
de garantir que a educação escolar dê conta de sua tarefa
histórica fundamental de acesso às letras para responder às
urgências políticas, sociais e culturais que fazem parte de nossa
vida social. Como nos lembra Freire, é tempo de o homem
se libertar de sua “domesticação” e munir-se de instrumentos
para o pleno exercício de sua cidadania. E isso se dá também
através do uso efetivo da palavra, ou seja, do letramento.
Voltando à airmação da introdução deste texto, o
letramento é uma dívida histórica do país, pois temos milhares
de analfabetos. Enquanto países de primeiro mundo tentam
universalizar o ensino superior, ainda tentamos ensinar as
primeiras letras ao nosso povo. O letramento deve ser o vetor
principal do currículo da educação básica, capacitando sujeitos
para que possam transitar com autonomia no contexto de
uma sociedade letrada, caracterizada pelo uso diversiicado da
linguagem escrita, em suma, do letramento. Isso somente será
uma realidade em nossas escolas quando colocarmos o ensino
Letramento
e ensino de
gêneros
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dos gêneros como uma realidade em nossas aulas de língua
portuguesa.
Cremos que a postura de tomar a noção de letramento
como horizonte ético-político para o trabalho pedagógico
se torna mais eicaz ao se utilizar os gêneros como objeto de
ensino-aprendizagem, pois é uma prática de letramento que
propicia a formação de um leitor mais crítico e uma educação
de fato mais voltada para a cidadania.
Vanessa Souza
da Silva
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