O PODER DA PALAVRA NA TRAGÉDIA LATINA
AIRTO CEOLIN MONTAGNER
(UERJ E UNIGRANRIO)
RESUMO:
Em “O poder da palavra na tragédia de latina”, mais exatamente em Sêneca, discorre-se sobre o papel do discurso trágico
relacionado à ação das personagens, furiosos ou simples mortais,
e o necessário discurso final do scelus nefas. O processo retóricodiscursivo é ingrediente fundamental na ação de um herói que se
cria através dele e de um mundo que se constrói pela palavra.
Palavras-chave: tragédia, discurso, ação, crime trágico.
Introdução
Quando se fala no teatro latino, logo nos lembramos do teatro grego, do qual os romanos fizeram uma tradução. Para os romanos, todavia, a narrativa de um mito, matéria necessária à tragédia grega, parecia-lhes apenas uma narrativa inverossímil,
quando não monstruosa. É o caso de Medéia, que incendeia Corinto e degola os filhos à vista de Jasão, e foge triunfante sem
num carro alado.
Com certeza, isto seria inconcebível para um romano, pois
Medéia comete um crime, não é julgada nem punida e, ainda,
triunfa. Então, um autor, como Sêneca, ao escrever sua peça tem
necessidade de torná-la inteligível para os romanos. E como ele
procede?
Observemos, em primeiro lugar, que o mito é inerente à
cultura grega e pertencente à realidade dela e a tragédia é produto
dessa realidade. Por isso, ela tem lugar nas celebrações da memória coletiva. Para um romano, no entanto, tal prática lhe é estrangeira. Não há tal celebração para ele, bem como não há a necessidade de encontrar uma explicação para um crime trágico. Bastalhe apenas situar tal crime fora das leis humanas, atribuindo-lhes
simplesmente a noção que, no direito romano, era concebido como scelus nefas, um crime simbólico, contra a humanidade, contra as leis do mundo. Ademais, uma peça assim, nunca é romanizada, nem são traduzidos os nomes das personagens nem dos
lugares. Tal crime é praticado por um grego, que se transforma
em ser monstruoso.
Diferentemente do crime comum, identificável por ocorrer
na esfera dos acontecimentos ordinários e humanos, o crime trágico é reconhecido pelas indicações de um discurso que enuncia
um fato estranho e paradoxal, fora do humano. Assim, tal fato não
é representado em cena, mas sim apresentado através da palavra.
Tomando o exemplo de Medéia, o incêndio do palácio de Corinto, por ela encetado, produz um fogo que não pode ser controlado
por nenhum poder ao alcance do homem, como, por exemplo, a
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água. Tal fenômeno chega aos espectadores pela voz do mensageiro:
Eis o mais extraordinário desse drama
A água atiça o fogo
E quanto mais se combate o braseiro mais ele queima com
força
E volta nossas próprias armas contra nós. (v. 888-890)
Esse caráter sobrenatural e inexplicável é um modo de reconhecer o crime trágico. Outro modo de reconhecimento desse
crime, visto como scelus nefas, é o modo pelo qual o herói trágico
se vangloria do seu ato abominável. Assim Medeia, pela palavra,
regozija-se das ações que pratica:
A felicidade! O prazer!
De ter arrancado a cabeça do meu irmão
A felicidade de tê-lo cortado em pedaços!
De ter roubado a meu pai o velo sagrado!
O prazer de ter colocado a faca na mão das filhas
para que elas matassem o próprio pai! (v. 911-914)
Deste modo, as ações da personagem não representam um
gesto realizado por um ser humano que erra numa situação de
desespero, mas de um ser que afirma valores inversos àqueles da
humanidade. O resultado é percebido como horror, como algo que
sequer pode-se pensar em realizar, porque abominável. É o scelus
nefas. O herói trágico representa assim o crime abominável, um
crime simbólico, fora de todo o senso humano. Quem o realiza
não é um homem, mas um louco, um furiosus, alguém que foge
ao julgamento e à justiça dos homens. Por isso causa horror, isto
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é, o arrepio dos cabelos, manifestação física a indicar que nenhum
homem pode suportá-lo, pois nega o mundo em que vivemos.
Como se pode ver no exemplo acima, na fala do mensageiro, o poeta expressa-se através do paradoxo, quando converte,
pela palavra, a água em fogo, o crime em feito heróico, o horror
em prazer, e engendra o sentido trágico.
O herói trágico é conduzido, através da palavra, para fora
da consciência humana, numa situação de furia, causada pelo
furor. O furor era, em Roma, uma noção jurídica, isto é, designava o homem que não se conduzia como homem, pois era um furiosus, aquele que se comporta de modo incompreensível perante
seus semelhantes. Por isso, os crimes cometidos por um furiosus
não iam a julgamento, apenas tolhia-se-lhe o direito de gerir seus
próprios negócios, desde que fosse considerado perigoso para os
outros e para si próprio. Era então colocado em isolamento ou
encadeado, a critério da família, já que isso era considerado um
caso de família. O estado de fúria, porém, era considerado provisório, não uma doença permanente. Tratava-se de uma ausência
em que o indivíduo saía de si mesmo. Assim, quando esta era
superada, seus direitos eram restituídos. Todavia, os furiosi do
direito não cometem um schelus nefas.
Os furiosos da tragédia são um tanto diferentes dos furiosos jurídicos, pois aqueles cometem o crime trágico, scelus nefas,
esses não. Então, o que caracteriza a tragédia latina, diferentemente da grega, é essa articulação da figura do furiosus e do sce4
lus nefas, isto é, do cumprimento de um crime simbólico, sem
equivalência na realidade romana, mas com existência no espaço
lúdico da cena. O scelus nefas é realizado pelo herói trágico, um
furiosus, que, ao cometê-lo, não recebe julgamento, pois seu crime vai além da competência da justiça humana, já que sua realização o põe fora da humanidade. Não é mais possível resgatar o
criminoso trágico, reintegra-lo à família e deixa-lo gerir sua própria vida.
Florence Dupont (Le théâtre latin, Paris: Armand Colin,
1988. p 53) faz uma relação dos principais tipos de personagens
furiosos. Vamos nos ater aqui ao personagem principal, que geralmente dá nome à peça, e observar como este se transforma em
herói trágico, ou seja, num ser abominável, que causa horror aos
homens.
O exemplo de Medéia nos elucida nessa trajetória. De início encontramos a heroína humana tomada de desgraça. Sua condição inspira piedade. Todavia, sua desgraça evoca seu passado,
quando, por amor a Jasão, pratica uma série de crimes. No momento lúdico da cena, ela aparece repudiada por ele. A partir daí,
através de seu discurso, cumpre-se a ação trágica, ou seja, a passagem do humano para o desumano. Pela palavra, a heroína age
sobre si mesma, exaspera sua dor, dor insuportável, não curável
na esfera humana. À medida que a palavra ressalta a dor e a desgraça, seu corpo ganha vibrações e entorpecimento. A dolor a
leva para fora da esfera do humano e a introduz na esfera do mito,
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pelo furor. Dolor e furor são gerados pela palavra. Em situação
de furor, ela gesta a vingança através da rememoração dos crimes
passados. Inicia-se então a fase da invenção do crime.
Medéia comete dois scelus nefas. Duas são as situações
em que exaspera sua dolor: uma ao incendiar Corinto, outra ao
degolar os próprios filhos. É, então, através da dolor que o herói
trágico chega ao furor, ausentando-se da consciência humana e
entrando no mundo do mito. Num estado de furia, gesta seu crime. Mas seus crimes têm com arquétipo os dos seus ancestrais.
Medéia deverá igualá-los ou superá-los. Assim, ao incendiar Corinto, evoca seu ancestral Faetonte, filho do Sol, que, desventurado incendeia parte da terra:
Sol, concede-me uma graça
Sol, ancestral da minha raça,
Deixa-me voar pelo céu, confia-me as rédeas do teu carro
Eu conduzirei os cavalos de fogo de freios flamejantes
Eu incendiarei Corinto, a cidade de dois mares,
O istmo se consumirá pelas chamas e os mares se unirão. (v.
32-36)
Os termos furor, dolor e scelus nefas são concebidos aqui
como categorias de análise, mas para o espectador romano era
notado pela emoção, sem uma meditação conceitual. Então, Medéia, no início um ser pelo qual sentimos piedade ante sua dor, à
medida que a exasperação aumenta, torna-se aos poucos repugnante, como o homem limpo que, paulatinamente, rola seu corpo
nos monturos e excrementos. Fisicamente, torna-se sórdida à me6
dida que a ação avança em cada etapa e provocando horror e fascínio.
Sabemos que o teatro latino suscitava as emoções dos espectadores, através de elementos lúdicos complementares à palavra, como a música, o cenário, as máquinas, a mímica e a dança.
Todavia, o que nos resta para analisar, hoje, são somente os textos, a palavra.
A palavra, entre os antigos, assume uma concepção
diferente da que temos hoje, quando a vemos como meio de
comunicação e de informação. Era vista como um espetáculo da
ação teatral e não um simples meio de representação. Isto
significa que toda ação, incluindo-se o scelus nefas, realiza-se por
meio da palavra trágica, isto é, pertencente a um espaço lúdico
demarcado. Diferentemente do que sucede entre os gregos, que
tinham, antes da tragédia, uma tradição de vários discursos como
o épico e o lírico, entre os romanos, foi necessária à criação de
um outro tipo de palavra, a qual se abriga no seio do espaço
lúdico da representação dramática, ou seja, uma palavra de ficção,
de criação. Nisso, ela se opõe claramente à palavra romana
ordinária, que as pessoas usam para interagir. Na tragédia romana,
a palavra é um canto criador em que o herói não age sobre os
outros, mas sobre ele mesmo e sobre o espaço cênico. Trata-se,
pois, de uma palavra criadora, que age no espaço lúdico,
nitidamente distinta da palavra ordinária.
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A palavra criadora faz com que o herói aja sobre ele mesmo e o transforme em cada etapa da ação. Não é uma palavra que
exprima um sentimento ou uma interioridade
pré-existente à
palavra; é, sim, a palavra que cria o doloroso, o furioso, o criminoso e o triunfante. À palavra precede a dança, da qual ela é a
verbalização, mediada pela música e pelo ritmo. O herói age sobre si mesmo através de um discurso em segunda pessoa, mas
orientado-o sobre si próprio. A primeira pessoa torna a aparecer
no canto final da jubilação, quando reconquista sua identidade e,
triunfante, age como ser humano e como furioso.
Assim como a palavra gera o herói, também serve para criar o mundo no qual ele age. Se o herói é um furioso, cria um
mundo no qual age o furioso.
No início de uma apresentação trágica, o palco aparece vazio. É, pois, o palco um espaço lúdico que se define negativamente, desprovido de toda realidade. É, então, preenchido pela
palavra. O furiosus, através do seu canto, progressivamente, povoa este espaço, conforme invoca seus monstros, seus crimes,
suas espantosas histórias da mitologia.
Através de longos e numerosos monólogos, dá-se conta
dessas criações. Diferentemente do grego, que imprime relevo aos
diálogos, o poeta romano valoriza o monólogo. Desse modo, uma
seqüência de monólogos também revela a seqüência de movimentos da ação dramática. De início, pelo monólogo, vêm apresentados os acontecimentos dolorosos, após sucedem-se os discursos
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de lamento, de exasperação pela palavra, a manifestação da dolor,
a progressiva alteração do corpo, gritos, a instauração do furor do
corpo e, a seguir, o discurso do furor, quando o furioso se liberta
da humanidade. A partir daí, em um ou mais monólogos, cria, por
etapas, seu crime de horror, concebido de forma monstruosa e
particular.
Os principais crimes trágicos de assunto mitológico que
Sêneca traduziu são: Medéia, que incendeia o palácio real de Corinto e mata os próprios filhos; As Troianas, em que Agamêmnon
sacrifica Polixena e joga Astianax do alto de uma torre; Agamêmnon, que é morto pela esposa Clitemnestra; Édipo, que perfura os
próprios olhos; Tieste, em que Atreu sacrifica seus sobrinhos,
servindo suas carnes como banquete ao pai; Hércules sobre o Eta,
sobre o suicídio de Hércules através do fogo; Hércules furioso,
em que o herói mata sua mulher e os filhos e, finalmente, Fedra,
na qual a personagem, apaixonada por Hipólito, acusa-o falsamente por tentativa de estupro. Como se vê, a tragédia latina infere à mitologia grega uma série de scelus nefas, crimes contra a
humanidade.
Se entre os gregos, a representação trágica introduzia uma
reflexão sobre o universo de sua cidadania, entre os romanos isto
não ocorre. Suas representações trágicas se definem como estrangeiras à cidade romana, sem o intuito de problematizar qualquer
questão que lhes diz respeito ou propor uma reflexão sobre o homem, a cidade ou o mundo. Dessa forma, as representações não
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se inserem na vida ordinária dos cidadãos e seus personagens
agem fora da cidade e fora da humanidade; por isso são os furiosos que cometem o crime trágico. Tudo se dá, porém, num espaço
lúdico, concebido como ficção, tendo em vista suscitar emoções.
Desse modo, vista como uma criminosa triunfante, Medéia é
compreendida pelo espectador romano; não como alguém que
viola as leis de uma cidade e que deve ser punida, mas como um
ser que está fora dela, um ser que suscita a emoção do horror.
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Referências bibliográficas:
BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: tragédia e comédia.
9. ed., Petrópolis: Vozes, 2002.
COSTA, Lígia Militz da; REMÉDIOS, Maria Luiza Ritzel. A
tragédia: estrutura e história. São Paulo: Ática, 1988.
DUPONT, Florence. Le théâtre latin. Paris: Armand Colin, 1988.
______. Les monstres de Sénèque. Paris: Belin, 1995.
MEDÉIA NO DRAMA ANTIGO E MODERNO. Actas do Colóquio de 11 e 12 de abril de 1991. Instituto Nacional de Investigação Científica da Universidade de Coimbra, 1991.
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