EDUCAÇÃO E IMAGINÁRIO COLETIVO NO MOVIMENTO HIP HOP
Alexandre Takara
Professor de Antropologia Cultural e Secretário Adjunto de Cultura do município de Santo André
Mestrando em Ciências da Educação na UMESP – Universidade Metodista de São Paulo
Prof. Orientador: Joaquim Gonçalves Barbosa
Abertura – Sobe a cortina. O libretista anuncia a que veio.
A presente pesquisa tem caráter exploratório. Propõe-se a registrar 5 entrevistas com moradores de
periferia de Santo André (Grande ABC Paulista), a partir das quais pretende elaborar um roteiro
para abarcar esse universo, composto de negros, mulatos, pobres, sub-empregados, semialfabetizados, mas dotados de profunda consciência social. Levanta a hipótese de que os professores
de ensino formal não estão preparados para combater estereótipos e preconceitos da classe média,
fontes de tensões e de violência.
1º Ato – O Inferno
– “A periferia é o próprio inferno”
E prova com a própria vida: orgulho da família por ter concluído o segundo grau, não
consegue emprego e tornou-se dependente do irmão e da irmã para sobreviver: ele, traficante de
drogas; ela, prostituta.
Seu drama não é o único. Todos têm uma história, são uma história. Fui ao inferno em
companhia de cinco jovens moradores e membros do movimento Hip Hop. É de enlouquecer,
tamanha é a bolsa de infortúnios. Isso não acontece na África, mas no Brasil, no ABC paulista,
precisamente em Santo André, uma das cidades mais ricas e modernas. Não é ficção, é a pura
realidade.
Entrevisto esses jovens no barracão desse movimento a partir de um roteiro. E eles:
“Somos todos sobreviventes do inferno. Não quero ter filhos. Se eu tiver, não quero
recriminar, como a minha mãe faz o tempo todo. Em meio à malandragem, temos de ser malandros
e ligeiros. Perguntamos ao senhor que é professor universitário: como podemos viver sem astúcia?
O movimento Hip Hop nos ensina a viver. Cantamos a periferia, contamos nossos dramas através
dos quais elevamos os níveis de consciência dos moradores. Somos vítimas freqüentes dos pés-depato, uma gíria que designa grupos de extermínios, compostos, sobretudo, de policiais. Todos temos
amigos que foram mortos. Sorte nossa, ainda estamos vivos. Somos da paz, mas os policiais não nos
entendem. Nosso erro: termos nascido negros ou mulatos. E pobres. Posso dar inúmeros exemplos.
Um dia, eu e meus amigos caminhávamos por uma rua e eles nos pediram documentos e indagaram
se trabalhávamos. Não. Foi o suficiente. Chamaram-nos de vagabundos, delinqüentes e baderneiros
e fomos conduzidos num camburão à Delegacia de Polícia só porque nos defendemos e pedimos
respeito à nossa dignidade. Negro não tem dignidade – foi o comentário deles. Registram-nos como
arruaceiros. Eles invertem tudo. Outro exemplo. Um colega meu do classe de ensino fundamental,
um assim chamado negrinho como eu, fazia seu exercício. Um branquinho rabiscou-lhe uma
página. Ele reagiu, riscando o caderno do branquinho. Este pôs a boca no trombone. A professora
aplicou-lhe uma penalidade. E o branquinho? Nada lhe aconteceu. Somos vítimas, desde a mais
tenra idade, de discriminação. O senhor não sabe o que é ser negro. É vítima o tempo todo. A
sociedade só pensa em termos opostos: trabalhador/vagabundo, ordeiro/desordeiro, bom/ruim,
honesto/desonesto. E somos taxados de vagabundos e safados. Os brancos se dizem ordeiros,
trabalhadores e honestos. Mas há brancos vagabundos como há negros traficantes de drogas. Mas
nós, do movimento Hip Hop, não somos. Ao contrário, somos muito solidários. Temos colegas que
são verdadeiros sacerdotes, levam a palavra de paz e de conforto aos internos da FEBEM e outros
ensinam a arte-educação aprendida no movimento. Somos desamparados da Justiça. As penas que
recaem sobre nós são mais pesadas. Por isto, há descrença generalizada na Justiça”.
Pergunto sobre as relações com o branco e com a classe média. E eles:
“Minha avó teve quatro filhos, todos de homens brancos. Ela renegava a raça. Tinha
vergonha da cor, do cabelo pixaim, vergonha de si mesma, vergonha de residir em bairro pobre.
Queria o embranquecimento das gerações futuras. Hoje, os tempos são outros, nós assumimos a
raça. Temos orgulho da raça, estamos forjando a nossa identidade. Não ameaçamos o branco, a
classe média e o burguês. Apenas criticamos a falsa consciência. Então, por que ficam apavorados
com a periferia? A classe média é apavorada por natureza, tem propriedade e ‘status’ a defender. Os
brancos não entendem nosso orgulho da raça, expresso nos seguintes termos: ‘somos negros, por
isto, somos belos’. Queremos introduzir novo conceito de beleza. Os brancos têm de rever suas
posições em relação ao negro orgulhoso”.
E sobre a escola? – pergunto. E eles:
“Freqüentamos escolas. Poucos os que conseguem concluir. Aprendemos a ler, a escrever e
a contar. Isso é bom, mas é insuficiente. A escola não desperta a solidariedade nem a necessidade de
mudanças sociais. E queremos mudanças. A situação atual é desvantajosa para nós. Também não
nos ensina uma profissão. Ela tem pouca importância. Nada, ou pouco significa. Está falida. Por
isto, é invadida, apedrejada, pondo alunos e professores em risco. Nem as escolas bem localizadas
são poupadas. Os professores são, na maioria, brancos e da classe média. Impingem-nos valores de
seu meio. Ignoram os nossos, não admitem nossos comportamentos, consideram-nos
indisciplinados, encaram-nos do ponto de vista do sistema, da ordem e da submissão. E, como
queremos nos auto-afirmar, consideram-nos arrogantes. Não foi na escola que tomamos
conhecimento de Bertolt Brecht e de Maiakóvski, mesmo porque eles [os professores] ignoram.
Aprendemos nas ruas e nos barracões de Hip Hop. Temos negros universitários e intelectuais, eles
nos passam informações. Admiramos o Mano Brown, os Racionais. O Mano é uma referência. O
seguinte verso é de uma das suas músicas: ‘os versos das nossas canções são tiros de revólver’. Os
alvos desses versos são as injustiças, os preconceitos e a exclusão social, a que fomos relegados.
Lutamos pela nossa liberdade, pela nossa dignidade. Os políticos só nos procuram na época de
eleições. Propõem uma educação e uma cultura para nós. Não é isso que desejamos. Queremos uma
política educativo-cultural elaborada por nós também, em parceria.
– Há salvação? – pergunto.
“Sim, a arte: o movimento Hip Hop ou a cultura Hip Hop, como também é conhecido,
compõe-se de: Discotecagem é a performance fonográfica a cargo de um DJ (disc-jockey), aquele
que faz os efeitos sonoros da música. Break é a dança através da qual valorizamos o nosso corpo,
fazemos exercícios físicos. A dança constitui-se de movimentos robotizados e de acrobacias no
solo. Rap é a poesia associada à música, de contestação contra a sociedade injusta. É a abreviatura
de ‘Rhythm and Poetry’ (Ritmo e Poesia). É o canto acompanhado de instrumentos. A letra é
cantada ou declamada. Grafite é a arte pictórica, feita de ‘spray’ ou tinta, com a qual fazemos
críticas sociais. Grafite não é pichação, sujeira. Ao contrário, é uma forma de combatê-la. Há um
código de ética: um muro da cidade grafitado não é pichado. Os pichadores respeitam. (Há diversos
grafites no barracão de Hip Hop onde estamos. Um deles me chama a atenção – a expressão de um
sonho, de um desejo, de uma utopia, de um paraíso a ser alcançado) Essas manifestações – a
discotecagem, o Break, o Rap e o grafite não são manifestações artísticas que se encerram em si
mesmas, têm uma finalidade mais ampla, a de elevar os níveis de consciência dos moradores da
periferia. Fazemos denúncias sociais, combatemos a violência, lutamos pelos direitos, clamamos
pelas políticas públicas em favor da educação, da saúde, do lazer, da cultura, da moradia e da
segurança. Combatemos o preconceito, não queremos que os jovens se enveredem pela
criminalidade, pelo tráfico de drogas e pelo consumo. Pedimos moralidade ao jornalismo policial
que mais faz sensacionalismo, lutamos pela reforma dos sistema penitenciário e pelos direitos
humanos. Enfim, queremos a nossa dignidade e isso conseguiremos apenas através da solidariedade
(O último termo foi pronunciado com muita ênfase). Sim, a origem do movimento Hip Hop é
americana. Daí, muitos termos de origem inglesa: Beat (batida); Def (estilo de Rap de Nova
Iorque); Kaise (caixa de madeira); Ragamurf (ritmo de rap, misto de estilos de Nova Iorque e da
Jamaica); B. Boy (abreviação de beat + garoto integrante do movimento); B. Girl (garota). O
movimento nos Estados Unidos nasceu denunciando mazelas sociais, e chegou ao Brasil na década
dos 70. Aqui, desenvolveu-se e propagou-se rapidamente. Graças a este movimento, conhecemos
Martin Luther King e Malcolm X. O movimento fomenta a auto-estima. O rap é poesia e música,
tem batida, ritmo, tem balanço, cadência e imaginação. Alma e magia, fala do nosso cotidiano e, por
isto, é fácil de entender”.
Intermezzo: A pesquisa
Vou valer-me da pesquisa-ação, associada à pesquisa etnográfica. Professor de Antropologia
Cultural na UMESP – Universidade Metodista de São Paulo – interessam-me os valores, os hábitos,
as crenças e as práticas de grupos sociais. E, como Secretário Adjunto de Cultura do Município de
Santo André, interessa-me implementar ações que resultem na elevação de níveis de consciência
dos moradores da periferia e das favelas, visando à qualidade de vida. Estou engajado no projeto
Santo André, Cidade Futuro – que procura torná-la (a cidade) mais humana, mais agradável e mais
bonita. Este projeto só se realizará com a participação de moradores da cidade. A minha pesquisa
centrar-se-á na participação da periferia, colaborando com seus moradores na aprendizagem da
pesquisa da própria realidade visando transformá-la. Há de considerar-se que a Prefeitura de Santo
André adotou a estratégia de OP – Orçamento Participativo, uma instância da comunidade através
da qual ela própria se envolve também na elaboração do Orçamento. Há, sim, uma dimensão
política na minha pesquisa, a de inclusão social de um segmento da população historicamente
excluído. Na cidade de Santo André, uma sociedade de classe e, portanto, de desigualdades sociais,
habitam diversas juventudes, no plural. A pesquisa concentrar-se-á na juventude da periferia.
Os jovens entrevistados são dotados de consciência crítica. Esta consciência des-oculta a
realidade, estimula a reflexão e a ação sobre a realidade, visando transformá-la. Através dela, o
homem se humaniza e torna-se história. Os jovens empenham-se em passar da consciência ingênua
para a consciência crítica através da ação cultural. Não querem apenas aprender a ler e a escrever;
mais do que ler livros, querem ler o mundo. Por isso, são criadores de cultura. Querem a ação
cultural para a liberdade e para a dignidade.
Em meio à violência, eu vislumbrava uma luz bruxuleante de um movimento de justiça e de
generosidade. E desejo de mudanças sociais em favor dos excluídos. E me indagava: por que a
classe média, que habita o centro e os melhores bairros, ignora os dramas que se desenvolvem nos
beirais da cidade? Pior, repulsa. Como se a nossa cidade fosse estamental: de um lado a classe
média, composta dos bem-nascidos; de outro, os excluídos, a quem se nega tudo, inclusive o direito
à ascensão social, como se houvesse uma barreira intransponível entre eles. E eu continuava a
indagar: será que os professores conhecem e sabem lidar com a massa crítica dos jovens? Não,
como se lerá adiante.
Na vizinhança, plange uma viola que pontua cantorias. Aqui no barracão nos é servida
rapadura. Crianças abandonam brinquedos para mirar o estranho – eu.
2º Ato – A educação domesticadora
Não há como negar que a educação, historicamente, prestou e presta-se ao colonialismo –
um conjunto orgânico e interdependente de relação de dominação e de subordinação. De um lado, a
classe média, materialmente superior, e de outro lado, a população da periferia, materialmente
inferior. Étnica e culturalmente, em muitos aspectos, são diferentes. A classe média instila
preconceitos e comportamentos estereotipados. O morador da periferia é tido como “vagabundo”,
“desordeiro”, “desonesto”, “inferior”, “vândalo” e “pouco inteligente”. A classe média se vale da
educação, no seu sentido mais amplo, da difusão, para impor sua “superioridade”, a que a periferia
responde com ressentimentos.
O sistema de produção cria mecanismo de adaptação – o acesso à escola, à aquisição de
equipamentos domésticos, à compra de roupas da moda e produtos de beleza e os programas de
lazer no litoral e no cinturão verde da cidade – mecanismos voltados para amenizar
comportamentos de resistência e de contestação. A classe média elabora pseudojustificações para
explicar sua hegemonia, expressa em termos de bens materiais adquiridos e de ‘status’ conquistado.
A educação, a serviço da classe dominante, impinge seus valores de modo que a classe dominada é
induzida a aceitá-los e desprezar seus valores tidos como atrasados e impeditivos de
desenvolvimento pessoal e social. Tão eficientes os mecanismos de adaptação que sua expressão
máxima é o desejo de “embranquecimento” resultante do cruzamento interracial. A função é de
domesticação. Mas as diferenças de classe se expressam de forma mais visível na distribuição
espacial. A classe média reside no centro e nos melhores bairros. Os pobres na periferia, nos lugares
mais distantes, de acesso difícil, e nos lugares de risco, aonde não chegam as benfeitorias do serviço
público. Urbanizá-la – dizem as autoridades – é submeter seus moradores ao risco permanente.
Intermezzo – O mal-estar da civilização
Santo André, na década dos 50, era uma cidade suburbana, dependente em tudo da capital,
São Paulo, com 127 mil habitantes. Com o desmembramento de Santo André, de que resultaram os
municípios de Mauá e Ribeirão Pires, a população reduziu-se para 92 mil. Com o desmembramento
de Rio Grande da Serra posteriormente, a redução foi maior.
No entanto, a partir da mencionada década, vai ocorrer extraordinário desenvolvimento com
a implantação das indústrias automobilísticas e de auto-peças. O fenômeno de industrialização foi
acompanhado de outro, a imigração interna, provocando a explosão demográfica, conforme revelam
os números abaixo:
1950
1956
1960
1970
1980
1990
2000
- 92.000
- 154.000 (1)
- 245.000
- 419.000
- 553.000
- 616.000
- 648.000
(1) Recenseamento realizado pela Prefeitura de Santo André
A explosão demográfica, de 1950 a 1980, acelerou o processo de urbanização com a
formação de novos bairros. Chegaram paulistas do interior, paranaenses, mineiros e,
posteriormente, os nordestinos. A população de baixa renda ocupou os lugares mais distantes, as
encostas das montanhas e os alagados. Estes espaços constituíram a periferia e as favelas.
O município não estava preparado para receber tamanho impacto. Estabeleceu-se, então,
aquilo que Freud denominou o mal-estar da civilização – típico do processo de formação e
expansão das sociedades urbanas e industrializadas. Os habitantes começaram a experimentar a
sensação de estranhamento e, com o tempo, a recorrência de alienação, o desenraizamento, a perda
de identidade, a dissolução do sujeito, a crise dos vínculos afetivos, a disseminação da violência. É
o império de Moloch, tirano e devorador. As criaturas foram despojadas de si mesmas, como numa
situação de exílio. Tornaram-se opacas e com dificuldades de comunicação. Tentam salvar-se do
mal-estar da civilização, defendendo o mínimo eu, segundo uma expressão de Christopher Lasch –
um manual de sobrevivência psíquica em tempos difíceis.
3º Ato – Sinais de esperança
Mas está mudando o panorama na periferia graças ao movimento Hip Hop, combatendo a
alienação, retomando as raízes étnicas e culturais, forjando a identidade, recompondo-se as pessoas,
como sujeitos, restabelecendo os vínculos afetivos e combatendo a violência. Seus jovens membros
assumem a raça – “somos negros, por isso, somos belos”. são orgulhosos no sentido de autoafirmação. A classe média não entende nem tolera esse orgulho, fator de tensões. Assumem a
periferia, basta analisar as letras do Rap. Cantam a esperança e a utopia e o desejo de mudanças em
oposição ao sofrimento e às injustiças. O protesto é a marca registrada, com na música Consciência
Negra, de JC John: “Somos negros / somos negros / somos negros / somos negros, não temos medo
de dizer / coragem não falta para poder transmitir satisfação, sabedoria, faz parte da vida / Somos
negros, sim / temos orgulho de dizer, certo mano?” A poética do Rap é deglutida e assimilada. A
pobreza é mundial, então a pobreza local associa-se a esse fato universal e as vozes dos rappers
daqui se ligam às vozes dos pobres de Nova York, de Londres e da Jamaica Uma corrente se
estabelece. Robson Luiz, do núcleo Negroatividades, cunha este verso no Solo bem Menor:
“Primeiro de Maio, em que foi datada nossa escravidão industrial...”. Ele denuncia, não vê os assim
chamados negros na festa do Dia do Trabalho.
Aumenta a bibliografia sobre o movimento, sendo ABC Rap o primeiro livro publicado no
Brasil, em 1992, pelo Departamento de Cultura de São Bernardo do Campo (ABC Paulista). A
seguir, vieram outros como Hip Hop, A Periferia Grita, de Janaina Rocha, Mirella Domenich e
Patrícia Casseano (edição mimeografada, sem data). A revista Caros Amigos lançou um número
especial com o título Movimento Hip Hop, a Periferia Mostra seu Magnífico Rosto (nº 3 / 1998).
Há revistas especializadas, como Rap Brasil e Rap Rima. Há videoclipes, como Jigaboo, que
circulam pelos espaços do movimento. O Hip Hop cresce no ABC, como no resto do país, o que
permitiu realizar, em janeiro de 2001, um festival, no Anhembi/SP, que reuniu mais de 60 mil
pessoas. Somente para dar uma ordem de grandeza, um único conjunto, o Racionais, lançou um CD
com vendagem de 1 milhão de cópias.
O movimento Hip Hop cresce e se fortalece. Tem massa crítica. Sabe que não adianta pedir
a um garoto para abandonar o crime se não lhe oferecer algo em troca. O poder econômico se
transforma graças à vendagem de discos e de shows, o movimento, em troca de os garotos saírem
da criminalidade, quer oferecer escolas de computação, estabelecer cursos na periferia e melhorar
escolas. Deseja colocar em prática o que apregoam em suas músicas: fazer, da poesia e da música,
armas vigorosas de informação, denúncia, conscientização e compromisso com transformações
sociais. Não tem ainda claro o seu modo de pensar e de fazer pedagógico. Precisa de apoio. Mas
está convencido de que precisa fazer algo em favor da periferia.
Intermezzo – uma sombra
A escola também deveria mobilizar-se em favor dessa comunidade, e participar de parcerias
para erradicar a violência. Sucede que ela não tem flexibilidade suficiente para dar respostas
urgentes e adequadas com ações. Enquanto isto, a violência se agrava, sendo ela mesma, a escola,
vítima de invasões e de vandalismo. Ela se escuda na educação formal, preconiza a cidadania, mas
o seu resultado é pífio; no máximo, consegue formar cidadãos de segunda categoria – pessoas que
pensam de uma forma determinada, imposta pelo poder dominante, cujo olhar não questionam. Não
indagam se o que lhes impingem é válido. Estão cegos, ideologicamente condicionados. A escola
não consegue formar cidadãos plenos. Porque se concentra no indivíduo e não no coletivo. Estimula
a competição e não a solidariedade. Preserva o ‘status quo’ e não mudanças sociais. Enfoca a
reprodução e não a produção de conhecimentos. Centra-se no professor e não em projetos de
desenvolvimento. Finca-se na instrução e não na sociabilidade. O poder é centralizado,
hierarquizado e formalizado e não estimula a autonomia e a participação. É incapaz de encantar a
educação, de estimular a autopoiese (do grego autós, próprio, e poiesis, fazer), neologismo que
significa a produção de si mesmo. Assim, a escola é incapaz de entender o movimento Hip Hop, de
formular um projeto pedagógico que venha ao encontro do movimento. Ao menos por ora.
4º Ato – Uma educação utópica
A educação não-formal aproxima-se do movimento Hip Hop. Ela se realiza fora das
unidades escolares – na igreja, nos clubes, nos centros comunitários e também nas dependências da
escola, fora do expediente normal. A educação não-formal é conhecida também como educação
para a cidadania, educação comunitária e educação para adultos. Até a década dos 80, não se deu
muita importância a ela, apenas considerada apêndice da educação formal. Mas, a partir dos 90,
passou a ganhar importância graças a mudança no sistema de produção frente à globalização. O
novo sistema passou a valorizar o trabalho em equipe e este funda-se na participação e na
solidariedade. Os conteúdos curriculares são mais flexíveis em função da realidade do alunado. A
cidadania é o seu objetivo fundamental, pois concebida em termos coletivos. A educação nãoformal é um modo de prática social. O conhecimento é o resultado de perceber e superar uma
situação-problema. Daí, a ênfase sobre a problematização, de que resulta a consciência de si
mesmo. O indivíduo coloca a si mesmo como problema a ser superado.
Não obstante, a educação não-formal ainda não é suficiente para abordar o movimento Hip
Hop, pois este quer agregar a voz individual à fala coletiva do povo. A fala individual consiste em
dizer a própria palavra, em seu próprio nome. O movimento Hip Hop prescreve a polifonia, um
conjunto de diferentes vozes no interior do próprio movimento. Elas dialogam entre si, completamse ou respondem umas às outras. Na polifonia, a fala de um pressupõe a fala do outro. O sucesso do
Hip Hop resulta de ter conseguido a polifonia.
O movimento utiliza-se da palavra no ato da fala. Ela é o veículo da reflexão. Mas só a fala e
a reflexão não bastam, têm de ser fecundadas por ações, dialeticamente. E a junção da reflexão com
a prática é o que os marxistas denominam práxis, de que emerge o sujeito, capaz de agir com
autonomia e liberdade. Aqui, evoca-se o processo de conscientização, segundo Paulo Freire.
O movimento Hip Hop tem o seu linguajar próprio. Atribuem significações novas às
palavras, o que, muitas vezes, dificulta a comunicação. Vali-me, pois, do recurso das palavras
geradoras (ainda que Paulo Freire tenha reduzido o seu uso), graças às quais me introduzi no
universo do Hip Hop e daí, para temas geradores, foi um passo. Pude identificar o campo semântico
do movimento, isto é, a esfera de suas significações, e nele mergulhar. Ao evocar uma palavra
qualquer, por exemplo periferia, uma série de outras foram geradas: pobreza, miséria, tráfico de
drogas, prostituição, dependência, injustiça, opressão, exclusão, violência, morte, inferno... E, por
oposição, outras foram lembradas: direito, justiça, solidariedade, arte, grafite, música, poesia, dança,
esperança, utopia. E também por oposição e retornando à série anterior: dominação, domesticação,
centro, classe média, hegemonia... Ao combiná-las, extraí os temas geradores que ora apresento,
apoiado nas entrevistas dos jovens.
Falta abordar o imaginário coletivo no movimento Hip Hop, constante do título deste
trabalho. O imaginário coletivo não se revela apenas no grafite, na poesia, na música e na dança.
Revela-se também no cotidiano da periferia. Vivem dificuldades de toda ordem e as contornam com
astúcias e táticas. Vivem em meio à malandragem, por isso têm de ser malandros e ligeiros.
Respondo, agora, à pergunta de um dos entrevistados: “como podemos viver sem astúcias?”
Realmente, não podem. Aliás, Michel de Certeau, no seu livro, A Invenção do Cotidiano, revela que
pessoas se utilizam desse expediente, alterando objetos, códigos e procedimentos, cada um com seu
jeito próprio. Seguem caminhos tortuosos, usam de rodeios, de subterfúgios e patifarias. Cortam,
burlam, mentem, dão golpes, o que significa que essas criaturas sem qualidades não são
absolutamente obedientes e passivas. As astúcias e as táticas – bricolagem, como diriam os
franceses – constituiriam belos livros de crônicas e contos. E cinema. E teatro. E ópera, inclusive a
ópera bufa.
O movimento Hip Hop instiga o imaginário coletivo.
Finale – Baixa a cortina
O presente ensaio foi construído a partir de entrevistas de cinco jovens, moradores da
periferia de Santo André e envolvidos no movimento Hip Hop, graças às quais foi possível levantar
subsídios para uma pesquisa, ainda em caráter exploratório. O material coletado instigou-nos à
reflexão crítica da realidade. A escola, tal como existe hoje, é incapaz de dar respostas adequadas às
necessidades da periferia, como o combate à discriminação e aos estereótipos, fontes de tensão e de
violência. Há de buscar-se um novo fazer pedagógico e cultural a partir da perspectiva da periferia,
e não para ela. O movimento Hip Hop denuncia este equívoco. Os jovens querem uma política
educativo-cultural com eles, elaborada também por eles, em parceria com o poder público. É uma
forma de incentivá-los ao envolvimento em ações com vistas a promover a transformação social.
BIBLIOGRAFIA
CERTEAU, Michael de – A Invenção do Cotidiano, Editora Vozes, RJ, 2ª edição, 1996
LAPASSADE, Georges – Da Multirreferencialidade como ‘Bricolagem’, in Multirrefe-rencialidade
nas Ciências e na Educação, org. de BARBOSA, Joaquim Gonçalves. Editora da UFSCar, São
Carlos, SP, 1998
FREIRE, Paulo – Conscientização, Editora Moraes, SP, 3ª Edição, 1980
DEPARTAMENTO DE CULTURA da Prefeitura de São Bernardo do Campo – ABC RAP, SP,
1992
LASCH, Christopher – O Mínino Eu, Editora Brasiliense, SP, 5ª edição, 1990
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educação e imaginário coletivo no movimento hip hop