UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
MARIA ANGÉLICA MENEZES FREIRE
O JEITO DE SER MENINA E MENINO NO COTIDIANO DA
EDUCAÇÃO INFANTIL
VITÓRIA
2010
MARIA ANGÉLICA MENEZES FREIRE
O JEITO DE SER MENINA E MENINO NO COTIDIANO DA
EDUCAÇÃO INFANTIL
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Educação da Universidade
Federal do Espírito Santo, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em
Educação.
Orientadora: Profª. Dra. Vânia Carvalho de
Araújo
VITÓRIA
2010
MARIA ANGÉLICA MENEZES FREIRE
O JEITO DE SER MENINA E MENINO NO COTIDIANO DA
EDUCAÇÃO INFANTIL
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Educação
Aprovada em 08 de abril de 2010.
COMISSÃO EXAMINADORA
Profª Dra. Vânia Carvalho de Araújo
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
Orientadora
Profª. Dra. Maria Elizabeth Barros de Barros
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
____________________________________________
Profª. Dra. Ivone Martins de Oliveira
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
Profª. Dra. Vera Maria Ramos de Vasconcellos
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO RIO DE JANEIRO
Aos meus pais, Beltice e Hamilton (in
memoriam), pela referência de dedicação
e resistência perante a vida. Amo vocês.
AGRADECIMENTOS
Ninguém é nada sozinho. É prazeroso o sentimento de gratidão que me envolve ao
perceber que não estou só.
Chegou à hora de agradecer. Primeiramente a Deus, pela vida que tenho. Pelas
pessoas que estiveram e estão ao meu lado na concretização deste trabalho. É
impossível nomear todas, mas a elas dedico minha gratidão.
Quero deixar registrado de que vale a pena continuar na busca de contagiar as
pessoas, lugares na construção de um mundo melhor a partir das crianças.
À minha filha, Michelle, que tem me ensinado com leveza a ter esperança e alegria
pela vida. Em nosso convívio diário é a pura manifestação fecunda do amor.
A minha querida mãe que, na trajetória de nossas vidas, vem tecendo fios de
carinho, ternura, coragem e compromisso perante a vida, sempre me amparando na
concretização dos meus sonhos.
A meu pai (in memoriam) meu reconhecimento pelo apoio incondicional durante o
tempo que estivemos juntos, por sempre mostrar-me, em gestos e palavras, a
criança que trazemos dentro de nós. Quero evidenciar que sua vida foi trilhada pela
ética, pela fé e pela alegria, acreditando sempre em um mundo melhor e mais justo!
A minha irmã, Ângela, e aos irmãos, Helder, Francisco e Hamilton, pelas conversas,
carinho e incentivo durante “a viagem” do Mestrado e as alegrias compartilhadas
durante nossa(s) infância(s).
Às minhas tias Mari e Ri pela doçura e certeza das orações!
À minha querida família: avó, tias, tios, primas, primos, sobrinhos e sobrinhas e,
especialmente, às crianças que vivem suas infâncias.
Às minhas queridas amigas de infância de Aracaju pela presença constante
compartilhando comigo, mesmo de longe, os momentos de alegria e inquietude.
À Eneida pela certeza da sua torcida e apoio na busca do conhecimento durante
todo o processo do Curso de Mestrado e pelas significativas contribuições.
À Emília pela amizade e força nesta caminhada e pelos lanches em sua casa para
aliviar a ansiedade da escrita.
À Marília pelas palavras carinhosas nos telefonemas dividindo comigo dúvidas e
também por entender a minha ausência nesse período de estudo.
À Mariza, Heloisa, Rosinha, Mônica, Ynah e Carminha pelo carinho de sempre.
Ao meu genro querido, Marcelo, pelas instigantes perguntas e provocações sobre a
pesquisa.
Às professoras e professores do Mestrado pelas ricas discussões pelos meandros
da educação minha profunda admiração e respeito.
Às professoras Elizabeth Barros e Ivone de Oliveira que participaram da banca de
qualificação contribuindo teoricamente para a realização deste trabalho.
À professora Vera Maria Ramos de Vasconcellos por ter gentilmente aceitado
participar da banca de defesa, com suas criteriosas observações.
À turma de Mestrado, em especial, à Rosane e Luana pelas reflexões teóricas e
companhia nos momentos de tensão e dúvidas.
À Moyara e Marluce pela atenção durante o percurso do curso.
Aos funcionários da Secretaria do PPGE, em especial à Ana.
À equipe do CMEI “Semeando a Vida”, que colocou a escola e os arquivos à minha
disposição, o que muito favoreceu a investigação. À professora Fabíula agradeço de
modo destacado por ter permitido que a pesquisa se realizasse em sua sala,
possibilitando, dessa forma, a realização do estudo.
Às crianças do Pré o meu profundo agradecimento em aceitar-me como
pesquisadora e, assim, participar das suas experiências e brincadeiras, contando de
si, o que foi essencial e enriquecedor para realização deste estudo. Obrigada pelos
beijos e abraços. Vou sentir saudades...
À Maria por cuidar da minha casa, fazendo comidinhas e um cafezinho delicioso
durante todo o curso.
À Alina pela paciente tarefa e relevante trabalho de correção do texto.
Ao Frei Angelino por ensinar-me a olhar com humor e serenidade tudo que parece
negativo, mostrando-me que, dessa forma, crescemos na parceria com o Divino Pai.
Em especial, agradeço à professora Vânia Carvalho de Araújo, minha orientadora,
pelas orientações que foram essenciais na concretização e construção desta
pesquisa.
Com certeza, a liberdade e a poesia a
gente aprende com as crianças (MANOEL
DE BARROS).
RESUMO
Este estudo tem como foco compreender como as crianças lidam com as suas
relações de gênero no cotidiano da educação infantil. Objetiva analisar os elementos
culturais e sociais que mais sobressaem no jeito de ser menina e de ser menino,
identificando como as crianças definem e demarcam a sua condição de gênero nos
diferentes tempos e espaços. Para responder a essas questões, analisa as
narrativas, as interações diárias com seus pares e com os adultos nas relações
estabelecidas cotidianamente. A partir das vozes infantis, procura compreender
melhor o jeito de ser da menina e do menino nas experiências vivenciadas. Trata de
um estudo elaborado numa perspectiva etnográfica que constata que as crianças vão
dando alguns indícios do jeito de ser menina e menino nas relações sociais
estabelecidas na sala de aula, nos corredores, no pátio, no refeitório, na fila, no
banheiro, enfim, em todos os espaços sociais pelos quais circulam. Nesses espaços,
observa como elas estabelecem as relações de gênero e de poder nos modos como
se organizam e negociam os conflitos, resistindo a algumas normas e lugares
destinados às meninas e aos meninos. Como categoria de análise foram
privilegiados: gênero, poder e corpo fundamentados nos estudos de autores como:
Foucault, Louro, Bujes, Scott e Sarmento.
Palavras-chave: Infância. Criança. Gênero. Corpo. Poder.
RÉSUMÉ
Cette étude a pour but de faire comprendre comment les enfants font face à leurs
relations de genre au quotidien de l’éducation enfantine. Elle veut analyser les
éléments culturels et sociaux les plus importants dans la manière d’être des enfants,
tout en identifiant comment ils arrivent à définir et marquer leur condition de genre
dans le temps et l’espace. Pour mieux repondre à ces questions, l’étude révise
également leurs récits et rapports quotidiens avec leurs paires et les adultes. A partir
des voix enfantines, on essaie de mieux comprendre la façon d’être enfant dans les
expériences vécues. Il s’agit d’une étude élaborée avec une perspective
éthnographique qui constate l’éxistence de quelques indices qui temoignent de leur
manière d’être dans les relations sociales établies en salle de classe, dans les
couloirs de l’école, la cour, le réfectoire, la queue, les toilettes, enfin, dans tous les
espaces sociaux qu’ils utilisent. Dans ces espaces, on observe comment ils
établissent les relations de genre et de pouvoir existantes dans leurs formes
d’organisation et de négociation des conflits, en opposant une vive résistance à
quelques normes et lieux qu’on leur a imposés. On a privilégié les catégories
d’analyse suivantes: genre, pouvoir et corps, basées sur les études d’auteurs tels
que: Foucault, Louro, Bujes, Scott et Sarmento.
Mots-clés: Enfance. Enfant. Genre. Corps. Pouvoir.
ABSTRACT
The present dissertation focuses on understanding how children deal with their
gender relations in the upbringing environment. It goals to analyze the most
distinguished cultural and social elements related to the ways-of-being boy and girl,
identifying how children define and demarcate their condition of gender on different
times and spaces. In order to answer those questions, the work analyses narratives
and daily interactions of children and parents and adults. From child voices, seeks to
better understand the ways-of-being boy and girl, considering the experiences that
have been lived. The study is elaborated from an ethnographic perspective that
argues that children give away evidences of their own ways-of-being boy and girl on
social relationships established in the classroom, the courtyard, the cafeteria, in line,
at the bathroom, finally, in all social spaces in which they socialize. Considering
those spaces, the dissertation observes how they establish their relations of gender
and their relations of power and how they organize and negotiate conflicts, opposing
to norms and places differently designated to boys and girls. As categories of
analysis were privileged: gender, power and body on the grounds of authors such as:
Foucault, Louro, Bujes, Scott and Sarmento.
Key-words: Childhood. Child. Gender. Body. Power.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO......................................................................................................13
1.1 CONTEXTUALIZANDO A PESQUISA...............................................................15
1.2 CAMINHOS METODOLÓGICOS.......................................................................21
1.3 FAZER PESQUISA NUMA PERSPECTIVA ETNOGRÁFICA............................26
1.4 POR QUE PESQUISAR O COTIDIANO ESCOLAR?........................................29
1.5 CONHECENDO A INSTITUIÇÃO PESQUISADA..............................................30
1.6 QUEM SÃO AS CRIANÇAS?.............................................................................32
1.7 COMO AS CRIANÇAS SE SITUAM NO ESPAÇO ESCOLAR?........................33
1.8 O COTIDIANO DAS CRIANÇAS.......................................................................35
2 O QUE É GÊNERO?...........................................................................................38
2.1 AS RELAÇÕES DE GÊNERO NA ESCOLA......................................................41
2.2 CAMINHOS PARA PENSAR AS QUESTÕES DE GÊNERO.............................47
2.2.1 Por que menino não pode chorar?..............................................................47
2.2.2 Só para provocar... .......................................................................................48
2.2.3 E a menina brinca de carrinho?...................................................................53
2.2.4 A “sutil” incorporação do consumo: as mochilas das crianças..............57
2.2.5 Como se portam meninas e meninos na aula de Educação Física..........59
3 NOS MEANDROS DO PODER............................................................................66
3.1 AS RELAÇÕES DE PODER..............................................................................68
3.2 E POR FALAR EM PODER...............................................................................69
3.2.1 Situações de conflitos entre as crianças: a relação de poder entre os
adultos e crianças..................................................................................................69
3.3 AS NEGOCIAÇÕES ENTRE AS CRIANÇAS....................................................73
3.4 AS CRIANÇAS BURLANDO OS TEMPOS E ESPAÇO.....................................77
3.4.1 Burlando as regras na hora do recreio.......................................................79
4 DESVENDANDO O CORPO ...............................................................................85
4.1 A DINÂMICA E OS SINAIS DOS CORPOS.......................................................85
4.2 CORPO E SEXUALIDADE: um início de reflexão.............................................91
4.3 CENAS DO COTIDIANO...................................................................................94
4.4 AS INTERAÇÕES DAS CRIANÇAS...............................................................105
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................110
6 REFERÊNCIAS...................................................................................................118
APÊNDICE.............................................................................................................129
APÊNDICE - Termo de consentimento..................................................................130
1 INTRODUÇÃO
A importância das coisas há que ser medida pelo
encantamento que a coisa produza em nós. (MANOEL
DE BARROS).
Esta pesquisa é fruto de experiências docentes ao longo de minha carreira, que
sempre me instigaram no sentido de voltar o olhar para as crianças, compartilhar de
suas infâncias, do seu cotidiano e, assim, ouvir seus anseios, desejos, vontades,
acompanhar suas aprendizagens, alegrias, dúvidas e com elas aprender cada dia mais
do seu universo cultural e social e contribuir para a compreensão e produção de
saberes acerca da infância. O momento da pesquisa na escola foi um presente e uma
surpresa a cada dia. Viver a experiência do cotidiano na companhia das meninas e dos
meninos, poder aprender nesse espaço de convivência e compreender o que pensam,
sentem, fazem e como se expressam teve um significado relevante na relação com as
crianças. Foi um momento rico em minha vida profissional, como pedagoga, mulher,
mãe e cidadã e, principalmente, como alguém que vem trabalhando, experimentando,
apostando na visibilidade da criança e de suas infâncias.
À medida que o trabalho ia acontecendo minha percepção e o meu olhar foram se
ampliando com as leituras, com a pesquisa em campo, nos registros, observando a
riqueza da cultura das crianças no seu jeito de ser menina e de ser menino que nos
provoca a todo momento tentando nos dizer alguma coisa do seu mundo que nos
escapa e fascina.
O mestrado foi para mim uma viagem. Em cada parada, eu ia ressignificando a minha
bagagem na relação com as crianças, com a sua maneira de ser e de interpretar o
mundo. A metáfora da viagem ficou para mim bastante evidenciada no livro “Um corpo
estranho” da professora Guacira Louro (2004), quando ela exemplifica a viagem com
um deslocamento entre lugares relativamente distantes e, em geral, supõe-se que tal
distância se refira ao espaço, eventualmente ao tempo que esclarece, distingue e
seleciona as experiências vividas, como também uma forma de revisitar o passado
articulando uma relação do tempo histórico já vivido com o tempo contemporâneo.
Mas, afirma a autora, talvez se possa pensar, também, numa distância cultural como
uma trilha que faz a história, como uma teia de relações que organiza as ideias e
transforma as experiências nas fronteiras do espaçotempo.
Nesse sentido, como explicita a professora Guacira a metáfora da viagem interessa-me
para refletir o movimento entre uma e outra experiência, os percursos, as trajetórias
durante a pesquisa na companhia das crianças dando vez e voz a todas elas. O
mestrado foi uma viagem de chegadas e partidas contínuas no sentido das
transformações, dos novos saberes, da (des)construção de saberes cristalizados no
lugar de aprendiz com as crianças em nossos relacionamentos durante a trajetória da
pesquisa. Pesquisar na condição relacional com as crianças implica responsabilidade e
reflexão política, ética, estética, cultural e histórica decorrente do processo da
institucionalização da infância.
Assim, buscar a visibilidade das crianças envolve a nossa capacidade de reconhecer o
lugar ocupado por elas na construção da cultura e dos processos sociais. Durante a
pesquisa, perguntava-me: que lugar é esse que elas ocupam hoje na escola, na
família, na rua e em suas relações com seus pares? Na verdade, elas ocupam um
lugar ou um não lugar? Sempre me instigou e provocou a relação de poder entre os
adultos e as crianças e das crianças com seus pares. Que lugares, jeitos de ser-fazer
foram construídos nessa relação? A partir das leituras de Michel Foucault (2003, 2005,
2006, 2008), fui me apropriando dessas práticas sociais estabelecidas, por exemplo, o
poder está em todas as partes, o poder também se expressa entre as crianças nas
suas resistências, na sua maneira de ser menina e de ser menino, nas suas
brincadeiras, suas falas e seus gestos. A escola é um lugar de múltiplos discursos. A
minha intenção foi identificar em que medida esses discursos são exercidos nas
práticas cotidianas, na sala de aula, no pátio, no refeitório em todas as relações que se
fazem presentes no cotidiano que interferem na constituição do jeito de ser menina e
de ser menino. Nesse sentido, a pesquisa possibilitou-me analisar quais os elementos
culturais e sociais que se sobressaem no jeito de ser menina e de ser menino, como as
crianças expressam a sua identidade de gênero nos diferentes tempos e espaços da
Educação Infantil e o modo como lidam com as diferenças de ser menina e de ser
menino.
Sendo assim, é preciso que se saiba mais sobre esses sujeitos infantis, pensantes e
desafiadores que se constroem cotidianamente, daí estudá-los e compreendê-los em
suas peculiaridades advindas das culturas e do meio onde estão inseridos. É preciso
olhar a criança com que convivemos, de carne e osso, que vem a nós, como nos
provoca Friedmann (2005) em suas pesquisas. Na tentativa de me apropriar de alguns
conceitos busquei dialogar com alguns teóricos, como Araújo (1996, 2005); Bujes
(2003), Faria (2002, 2007, 2008), Finco (2003,2007), Foucault (2003, 2005, 2006,
2008), Quinteiro (2000, 2002, 2004), Louro (1997, 2003), Sarmento (2000, 2003, 2005,
2007), Felipe (2003, 2004, 2005).
Em função da minha trajetória profissional, dos estudos realizados, da vivência
cotidiana em instituições escolares, senti-me instigada a pesquisar como as crianças
lidam com as relações de gênero no cotidiano da educação infantil.
Defini, como objetivo geral para este estudo: compreender como as relações de
gênero se manifestam entre as crianças no cotidiano da educação infantil.
Para isso, relacionei objetivos específicos que ajudaram a estudar o tema:
a)
analisar os elementos culturais e sociais que mais se sobressaem no jeito
de ser menina e de ser menino no cotidiano da educação infantil.
b)
identificar como as crianças definem e demarcam a sua condição de gênero
nos diferentes tempos e espaços da educação infantil.
1.1 CONTEXTUALIZANDO A PESQUISA
A opção pelo tema desta pesquisa é resultado de estudos anteriores por ocasião da
realização do Curso de Pós-Graduação “Lato Sensu” – Formação de Especialista em
Educação na Universidade Federal do Espírito Santo, com a pesquisa “Sexualidade,
AIDS/DST na escola. Como abordar? Um trabalho educativo com os alunos do ensino
fundamental noturno da Escola de 1º Grau Zilda Andrade” que, se, por um lado,
significou o encerramento de uma etapa, por outro suscitou novas inquietações para
outros estudos de maior profundidade.
O interesse pela sexualidade e pela questão de gênero iniciou-se quando comecei a
trabalhar como pedagoga no Instituto Espírito-Santense do Bem-Estar do Menor
(IESBEM), atualmente denominado Instituto de Atendimento Socioeducativo do Espírito
Santo (IASES), no Programa de Moradia Alternativa, quando integrei a equipe
multidisciplinar com a função de pedagoga. O programa tinha como objetivo
descentralizar a política de assistência assegurando às crianças e aos adolescentes o
direito à brincadeira, à atenção individual, à higiene, à saúde, a frequentar a escola e a
ter um ambiente aconchegante, seguro e estimulante por meio do desenvolvimento de
um trabalho em parceria com grupos organizados da comunidade em sistema de
cogestão.1
Nessa época, acompanhei de perto as incertezas e inseguranças das crianças e dos
adolescentes em relação às transformações de seu corpo, de sua sexualidade (muitas
delas abusadas sexualmente) e de sua fragilidade de resistir a relações desiguais de
poder em relação ao gênero, classe social, etnia e faixa etária.2 As crianças e os
adolescentes atendidos pelo instituto traziam em sua história as impossibilidades de
estudar, de brincar, de viver a sua infância em virtude do abandono e do lugar social
que ocupavam.
No IESBEM, fui membro da Comissão de Prevenção AIDS/DST. Lá realizei palestras
para os seus funcionários. Na época, foi elaborada uma política de atendimento do
órgão, que objetivava capacitar a mencionada comissão, que, posteriormente, teria
como proposta
provocar o debate com as crianças e com as(os) adolescentes
atendidos pelo instituto, com relação aos seus medos,
1
suas inseguranças e à
Esse trabalho contou com o apoio do Departamento de Serviço Social da UFES. O referido
Programa de Moradia Alternativa tinha como objetivo proporcionar a cidadania às crianças e aos
adolescentes desprovidos de família e/ou afastados da família de origem, proporcionando assistência
integral e especial, num ambiente semelhante ao de um lar.
2
Segundo Manuel Sarmento (2005, p. 370): “As condições sociais em que vivem as crianças são o
principal factor de diversidade dentro do grupo geracional. [...] ao longo da sua infância percorrem
diversos subgrupos etários e varia sua capacidade de locomoção, de expressão, de autonomia de
movimento e acção etc. [...] Os diferentes espaços estruturais diferenciam profundamente as
crianças”.
exploração sexual, pois muitas delas(es) conviviam na exclusão social e perversa da
sociedade. Nesse período, percebi a precariedade das políticas públicas que eram
incapazes de assegurar, de fato, proteção integral à população infanto-juvenil. Ficou
evidente o silêncio e o tabu de lidar com questões relacionadas com a sexualidade e
com o gênero, que também se confundiam com a história da pobreza, da desigualdade
social ora ocultada, ora revelada pela condição de vida das crianças e adolescentes
atendidas pelo IESBEM.
Em 1998, assumi a direção do Centro Municipal de Educação Infantil Darcy Castello
Mendonça, que atende crianças de seis meses a seis anos. Na educação infantil,
constatei que a escola precisa promover debates e reflexões acerca da sexualidade
humana, que venham desencadear discussões relativas a gênero, política, cultura,
poder e cidadania. No contexto da educação infantil, pude perceber práticas instituídas
que tentam moldar as formas de ser menina e ser menino, por meio do monitoramento
do desenvolvimento da criança, caracterizando o que é normal e desejável. Nesse
contexto, a criança, ao contrário do que era considerada no passado, mostra-se como
ser que pensa, tem sentimentos, emoções e é participante ativa do mundo,
reproduzindo e produzindo cultura. Foi, então, que comecei a me questionar: o que
continuaria impedindo e dificultando a discussão de gênero, poder e da sexualidade na
escola?
Em função desses questionamentos, é que participei do processo de seleção no
Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro Pedagógico, da Universidade
Federal do Espírito Santo, na linha de pesquisa: História, Sociedade, Cultura e Políticas
Educacionais, com o desejo de pesquisar e aprofundar as questões relativas a gênero,
sexualidade, corpo, poder, criança e infância no cotidiano da educação infantil. No
decorrer da “viagem” do mestrado, fui à busca de estudos e pesquisas que ampliassem
as minhas escolhas e que me dessem sustentação teórica para ir construindo as
fronteiras do ir e vir dos saberes e reflexões do meu processo de entendimento acerca
dessas questões. Busquei cumplicidade com autores que tratam de temas teóricos que
pudessem dar embasamento à minha discussão, tais como: Foucault (2003, 2005,
2006, 2008), Louro (1997, 2004, 2005, 2007), Scott (1995) Bujes (2003), Sarmento
(2007), Finco (2007), Goellner (2005), Felipe (2004), Eizirik (2004), entre outros.
Foucault (2003, 2005, 2006, 2008), em seus estudos, esclarece-nos que a sexualidade
se constitui por meio dos discursos que regulam e normatizam as relações sociais e
culturais, nas práticas cotidianas historicamente construídas que controlam homens e
mulheres. Há também, em suas pesquisas, a preocupação em evidenciar que o poder
não só reprime, mas resiste, incita e provoca nos detalhes, o que equivale a dizer que,
onde há poder, há resistência, que se produz por meio das relações de poder que não
só os adultos têm, mas que são produzidos em todas as relações estabelecidas e que
constituem os sujeitos.
Nas pesquisas de Louro (1997, 2004, 2005, 2007), observa-se que gênero e
sexualidade têm se constituído alvo de seus estudos. A professora afirma que gênero,
sexualidade e identidade são uma construção cultural contínua, provisória e relacional.
Em seus textos, a autora revela os múltiplos discursos que ocupam a sociedade e que
nos provocam a pensar as questões relativas ao corpo, ao gênero, às relações de
poder na escola, às feminilidades, às masculinidades e à sexualidade. E evidencia que
“somos sujeitos de muitas identidades” e que é no âmbito da cultura e da história que
vamos constituindo as nossas identidades sexuais, étnicas e de classe.
Bujes (2003), em seu trabalho “Infâncias e maquinarias”, analisou as relações entre
infância e poder, utilizando-se das ideias de Foucault, e nos esclarecendo que não há
lugar isento de poder. O sujeito infantil é constituído por diversos discursos e diferentes
instituições: a família, a escola, a igreja, os meios de comunicação, e são essas
instituições que vão apontar e moldar as formas como os sujeitos, por meio dos
discursos internalizados, vão se relacionar com o mundo onde estão inseridos. Sinaliza
a autora que a sociedade busca constantemente estratégias e mecanismos como
instância privilegiada de controle para fixar certos sentidos por meio dos discursos
tomados como “verdadeiros”.
Já Scott (1995), em o seu artigo “Gênero uma categoria útil de análise histórica”,
evidenciava uma mudança de reflexão entre as formas de interação humana que se
processam no âmbito da cultura. Nesse estudo, a autora introduziu uma ênfase no
contexto sócio-histórico que influencia as relações sociais numa perspectiva de
igualdade e oportunidade entre os sexos. As suas pesquisas vêm contribuir para
elucidar as questões relativas sobre as diferenças e desigualdades produzidas nas
sociedades.
Sarmento e Pinto (1997, 2000, 2003, 2005, 2007), estudiosos da infância e da criança
pesquisadores que vêm constituindo suas pesquisas científicas ancoradas na
Sociologia da Infância, definem, apropriadamente, que a Sociologia da Infância é um
dos mais importantes debates teóricos em curso sobre o desenvolvimento da
Sociologia no mundo. Foram os primeiros interlocutores portugueses que se
interessaram pelos estudos sociológicos sobre a infância. Os professores têm
contribuindo de forma sistemática com suas publicações para as questões relativas à
criança, à infância e às culturas infantis.
Também Felipe (2001, 2002, 2003, 2004) vem se dedicando, em suas pesquisas, ao
estudo do conceito de infância e às relações de gênero e sexualidade na educação
infantil com uma relevante produção de trabalhos publicados sobre essa temática.
Seus estudos estão ancorados na perspectiva dos Estudos Culturais, Estudos
Feministas e nas contribuições de Michel Foucault, no que se refere às relações de
poder-saber e ao governo dos corpos.
Finco (2007), em sua pesquisa “A Educação dos corpos femininos e masculinos na
educação infantil”, reforça a idéia de que os mecanismos sociais estão presentes na
educação de meninas e meninos e essas marcas sociais e culturais vão sendo inscritas
em seus corpos, por meio de técnicas que disciplinam, regulam, controlam,
constituindo, dessa forma, comportamentos, verdades e saberes sobre o ser menina e
ser menino.
Cipollone (2003) nos oferece pistas a partir de pesquisas realizadas em creches e préescolas italianas sobre a relação de afetividade da professora com a menina e com o
menino e também da menina com o menino e nos evidencia que todo comportamento
tem algum tipo de afeto.
Portanto, a minha intenção é analisar e compreender como as crianças se relacionam e
se expressam, nos diversos espaços-tempos da escola, objetivando outras formas de
olhar como as crianças manifestam a sua condição de gênero e poder nas relações
estabelecidas no cotidiano escolar da educação infantil, nas diferentes formas de ser
menina e ser menino.
Este trabalho foi organizado em quatro capítulos. No primeiro capítulo, foi explicitada
na introdução a minha trajetória profissional, destacando o meu olhar nas crianças e
suas infâncias e os caminhos metodológicos ancorados numa perspectiva etnográfica
em um estudo de caso que foram tecendo os desafios de se fazer pesquisa com as
crianças e a partir delas, objetivando dar vez e voz às suas narrativas. A caracterização
e a contextualização da instituição pesquisada – Centro Municipal de Educação Infantil
Semeando a Vida (nome fictício dado a escola) – efetivou-se a partir da leitura do
Projeto Político-Pedagógico, de conversas orais e análises de outros documentos que
integram a história da escola. Neste capítulo, esclareço as minhas primeiras
impressões, a entrada em campo, o cotidiano das crianças e como elas se situam no
espaço escolar.
No segundo capítulo, trato das questões de gênero, esclarecendo a relevância do tema
atualmente, trazendo alguns teóricos que conceituaram e contribuíram para a
discussão do processo sócio-histórico e dos seus efeitos nas relações sociais e
institucionais. Evidencio as relações de gênero na escola e as experiências das
crianças nas suas relações cotidianas, observando como elas produzem e reproduzem,
em suas relações, modos de ser menina e menino. Analiso os elementos culturais que
influenciam as interações das crianças no jeito de ser menina e menino e discuto
alguns caminhos para pensar as questões de gênero na infância.
No terceiro capítulo, procuro desvendar as relações de poder que emergem nas
relações cotidianas das crianças e em que medida o poder se torna uma categoria
presente nas relações de gênero entre as meninas e meninos. Assim, busquei autores
(Foucault, Louro, Bujes e Eizirik) que me sustentassem teoricamente para identificar,
nas experiências das crianças, como o poder é exercido e mediado nas tensões e
resistências.
O quarto capítulo trata das diversas formas e estratégias que são utilizadas no espaço
escolar para controlar e conter os corpos das(os) alunas(os), visualizando como as
crianças buscam formas de resistir às imposições disciplinares em relação a seus
corpos. Nesse capítulo, evidencio cenas do cotidiano, as narrativas e as
representações das crianças nas suas interações.
1.2 CAMINHOS METODOLÓGICOS
Definir um caminho a ser seguido para a realização de um estudo não é tarefa fácil
para um(a) pesquisador(a). Múltiplos caminhos se delineiam e se entrecruzam no
decorrer da elaboração de um projeto para a realização de um estudo. Fui buscar, no
cotidiano escolar, reflexões, achados, questionamentos e caminhos. Este estudo tem
caráter qualitativo e, por isso mesmo, considerei relevante e adequado à temática
pesquisada trabalhar numa perspectiva etnográfica que tem por objetivo observar,
pinçar, descrever e interpretar o que acontece em um determinado lugar. Assim, optei
por fazer um estudo em uma turma de seis a sete anos.
Neste estudo, utilizei, como instrumento de produção de dados, a observação
participante, diário de campo, análise de documentos, fotografia (mediante
autorização dos pais e das crianças), questões investigativas com as crianças, com o
objetivo de captar informações por meio da escuta e do olhar atento e participativo tão
necessário ao processo investigativo. Esses instrumentos que foram revelando as
culturas infantis por meio da linguagem e de diversas formas de comunicação entre as
crianças com seus pares e os adultos que ocupam o espaço da escola. Além disso,
utilizei a pesquisa bibliográfica, a entrevista e diário de campo. Para a entrevista, foi
adotado um roteiro (APÊNDICE) no sentido de manter o foco nos objetivos do tema. As
conversas foram gravadas, transcritas, ouvidas diversas vezes para perceber
entonações, sentimentos, sentidos expressos nas vozes das crianças.
Para realizar a pesquisa, escolhi um Centro Municipal de Educação Infantil – CMEI
Semeando a Vida (nome fictício dado à instituição) – por ser uma escola que atende
crianças de um nível socioeconômico desprivilegiado. O primeiro contato com a
referida escola foi por via telefônica, com a diretora, para explicar a intenção do
trabalho a ser desenvolvido e solicitar sua anuência para a realização da pesquisa.
Após o primeiro contato, foi marcado um encontro com a diretora e as pedagogas para
que conhecessem o teor da pesquisa.
Fiquei extremamente instigada em desenvolver a pesquisa na sala do Pré B da
professora F, em função de algumas características da sala: possuir mais meninos do
que meninas; contar com a presença de uma menina que se destaca das demais; e,
ainda, ser uma turma extremamente provocadora e ativa, segundo o relato da
professora. São características importantes na medida em que desvelar as relações de
gênero, entre as crianças, se traduziu em uma oportunidade ímpar de vivenciar como
lidam com as experiências cotidianas no jeito de ser menina e menino. Os sujeitos da
pesquisa estudam numa sala de aula com 23 crianças, oito meninas e quinze meninos,
entre seis e sete anos de idade, atendidas por uma única professora. Uma vez por
semana, tinha aula de Educação Física e Artes. No horário dessas aulas, a professora
fazia o planejamento das atividades a serem desenvolvidas com as crianças.
O início da pesquisa se deu com um sentimento de inquietude, apreensão e de desafio
por se tratar de uma temática que nos instiga e provoca a todo o momento como um
enigma a ser desvendado. Fazer pesquisa com as crianças foi pensar na possibilidade
de compreender algo que nos escapa, resiste e questiona.
A entrada em campo se deu após a conversa com a professora e com as crianças para
saber se elas me aceitavam como pesquisadora na turma. Quando cheguei à sala do
Pré B, as crianças estavam sentadas, em círculo, esperando-me e recebi um sonoro
“SEJA BEM-VINDA!”. Sentei-me no círculo com as crianças, fui esclarecendo o objetivo
da pesquisa e, logo após, perguntei-lhes se me aceitariam como pesquisadora na sala.
Responderam-me que sim. Perguntei se elas conheciam a Universidade Federal do
Espírito Santo (UFES). Várias respostas surgiram. Uma menina respondeu que sim:
“Que lá era o lugar de estudar, só que minha mãe estuda na FAESA”. Outra criança
falou que a UFES era o lugar de consertar pneu! 3 Uma menina me perguntou o que eu
estudo no mestrado? Após esse primeiro momento de conversa, solicitei que as
crianças falassem seus nomes e a idade. Também fui indagada sobre minha idade.
A produção de dados foi por meio de observações registradas no diário de campo,
3
Supostamente, referindo-se a uma oficina mecânica chamada Faé.
entrevistas, análises de documentos e fotografias, com o objetivo de compreender
como as crianças vão construindo a visão de si mesmas e do mundo que as cerca por
meio das interações estabelecidas no cotidiano escolar. No diário de campo, estão
registrados momentos que explicitam que há uma nítida divisão entre o universo
feminino e o masculino, quando uma aluna diz: “Tem uma menina que finge, mas falou
que quer ser homem. Ela fica igual a um homem, não fica comportada como a gente”.
Ao ouvir isso, indaguei qual era o jeito dessa menina. “O jeito, ela briga, molha os
outros, é assim”. A fala dessa criança vem reafirmar os modelos esperados pelas
atitudes e características das meninas: doces, delicadas, passivas, comportadas e
organizadas. Para o menino, a agressividade, a força e a agitação são
comportamentos esperados, pois a masculinidade está amparada basicamente na
competitividade, força física e coragem.
A entrevista com as crianças foi um momento rico da pesquisa, quando elas falaram
dos seus desejos, experiências, medos e sonhos. Durante as entrevistas, constatei,
mais uma vez, como as crianças têm a capacidade de analisar, interpretar e descrever
as suas experiências e interações com seus pares e os adultos, reproduzindo e
(re)significando
as relações de gênero no jeito de ser menina e ser menino no
cotidiano da educação infantil.
Entrevistar e ouvir as crianças é buscar, na multiplicidade de linguagens, as suas
impressões do mundo que elas vão descrevendo a partir do olhar curioso e inventivo.
É, sem dúvida, um momento de exercício de escuta, de encontro, de troca, de
pertencimento de quem ouve e é ouvido
Foi nessa perspectiva que as crianças foram entrevistadas, abrindo espaço para
estabelecer uma relação de escuta com elas, para dizerem o que pensam, imaginam,
querem e desejam. Foram entrevistadas 12 crianças, oito meninas e quatro meninos no
universo de 23 crianças. A escolha se deu de forma aleatória, a partir do interesse das
crianças após eu ter conversado com elas sobre a entrevista, que foi feita na biblioteca
da escola, por ser um espaço pouco utilizado pelas crianças do Pré e mais reservado.
Inicialmente, explicava que era um bate-papo e que eu iria gravar nossa conversa para
depois escutar e passar para o diário de campo. Nesse sentido, procurando decifrar as
variadas formas de comunicação das crianças tentei trazer junto com elas as suas
reflexões, experiências, sentimentos, vivências, desejos e suas contribuições acerca
das culturas infantis.
Procurando manter o sigilo dos nomes das crianças, propus a elas que cada uma
escolhesse um nome fictício para usar na pesquisa.
A escolha dos nomes pelas
crianças foi um momento extremamente instigante e provocador para a minha condição
de pesquisadora. Reuni as crianças em círculo e expliquei a importância e as
implicações dos seus nomes não aparecerem no trabalho que eu estava realizando
com elas e eles ali na escola. Todas as crianças concordaram em escolher um nome. A
escolha dos nomes foi acontecendo de forma tranquila. Quando chegou a vez de uma
menina escolher, ela optou por um nome masculino: “João Pedro”. Algumas crianças
riram e repetiram que ela tinha escolhido o nome de menino. Como havia algumas
crianças que ainda não tinham escolhido o seu nome, dei continuidade à tarefa de
recolha dos nomes.
Nesse dia, voltei para casa pensando por que “João Pedro”4 escolheu um nome
masculino para ser representada na pesquisa. Para Louro (1997, p. 98), “[...] as
representações são formas culturais de referir, mostrar ou nomear um grupo ou um
sujeito”. Continuando com o pensamento de Louro, ela afirma, em seus estudos, que
as identidades são transitórias, elas vão sendo construídas e é nas relações sociais
atravessadas por diversos discursos que o sujeito vai se construindo como masculino e
feminino. Na pesquisa de campo, percebi algumas resistências no cotidiano escolar em
romper com o que é tido como certo, convencional e esperado. As crianças também,
quando chegam à escola, reproduzem discursos e modelos de comportamentos
moldados pela cultura, como “coisa de menina” e “coisa de menino”. Na fala de Júlia,
fica evidenciada essa divisão do mundo masculino e feminino: “Tem uma menina que
finge, mas falou que quer ser homem. Ela fica igual a um homem. Não fica
comportada como a gente”. Importa registrar, nessa fala, a complexidade que
envolve as relações de gênero no contexto escolar, onde acontecem diversos
movimentos de aproximação, rupturas e escolhas.
4
Uma menina escolheu um nome masculino para ser representada na pesquisa, optei, para a melhor
compreensão do texto, destacar o nome escolhido: “João Pedro”. Assim, toda vez que me referir a
“João Pedro” estou tratando de uma menina.
No dia posterior, sentei-me perto da “João Pedro” e perguntei-lhe por que tinha
escolhido o nome masculino para ser chamada na pesquisa. Ela não respondeu e
sorriu. Então, expliquei-lhe que talvez ficasse confuso. Na hora de falar dela, eu teria
que colocar um nome de menino. Indaguei se ela não gostaria de mudar a sua escolha
do nome. Ela balançou a cabeça dizendo que sim. Então, perguntei-lhe com qual nome
ela gostaria de ser chamada? Ela me respondeu imediatamente: Artur.
Diante disso, e, ainda, sob a constante perspectiva de dar vez e voz às crianças,
respeitei a escolha desta menina que gostaria de ser representada na pesquisa com o
nome de menino: “João Pedro”. Sustentei-me no pensamento de Sarmento (2007, p.
35) quando esclarece que: “[...] a infância não é a idade da não fala: todas as crianças,
desde bebês, têm múltiplas linguagens (gestuais, corporais, plásticas e verbais) por
que se expressam”. E ainda, na esteira da ideia de Vasconcellos (2007, p. 11) procurei
assegurar visibilidade às crianças deixando-me levar “[...] pelas mãos e pelas vozes
das próprias crianças”.
Fiquei instigada em investigar mais um pouco a escolha do nome masculino pela aluna.
Procurei saber alguns dados da família, com quem ela morava, se tinha irmãs e irmãos,
qual a idade deles. Ela me falou que só tinha irmãos, que apanhava muito deles e que
morava com a mãe. O pai tinha morrido, mas não soube me dizer qual o motivo da
morte. Essas revelações me provocaram a pensar que “João Pedro” quisesse ter uma
identidade masculina para se apropriar do lugar de poder dos irmãos. “João Pedro”, na
sala, só se sentava com os meninos e tinha livre acesso a todas as brincadeiras com
eles, inclusive disputando com brigas e empurrões, caso fosse necessário em algum
estranhamento na sua relação com os meninos. Alguns nomes escolhidos pelas
crianças merecem destaque: “Jelique”, “Felipe Massa”, “Brondim”, “Albes”, “Galisson” e
“Roter”.
1.3 FAZER PESQUISA NUMA PERSPECTIVA ETNOGRÁFICA
Procurei, neste trabalho, fazer uma pesquisa que escape de dualidades, da
neutralidade, da quantificação e que seja coerente com a emergência de novos
paradigmas de ser-fazer ciência. Pude constatar que a etnografia foi se revelando um
caminho para desvendar as questões estudadas. Sarmento (2003, p. 153) ensina que:
[...] a etnografia visa apreender a vida, tal qual ela é quotidianamente
conduzida, simbolizada, interpretada pelos actores sociais nos seus contextos
de acção. Ora, a vida é, por definição, plural nas suas manifestações,
imprevisível no seu desenvolvimento, expressa não apenas nas palavras mas
também nas linguagens dos gestos e das formas, ambígua nos seus
significados e múltipla nas direções e sentidos por que se desdobra e percorre.
A etnografia5 é uma forma de pesquisar que se originou na Antropologia e objetiva
pesquisar, descrever, investigar e interpretar o que as pessoas fazem em determinado
ambiente, os resultados de suas interações e seu entendimento do que estão fazendo,
ou seja, a cultura6 daquele grupo. A pesquisa etnográfica permite uma observação
direta das(os) pesquisadoras(os) com os pesquisados. Nesse espaço socializador, são
analisados os valores, sentidos e significados que são produzidos pelos sujeitos que
vivenciam e assumem posturas que podem resultar em papéis de acomodação ou
resistência. Nesse sentido, Cohn (2005, p. 10) esclarece acerca da etnografia:
[...] é um método em que o pesquisador participa ativamente da vida e do
mundo social que estuda, compartilhando seus vários momentos, o que ficou
conhecido como observador participante [...]. Portanto, usando-se da
etnografia, um estudioso das crianças pode observar diretamente o que elas
fazem e ouvir delas o que têm a dizer sobre o mundo.
A etnografia caracteriza-se, desse modo, como uma metodologia capaz de pesquisar a
infância. Entendo ser esse o melhor meio de produzir dados no universo escolar, pois
permite a(o) pesquisadora(o) uma observação direta do mundo em que a criança está
inserida, participando ativamente de seus afazeres e entendendo quem são essas
crianças, o que fazem, o que sabem e o que querem saber. Ela exige que os
pesquisadores entrem e sejam aceitos na vida daqueles que estudam e dela
participem. Nesse sentido, por assim dizer, a etnografia envolve “tornar-se nativo”
(CORSARO, 2005, p. 446). O autor ainda nos alerta que a entrada em campo é crucial
para a utilização desse método, uma vez que um dos objetivos centrais, como método
interpretativo, é estabelecer o status de membro do grupo e uma perspectiva ou ponto
5
Para um estudo mais aprofundado da etnografia, conferir: Sarmento (2003), Corsaro (2005),
Delgado (2005), Müller (2005), André (2006).
6
Segundo Silva (2007, p. 131), “Em 1958, Raymond Williams definiu cultura como o modo de vida
global de uma sociedade, como a experiência vivida de qualquer agrupamento humano”.
de vista de dentro.
O trabalho, numa perspectiva etnográfica, possibilita a construção de uma metodologia
que conheça o mundo das crianças a partir da suas falas e olhares. A pesquisa foi
realizada no acompanhamento das crianças em seu cotidiano escolar. Segundo Araújo
(1996, p. 123): “Compreender as relações travadas num determinado contexto social,
sem dúvida, torna-se uma tarefa desafiadora para o pesquisador, principalmente
quando o campo investigado sinaliza vários caminhos a serem percorridos”. Sendo
assim, o desafio da pesquisa é conseguir decifrar as realidades heterogêneas no
cotidiano
escolar
onde
acontecem
cenas
simultâneas. Assim,
entender
as
especificidades do cotidiano escolar, em uma investigação de cunho etnográfico, é
desvendar, como nos sugere André (2006), as quatro dimensões inter-relacionadas:
subjetiva abrange a história de cada sujeito; institucional focaliza os aspectos da prática
escolar; instrucional focaliza as situações de ensino; e a sociopolítica que se refere ao
contexto sociopolítico e cultural amplo.
Implica, também, entender o espaço social que a escola ocupa e que a(o)
pesquisadora(o) estabelece, tornando o movimento de aproximação e distanciamento
do campo a ser investigado um método para melhor apreensão dos significados
evidenciados no dinamismo próprio do universo escolar. E, assim, analisar e refletir
também sobre o momento histórico, concepções e valores presentes no espaço
pesquisado. No dizer de Corsaro (2005, p. 443), “Fazer pesquisa etnográfica com
crianças pequenas envolve certos desafios, uma vez que os adultos são percebidos
pelas crianças como poderosos e controladores de suas vidas”.
A pesquisa com crianças tem sido um grande desafio para os pesquisadores em
virtude da dificuldade em reconhecê-las como legítimo objeto de estudo. Nesse
sentido, é relevante que o trabalho seja pensado em bases teóricas e que a criança
seja reconhecida como protagonista viva da história, e produtora de cultura. Kramer
(2005, p. 45) considera que: “No caso da pesquisa com crianças se coloca como
fundamental ouvir, os ditos e os não ditos; escutar os silêncios”, a criança com a sua
alteridade, na sua condição social de ser histórico, criativo que interage com a história
do seu tempo que vai experienciando, modificando e é modificado por ela. Sintetizando
as suas contribuições em relação à pesquisa com crianças, Kramer (2005, p. 55),
evidencia que é “[...] fundamental analisar os discursos as interlocuções tanto nas
entrevistas quanto em outras situações de interação (observação de brincadeiras,
conversas, diálogos entre crianças e adultos, experiências culturais no cotidiano)”.
A autora (KRAMER, 2005) ainda sugere que é imprescindível ressaltar, no texto da
pesquisa, o lugar social do pesquisador (posição de onde fala e escuta), os referenciais
teóricos que disciplinam seu olhar, as marcações de idade, gênero, classe social, etnia,
as interações, falas ações, diálogos, movimentos; o(s) gênero(s) discursivo(s)
produzido(s), os modos de produção. Também André (2006, p. 15) socializa suas
reflexões acerca da pesquisa etnográfica, no cotidiano escolar, com seus desafios,
movimentos e processos, afirmando:
A pesquisa do tipo etnográfica permite documentar o não documentado, isto é,
desvelar os encontros e desencontros que permeiam o dia-a-dia da prática
escolar, descrever as ações e representações dos seus atores sociais,
reconstruir sua linguagem, suas formas de comunicação e os significados que
são criados e recriados no cotidiano do seu fazer pedagógico
Assim sendo, a mesma autora (2006) evidencia a importância da pesquisa no cotidiano
escolar, pois, por meio dela, a(o) pesquisadora(o) irá perceber e revelar a realidade, as
relações sociais do dia a dia escolar pela observação, escuta, apoiado no referencial
teórico que lhe proporcione compreender as interações, rotinas e relações sociais que
caracterizam o cotidiano escolar.7 Para ilustrar melhor, a fotografia tem sido muito
utilizada na pesquisa com crianças. Solicitei autorização das famílias e das crianças
com o objetivo de esclarecer a intenção e a importância da fotografia como recurso
metodológico para apreender as dinâmicas e ações no espaço escolar. Kramer (2002)
faz uma reflexão sobre o uso da fotografia como metodologia de pesquisa qualitativa e
expõe suas preocupações quanto ao uso de imagens em pesquisas com crianças. A
autora esclarece:
[...] a fotografia é um constante convite à releitura, a uma forma diversa de
ordenar o texto imagético. Pode ser olhada muitas vezes, em diferentes ordens
e momentos, pode ter outras interpretações: ela é sempre uma outra foto ali
presente, pois uma foto se transforma cada vez que é contemplada, revive a
cada olhar (KRAMER, 2002, p. 52).
7
Nos estudos de André (2006), ela explicita que a importância de estudos sobre o cotidiano escolar
surgiu na década de 80 com o crescimento dos estudos denominados qualitativos, porém, na década
de 90, Mirian Warde (1992) aponta como uma forte evidência nas pesquisas educacionais o interesse
pelas questões evidenciadas no cotidiano escolar.
Talvez um dos maiores desafios durante a pesquisa com crianças seja compreender e
alargar o olhar para as relações estabelecidas nos espaços-tempos por elas ocupados,
identificando as negociações, tensões e resistências que se desenvolvem nas
interações cotidianas. A fotografia é um excelente recurso para apreender esses
processos de construção e desconstrução que vão surgindo de forma mutante entre as
crianças e seus pares. A observação, a fotografia e a escuta das vozes infantis, nas
relações estabelecidas cotidianamente, trará informações do universo infantil de como
as crianças interpretam e leem o mundo na constituição das culturas infantis.
1.4 POR QUE PESQUISAR O COTIDIANO ESCOLAR?
A minha intenção, ao pesquisar o cotidiano escolar, utilizando a pesquisa numa
perspectiva etnográfica, não foi só produzir dados e sim compreender como as
crianças manifestam a relação de gênero no espaço e no tempo escolar (na sala de
aula, na hora do lanche, no recreio, na entrada e na saída) procurando identificar em
que medida o poder se torna uma categoria presente nas relações de gênero entre as
crianças, que se configuram em suas experiências, entendendo a criança como ser
histórico, participativo, inserido num tempo e num espaço, que é determinado pelo
momento histórico vivido.
Nessa perspectiva, compreender os discursos “politicamente corretos” de respeito às
diferenças de raça, idade, sexo, classe social e orientação sexual, instigou-me a
alargar o olhar, no cotidiano escolar, entendendo que as crianças possam exercer seus
direitos e deveres com igualdade de oportunidade, pois elas são autoras e produtoras
da cultura que transforma esse espaço ocupado por elas na sua vida cotidiana, que
perpassa ações, interações, rotinas e relações sociais. As relações sociais
estabelecidas na instituição escolar, no seu dia a dia, são dinâmicas e carregadas de
valores que circulam nas falas de todos que compõem seu universo. Desse modo, a
importância de ouvir os discursos que circulam na escola é que vai revelar se as
práticas utilizadas na instituição estão reproduzindo a estrutura de poder e dominação
presente em nossa sociedade. Interessei-me, portanto, em analisar em que medida as
relações de gênero se evidenciam como uma relação de poder entre as crianças nos
diversos tempos e espaços por elas vivenciados.
Segundo André (2006, p. 13):
Estudos voltados ao cotidiano escolar são fundamentais para se compreender
como a escola desempenha o seu papel socializador, na veiculação seja dos
conteúdos curriculares, seja das crenças e dos valores que perpassam as
ações, interações, rotinas e relações sociais que caracterizam o cotidiano
escolar.
E nesse movimento de tensões das relações socais no cotidiano escolar que a (o)
pesquisadora(o) vai compreendendo os valores e significados dos mecanismos de
poder exercidos nesse espaço, evidenciados pelas crianças na rotina institucional.
1.5 CONHECENDO A INSTITUIÇÃO PESQUISADA
Foto 1 – O CMEI pesquisado
O Centro Municipal de Educação Infantil “Semeando a Vida” (Foto 1) funciona em dois
turnos, com capacidade de atendimento a 523 alunas(os), divididos em 12 salas de
aula em cada turno. A área total do estabelecimento é de 1824m e 1471m de área
construída, as salas de aula contam com metragens que variam entre 40,5m a 44,2m
com capacidade de atender 25 alunos. O estabelecimento conta com salas distribuídas
em dois pavimentos: uma sala de direção, uma sala das pedagogas, uma sala de
professores, uma secretaria escolar, um solário (espaço anexo as salas), uma sala de
vídeo, um lactário, uma biblioteca, uma cozinha, dois refeitórios, uma lavanderia, um
pátio coberto, dois pátios descobertos, um depósito para alimentos, dois banheiros de
meninas, dois banheiros de meninos, um banheiro misto para as crianças, uma guarita
para vigia e três depósitos de materiais didáticos. 8
Em março de 1988, após um movimento popular da comunidade do bairro do Romão
foi entregue a unidade de pré-escola. Esse local era considerado, por algumas pessoas
da comunidade, como inadequado para instalação de uma unidade de pré-escola em
virtude da existência de pedras que poderiam rolar do morro, porém com o movimento
liderado por Dona Carmosina, Seu Pernambuco e Dona Neuza Silva Castro, a
comunidade conseguiu conquistar esse espaço para atender às crianças do bairro.
Inicialmente houve muitas dificuldades para a implantação da unidade. Em virtude de
ser considerado um lugar perigoso, ninguém quis assumir a coordenação. Foi feito um
trabalho de conscientização com as famílias para que matriculassem seus filhos na
unidade do Romão, pois havia uma resistência por parte das famílias, por tratar-se de
um local inseguro.
A instituição começou a funcionar de forma muito precária, sem funcionários e sem
qualquer material pedagógico, em um terreno cedido pela Escola Municipal de Ensino
Fundamental “Irmã Jacinta”, da rede estadual. Segundo consta no Projeto PolíticoPedagógico do atual CMEI Semeando a Vida, a situação era tão precária que a
coordenadora levava as roupas utilizadas para serem lavadas em sua residência. O
número de crianças atendidas na época era de 80, com 20 crianças em cada sala. A
faixa etária assistida era de três a seis anos. O trabalho árduo do início foi se
frutificando e, em pouco tempo, a unidade já contava com uma lista de espera para
atender às crianças da comunidade.
Com a elaboração do Projeto Político-Pedagógico, foi feito um diagnóstico da
comunidade escolar que acolhe a diversos bairros que se localizam em seu entorno,
como: Romão, Ilha de Santa Maria, Cruzamento, Forte de São João, Centro,
Jucutuquara e Bento Ferreira. O diagnóstico objetivava fazer uma caracterização
socioeconômica e cultural da comunidade atendida pela instituição.
A proposta pedagógica do CMEI Semeando a Vida está amparada nos pressupostos
teóricos de Vygostsk, Bakthin, Kramer, Sarmento, Pinto, Freinet e Wallon. Consta, no
8
As informações dos itens “Contextualização da instituição pesquisada” e “Conhecendo a instituição
pesquisada” foram retiradas do Projeto Político-Pedagógico da instituição pesquisada.
Projeto Político-Pedagógico, que o compromisso assumido por uma educação de
qualidade objetiva melhorar o trabalho pedagógico, priorizando a criança em sua
história, cultura, pensar e agir. A função do educador evidenciada no documento que
norteia os objetivos a serem alcançados na instituição se traduz em: um educador(a)
comprometido(a), mobilizador(a), reflexivo(a), facilitador(a) e mediador(a) acerca da
educação de criança, infância e das culturas infantis. A criança é considerada como um
ser histórico, ator social e produtor de cultura que constrói e reconstrói as suas
experiências e conhecimentos. A inclusão social é uma meta a ser alcançada com o
objetivo de garantir o desenvolvimento humano, social, político e cultural, com vistas à
construção, de fato, de uma sociedade mais justa e igualitária.
1.6 QUEM SÃO AS CRIANÇAS?
A turma constituía-se de crianças bastante ativas, que vivem e tecem a sua história.
Havia uma convivência intensa das relações estabelecidas que se traduziam em
conversas, brigas, gestos, medos e conflitos por brinquedos, até sentar-se na cadeira
já ocupada. Geralmente essas ações eram mediadas pela professora. Fui observando
que a criança, ao estabelecer essas trocas, vai internalizando e experimentando no
espaço escolar as relações sociais quando ela percebe que pode escolher e ser
escolhida. Havia um grupo de meninas Júlia, Maria Clara, Indiomara e Patrícia que
sempre se sentavam juntas e exerciam certo poder entre as outras crianças. Os
meninos Brondim, Thiago, Marcelo, Felipe Massa e Roter também se agrupavam por
afinidades. Outro grupo era formado pelos meninos Jelique, Albes e Gabriel. Há ainda
meninas e meninos sentados juntos: Thais, Yasmin e Tiago. Existia um movimento
também de se agrupar meninas e meninos. No grupo dos meninos, sempre “João
Pedro” sentava junto e participava das atividades em companhia deles, não só na sala
de aula como também no pátio, brincando de bola, pique-esconde, carregando os
meninos numa prancha de plástico, enfim ela participava ativamente das brincadeiras
propostas pelos meninos e também, caso precisasse, ela os enfrentava nas “lutinhas”
para obter um brinquedo ou defender um colega.
Observei que as crianças
comentavam sobre o comportamento de “João Pedro”, afirmando, muitas vezes que ela
parecia um homem. Um dia, a professora se aproximou de mim e perguntou: Você já
notou que a “João Pedro” só fica com os meninos? Nessa fala da professora, pude
notar que os processos socioculturais no interior da escola que envolvem relações de
gênero que foram historicamente construídos ainda permanecem delimitando os
lugares a serem ocupadas pelas meninas e meninos e que o “natural” seria a menina
ficar e se sentar com as meninas, porém “João Pedro” burlava os padrões impostos
pelo mundo social, assumindo ficar na companhia dos meninos.
1.7 COMO AS CRIANÇAS SE SITUAM NO ESPAÇO ESCOLAR?
A escola é um lugar que se torna um espaço de possibilidade de criação de laços
afetivos, que se materializam pela utilização dos seus praticantes. Assim, docentes e
discentes dão vida e fazem desse lugar um espaço de vivência e convivência. Que
espaços são utilizados pelas crianças, como elas circulam, como os utilizam, o que
fazem sozinhas, com outras crianças e com adultos? A sala de aula, os corredores, o
pátio, o refeitório, o banheiro são espaços onde as crianças constroem seus cotidianos
escolares. São nesses locais que se pode perceber como estabelecem relações de
gênero, de poder, suas artes de ser-fazer e os modos como se organizam e negociam
dando sentido a cada espaço ocupado.
No primeiro dia em que fui à sala de aula iniciar a pesquisa, observei as formas de
organização do espaço, as regras estabelecidas, as relações entre as crianças e a
professora. A cada dia ia me inteirando dos movimentos, das manifestações, das
relações de gênero, da autonomia que ali acontecia, no exercício de aproximação e
distanciamento necessário ao lugar de quem está pesquisando. Aos poucos, fui
percebendo as relações entre as crianças que muitas vezes eram afetuosas e, em
outros momentos, conflituosas, o que produzia um movimento intenso dentro da sala
de aula, apesar da organização estabelecida pela professora nesse espaço. Observo
que, em duas mesas, estão sentados meninas com meninos, porém, nas outras duas,
são: uma só de meninas e a outra de só de meninos. Fico me perguntando como esse
espaço é constituído. Será que as crianças se sentam livremente? Percebo que as
meninas e os meninos disputam lugar.
Nesse primeiro dia de observação, na sucessão dos acontecimentos, quando as
crianças foram se deslocar para o jantar, observei que a fila foi formada
separadamente: uma fila de meninas e outra de meninos. No entanto, a professora
pediu que fosse por ordem decrescente. Foi possível perceber que essa prática é
instituída na escola sem que as crianças sejam ouvidas sobre tal critério de formação
em fila. Louro (1997) esclarece que a escola delimita espaços, separa e institui o que
cada um pode fazer, informa o lugar dos pequenos e dos grandes, dos meninos e das
meninas. As crianças lidam com esses critérios de organização, quase sempre, sem
questionar. No entanto, algumas crianças resistem, quando entram em conflito com
colegas, por um lugar na fila (na frente, obviamente). Bujes (2002) em seus estudos,
afirma que é por meio das práticas escolares que se torna fácil identificar como o poder
atravessa o corpo infantil, instituindo lugares previsíveis que tentam moldar, controlar e
domesticar os corpos das meninas e dos meninos. Percebi que essa prática indicava a
naturalização da fila separada no cotidiano da sala. No refeitório, as crianças se
sentaram juntas, meninas ao lado dos meninos. Porém, observei que há sempre uma
disputa de lugar. As crianças procuram se sentar perto daquelas com quem
frequentemente se sentam na sala e conversam sobre diversos assuntos. Quando
acabam de lanchar, levam os copos até a bancada da cozinha e correm para formar a
fila e disputar o lugar na frente.
Na volta do refeitório para a sala, um menino se aproxima da professora e pergunta se
a fila é dos maiores para os menores e ela responde que é de quem chegar primeiro. O
menino sai correndo para ser o primeiro da fila. Observei que a professora, nesse
momento, não delimita a forma da fila, porém a fila permanece separada: meninas de
um lado e meninos do outro. Louro (1998) afirma que o poder disciplinar se constitui
por meio das práticas instituídas no cotidiano do universo escolar. Vou percebendo que
a fila separada já se tornou naturalizada nos diversos momentos da rotina da escola:
sair para o lanche, para o jantar, para aula de Educação Física etc.
Continuando a minha pesquisa em campo, ao chegar na sala do Pré, percebi que a
organização da sala estava diferente. Algumas crianças estavam em outras
companhias. A professora separou “João Pedro” dos meninos e colocou Indiomara com
meninos. O grupo mudou bastante em relação aos agrupamentos das crianças. A
professora se aproxima e comenta comigo que resolveu mudar alguns grupinhos.
A professora, nesse momento, deixa claro que é ela que organiza o espaço. Ela pode
“usurpar” o direito da criança em escolher o seu lugar e, mediante a lógica da escola,
delimita os espaços e separa as meninas e meninos (LOURO,1997). O que dá para
perceber, na atitude da professora, é que a tolerância e o reconhecimento dos lugares
a serem ocupados pelas crianças no cotidiano escolar dependem das transgressões e
das inventividades que são criadas nas suas relações com seus pares.
1.8 O COTIDIANO DAS CRIANÇAS
A entrada na sala acontecia às 13h. A professora esperava, na porta da sala, as
crianças e seus familiares. As crianças entravam na sala e colocavam as mochilas
penduradas e iam sentar-se nas mesas, geralmente agrupando-se com as(os) colegas
com quem mais se identificavam e ficavam conversando. Após o término da entrada, a
professora chamava as crianças para se sentarem na rodinha. Aí acontecia uma
oração, uma história era lida e também ocorriam conversas variadas. Tal rotina é
justificada em função de que era preciso esperar a hora de as crianças receberem o
primeiro lanche, por volta das 13h30min. Geralmente, era servido um achocolatado,
bolo, suco, biscoito e frutas. Observei que a professora na entrada, frequentemente,
conta história, canta e conversa com as crianças sentadas na rodinha. Após esse
momento, ela solicita que as crianças se sentem. Há um grupo de meninas que estão
sempre juntas: Júlia, Patrícia, Maria Clara e Indiomara. Os meninos também se
agrupam: Marcelo, Brondim, Thiago, Felipe Massa e “João Pedro”. É importante
ressaltar que “João Pedro” não era rejeitada no grupo dos meninos. Mas, também,
observei que ela não era escolhida pelas meninas para participar de brincadeiras tidas
como de “menina”(desfilar, brincar de panelinha e dançar). Percebi que “João Pedro”
algumas vezes se sentava na companhia de meninas que também eram rejeitadas em
algumas brincadeiras, por serem negras e mestiças. Quando indaguei por que não
chamavam as outras meninas para sentarem juntas, uma menina respondeu: Elas não
conversam, são caladas; em uma atitude que revela claramente o preconceito e
discriminação. Observo que os subgrupos são formados por afinidade e, muitas vezes,
são subgrupos bastante fechados, só de meninas e só de meninos. Essas
composições feitas pelas crianças revelam que o olhar da professora em relação a
esses arranjos é de absoluta neutralidade, normalmente sem nenhuma interferência,
talvez por não perceber o conflito que ali se delineava. Pesquisar, a partir do cotidiano,
contribui para que as interações vividas nesse espaço sejam compreendidas. Elas vão
se ampliando a partir da metodologia utilizada nas imprevisibilidades que acontecem no
dia a dia da educação infantil.
A sala (Foto 2) é composta por cinco mesas hexagonais coloridas, estantes em que
são guardados os brinquedos (bonecas, jogos de encaixe, panelinhas, livros etc.) um
armário para a professora guardar seus pertences e o material didático que é usado
com as crianças (as atividades, lápis de cor, chamex, tesoura, cola, etc).
Foto 2 - A sala de aula
As crianças são curiosas e atentas a tudo que acontece no interior da sala de aula. Nos
primeiros dias, fiquei observando sentada em um canto e percebia que elas tinham
curiosidade em saber o que eu estava fazendo ali. De vez em quando, olhavam em
minha direção, quando, finalmente, algumas crianças se aproximavam e perguntaram:
“Você está estudando ou escrevendo sobre a gente?” (MARCELO); “Você está
escrevendo meu nome?” (FELIPE MASSA); “Você está escrevendo sobre a gente? O
que você escreveu? (JÚLIA)
Algumas crianças ficavam curiosas para saber o que eu escrevia no diário de campo.
Demonstravam interesses semelhantes em relação ao que eu estava registrando.
Explico que são algumas observações do movimento da sala. Duas meninas, Júlia e
Maria Clara, se aproximam e pedem meu telefone. Fui percebendo que, aos poucos,
eu ia me inteirando do espaço a ser pesquisado por meio do diálogo estabelecido com
as crianças e observando os diferentes fenômenos sociais e culturais que ali
aconteciam.
2 O QUE É GÊNERO?
A questão de gênero, hoje, é um tema de debate extremamente relevante, pois,
quando falamos de gênero, estamos considerando a dimensão sócio-histórica e cultural
da relação da mulher e do homem nas manifestações de poder entre eles. Os estudos
de Saffioti (2007) indicam que o primeiro teórico a falar sobre o conceito de gênero foi
Robert Stoller, em 1968. Entretanto, o conceito de Stoller não teve o devido
reconhecimento na época. Quem trouxe uma nova reflexão a respeito de gênero foi
Gayle Robert, em1975, com o artigo “Mulher” que apontava uma nova perspectiva nos
estudos sobre gênero. Saffioti (2007) traz uma importante contribuição, quando
explicita que, embora não tenha elaborado o conceito de gênero, Simone de Beauvoir,
em sua famosa frase: “Ninguém nasce mulher, mas se torna mulher”, negando o
essencialismo biológico, traz os fundamentos do conceito de gênero. Segundo Saffiotti,
a escritora francesa foi a precursora do conceito de gênero.
Nesse sentido, o conceito de gênero emergiu a partir de movimentos sociais feministas
– que objetivavam refletir sobre a complexidade dos processos de interação do sujeito
com a organização social, da relação entre os sexos, em um determinado contexto
sócio-histórico e sobre seus efeitos influenciam nas relações sociais e institucionais. No
Brasil, no final dos anos 1980, um artigo de Joan Scott propõe uma mudança de
reflexão entre as formas de interação humana que se processam no âmbito da cultura.
A feminista inglesa Joan Scott em 1980, conceituou gênero como categoria de análise,
numa tentativa de se livrar do determinismo biológico presente nos termos sexo e
diferença sexual, que determinavam como categorias fixas, a fêmea e o macho,
introduzindo uma ênfase no contexto sócio-histórico que influencia nas relações
sociais. Sobre essa questão, Scott (1995, p. 86) afirma:
O gênero pode ser compreendido como um elemento constitutivo de relações
sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos e como um
primeiro modo de dar significado às relações de poder ou ainda gênero é um
campo primário no interior do qual ou por meio do qual o poder é articulado.
O conceito de gênero, na visão de Scott (1995), provoca-nos pensar na desigualdade
política e social entre mulheres e homens, como uma construção cultural que vem
sendo elaborada ao longo dos séculos, como uma máquina de produzir desigualdade
dos papéis masculinos e femininos. Como o gênero é uma construção social e cultural,
é possível desconstruir essas diferenças e desigualdades produzidas nas diferentes
sociedades. A mulher, em sua caminhada histórica, é inegavelmente vítima de
opressão e da desigualdade social. A exclusão que atinge a mulher se dá pelas vias do
trabalho, da classe, da cultura, da etnia, da idade, da raça e do gênero. Nesse sentido,
Konder (1986, p. 9) evidencia:
[...] os preconceitos contra as mulheres vêm de longe; e circulam nos mais
diversos níveis da ideologia dominante. Estão confortavelmente instalados nos
provérbios populares, na moral tradicional, em antigos costumes, na letra dos
sambas; mas também passeiam com desenvoltura pelas obras dos filósofos e
dos grandes escritores.
Em contrapartida, o movimento de mulheres, e particularmente o feminismo, iniciou-se
questionando a desigualdade e discriminação de gênero, invisível pela própria história
da humanidade. Silva (2007, p. 91) esclarece: “O feminismo vinha mostrando, com
força cada vez maior, que as linhas de poder da sociedade estão estruturadas não
apenas no capitalismo, mas também pelo patriarcado”. Assim, o movimento feminista
ajudou a revelar como se processaram as desigualdades historicamente construídas,
dividindo homens e mulheres. 9
Logo, gênero deve ser entendido como um conjunto de características históricas,
sociais e culturais que diferenciam mulheres e homens, determinadas pelas relações
humanas, considerando como essas relações são interpretadas e representadas
socialmente. Conceito este que evidenciou a opressão vivida pelas mulheres e levou as
feministas a tentarem explicar as diferenças culturais e sociais entre mulheres e
homens. Assim explica Alvarez (apud CAMACHO, 1997, p. 14):
Gênero tem sido o conceito mais utilizado para analisar as relações entre a
9
No Brasil o movimento feminista inicia-se com a luta pelo voto feminino como o primeiro passo a ser
alcançado. Nesse sentido, as mulheres brasileiras ao reivindicarem o direito ao voto, a igualdade de
salário, a proteção contra os abusos no ambiente de trabalho, contribuíram enormemente para as
discussões das questões sociais das questões da mulher em frente à opressão e desigualdades
vividas por elas ao longo da história. Os anos 60, 70 e 80 foram uma época muita rica no
desenvolvimento do movimento feminista e da sociedade civil. Os movimentos sociais se
organizaram, os sindicatos se fortaleceram e as aspirações por uma sociedade mais justa e igualitária
ganharam forma na reivindicação de direitos, deixando suas marcas no cenário político nacional. É
pelo ingresso da mulher no mercado de trabalho e do movimento feminista que surgem as primeiras
vozes em relação ao direito de que seus filhos sejam amparados pelo Poder Público, em relação ao
direito à creche e pré-escolas.
subordinação das mulheres e as transformações sociais e políticas. Gênero
denota o significado político, social e histórico, referido a um determinado sexo.
Alguém nasce macho ou fêmea; alguém é 'feito' homem ou mulher. E o
processo de 'fazer' homem ou mulher é histórica e culturalmente variável,
podendo, portanto, ser potencialmente alterado através da luta política e das
políticas públicas. Entretanto, a maneira como interesses de gênero são
definidos e articulados no interior das instituições políticas dá pistas para o
entendimento das relações entre 'mulher' e 'política'.
O estudo de gênero implica, necessariamente, a importância de se examinar o lugar
ocupado pelas mulheres e pelos homens, pelas meninas e pelos meninos, em
diferentes campos teóricos, pois a sociedade trata desigualmente esses sujeitos,
atribuindo e constituindo processos de hierarquização conforme as posições que
ocupem ou ousem ocupar, que são interpretadas segundo as construções de gênero
que diversas sociedades vão determinando e que vão se tornando “naturais” nos
discursos da família, da escola, da mídia e das demais instituições que elegem e
atribuem significados, símbolos e diferenças entre a mulher (feminilidade) e o homem
(masculinidade).
Segundo Louro (1997), a partir do conceito de gênero, com o seu caráter relacional, é
relevante que se pense de forma plural em relação à mulher e ao homem e que as
concepções de gênero diferem no interior de uma dada sociedade, quando se levam
em conta os diversos grupos (étnicos, religiosos, raciais, de classe) que a constituem e
que vão sendo estabelecidos nas relações sociais. Portanto, significa dizer que gênero
é aquilo que é socialmente construído ao longo da história humana. Nos últimos anos,
pesquisas vêm sendo elaboradas e tem nos ajudado a compreender a construção de
gênero na infância, como os trabalhos de Felipe (2000, 2004), Meyer (2004), Camargo
(1999), Sabat (2004), Costa (2004), Finco (2003), Sayão (2003), Aud (2003) e Louro
(1999).
2.1 AS RELAÇÕES DE GÊNERO NA ESCOLA
Super-homem (a canção)
Um dia, vivi a ilusão
De que ser homem bastaria,
Que o mundo masculino
Tudo me daria,
Do que eu quisesse ser,
Que nada, minha porção mulher,
Que até então se resguardara,
È a porção melhor
Que trago em mim agora,
É a que me faz viver [...]
(GILBERTO GIL)
As palavras de Gil provocam-me a pensar nos discursos construídos em relação ao
homem e à mulher e que me trazem a possibilidade de discutir a (des)construção de
algo que, por muito tempo, foi produzido e que pode ser pensado com outro olhar em
relação à desigualdade e discriminação entre mulheres e homens. Que discursos foram
esses que persistem e ainda são utilizados nos diversos espaços sociais ocupados,
como escola, família, igreja, mídia etc.?
A escola é um local onde as relações de gênero estão presentes inevitavelmente e que
as relações de poder perpassam o seu cotidiano. Gênero deve ser entendido como um
conjunto de características históricas, sociais e culturais, determinadas pelas relações
humanas, que diferenciam homens e mulheres e que denotam relação de
hierarquização e dominação de um sobre o outro. Os estudos de Beauvoir (1949),
Stoller (1968), Scott (1975), Louro (1997), Felipe (2000, 2002), Finco (2007), Saffioti
(2007), Sayão (2003) e Viana (2008) têm contribuindo para aprofundar a necessidade
de desfazer a superioridade masculina sobre a feminina, destacando a importância da
igualdade de oportunidades entre homens e mulheres. Desse modo, os espaços
ocupados pelas meninas e meninos na educação infantil, sem dúvida, deveriam
garantir a importância de igualdade e oportunidade para elas e para eles. Segundo
Viana (2008, p. 14),
A urgência de se trabalhar as representações culturais que circulam na escola
tem a ver com o reconhecimento de sua responsabilidade pela produção e
reprodução de referências e conhecimentos que reiteram discursos que
justificam as desigualdades, seja por meio do preconceito ou do silêncio.
Assim, para pesquisar a relação de gênero, é necessário um olhar crítico em relação às
desigualdades, aos arranjos sociais, aos símbolos culturalmente disponíveis sobre o
processo de socialização das crianças e suas subjetividades. Faria (2006) enfatiza que
a superação da desigualdade com certeza passa pela educação desde a primeiríssima
infância, em espaços coletivos na esfera pública, convivendo com as diferenças.
Destarte, as pesquisas na educação infantil têm a responsabilidade de tornar visível o
lugar da infância na construção da realidade social. 10
Dubet (2008) destaca a importância das interações face a face e dos vínculos afetivos
estabelecidos com os alunos, a maneira como as(os) professoras(es) percebem as
crianças, observando do que elas gostam, o que elas desejam, enfim, ouvindo as
demandas que estão presentes no cotidiano. A importância de se estabelecer
discussões e estudos acerca dos conceitos de gênero, corpo e sexualidade na
formação docente torna-se relevante para que as relações estabelecidas no âmbito
escolar proporcionem às
crianças atividades e experiências
interativas
que
desconstruam posturas, estereótipos, preconceitos, discriminações por sexo e gênero,
proporcionando-lhes, assim, a oportunidade de conquistar muitos espaços sociais que
ainda hoje lhes são negados.
Para Dubet (2008, p. 14), é importante refletir sobre o modelo educativo escolar, sobre
o lugar que ele atribui às alunas e aos alunos explicitando: “Devemos, portanto, buscar
ao mesmo tempo a igualdade das oportunidades na escola e desconfiar de suas
conseqüências, pois ela, por sua vez, pode desenvolver grandes desigualdades
sociais”. A escola, entre outros espaços (família, religião, mídia, cinema, livros etc.),
contém elementos de reprodução e legitimação de estruturas impostas por forças
ideológicas que vão se constituindo por meio das relações sociais e das influências
culturais que atravessam o dia a dia escolar.
10
A pesquisa publicada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio TeixeiraINEP (2001) explicita a presença dominante de mulheres na educação infantil, em torno de 98,1%.
Essa questão merece atenção por tratar-se de um lugar social que lida com a construção,
desconstrução, discriminação, desigualdade e do preconceito. É, portanto, de vital importância o
entendimento do conceito de gênero por parte das mulheres que trabalham na pré-escola.
A escola, as(os) professoras(es) não podem ser meros transmissores de informação e
sim produtores de culturas que promovam um olhar crítico aos discursos dominantes,
em relação às desigualdades sociais. Torna-se relevante, no contexto escolar,
desconstruir essa hierarquia de valores identificada com o masculino que, muitas
vezes, desvaloriza as funções e capacidades femininas, concordando com Alvarenga
(2007, p. 44), quando afirma que
[...] a reflexão sobre as relações de gênero na escola requer, sobretudo, uma
análise de como a educação escolar pode constituir-se em um instrumento de
legitimação ou contestação da discriminação de gênero. À medida que a escola
se abre para discutir e debater as questões relativas à discriminação da mulher
e se coloca em posição de resistência a qualquer forma de opressão, estará
não apenas contribuindo para a formação emancipadora das pessoas
envolvidas nesses processos, mas também ajudando a soltar antigas amarras
estruturais e/ou sociais que mantêm a opressão sexista.
Para o entendimento da complexidade do mundo das relações sociais e da infância, é
relevante que a escola parta da ideia da infância como uma construção cultural e,
nessa perspectiva, a infância deve se reconhecida em sua heterogeneidade, buscando
superar a visão homogênea de infância. A infância hoje é vivida pelas crianças na
diversidade dos grupos sociais em seus diversos meios: é a criança amparada que tem
os seus direitos assegurados, porém a criança que vive nas ruas com sofrimento e
desprezo pelos órgãos públicos e sua família, mesmo nessa condição adversa essa
criança não deixa de viver sua infância, sonhando, brincando e desejando. Nesse
sentido, ela não está deixando de ser criança e sim procurando novas formas de viver
sua infância com todas as distinções de pertencer a diferentes classes sociais,
diferentes espaços geográficos, com culturas distintas que originam um jeito de ser
menina e ser menino. Segundo Sarmento (2007, p. 38) “[...] as crianças são o grupo
geracional mais afectado pela pobreza pelas desigualdades sociais e pelas carências
das políticas públicas”.
Durante a pesquisa em campo, percebi que, muitas vezes, as crianças, resistem a essa
ordem social estabelecida recriando situações de sobrevivência a esse mundo desigual
e excludente, com brincadeiras que (re)significam as informações do mundo adulto e,
junto aos seus pares, produzem culturas que vão imprimindo marcas em suas
infâncias.
O que pretendo destacar nessa afirmação é que as investigações e pesquisas que
tomam as crianças como foco principal de análise deveriam, de fato, ter o objetivo de
(re)conhecê-las, oferecendo possibilidades para que elas possam ocupar esses
espaços sociais que lhes são negados.
Segundo Finco (2007, p. 91), há, ainda, uma carência de pesquisas que relacionem
gênero e infância no que se refere à faixa etária de zero a seis anos, o que se traduz
na dificuldade de bibliografia em relação ao tema. De acordo com a autora, as relações
de gênero estabelecidas pelas crianças, na mais tenra idade, vêm sendo pouco
exploradas nas pesquisas educacionais. 11
Felipe (2000) também nos alerta para a escassez de estudos que tentam dar conta da
construção de identidades de gênero e identidades sexuais na infância. Por essas
razões, discutir algumas práticas históricas, no âmbito da educação infantil, trará uma
interlocução com diversos campos de estudos, que alargará a visão da categoria
gênero em relação ao ser menina e ao ser menino na sua dimensão cultural e social na
instituição escolar. Partindo dessa perspectiva, busquei observar o que as crianças
expressam e fazem quando estão entre elas num ambiente coletivo, que pode ser
constituído por meninas com meninas ou meninos com meninos. Na afirmação de
Costa (apud SAYÃO, 2003, p. 82):
Enfatizar o caráter relacional do gênero é dizer que os estudos sobre sujeitos
concretos (homens e mulheres/homens ou mulheres) devem considerar as
percepções sobre masculino e feminino como dependentes, ao mesmo tempo
que constitutivas das relações sociais. É dizer também que gênero possibilita
estudar as categorizações cujos referentes falam de distinção sexual, mesmo
onde os sujeitos não estão presentes.
O papel da educação é desestabilizar representações hegemônicas e compreender
como significativas transformações vêm acontecendo em relação aos conceitos de
gênero e ao lugar da criança no contexto sócio-histórico e cultural.
Assim, investiguei, na pesquisa em campo, as manifestações corporais das crianças,
11
Conferir trabalhos: Arlete Costa. Cenas de meninas e meninos no cotidiano institucional da
educação infantil: um estudo sobre as relações de gênero. UFSC. Carlos Castilho Wolff. Como é
ser menino e menina na escola: um estudo de caso sobre as relações de gênero no espaço. UFSC,
2006. Márcia Buss Simão. Infância, corpo e educação na produção científica brasileira (19972003). UFSC, 2007. Deborah Thomé Sayão. Pequenos homens, pequenas mulheres? Algumas
questões para pensar as relações entre gênero e infância. UFSC, 2003. Daniela Finco. Relações de
gênero nas brincadeiras de meninos e meninas na educação infantil. UNICAMP, 2003. Márcia
Gobbi. Lápis vermelho é de mulherzinha: desenho infantil, relações de gênero e educação
infantil.UNICAMP, 1997.
bem como as relações de gênero no espaço e tempo escolar, observando quais são os
possíveis reflexos dessa experiência nas suas relações cotidianas.
É relevante compreender como as crianças incorporam, produzem e reproduzem, em
suas relações, modos de ser menina e ser menino que trazem consequências para a
sua convivência com o grupo. Utilizando o conceito de gênero (SCOOT, 1980) como
um elemento constitutivo das relações entre os sexos e também como uma forma
primária de dar significado às relações de poder, ao iniciar a pesquisa em campo, fiquei
me perguntando: quais são as relações de poder exercidas nesses espaços de
convivência no cotidiano da educação infantil? Qual tem sido o papel dos adultos
acerca dessas questões no cotidiano escolar? Será que as(os) professoras(es)
continuam reproduzindo modos de ser e de se comportar de maneira diferenciada e
desigual para meninas e meninos? Embora essas questões me instiguem e
provoquem, não darei conta de responder a elas e aprofundá-las nesse estudo, mas,
em contrapartida, analisarei algumas situações observadas.
Para aprofundar as discussões das questões de gênero e poder, destaquei minha
escolha pelos conceitos foucaltianos, com a intenção de analisar as diversas práticas e
discursos sobre a sexualidade, corpo, gênero e poder, que emergiam no/do cotidiano
das crianças. A escola tem sido, ao longo da sua existência, o lugar das diferenças
culturais e sociais onde são (re)produzidas diferentes linguagens carregadas de
símbolos e práticas, que sinalizam e inculcam valores, regras e ideologias.
Minha intenção foi analisar os elementos culturais que influenciam as experiências das
crianças no jeito de ser menina e menino no espaço escolar, focando o olhar em
relação às crianças como seres ativos e atores na construção de suas identidades e
subjetividades. Nesse contexto, alerta-nos Louro (1999, p. 27), que “[...] as identidades
são sempre construídas, elas não são dadas ou acabadas num determinado momento
[...]. As identidades estão sempre se constituído, elas são instáveis e, portanto,
passíveis de transformação”.
Durante a pesquisa, analisei, ainda, como as crianças exploram o ambiente, como se
relacionam com seus pares, com os objetos, inventando papéis sociais nas
representações de gênero e (re)significações das práticas no/do cotidiano, por meio
das trocas estabelecidas nas interações, constituindo-se sujeitos e autores das suas
experiências e culturas infantis e, assim, produzindo, criando e modificando os
conhecimentos do mundo adulto, que vão transformando as normas, regras e valores
instituídos e preconizados no jeito de ser menina e ser menino na rotina e organização
escolar. No processo de pesquisa extrai observações e entrevistas que explicitaram
mediações que me permitiram compreender essas especificidades das culturas
infantis.
A criança não apenas absorve a cultura do seu grupo, mas, também, (re)significa,
recria e a transforma. É nessa relação de troca com o outro, que ela atribui significados
e estabelece a capacidade de conhecer e apreender por meio da sua interação na
escola e na família.
A cultura escolar, muitas vezes, tem a pretensão de direcionar o seu olhar como se
todas(os) fossem iguais, sem considerar que aquela criança que aprende, pergunta e
instiga é menina ou menino. A criança precisa vivenciar, nos espaços por ela ocupados,
experiências culturais enriquecedoras que provoquem nela o desejo de ousar, de ser
criativa, habilidosa e ativa, pois é nesse processo dinâmico que ela vai desenvolver a
sua capacidade afetiva, autoestima, raciocínio e linguagem. Nesse sentido, Sarmento
(2002, p. 4) afirma: “A linguagem constitui a base da especificidade das culturas
infantis”.
O universo infantil é socialmente construído tanto pelas crianças como pelos adultos.
Outro fator preponderante na constituição das culturas infantis é a mídia televisiva. Por
meio dela, as crianças compartilham os mesmos desejos, a forma de se vestir, os
brinquedos, enfim, uma série de artefatos culturais promovidos e exibidos diariamente
pela televisão, que propaga os valores de uma sociedade de consumo que tem a
mercadoria como um elemento central. As crianças não estão neutras nesse processo
de globalização, pois a indústria tem produzido maciçamente para o universo infantil,
explorando a fantasia e o desejo das crianças. Araújo (1996, p. 77) afirma: “O
marketing publicitário cria modelos de uma criança feliz, bonita e inteligente utilizando
roupas, brinquedos e objetos como referencial de uma vida plena de felicidades e
realizações”. Desse modo, a mídia difunde costumes e formas de vida de diversos
grupos sociais e cria novas necessidades que sem dúvida darão sustentação à
produção mercadológica que propaga a ideologia da sociedade de consumo.
Dufour (2005, p. 123) traz uma grande contribuição em relação à exposição das
crianças à mídia televisiva quando comenta:
A mais preciosa transmissão geracional do ser humano é o discurso e essa
exposição maciça a imagem televisiva pode causar efeitos irreversíveis [...] o
tempo a mais para televisão é tempo a menos para a família [...] a televisão
efetivamente roubou o lugar educador, dos pais em relação aos filhos [...].
As propagandas sedutoras, novelas e filmes têm estimulado nas crianças o desejo de
cada vez mais cedo experimentar alguns papéis tidos como hegemônicos no mundo
adulto. A escola e a família também definem e prescrevem valores que influenciam no
jeito de ser menina e ser menino desde a mais tenra idade, quando colocam à
disposição livros, brinquedos e brincadeiras diferentes para as meninas e meninos,
esperando atitudes diferenciadas das crianças, no jeito de ser menina e menino. E as
crianças devem aceitar esses rótulos que a sociedade, ao longo da história, vem
procurando moldar: as suas escolhas nas roupas, brinquedos, nas tarefas escolares e
no seu jeito de ser menina e ser menino.
2.2 CAMINHOS PARA PENSAR AS QUESTÕES DE GÊNERO
2.2.1 Por que menino não pode chorar?
“Não chore, você é macho”
(PROFESSORA).
Em nossa sociedade, o comportamento do menino é marcado pela coragem e valentia.
Observei, em uma situação na sala de aula, que dois meninos se aproximam do
armário da professora para colocar os lápis de cor. A porta bate na cabeça de um dos
meninos e ele começa a chorar. Então a professora se aproxima e diz: “Não chore,
você é macho. Sua mãe em casa cruza a faca e não vai inchar!”. Na fala da professora,
fica evidenciado como a masculinidade do menino vai sendo constituída por meio de
práticas educativas “generificadas”. Ao homem não é dado o direito de chorar, pois
socialmente é esperado que o menino tenha um comportamento corajoso, viril, ágil,
diferente da menina que chora, que é tida como emocionalmente frágil e dengosa.
Na pesquisa, observei que há comportamento tido como “natural” para as meninas e
que é condenável para os meninos nomeadamente “machos”, que em nada podem se
parecer com o mundo das meninas. Para exemplificar como essas aprendizagens vão
se solidificando no cotidiano escolar, trago a afirmação de Louro (1997, p. 67) que
analisa como a escola vai “fabricando” o lugar da menina e do menino: “O que fica
evidente, sem dúvida, é que a escola é atravessada pelos gêneros; é impossível
pensar sobre a instituição sem que se lance mão das reflexões sobre as construções
sociais e culturais de masculino e feminino”.
É por meio das regras instituídas que a menina e o menino vão aprendendo os
sentidos e as diferenças em relação à expectativa esperada à sua feminilidade e
masculinidade, ou seja, vão identificando o que é culturalmente apropriado para o
comportamento feminino e masculino. A escola reproduz as concepções de gênero que
circulam na sociedade (LOURO, 1997). Assim, as crianças vão se apropriando de tais
discursos e vão internalizando condutas em relação a determinadas brincadeiras, que
são distintamente evidenciadas para a menina e para o menino. No entanto, pude
perceber, durante a pesquisa, que as crianças tentam romper e (re)significar
comportamentos naturalizados como femininos e masculinos.
2.2.2 Só para provocar...
O menino grita bem alto: “Quem vai querer lápis
rosa?” (BRONDIM).
Brondim grita bem alto: “Quem vai querer lápis rosa?”. As meninas respondem no
sonoro: EU!!!. É importante observar que as preferências por cores, modos de vestir,
brinquedos vão reproduzindo determinados comportamentos que são diferenciados
para as meninas e meninos. Nesses pequenos gestos no cotidiano da educação
infantil, percebe-se a diferença, em relação às escolhas das cores e desejos, que
justificam o lugar da menina e o do menino, as crianças aprendem desde cedo a
reconhecer como a cor rosa é destinada ao universo feminino. Concordo com Finco,
(2007, p. 100), quando afirma ser “[...] possível perceber como os brinquedos são
dispositivos que participam da construção de identidades infantis, produzindo e
reproduzindo determinados comportamentos que demarcam uma fronteira entre os
sexos”. É relevante perceber que há uma construção cultural em relação à cultura
escolar que procura constantemente instituir e normatizar os comportamentos da
menina e do menino. E as crianças aprendem a corresponder às expectativas quanto
às características mais aceitas para o feminino e o masculino.
Logo a seguir, a professora solicita que as crianças guardem o material, pois chegou a
hora do recreio. Ela pede que alguns meninos peguem a caixa com os pinos para levar
ao pátio. Fica evidente que, na atitude da professora, os meninos são mais fortes do
que as meninas, ou seja, ela institui o lugar de os meninos usarem a força para levar a
caixa de brinquedos para o recreio. Observo que as meninas aceitam naturalmente
que os meninos carreguem as caixas com os pinos e correm para a fila. Porém,
percebo que “João Pedro” ajuda os meninos nessa tarefa. A professora interfere diante
da disposição da aluna em ajudar os meninos, dizendo-lhe que havia pedido aos
meninos. Ao chegar ao pátio, as meninas e os meninos disputam quem pega mais
peças, inclusive escolhendo por cor. Tiago fala alto: ”Professora, as meninas estão
pegando mais peças do que nós”. Fica evidente, na fala de Tiago, que as meninas
disputaram o brinquedo e levaram vantagem e ele tem dificuldade em aceitar que as
meninas tenham vantagem, já que, nas práticas culturais, os homens sempre são tidos
como mais fortes e isso implica sempre levar vantagem! Daólio (apud FINCO, 2007,
p.113) exemplifica as vivências no âmbito familiar em que, desde a mais tenra idade,
fica evidenciado o lugar da menina e do menino:
Sobre um menino, mesmo antes de nascer, já recai toda uma expectativa de
segurança e altivez de um macho que vai dar seqüência à linhagem. Na porta
do quarto da maternidade, os pais penduram uma chuteirinha e uma camisa da
equipe de futebol para a qual torcem. Pouco tempo depois, dão-lhe uma bola e
estimulam-no aos primeiros chutes. Um pouco mais tarde, esse menino começa
a brincar na rua (futebol, pipa, subir em árvores, carrinho de rolimã, skate,
bolinha de gude, bicicleta, taco etc.), porque, segundo as mães, se ficar em
casa vai atrapalhar (p.102). Em torno de uma menina, quando nasce, paira toda
uma névoa de delicadeza e cuidados. Basta observar as formas diferenciadas
de se carregar meninos e meninas, e as maneiras de os pais vestirem uns e
outros. As meninas ganham de presentes, em vez de bola, bonecas e utensílios
de casa em miniatura. Além disso, são estimuladas, o tempo todo, agir com
delicadeza e bons modos, a não se sujar, não suar. Portanto, devem ficar em
casa, a fim de ser preservadas das brincadeiras “de menino” e ajudar as mães
nos trabalhos domésticos, que lhes serão úteis futuramente quando se
tornarem esposas e mães (p.103).
Foto 3 – A disputa pelos brinquedos
Percebe-se que existe desde cedo uma expectativa quanto ao desempenho do menino
forte, competitivo e da menina meiga e dócil. Na família, os adultos educam as crianças
demarcando as diferenças dos universos femininos e masculinos. A célebre frase da
eminente filósofa Simone de Beauvoir: “Ninguém nasce mulher, mas se torna mulher”
evidencia a cultura ocidental hegemônica que diferencia e define os lugares das
mulheres e dos homens nas relações sociais e culturais. Dessa forma, podemos
afirmar que as relações de gênero, como as demais relações sociais, são permeadas
por relações de poder, o poder no sentido foucaultiano, que envolve todas as relações
sociais, que resiste, incita, provoca e negocia.
Por meio das observações em campo, foi possível verificar que se cria uma divisão nas
brincadeiras das crianças, quando a professora comenta: “Hoje eles estão como
gostam”, referindo-se aos meninos jogando futebol. Nesse comentário, percebe-se que
a bola e o futebol é uma brincadeira destinada aos meninos. A escola vai atribuindo ao
corpo e ao gênero modos de ser menina e menino com brincadeiras diferenciadas, e as
crianças, muitas vezes, acabam internalizando essas práticas que sobressaem no
cotidiano escolar que se configuram de um determinado modo e não de outro. Refletir
sobre os sentidos atribuídos às práticas corporais no recreio leva a entender como, na
instituição escolar, se espera que determinados comportamentos específicos de
meninas e meninos, que são construídos ao longo do processo sócio-histórico se
tornem “naturais”. Na família também se estabelece divisão nas brincadeiras que a
criança vai absorvendo. Essas regras sociais que lhe são transmitidas as crianças e
que elas vão tentando resistir como uma forma de dizer o que querem fazer e
experimentar. A seguir, algumas falas das crianças que exemplificam bem essa divisão
nas brincadeiras das meninas e meninos:
Na minha rua tem uma menina que joga futebol com homem. A mãe dela não
deixa, a mãe dela fica trabalhando e ela jogando, ela fica jogando, aí a mãe
dela vê ela jogando com os meninos, aí a mãe dela bate nela (YASMIN).
O menino gosta muito de jogar bola, a menina não gosta. Os meninos batem
muito nas meninas as meninas não gostam, aí a gente num, num também não
gosta que bate só na gente não! Aí eles batem muito nas garotas, eles jogam
futebol e a gente não gosta (INDIOMARA).
A importância dessas afirmações na fala de Yasmin e Indiomara é que encontramos
uma correspondência com as falas de muitos adultos, na mídia e na cultura escolar,
afirmando que futebol é “coisa de menino” e que brincar de boneca e gostar da cor rosa
é exclusivamente do universo da menina. Os discursos das crianças esclarecem que é
na relação social que o gênero vai se constituindo e vai revelando como as crianças
vão internalizando valores, crenças e regras do mundo sociocultural.
Embora brincar de boneca seja considerada uma atividade somente das meninas, as
crianças vão tentando desmistificar nas interações com seus pares alguns valores
conservadores, como futebol é coisa de “menino” e boneca é coisa de “menina”. Assim,
vão produzindo as culturas infantis, opinando e subvertendo os padrões sociais
construídos historicamente.
Entretanto, nem sempre as crianças reproduzem o que os adultos pensam. Muitas
vezes, elas (re)significam o que lhes é imposto, quando expressam algumas falas
como ocorreu quando, provocando, perguntei: Menino pode brincar de boneca?
Júlia: Claro que pode, pode ser o pai, com certeza!
Felipe: Não.
Pesquisadora: Por que não pode?
Felipe: Porque ele é menino...
Felipe: O menino pode [falando baixinho]. O menino pode brincar só um
pouquinho de boneca.
Maria Clara: Os 'menino' também pode brincar, porque, um dia, estava
brincando e Brondim veio brincar com a gente de boneca, a gente brinca tudo
certinho, só tem vezes que eles ficam olhando.
Quando foi perguntado, em relação a menina brincar de carrinho e o menino brincar
de boneca, foi significativo perceber como a boneca e o carrinho são artefatos culturais
que demarcam e definem o gênero no universo infantil. A mídia, a família e a escola
têm uma parcela de contribuição em relação a essas construções que é determinada
pela cultura, o “jeito” da menina e do menino. Segundo Sayão (2003, p. 72),
[...] o gênero não é um produto acabado ao nascimento. Ele extrapola as
identidades que vão sendo experimentadas/sentidas pelos sujeitos, porque as
instituições sociais (o Estado, a família, a creche, a escola) também expressam
relações de gênero que podem entrar em conflito ou contradição com as
subjetividades.
Nas falas das crianças, percebi que elas estão “tentando” mudar o olhar em relação a
essas diferenças socialmente construídas. Todavia, as crianças aprendem desde cedo
o que é certo e o que é errado no jeito de ser menina e ser menino e, assim, vão
favorecendo a manutenção desses padrões fixos de comportamento. A escola ao invés
de desmistificar essas construções sexistas, muitas vezes confirma-as no discurso
cotidiano, não problematizando com as crianças a possibilidade de mudança de
postura em relação às crenças e valores de uma sociedade que está mais preocupada
em determinar valores e atributos sobre o ser feminino e masculino. A seguir, as falas
das crianças em relação ao menino brincar de boneca:
Stefanny: Não, porque ele é homem.
Felipe Massa: Não...Pode.
Júlia: Claro que pode, pode ser o pai com certeza!
“João Pedro”: Pode.
Indiomara: [balança a cabeça dizendo que não]. Porque há diferença. Menino
gosta de carrinho e menina de boneca aí a boneca ela gosta muito, gosta de
brincar, a gente brinca muito aqui na escola!
A seguir, ela fala afirmativamente:
Indiomara: Pode! Como pai, como um monte de coisa, como colega.
Juliana: Que ele quiser! Só se ele quiser brincar, né? [riso].
Juliana: Ele brinca de... pai ou filho! Domingo, minha mãe comprou um boneco
pra ele e uma boneca pra minha irmã que tava fazendo aniversário. Meu irmão
fez no outro domingo e minha irmã no outro domingo! Aí, minha mãe comprou
uma bonecona pra mim que nem da minha irmã! Aí minha mãe comprou uma
boneca prá ela, uma pra mim, um boneco pra Brondim e um carrinho!
Patrícia: Só menina! Porque boneca é uma coisa, foi uma coisa que foi
inventada para a menina não 'pru' menino!
Patrícia: [silêncio] ... Lá em casa, eu já brinquei, só que ele ERA O PAI!
Patrícia: É, sempre é o pai ou o irmão! Igual ao meu primo que estuda aqui,
sempre que eu vou brincar com ele, ele sempre é o pai ou irmão!
Brondim: NÃO!
Indiomara, Juliana e Patrícia afirmam que o menino pode brincar de boneca, porém na
condição de assumir a função masculina como pai, irmão e filho. Fica evidente como
esses valores são internalizados pelas crianças e fica muito difícil desconstruir o que é
produzido pela cultura dominante.
2.2.3 E a menina brinca de carrinho?
As falas abaixo descritas expressam que a visão que circula no universo das meninas e
no dos meninos é diferenciada e que merecia ser problematizada sobre as convenções
sociais em relação aos brinquedos de menina e menino que trazem consequências nas
suas interações cotidianas. Felipe e Guzzo (2004, p. 32) sinalizam que: “[...] nem
sempre as professoras se sentem capazes e encorajadas a desenvolver atividades
relacionadas às questões de gênero com as turmas em que atuam, especialmente
quando se trata de crianças pequenas”. Partindo dessa perspectiva, é relevante
ressaltar que há lacunas na formação das(os) professoras(es) em relação à formação
docente na discussão de conceitos de gênero, feminilidade e masculinidade, o que iria
proporcionar às crianças experiências mais compartilhadas e menos divididas.
Thiago: Não. Só de boneca. De boneca e de panelinha.
Felipe: [fica em silêncio e depois fala] Pode um pouquinho também [Felipe
sorri!]
Stefanny: Não. Por que ela é moça.
Felipe Massa: Pode.
Júlia: PODE.
“João Pedro”: Não... [silêncio] Porque é de homem.
Indiomara: Não! Porque a menina brinca de boneca, de monte de... de filho,
de...ballet... de um monte de coisa.
Juliana: Só carrinho DE MULHER, NÉ? O 'di' mulher é ROSA, ROSA,
AMARELO, VERMELHO, VERDE, AZUL, AZUL CLARO, É... COR DE
ABÓBORA....
Yasmin: Não! PORQUE ELA NÃO É HOMEM!
Maria Clara: Não.
Patrícia: Não.
Brondim: [silêncio] ... Pode! “João Pedro”, BRINCA!
Analisando as narrativas, percebi que algumas crianças reproduzem os padrões fixos
em relação ao brinquedo da menina e do menino, quando afirmam que a menina não
pode brincar de carrinho:
Thiago: “Não. Só de boneca”. Em sua fala, além de negar o espaço para a menina na
brincadeira, ele é enfático em afirmar que elas só brincam: de boneca e de panelinha.
Thais também diz: “Não, porque ela é moça”. “João Pedro” nega e confirma: “Não,
porque é de homem”.
É importante perceber, na fala de “João Pedro”, como a cultura socialmente construída
adentra à vida das crianças e reforça determinadas brincadeiras para o sexo feminino e
masculino. “João Pedro” só brinca com os meninos e, no entanto, reproduz em sua fala
as expectativas dos adultos em relação a escolha do brinquedos tidos como femininos
e masculinos. Yasmin também expõe sua opinião dizendo: “Não! Porque ela não é
homem!” (em tom afirmativo e alto).
É interessante a interpretação de Finco (2007, p. 114), quando ela enfatiza:
É necessário ressaltar aqui que as preferências não são meras características
oriundas da biologia do corpo, são construções sociais e históricas. Os
brinquedos que são oferecidos para as crianças estão carregados de
expectativas, de simbologias e de intenções.
Foto 4 – Momentos de brincadeiras
Ao analisar as falas das crianças, observei que elas vão tentando buscar formas de
negociação para os padrões preestabelecidos. Nas brincadeiras, elas vão fazendo
escolhas que nem sempre estão de acordo com os comportamentos que são
esperados para a menina e para o menino, como mostram as respostas a seguir, em
relação à menina brincar de carrinho:
Felipe Massa: Pode. Afirmando que a menina pode brincar de carrinho.
Júlia: PODE.
Juliana: Só carrinho DE MULHER, NÉ? O 'di' mulher é ROSA, ROSA,
AMARELO, VERMELHO, VERDE, AZUL, AZUL CLARO, É... COR DE
ABÓBORA... Ela diz que pode, mas só se o carrinho for de mulher e ainda
justifica com as cores tidas como de 'mulher'.
Brondim: [silêncio] ...Pode! “JOÃO PEDRO”, BRINCA! Justificando: se “João
Pedro” brinca, as meninas também deveriam brincar.
No decorrer da pesquisa, fui percebendo os interesses das crianças, como elas vão
estabelecendo processos de significações para além daquilo que é vivido no universo
escolar e vão construindo sua subjetividade em relação ao que é ser menina e ser
menino. Desse modo, é possível afirmar que as crianças, por meio de diferentes
artefatos culturais, vão se apropriando dos significados atribuídos à menina e ao
menino nas relações sociais. Então, pelas suas brincadeiras de faz de conta, ela vai
representando alguns papéis do mundo adulto, numa perspectiva diferenciada do olhar
“adultocêntrico”, ora rompendo, ora reproduzindo regras e modelos impostos pela
família, escola, mídia etc.
É interessante a interpretação de Louro (1997, p. 28), quando se posiciona da seguinte
forma:
Em suas relações sociais, atravessadas por diferentes discursos, símbolos,
representações e práticas, os sujeitos vão se construindo como masculinos e
femininos, arranjando e desarranjando seus lugares sociais, suas disposições,
suas formas de ser e estar no mundo.
Assim, a criança vai se apropriando desses discursos e vai inventando diferentes jeitos
de ser menina e ser menino nas relações estabelecidas com seus pares nas
brincadeiras e descobertas.
Observando uma situação vivenciada por duas meninas no pátio, percebo como as
práticas culturais e sociais destinadas ao universo feminino aparecem no cotidiano
escolar: duas meninas passeiam no pátio com a mochila nas costas e brincam com
uma boneca parecida com a Barbie. Brincam de mãe e filha e comentam:
Júlia: 'Mamãe, me dá polenta'.
Maria Clara: 'Vai vestir roupa e vai pentear o cabelo'.
Aproximo-me e pergunto o que é que a mãe faz?
Júlia: Bota pra dormir, faz mamadeira, dá janta e leva pra escola.
Os artefatos culturais aparecem no pátio onde as meninas (re)significam o jeito de ser
menina brincando de mãe, filha e mulher. As meninas reproduzem de forma evidente a
divisão de papéis imposta pela sociedade: é a mulher que educa, cuida dos filhos. Na
escola, esse comportamento é reforçado pelo tipo de brinquedos e brincadeiras que
são oferecidos às meninas e meninos. Nas entrevistas, observei que as crianças
reproduzem, em alguns momentos, essa divisão de papéis, mas, também, reelaboram
e recriam outras formas de viver a relação de gênero no contexto escolar, brincando de
futebol, de pega-pega, garrafa envenenada entre outros.
Durante a pesquisa, registrei algumas falas e ações das crianças que demonstram
como algumas regras culturais são partilhadas socialmente e evidenciam como as
crianças vão descobrindo as diferenças impostas pela sociedade, pela mídia, na forma
de vestir, de pensar e estar no mundo: Marcelo chega bem perto de Gabriel e diz que o
uniforme dele é de mulher, pois não tem manga, e chama Brondim para que ele
confirme. Brondim diz que não, porém não explica o porquê.
Patrícia expõe a sua opinião em relação à diferença da roupa: o menino também usa
short e menina não usa, ele não usa short assim, ele usa calça, o que aqui menina não
usa é cueca! Menina não usa!
Brondim: A menina bota saia e o menino não bota, usa blusa de florzinha assim, bota
xuxinha, bota brinco, bota cordão.
Nesse registro do diário de campo, implica destacar que, no imaginário infantil, fica
naturalizado o modo de vestir das meninas e dos meninos, que elas vão apreendendo
nas suas experiências que são evidenciadas pelo contexto social e cultural nas
relações escolares, nas relações de pares e nas relações familiares. Assim, nas falas
das crianças, há uma incorporação do preconceito, da dominação do discurso dos
adultos e da mídia em relação aos detalhes da roupa, o que é mais conveniente ou não
para cada sexo. É relevante considerar essas expectativas tidas como “naturais” nas
falas das crianças quando explicitam que blusa sem manga é só mulher que pode usar.
Elas externam suas concepções nas suas interações com seus pares, por meio de um
diálogo que vem carregado por modelos e padrões que elas vivenciam desde cedo.
Essas normas são estabelecidas socialmente em relação à construção da sua
condição de se vestir como menina e como menino. Sarmento e Pinto (1998, p. 22)
afirmam: “As culturas infantis não nascem no universo simbólico exclusivo da infância,
este universo não é fechado- pelo contrário, é mais do que qualquer outro,
extremamente permeável - nem lhes é alheia a reflexividade global”. Nesse sentido,
observei que, nesse processo de apropriação e reconhecimento da cultura do adulto,
fica difícil a criança não absorver esses discursos carregados de estereótipos na forma
de ser e estar no mundo.
2.2.4 A “sutil” incorporação do consumo: as mochilas das crianças
Foto 5 – As mochilas das meninas
As mochilas das meninas são rosa, com alguns detalhes em azul, com desenhos da
Barbie, Eliane (apresentadora), Hello Kitty e gatinho (Foto 5). A dos meninos: Scoobydoo, Super-homem, Hot-Wheels (Ferrari). Ter uma mochila com motivos e figuras de
Super-homem, Barbie, personagens de desenhos veiculados pela televisão, torna-se
um ideal a ser perseguido pelas crianças. Obter um objeto que é divulgado pela mídia
implica ter poder nas relações sociais e significa também pertencer ou ser excluído do
grupo em que vivem.
As propagandas são apresentadas em horários nobres na mídia televisiva, com o
intuito de despertar o desejo não só dos adultos, mas, também, das crianças que
geralmente estão assistindo na companhia da família.
As imagens com cores
brilhantes e cenários bem cuidados têm o objetivo de despertar no espectador a
vontade de adquirir aquele produto como forma de pertencer a determinado grupo de
acordo com as suas escolhas de consumo. A mídia informa, também, por meio das
cores, o que é mais adequado para o universo feminino e masculino e como o produto
deve ser usado e consumido. Argumentando no mesmo sentido, Rael (2005, p. 160)
enfatiza:
Uma novela de televisão, uma propaganda, um desenho animado podem ser
vistos como produtores e veiculadores de representações que sugerem
determinados comportamentos e identidades sociais, e que, de algum modo,
acabam por regular nossas vidas.
Os diversos artefatos culturais que são frutos de construções sociais e históricas estão
em permanente elaboração em diversos lugares de informação: a escola, a mídia, o
cinema, as revistas, os documentários, os outdoors, os brinquedos, que são
denominados de pedagogia cultural que se expressam em diversos locais sociais
(STEINBERG, 1997).
Chego à sala e escuto a professora falar que hoje não vai “ter pátio”. Fico observando o
movimento das crianças, como elas vão se agrupando no tempo-espaço da sala de
aula. Após a fala da professora, as crianças, imediatamente, começam a se organizar.
As meninas, Patrícia, Júlia, Maria Clara, Indiomara e Yasmin, improvisam um salão de
beleza. Juliana e Thais não conseguem participar da brincadeira do salão, pegam uma
boneca e vão brincar afastadas. Os meninos, Brondim, Marcelo e Roter, brincam de
carrinho e pinos. Logo a professora percebe que, na sala, o espaço fica pequeno para
as brincadeiras e resolve descer para um espaço coberto ao lado do pátio. As meninas
continuam brincando de salão de beleza. Patrícia é a maquiadora e a cabeleira e
começa a maquiar Júlia, que corre até o banheiro para se olhar no espelho, e volta e
fala: “Patrícia, eu amei! Quero bem colorido!” Patrícia fala que o preço da maquiagem é
R$5,00 reais. Patrícia grita: “Próximo”. Porém Júlia ainda pede para que ela passe mais
um batom e retorna ao banheiro para se olhar e fala: “Você arrasou!! Adorei a
maquiagem!!! Você vai ganhar um carro, uma casa e 10 milhões de reais” e sai em
direção ao palco e começa a desfilar. Então, Patrícia grita: “Ainda não é hora de
desfilar” e fala bem alto: “Próximo”. As crianças estão sentadas no chão em fila.
Patrícia começa a maquiar Maria Clara, Júlia ajuda a passar batom e Maria Clara pede
que Patrícia pinte seu olho com sombra. Patrícia, novamente grita: “Próximo”. Yasmin
se senta para ser maquiada. A última da fila é Juliana (criança negra). Quando ela se
senta na cadeira, Patrícia sai correndo para o pátio, pois o espaço foi liberado. Eu lhe
pergunto: “E a Juliana você não vai maquiá-la?” Patrícia diz: “Lá no pátio”. Porém
Patrícia, ao chegar ao pátio, vai brincar de pique-esconde com Júlia, Maria Clara e
Yasmin. Júlia se aproxima de Juliana e lhe pede para segurar sua bolsa de
maquiagem. Eu pergunto a Juliana se ela quer que eu segure a bolsa para que ela
possa brincar com as meninas, ela responde que não. Segurando a bolsa, parece
fazer parte do grupo. É interessante notar que ela “tenta” compreender a atitude da
colega e busca meios de elaborar um novo sentido para se sentir parte do grupo. No
dizer de Cavalleiro (2006, p. 69): “O silêncio sobre a questão étnica parece atingir a
todos, adultos e crianças, profissionais da escola e familiares”. No cotidiano escolar, a
criança vai vivenciando experiências que vão se confirmando nas escolhas
diferenciadas entre elas. As crianças negras constantemente recebiam tratamento
diferente das demais nas escolhas para participarem das brincadeiras, como também
na demonstração de afeto entre elas.
2.2.5 Como se portam meninas e meninos na aula de educação física
O professor de educação física tem dificuldade em organizar as crianças. Elas correm
no pátio de um lado a outro. Brondim mexe na caixa de material do professor. O
professor distribui folha de jornal às crianças e pede que elas façam bolinhas
pequenas, a seguir entrega a Patrícia uma bola de soprar na cor rosa. Patrícia
pergunta ao professor se ela pode escolher quem vai ser o próximo para receber a bola
de soprar. Patrícia começa a chamar as meninas e os meninos com quem ela se
relaciona mais de perto, ou seja, faz parte do seu grupo: Maria Clara, Indiomara etc.
Thiago, Felipe Massa e Marcelo pedem para ser chamados. No entanto, é a Juliana
que é chamada, em virtude de estar segurando a “poderosa” bolsa de maquiagem da
Júlia (nesse instante a Juliana parece estar revestida de “poder” e fazendo parte do
grupo por estar segurando a bolsa), porém Patrícia orienta quem Juliana deve
escolher: Júlia, depois Yasmin e depois Thais. Ao mesmo tempo Marcelo tenta coagir
YASMIN para que ela o escolha e a ameaça de lhe bater, caso ela não o escolha. O
professor percebe e intervém. Diz que ela tem livre escolha. Observo que as meninas
foram escolhidas antes dos meninos. O professor elogia a organização das meninas e
continua entregando as bolas de soprar, as de cor rosa para as meninas e as de cor
azul para os meninos (fica nítido o quanto é forte a relação da cor para demarcar o
lugar da menina e do menino na cultura da escola). Como se observa, as atividades
são divididas de acordo com a cor: rosa para as meninas e azul para os meninos.
Assim, a criança vai percebendo um mundo social dividido e, dessa forma, ela se
coloca “naturalmente” nesse lugar.
Outra cena que destaco na observação das crianças na sala aula: Indiomara questiona
com a Patrícia que, na lousa está escrito no cabeçalho “Aluno”. Então Patrícia explica
que quando tem “O” é menino e “A” é menina. Indiomara não se convence e solicita à
professora para escrever também “Aluna” na lousa.
Observo que Indiomara está reivindicando espaço, lugar. Essa “naturalidade” de
escrever na lousa só “aluno” evidencia a cultura extremamente masculina que vem
sendo construída ao longo dos processos sociais e históricos na escola. Essa
afirmação encontra suporte nas palavras de Louro (1997, p. 60) quando ressalta que
“Através de muitas instituições e práticas, essas concepções foram e são aprendidas e
interiorizadas; tornam-se quase “naturais” (ainda que sejam “fatos culturais”). A escola
é parte importante nesse processo”. Indiomara reage tentando desconstruir essa
“lógica” de os meninos usufruírem de um determinado lugar que se coloca como
referência na cultura escolar. Posso afirmar que a escola é um local onde as relações
de gênero estão presentes e que ele se constitui num contexto múltiplo e contraditório
de atitudes e ações em que a instituição escolar se inscreve, fabricando sujeitos,
produzindo identidades. Enfim, como nos alertam Cruz e Carvalho (2006) em suas
pesquisas, as crianças, no contexto escolar, lidam com modos de viver as relações de
gênero que lhes são dadas e que recriam na sua singularidade. Em parte vão
reproduzindo, em parte vão transformando no movimento de mão dupla, de construção
e desconstrução de uma sociedade dividida.
Muitos são os mecanismos utilizados pelas crianças nas brincadeiras para evidenciar
os papéis sociais:
Júlia, no fundo da sala, brinca de casinha e de fazer comidinha e fala que vai jantar
sozinha. De repente olha para trás e fala com Juliana e “João Pedro”: “Empregada, ô
empregada, oô duas empregadas!!!”. A seguir, transcrevo um trecho dos registro do
diário de campo (27-10- 2008):
Pesquisadora: Por que você está chamando as empregadas?
Júlia: Para fazer tudo que eu mandar!!!
De repente ela se dirige a “João Pedro” e fala para ela sair da piscina.
Pesquisadora: O que é que “João Pedro” é agora?
Júlia: Agora ela é filha. Depois ela é empregada com Juliana.
Júlia me mostra um potinho e diz que ali tem molho de tomate para colocar em cima da batata.
“João Pedro” chega com uma bandeja e fala: Tome, mãe.
Juliana diz: O neném acordou, assumindo o lugar, neste momento, de empregada.
Júlia se levanta e sai da brincadeira e vai para a mesa. “João Pedro”, nesse momento, assume o lugar
em que a Júlia estava sentada.
Pesquisadora: “João Pedro”, o que você está fazendo?
“João Pedro”: Lavando os pratos! [assumindo de novo o lugar de empregada].
De repente, Júlia retorna e fala alto dando ordens para “João Pedro” e Juliana, mandando as duas
limparem tudo. Júlia se aproxima de Juliana e fala: Você é um anjo!
Pesquisadora: Por que ela é um anjo?
Júlia: Por que ela me ajuda, arruma tudo e toma conta do bebê!
Com “João Pedro” a Júlia chama de porca e diz: Olha ela quebrou a xícara! E continua: Seu pai vai
chegar da Amazona, você vai se ‘fuder’!!! E, no mesmo instante, dirige-se a Juliana e diz: Filha... você é
um anjo!!!
Pesquisadora: Ela é sua filha?
Júlia: É minha filha, ué!
Pesquisadora: Ela não era empregada?
Júlia: Eu chamo ela de empregada, porque ela me ajuda a cuidar do neném, arruma a casa. A outra filha
[referindo-se a “João Pedro”] é o ‘capeta’. Outro dia, ela pegou o neném e jogou no chão. Essa é
boazinha [referindo-se a Juliana], pega o nenê com cuidado.
Júlia: Vou fazer um chá. Logo após, oferece-me na bandeja com uma xícara. Entro na brincadeira e falo
que o chá está uma delícia!
Júlia: Obrigada!
Nesse registro do diário de campo, fica evidente que Júlia vai buscando, no seu
imaginário, uma forma própria de (re)significar a cultura do adulto, imitando, inventando
brincadeira, fantasiando e atribuindo os diversos lugares para as outras meninas (lugar
de filha, empregada). Assumindo, também, práticas sociais que inculcam regras, papéis
sociais, ou seja, papéis adequados para aquela situação vivida. As crianças, em suas
brincadeiras, vão aprendendo entre elas, por meio das trocas estabelecidas, vão
percebendo as relações sociais vivenciadas no cotidiano das suas experiências no
contexto familiar, escolar, da rua, enfim, em diversos espaços por elas vivenciados. O
espaço da educação infantil traz possibilidade de a criança evidenciar as suas
experiências que certamente vão contribuir no dia a dia para a construção das suas
identidades a partir da ludicidade, fantasias e imaginações. Segundo Sayão (2003, p.
81):
Ser pai, mãe, filho, cozinheira ou médico faz parte do peso de poder que
algumas crianças têm em determinado grupo. Algumas jamais serão pais ou
mães, sempre serão filhos ou filhas. É necessário observar as relações de poder
que se evidenciam no curso de uma brincadeira e lidar com elas de maneira que
seja possível mostrar que há outras formas de ser pai, mãe, filho, médico. Há
médicas, cozinheiros... e no faz de conta todos(as) podemos ser qualquer coisa.
A análise de Sayão nos demonstra como a criança, em suas brincadeiras, vai
elaborando e recriando a cultura, o que está exemplificado nos diferentes papéis
assumidos (empregada, mãe e filha). Na brincadeira do faz de conta, as negociações,
as tensões e o poder se revelam. Também Foucault (2006) estudou essas práticas
divisoras de uns que exercem o poder sobre os outros por meio da comunicação. Júlia
ocupa o lugar que institui os papéis a serem assumidos ao estabelecer interações com
seus pares.
Essa observação, no campo pesquisado, aponta as condições simbólicas do lugar da
filha, da mãe, da empregada e expressa como os arranjos sociais foram “negociados”,
pois, nesse momento, o poder exercido por Júlia, tem o consentimento das outras
crianças quando aceitam os papéis instituídos. A capacidade das crianças de
interpretar o mundo em suas práticas cotidianas e que vão materializando, em seus
encontros, as fronteiras do mundo do adulto com o mundo infantil. Por vezes, em suas
brincadeiras, vão tentando atribuir sentido ao mundo em que vivem, reproduzindo,
interpretando, transformando e negociando lugares, espaços que são formas e
estratégias encontradas para lidar com a complexidade das práticas sociais e culturais
que lhes são impostas.
Chego à sala de aula e observo que as crianças estão sentadas em círculo para fazer
uma atividade de colagem e de procurar letra em revista. Percebo que algumas delas
estão rindo e mostrando uma revista. Aproximo-me para ver melhor. É uma revista da
Avon que, na capa, tem uma mulher de lingerie vermelha. A professora também
percebe e pergunta, conforme anotação no diário de campo (04-10-2008):
Professora: Tiago, o que você está mostrando a Marcelo?
Tiago responde: A moça da revista é gostosa e bonita!
Professora: Por que ela é gostosa?
Tiago responde: Por que ela é bonita.
As crianças iam folheando a revista e, à medida que viam algo interessante, iam mostrando. “João
Pedro” mostra a Felipe Massa a figura de uma modelo dizendo que é sua namorada, depois mostra
também a Thiago.
Professora: “João Pedro”, por que você mostrou a revista a Thiago?
Ela põe a mão no rosto e não responde.
Albes fala: É por causa da bunda dela!
Não há dúvida de que as crianças incorporam a linguagem dos adultos para
(re)significar um comportamento evidenciado no cotidiano pela mídia, quando mostra
mulheres seminuas nas propagandas com significados eróticos. Essas mulheres
expostas são chamadas de “gostosas” pela fala do adulto. As crianças (meninas e
meninos) vão internalizando como “verdade” esse modelo estético veiculado pelos
meios de comunicação, reiterando o discurso do corpo magro, esculpido, musculoso,
bronzeado e sensual. Essas imagens vão produzindo e reproduzindo uma identidade
corporal que vai povoando o imaginário infantil da beleza como algo a ser admirado,
desejado, ou seja, o corpo aparece como um valor a ser perseguido e a mídia, a
publicidade, por meio de revistas, programas de televisão, novela têm tido uma papel
fundamental, incentivando todas as camadas sociais e faixas etárias a assimilarem que
o corpo “precisa está em forma” para ser exibido em propagandas, programas de TV,
outdoor etc. E, assim, vai fabricando desejos que são sustentados pela lógica do
consumo que oferece, insistentemente, soluções e ideias que vão se multiplicando e
seduzindo também as crianças em seu cotidiano e nas suas relações. Nesse passo, as
crianças vão interpretando, analisando, percebendo esses contextos e vão formando
uma ideia acerca desses discursos e imagens transmitidos pela mídia.
Enquanto os meninos mostravam as fotos das mulheres de lingerie, Júlia olhava
atentamente a página que continha propaganda de batons, lápis e brilhos. As meninas,
desde cedo, aprendem que a feminilidade se sustenta nos gestos dóceis, nos enfeites,
nas roupas e em determinados comportamentos que são convenientes para o sexo
feminino.
As crianças estão sentadas, conversando. Eu me aproximo e percebo que Indiomara
trouxe uma bolsa na cor prata. Dentro continha: um cartão de crédito, celular caneta e
baton (Diário de campo, 5-10-2008). É pertinente observar que as crianças trazem os
mais diversos artefatos culturais para sala de aula, como uma forma de (re)significar o
mundo adulto e também identificar os objetos que são destinados às mulheres e
verificar como esses produtos são frequentemente veiculados pela mídia. Assim, de
certa forma, inicia-se um processo de idealização e identificação pela criança de
possuir esses artefatos e, dessa forma, elas vão construindo e aprendendo “formas
adequadas” de viver sua feminilidade e masculinidade que são socialmente esperadas.
Segundo Sabat (2004), esse processo não é realizado de uma vez por todas e sim de
forma contínua e repetitiva.
O episódio a seguir mostra como as crianças verbalizam posturas aprendidas em
relação à afetividade e gestos com seus pares:
Brondim se aproxima e me pede para tirar uma foto dele e de Felipe. Tirei uma foto dos dois bem
juntinhos. Logo após, Brondim pede para ver e mostrar aos colegas. Ao mostrar, eles disseram: “Ah!
Vocês são namorados?” (MARCELO) “João Pedro” pergunta: “Vocês casaram?” (DIÁRIO DE CAMPO,
05-10- 2008).
É relevante destacar como as crianças se apropriam dos discursos em relação ao
corpo e à sexualidade, que vêm sendo construídos no decorrer das suas experiências.
Em suas pesquisas sobre o corpo masculino e feminino na educação infantil, Finco
(2007, p. 94) destaca que, na cultura escolar: “Todos os processos de escolarização
sempre estiveram preocupados em vigiar, controlar, modelar, corrigir e construir os
corpos [...]. No campo da educação, não apenas se separa mente e corpo; mais do que
isso, há uma desconfiança do corpo”. As crianças absorvem as diversas formas de
intervenção sobre o corpo, o que é consentido, como elas podem e devem se
expressar. Os meninos não se beijam e, quando se abraçam, fazem sempre de
maneira rápida e com certa rispidez.
Enfim, pude perceber que, na educação infantil, é visível a preocupação em relação ao
comportamento da menina e do menino em se tratando das suas relações afetivas.
Para o menino, a expectativa é que ele seja esperto, corajoso, viril e até mesmo
agressivo; e não dócil e afetuoso.
Esse exemplo elucida como os discursos se
produzem na cultura sobre as feminilidades e masculinidades que as crianças vão
internalizando sobre os modos e jeito de ser homem e mulher. Na sociedade, os
meninos não são estimulados a desenvolver seu lado afetivo, pois há uma vigilância e
contenção do corpo em relação à afetividade masculina desde a mais tenra idade. Com
referência às meninas, desde pequenas são estimuladas a desenvolver seu lado
afetivo. Espera-se que elas sejam dóceis, meigas e carinhosas, e essas manifestações
não são controladas ou inibidas quando as meninas se abraçam e se beijam. Quanto
aos meninos, há sempre uma vigilância maior quando dois meninos se tocam fazendo
carícias, pois não é um comportamento esperado pela família e nem pelo contexto
escolar.
Assim, discutir as relações de gênero no âmbito escolar é pensar de forma plural nas
desigualdades culturalmente construídas em relação aos marcadores sociais, como
raça, classe social, como também nas relações de poder que estão imbricadas nas
dinâmicas sociais constitutivas nas relações de gênero. No capítulo seguinte, analiso
como o poder funciona e age nas relações cotidianas das crianças com seus pares e
os adultos.
3 NOS MEANDROS DO PODER
Os estudos de Foucault (2003, 2006, 2007, 2008) têm como objeto analisar as formas
de conhecimento e técnicas de poder que servem para disciplinar e treinar os seres
humanos. É por esse foco que Foucault analisa as instituições, como a escola, a prisão
e os hospitais, incitando-nos a perceber como a disciplina exercida nesses espaços
organiza o tempo cada vez mais produtivo, rápido e eficiente. Na escola, a disciplina
ocorre por meio da vigilância, normalização, recompensa ou punição: “Quem não
acabar a tarefa não vai para o recreio” ou “Quem já acabou pode desenhar”. Esses
discursos constituem o cotidiano na educação infantil, deixando claro que as punições
e recompensas existem na medida em que as crianças cumprem ou não o que foi
solicitado.
A escola age tentando moldar, classificar e separar as crianças nos
diversos espaços ocupados por elas: na sala de aula, no refeitório, no pátio, na fila.
Contudo Foucault (2006) nos alerta que o poder não é apenas coercitivo e negativo,
mas produtivo e positivo, ou seja, o poder não apenas nega, impede, coibe, mas
também faz, produz e incita. Nesse sentido, em seus estudos, preocupou-se em
centrar as suas discussões em como o poder funciona e age, pois, sendo o poder uma
relação entre os dominados e dominantes que se cruzam nas práticas cotidianas
abrindo possibilidade de resistência em muitos pontos de forma circular, é nessa
tensão que as relações vão se exercendo.
Assim, mulheres e homens, meninas e meninos se fazem nas relações estabelecidas
que vão constituindo as suas identidades e subjetividades nas práticas escolares, na
família e nos diversos lugares ocupados na sua relação com o outro. Foucault (2006), a
partir de seus estudos, desafiou-nos a examinar a compreensão das nossas práticas e
de nossos próprios atos de poder e seus efeitos nas relações que estabelecemos, pois
o poder é sempre plural e relacional, acontece sempre nas práticas sociais
historicamente construídas com discursos que dominam e controlam os sujeitos e as
instituições.
Jardine (apud FOUCAULT, 2007, p. 8) revela uma expressão do filósofo que
exemplifica como o poder acontece no cotidiano: “Somos completamente formados
pelo sistema do conhecimento e poder no seio do qual nascemos e somos criados –
mesmos as nossas percepções do que está em nosso redor são influenciadas por isto”.
Em seus estudos, Foucault (2008) pretendia esclarecer as características das relações
de poder, que funcionam como uma rede de dispositivos, de mecanismos da qual
ninguém escapa, que se exerce a partir de inúmeros pontos. Na introdução do livro de
Foucault (2008), “Microfísica do poder”, Machado afirma que o poder emerge a partir
das relações, das práticas, ou seja, como uma máquina social, funcionando como uma
maquinaria que se dissemina por toda a estrutura social.
Eizirik e Comerlato (2004) nos provocam também a olhar e ouvir a escola,
compreendendo as multiplicidades de discursos em relação à ordem, ao poder, ao
instituído e como os sentidos desses discursos vão adentrando nas relações
estabelecidas nesse espaço. Segundo as citadas autoras: “[...] o poder, na sua
positividade, relaciona-se à produção de um saber, com a possibilidade de
transformação ou adestramento. Neste sentido, o poder é um modo de ação sobre
sujeitos livres, em que há sempre a possibilidade virtual de resistência” (p.18). Onde há
poder, há resistência já nos afirmava Foucault (2006), em seus estudos. Nesse sentido,
a instituição escolar é uma rede de poderes que é atravessada por diferentes práticas e
discursos que tentam moldar os sujeitos que ali estão em uma correlação de forças e
tensão nos jogos de poder e saber. É nesse “caldo fervente” (EIZIRIK, 2004) que a
escola enfrenta e lida com as contradições e ambiguidades em seu interior, que nos
incitam a novas possibilidades de compreender essas redes de poder que conduzem
os indivíduos em seus assujeitamentos ou resistências. Eizirik e Comerlato, ao
discutirem a influência do poder na instituição escolar, afirmam que é nesse espaço de
liberdade e rebeldia dos sujeitos que se traduz um dos mais inquietantes problemas
que a escola enfrenta. Nesse segmento da sociedade se efetiva também a
possibilidade da singularidade, da construção de sujeitos capazes de pensar sua
prática e revolucioná-la.
Bujes (2003), em seu trabalho “Infâncias e maquinarias”, analisou as relações entre
infância e poder, utilizando-se das ideias de Foucault, esclarecendo-nos que não há
lugar isento de poder e mostrando como o sujeito infantil é constituído por diversos
discursos e diferentes instituições: a família, a escola, a igreja, os meios de
comunicação. Enfatiza que essas instituições é que vão apontar e moldar as formas de
como os sujeitos, por meio dos discursos internalizados, vão se relacionar com o
mundo onde estão inseridos. Sinaliza a autora que a sociedade busca constantemente
estratégias e mecanismos como instância privilegiada de controle para fixar certos
sentidos por meio dos discursos tomados como “verdadeiros”.
3.1 AS RELAÇÕES DE PODER
GILMAR, NÃO TE FALEI PARA NÃO DEIXAR
NINGUÉM ENTRAR AQUI (JÚLIA, no pátio).
QUEM TERMINOU TEM QUE FICAR ESPERANDO
O COLEGA SENTADO E NÃO PODE LEVANTAR
(PROFESSORA, no refeitório).
Certas palavras
Certas palavras não podem ser ditas
Em qualquer lugar e hora qualquer
Estritamente reservadas
Para companheiros de confiança
Devem ser sacralmente pronunciadas
Em tom muito especial lá
Lá onde a polícia dos adultos nem alcança
Entretanto são palavras simples
Definem
partes do corpo, movimentos, atos
do viver que só os grandes se permitem
e a nós é defendida por sentença
dos séculos
E tudo é proibido. Então falamos.
(CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, 1997)
Busco, na poesia de Drummond, evidenciar o poder, a proibição, historicamente
dirigidos às diversas manifestações das crianças, em seus discursos, no que se refere
ao seu corpo e suas descobertas, evidenciando, dessa forma, o que é e o que não é
permitido falar. O filósofo francês Michel Foucault (2006, p. 9) explicita a formação
discursiva e seus desdobramentos afirmando:
Em uma sociedade como a nossa, conhecemos, é certo, procedimentos de
exclusão. O mais familiar e a interdição. Sabe-se bem que não se tem o direito
de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que
qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa.
Ele ilustra o fato de as pessoas falarem de seus desejos, das suas histórias e de seus
discursos, indefinidamente. Dispõe, desse modo, que as relações de poder são as
relações entre discursos com suas diferentes verdades, ou seja, a luta pelo poder de
dizer. O objeto de investigação do citado autor está centrado nas práticas sociais, nas
experiências e nas relações que o produzem, num determinado tempo e lugar.
O pensamento de Foucault (2008, p. 75) explicita que o poder está em todas as partes,
que circula e age nos diversos pontos das práticas cotidianas, quando afirma: “Onde há
poder, ele se exerce. Ninguém é, propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele
sempre se exerce em determinada direção, com uns de um lado e outros do outro; não
se sabe ao certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui”.
Nesse sentido, a minha intenção, durante a pesquisa, foi identificar em que medida
esse poder é exercido nas práticas cotidianas estabelecendo o que é interdito e o que é
permitido nas relações estabelecidas pelas crianças e seus pares.
3.2 E POR FALAR EM PODER...
3.2.1 Situações de conflitos entre as crianças: a relação de poder entre os
adultos e crianças
Todo mundo vai se maquiar sozinha (JÚLIA).
Então, eu não vou brincar. Você sabe que eu não
posso me maquiar, eu sou crente (PATRÍCIA).
Olhe para mim! Senão eu vou pegar no seu rosto e
fazer você olhar prá mim (PROFESSORA
12
SUBSTITUTA na sala de aula).
Conforme registro no diário de campo, pude observar durante a pesquisa, algumas
situações de conflitos e estranhamento entre as crianças é como essa questão é
12
A Professora da sala pesquisada ausentou-se por aproximadamente 30 dias, por motivo de saúde.
As crianças sentiram muito sua falta e ficaram muito agitadas nesse período em que estavam
acompanhadas por uma professora substituta.
mediada pela professora:
No refeitório, as crianças ficam em fila esperando ser servidas. Nesse momento, há
uma disputa de lugar. Algumas crianças tentam passar na frente das outras. Observei
que as meninas disputam espaço com os meninos, algumas conseguem, porém os
meninos resistem, empurrando as meninas para fora da fila. Nesse momento, há choro,
xingamento e empurrões, que, algumas vezes, são mediados pela professora. O
refeitório possui três fileiras de mesas compridas com cadeiras. Observo que sempre
há discussões para decidir quem vai sentar na ponta. Geralmente são os meninos que
disputam esse lugar. Costa (2004, p. 121) fez uma interessante discussão sobre a
disputa na mesa do lugar da ponta, em nossa cultura, quando observou também em
sua pesquisa esse comportamento em campo e fez as seguintes reflexões:
No refeitório também existe um lugar que é alvo de disputas nas relações de
poder. É a cadeira da ponta. As crianças têm um verdadeiro fascínio pela ponta
[...]. A cada turma que entra é uma nova disputa que surge [...] A criança que
senta na cadeira da ponta fica estrategicamente bem posicionada, podendo ver
o rosto de todas as outras da mesa [...]. Por que é tão importante para
algumas crianças sentar na cadeira da ponta? Que significações são
construídas em relação à ponta? Nas famílias, quem geralmente senta na
ponta? O chefe? O pai? Aquele que paga a conta? E no caso das famílias
lideradas por mulheres, é a mãe?
Foto 6 – Conflito na fila
A disputa do lugar na fila no refeitório, o movimento de resistência por parte das
crianças para ocupar esse lugar.
Foto 7 - A disputa entre os meninos pelo lugar a ser ocupado
Essas disputas de poder por objetos e lugares são frutos das práticas e discursos que,
ao longo da história, as famílias e a instituição escolar foram produzindo. São
comportamentos e condutas hierárquicas. O homem sempre se senta, na cabeceira da
mesa, pelo fato de ele ser o provedor, apesar de a família ter mudado a sua
configuração (Foto 7). Como bem lembra Costa (2004) em sua reflexão é
imprescindível problematizar as relações de poder na educação infantil, considerando
como essas relações vão se configurando no jeito de ser menina e menino.
No retorno do jantar para a sala de aula, Thiago bate no Albes com socos e empurrões.
Precisei intervir, pois a professora não estava na sala. Separei os dois e perguntei qual
o motivo da briga? Thiago não responde e Albes diz: “EU SÓ ENCOSTEI NELE”. Tenho
observado que a violência nesse espaço e na vida dessas crianças está naturalizada.
Quando a professora retorna, comento o ocorrido em função da minha interferência. A
professora solicita ao Thiago que peça desculpas ao colega. Ele resiste. Então, ela
ameaça levá-lo para conversar com a pedagoga; ele aceita e dá um abraço e pede
desculpa. A relação de poder estabelecida pela professora, ao exigir que o Thiago peça
desculpa a Albes, vem imediatamente acompanhada com uma reação de resistência
por parte do Thiago. No entanto, a professora, nesse conflito, insiste no poder
disciplinar que é investido no corpo, procurando torná-lo dócil, evidenciando algumas
regras de conduta: pedir desculpa e abraçar o colega.
A seguir, outra cena entre as crianças observada durante a pesquisa na aula de artes:
Marcelo empurra Tiago sem motivo. A professora pergunta: “Por que você fez isso?”.
Marcelo responde: “Eu estava só brincando”. Dirige-se ao colega e pergunta: “Não tava
só brincando?”. Ele balança a cabeça que sim!
O interessante de ser observado é que, ao ser perguntado sobre o seu comportamento,
Marcelo responde que não estava “brigando” e sim “brincando”; e, imediatamente, pede
a professora para “parar de encher o saco”, tentando dar um outro sentido à sua
“brincadeira”. A seguir, o desdobramento do diálogo da professora e do aluno:
Marcelo se volta para a professora e diz: “PARA DE ENCHER O SACO”, gritando alto.
Imediatamente, a professora interpela Thiago e pede que ele chame a pedagoga para
conversar (observo que os conflitos em sala de aula são sempre mediados também
pela pedagoga). Então, Marcelo fala: “EU NÃO QUERO FAZER ESSA MERDA”, referindo-se
à tarefa. A professora, então, diz: “AH! É MERDA, ENTÃO ME DÁ A ATIVIDADE E SAIA DA
SALA”.
Nesse episódio, fica evidenciado como o poder disciplinar se exerce nas relações
estabelecidas no cotidiano da escola. A professora questiona a atitude do aluno e ele
tenta lhe explicar que não há nada de “errado” no seu comportamento. Empurrar o
colega, às vezes, significa uma “brincadeira” que é compreendida e incorporada na
relação entre as crianças. Chamar a pedagoga para mediar a situação é uma forma de
a professora mostrar ao aluno que o poder é também exercido por outras pessoas que
fazem parte do contexto escolar. Nesse sentido, na educação infantil, vão se
estabelecendo modos de normalizar as atitudes das crianças, disciplinando seus
corpos por meio da vigilância permanente. Para Dornelles (2005, p. 54), “[...] esse
sujeito infantil é produto e efeito da disciplina, com sua subjetividade fabricada pela
docilidade e utilidade inscritas em seu corpo”. As crianças “tentam” resistir às normas
estabelecidas, utilizando, algumas vezes, comportamento mais agressivo, numa
tentativa de mostrar uma outra forma de se relacionar com seus pares.
No pátio, as crianças criam estratégias de controle e poder sobre os espaços
ocupados, permitindo ou não que o colega participe da brincadeira. A seguir, a cena
observada:
Algumas meninas pedem a um menino que não deixe ninguém se aproximar do lugar
em que elas estão brincando. De repente, um menino se aproxima e fica olhando de
perto. Uma menina grita: “GILMAR, NÃO TE FALEI PARA NÃO DEIXAR NINGUÉM ENTRAR
AQUI!”.
Na brincadeira, as crianças vão vivenciando regras de convivências, de controle dos
espaços conquistados e, nessa interação, elas vão exercendo o poder de como quer
brincar e em que lugar quer brincar. Continuo observando o pátio, meninas e meninos
estão brincando juntos. A professora de longe grita: “THIAGO VOCÊ VAI MACHUCAR SUA
COLEGA!”.
Júlia responde: “Tia, a gente tá brincando!”.
O que parecia uma violência para a professora, para Júlia é um comportamento
aceitável naquele momento da brincadeira. A relação das crianças é construída
mediando o confronto e a negociação e, dessa forma, nos lugares em que as crianças
transitam e vão se relacionando, é que elas vão se constituindo como sujeitos, a partir
das suas interações, combinações, desejos e tensões.
3.3 AS NEGOCIAÇÕES ENTRE AS CRIANÇAS
Só quem pode pintar é quem já acabou a tarefa.
(PATRÍCIA).
A professora distribui uma tarefa. Observo que tanto as meninas como os meninos se
levantam para copiar o dever do outro. À medida que vão fazendo, vão conversando
sobre assuntos diversos: onde moram, pedem opinião sobre o que desenhar e a cor
que vai usar. Patrícia avisa que acabou a tarefa. E ela é imediatamente disputada por
Indiomara e Marcelo, porém ela se senta e começa a colorir a sua atividade. Tiago se
aproxima para pegar o lápis de cor, ela nega e diz: “Só quem pode pintar é quem já
acabou a tarefa”. A professora, percebendo a disputa das crianças, fala: “Quem não
acabar o dever não vai para o recreio”.
Foucault (2006) evidencia que o poder penetra na vida cotidiana dos sujeitos, que vão
construindo formas de falar e agir por meio das práticas e relações estabelecidas que
procuram regular os corpos. Nesse sentido, observa-se que não só os adultos, mas
também as crianças criam estratégias de poder em suas relações.
A fala da
professora, nesse momento, também assume a tarefa de determinar os lugares que os
alunos vão ocupar caso não cumpram o que foi determinado. Ela exerce o poder do
adulto sobre a criança, controlando a disciplina na sala de aula. A seguir, uma cena
observada na sala de aula:
Ao lado, Indiomara e Júlia estão disputando o copinho para colocar as sobras das
pontas de lápis. Há uma resistência e inconformismo de Indiomara em aceitar que só a
Júlia possa usar o copinho para depositar as sobras das pontas de lápis. As duas
remexiam o copinho de um lado para outro. É interessante a interpretação de Foucault
(2006, p. 105), quando evidencia que onde há poder há resistência. Para entender
como essas relações de poder e de saber atravessam os tempos e os espaços na
educação infantil, é relevante recorrer às suas ideias quando afirma:
Temos que admitir que o poder produz saber [...]; que poder e saber estão
diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição
correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua,
ao mesmo tempo, relações de poder (1995, p. 30).
Para esse autor, o poder não somente reprime, mas também produz efeitos de
verdades e saber. O poder está em todas as partes, uma pessoa está atravessada por
relações de poder. O poder não está localizado num único ponto e sim disperso em
toda a sociedade, agindo de forma circular. Desse modo, seguindo a referência de
Foucault (2008, p. 183), o poder se exercita a partir de muitos pontos e em várias
direções. Nesse sentido, o citado autor esclarece:
O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que
só funciona em cadeia. Nunca esta localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos
de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou bem. O poder funciona e
se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam mas estão
sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o
alvo inerte ou consentido do poder , são sempre centro de transmissão.
Assim, Foucault (2008) esclarece as técnicas específicas de conhecimento e poder por
meio das sociedades ocidentais. Ele nos ajuda a compreender acerca das
transformações históricas das instituições na sociedade entre elas: as escolas, as
prisões e os hospitais. Por sua vez, Jardine (apud FOUCAULT, 2007, p. 15) afirma: “A
minha principal preocupação será a de localizar as formas de poder, os canais que
assume, bem como os discursos que permeia de modo a alcançar os mais ínfimos
modos de comportamentos individuais”. Foucault, em seus estudos, identificou o
quanto é relevante tomarmos conhecimento dos atos de poder que governam nossas
expectativas em relação às crianças que transitam no espaço escolar. Ele afirmou que
as ideias, os entendimentos e a posse do poder variam de sociedade para sociedade,
de cultura para cultura. Em seu livro “Vigiar e Punir”, Foucault (2003) traz uma
importante contribuição quando relata os modelos de poder nas várias sociedades e a
forma como esse se relaciona com as pessoas.
E o poder disciplinar, na escola, desvia, amplia ou limita as manifestações corporais
das crianças? Torna mais fácil ou mais difícil as experiências de ser menina e ser
menino no cotidiano escolar? A seguir, uma cena observada durante o recreio quando
percebo a relação de poder entre duas meninas:
Patrícia está chorando, aproximo-me e pergunto por que ela está chorando.
Ela responde que Júlia não quer brincar com ela.
Pergunto qual o motivo.
Ela fala que desenhou no caderno de Júlia e ela não gostou (DIÁRIO DE CAMPO, 21-10-2008).
Nesse episódio, fica evidenciado que a amizade entre as crianças é estabelecida
quando uma agrada a outra. O jogo de poder torna-se evidente, quando as crianças
precisam que a outra aprove a sua atitude, dando-lhe um lugar de pertencimento no
grupo. Patrícia, pelo choro, evidencia que foi excluída de brincar com a Júlia e se
coloca no lugar de “vítima”. Esse registro mostra que as crianças tendem a se
relacionar com os pares que lhes agradam e tentam se distanciar daquelas que
desagradam. Segundo Foucault (2008), o poder está em todas as partes, em todas as
relações, num movimento contínuo, ou seja, entre meninas e meninas, meninos e
meninos e entre meninas e meninos. Nesse registro, o poder assume o papel de
punição, excluindo aquela ou aquele que desagrada, assumindo a forma disciplinar de
controlar as ações das crianças e, desse modo, os lugares vão sendo instituídos no
cotidiano escolar de ruptura ou aproximação.
Durante o recreio, observei uma situação em que a relação de poder é estabelecida,
quando uma criança determina quem vai brincar e qual vai ser a brincadeira. Nesse
momento, foi possível perceber como as crianças, com seus pares, criam estratégias
para enfatizar seus sentimentos: o que pode ser feito, o que é aceito, colocando em
evidência o seu poder, regulando o lugar a ser ocupado nas brincadeiras. Assim, as
crianças, em suas relações sociais, vão criando seus próprios significados e
mecanismos de ação e expressando certa dose de exercício de poder:
Pesquisadora: Maria Clara, porque você está chorando, o que houve?
Maria Clara: Patrícia não quer brincar comigo.
Patrícia escuta, aproxima-se e diz: Eu deixo, tia, eu não quero é brincar com a Júlia, porque ela é
metidinha, ela acha, porque vem sem uniforme, só ela é que é bonita. Não é ela só que é bonita! Eu não
vou deixar ela brincar com a minha brincadeira.
Pesquisadora: E qual é a sua brincadeira?
Patrícia: É a que eu estou brincando com Brondim.
Pesquisadora: Olho e vejo uma caixa de letrinhas coloridas! (DIÁRIO DE CAMPO, 5-10-2008).
Nessa observação, fica evidente que Patrícia está investida de poder, pois foi ela que
instituiu a brincadeira. Então, nesse momento é ela quem manda e diz com quem ela
quer brincar. As crianças vão incorporando no seu cotidiano práticas vivenciadas na
escola em relação aos lugares instituídos e demarcados pelos adultos, na rotina
escolar. Nesse sentido, é possível afirmar que toda atividade humana está ligada ao
vivido, a memória. E, assim, as crianças vão repetindo as normas de conduta já
elaboradas dando outras formas a partir das suas experiências. A seguir, um diálogo
que exemplifica como as relações vão se estabelecendo a partir das subjetividades de
cada criança na hora do pátio:
Na hora do recreio Brondim se aproxima e eu lhe pergunto por que brigou com o Thiago.
Brondim responde: Ah! Tia, ele queria bater no Marcelo.
Pesquisadora: E o Marcelo não se defendeu?
Brondim: Ah! O Marcelo é fraquinho!!! O Thiago só gosta de bater em que é fraquinho; nos fortes ele não
bate.
Pesquisadora: E quem é forte?
Brondim: Na sala? Eu e Wellison (ele é grandão!!!) (DIÁRIO DE CAMPO, 19-11-2008).
Foto 8 - As tensões na sala de aula
As crianças, por vezes, evidenciam, em suas brincadeiras e nas situações de conflito,
como o poder é exercido no espaço escolar e nas suas relações estabelecidas com
seus pares, representando papéis conforme as posições que assumem com alguns
colegas e não com outros, quando expressam: “Ah! o Marcelo é fraquinho!!! O Thiago
só gosta de bater em que é fraquinho; nos fortes ele não bate”. Segundo Louro (1998,
p. 43) é: “No interior das redes de poder, pelas trocas e jogos que constituem o seu
exercício, são instituídas e nomeadas as diferenças e desigualdades”. A fala de
Brondim denuncia a estrutura de poder que transita no cotidiano, por via dos discursos,
o mais forte é aquele que sempre vence, que impede, que nega. E a criança vai
vivenciando esses discursos como “verdades”, enfrentando o outro nas suas
experiências e tensões cotidianas.
3.4 AS CRIANÇAS BURLANDO OS TEMPOS E ESPAÇOS
O dinamismo das interações estabelecidas pelas crianças faz com que elas percebam
que podem subverter as normas e regras estabelecidas pelos adultos nos espaços por
elas ocupados, conforme registro no diário de campo (22-10-2008):
As crianças estão fazendo atividade na sala. Indiomara se aproxima da professora e lhe pede para ir ao
banheiro. Imediatamente, Patrícia e “João Pedro” também solicitam à professora e ela lhe diz para
esperar Indiomara voltar. Porém “João Pedro” percebe que a professora está envolvida nas tarefas da
sala e se dirige à porta da sala, antes, ela olha em minha direção e sai. A professora não percebe que
“João Pedro” saiu da sala. Quando ela voltou, aproximei-me e perguntei:
Pesquisadora: Você foi ao banheiro?
“João Pedro” sorri e balança a cabeça num gesto afirmativo.
Pesquisadora: Você pediu à professora?
“João Pedro” fica em silêncio e apenas sorri.
O episódio nos permite notar que as crianças vão explorando os espaços e as
situações. Elas sabem que nem sempre a vigilância e o controle por parte dos adultos
vão impedi-las de burlar e realizar os seus desejos pessoais, como ir ao banheiro,
beber água ou sair da sala para dar uma “voltinha” na escola. A “fuga” é uma forma de
expor que ela pode transgredir o que não é permitido, resistindo às regras que lhes são
impostas no universo da escola. Outro fato que aconteceu no retorno do recreio
exemplifica bem a resistência das crianças em relação às recomendações feitas pelos
adultos.
“João Pedro”, Felipe Massa e Thiago saem da sala com uma bola e ficam jogando no
corredor. Logo de imediato, a professora não percebe. Da porta da sala tiro uma foto,
porém a brincadeira continua até a professora chamá-los para a sala. Há uma
resistência por parte dela e deles, então, a professora pega a bola e acaba com a
brincadeira.
É interessante a interpretação de Sarmento (2006) em uma entrevista, quando
enfatiza:
[...] Cada criança vive no interior de um sistema simbólico que administra o
espaço social. Quer dizer, quando nasce a criança vai entrar um num mundo
em que lhe é permitido fazer certas coisas e outras são interditadas, onde é
conduzida a comportar-se e a pensar de determinados modos e onde outros
modos de pensar ou de se comportar são reprimidos [...].
A criança, por menor que seja, percebe os limites impostos pelos adultos e vai
entendendo que, muitas vezes, não pode sair fazendo tudo que deseja e pensa; mas
pode burlar algumas regras instituídas. O mundo social e cultural da criança é povoado
por muitas pessoas e se faz por meio de trocas intensas que vão constituindo sentidos
e significados das suas experiências. A criança amplia seu campo de exploração dos
espaços e vai reproduzindo gestos e ações e, assim vai (re)inventando modelos do
mundo adulto, interpretando papéis e funções da sua vivência no/do cotidiano.
3.4.1 Burlando as regras na hora do recreio...
Explorando os espaços físicos da escola e as relações estabelecidas entre as crianças
na hora do recreio, observei que, no pátio do CMEI Semeando a Vida, não tem
brinquedos para as crianças maiores. A professora geralmente solicita aos meninos
que levem a caixa de pinos para o recreio.
Ao chegar ao pátio, há sempre uma disputa para ver quem pega mais pinos. As meninas disputam o
espaço com os meninos e, quando não conseguem, pedem ajuda à professora ou vão procurar outra
brincadeira. No pátio, em um espaço reservado para o berçário, tem alguns brinquedos, porém a norma
estabelecida pela escola é que as crianças maiores não podem brincar com esses brinquedos. Todavia,
as crianças do Pré transgridem a norma estabelecida que especifica que não podem brincar com os
brinquedos guardados no canto do pátio que são destinados às crianças do berçário. Percebo que as
crianças vão construindo estratégias de poder para conseguir o que querem e desejam. Fica evidente
que as professoras do Pré fazem de conta que não estão vendo as transgressões das crianças como
uma forma de compreender que aquele espaço (o pátio) deveria ser utilizado sem normas autoritárias e
que as crianças estavam criando alternativas para brincarem naquele local sem brinquedos (DIÁRIO DE
CAMPO, 16-10-2008).
No espaço maior do pátio, não havia brinquedos. No canto reservado para o berçário,
havia alguns brinquedos, e as crianças maiores subvertiam a ordem e pegavam para
brincar.
Durante as brincadeiras no pátio, geralmente tinha uma menina que determinava a
maneira do brincar. A seguir, um diálogo entre as crianças exemplificando a relação de
poder estabelecida entre elas:
Júlia: Todo mundo vai se maquiar sozinha!
Patrícia: Então, eu não vou brincar. Você sabe que eu não posso me maquiar, eu sou crente!
A seguir Júlia retira da bolsa: sombra, brilho, baton de cores variadas e começa a se maquiar.
Júlia: Estou borrocada?
Maria Clara: Que legal! Você aprendeu a passar baton!
Júlia se aproxima e me pede para passar sombra nela da cor rosa.
Patrícia inconformada como a brincadeira que ficou acertada, tenta convencer a Maria Clara, Marcelo,
Felipe e “João Pedro” a brincarem com ela.
Então Maria Clara conversa com a Júlia tentando convencê-la: Você sabe que crente não se pinta. Você
é da igreja?
Júlia não responde!
Patrícia, a todo o momento ameaça Maria Clara dizendo que não vai mais brincar com ela. Logo após,
Patrícia percebe que Júlia está pintando Juliana e ela chama Júlia de mentirosa, pois o trato inicial da
brincadeira foi cada uma se pintar sozinha. Patrícia chora (DIÁRIO DE CAMPO, 6-11-2008).
Nessa observação, é possível afirmar que as crianças vão incorporando em seu
cotidiano algumas formas de controle e também de resistências em relação ao poder
por elas estabelecidas. Na educação infantil, as crianças aprendem a obedecer a
regras e normas na convivência diária, definindo papéis, lugares e comportamentos. É
o “poder disciplinar” para o qual Foucault (2003) nos chama a atenção como uma
técnica das práticas cotidianas exercidas entre os sujeitos, como uma forma de tornálos dóceis e obedientes. Em relação ao poder que circula e controla as manifestações
infantis, pude perceber, durante o recreio, uma cena em que Patrícia disputava um
brinquedo uma máquina fotográfica que era de Elisa, porém Patrícia não consegue
convencer que ela lhe empreste, então Júlia interfere dizendo: Por que que ela fez isso
com você, pois, tudo que eu quero ela me empresta. Júlia vai ao encontro de Elisa e
fala que não gostou do que ela fez. Imediatamente, Elisa empresta a máquina a
Patrícia. Percebo que Júlia exerce um lugar de poder no grupo, resolvendo conflitos na
sala, no recreio, no refeitório e nos demais espaços ocupados na escola. Os registros
seguintes exemplificam como Júlia tenta impor seu poder sobre as demais colegas:
Patrícia, Júlia, Indiomara estão brincando de pique-alto e de repente começam a discutir. Júlia tenta
propor uma nova forma de brincar. Patrícia e Indiomara não aceitam. Patrícia chora e Indiomara fala: A
Júlia sempre que resolver as coisas como ela quer.
Júlia responde: Patrícia quer sempre ser rainha de tudo!
Patrícia: Eu quero ser rainha das minhas coisas!!! (DIÁRIO DE CAMPO, 19-11-2008).
Nessa cena, percebi a resistência da Patrícia e de Indiomara em acatar o que Júlia
propõe. Foucault (2008) esclarece que o poder se exerce em rede, passa pelos
indivíduos, não é um fenômeno de dominação de um indivíduo sobre os outros; é algo
que circula. Faço essa colocação no intuito de reconhecer que as crianças exercem o
poder na direção supramencionada, vão se organizando e estabelecendo mecanismo
de aceitação e resistência. É possível perceber também, na cena a seguir, como Júlia
“organiza” a brincadeira, evidenciando algumas falas do mundo adulto ao exercer o
disciplinamento dos corpos: “Vão sentar e fiquem caladas”. Novamente Foucault (2003,
p. 117) esclarece a mecânica do poder quando afirma: “É dócil um corpo que pode ser
submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”. As
crianças, no cotidiano escolar, vão experimentando o disciplinamento e o adestramento
dos seus corpos, quando elas são tolhidas para não correrem, ficarem caladas,
sentadas por muito tempo e, assim, elas vão incorporando em suas brincadeiras o que
os adultos esperam delas. Na tentativa em refletir como as crianças vivenciam e
estabelecem estratégias de poder em suas brincadeiras, exemplifico com mais uma
cena observada:
Júlia, Indiomara, Maria Clara e Juliana estão brincando de maquiagem e se preparam para desfilar.
Júlia ordena que só duas vão desfilar, ela e Indiomara, as outras vão assistir.
Patrícia ajeita os cabelos de Indiomara.
Júlia e Indiomara enrolam a blusa para a barriga ficar aparecendo. Júlia orienta como deve ser o desfile.
E fala: Ensaia aí, ensaia aí...
Patrícia se aproxima com duas meninas do outro Pré. Imediatamente Júlia fala: Elas não vão brincar,
elas vão ser o público.
Júlia orienta: Vão sentar e fiquem caladas. Uma menina não entende e fica em pé.
Júlia diz: Eu estou precisando de um remédio, estou perdendo a paciência!
Patrícia apresenta o desfile chamando Indiomara e Júlia.
Indiomara desfila rebolando!
Patrícia pede: Palmas, Palmas...
Patrícia pede: Agora a dança do Creu!
Júlia e Indiomara começam imediatamente a dançar balançando a bunda e fazendo gestos sensuais.
Brondim se aproxima e fica olhando, depois comenta: Vocês são umas doidonas!!! (DIÁRIO DE CAMPO,
9-9-2008).
Nessa cena, observei como as meninas têm internalizado as representações
erotizadas do corpo por meio das músicas veiculadas pela mídia. Felipe (2005, p. 54)
alerta que “[...] corpos masculinos e femininos não têm sido percebidos e valorizados
da mesma forma”. Para a mídia, o corpo feminino virou um produto de consumo,
diariamente exibido nas propagandas, outdoors, novelas, filmes e revistas O corpo da
mulher é visibilizado de forma a defini-lo como sensual e erótico. Analisando a fala de
Brondim, percebe-se que, apesar do apelo midiático ao corpo, ele desaprova o
comportamento das meninas, pois, talvez por questões culturais e religiosas em seu
entorno (escola, família, igreja), ele ainda reconheça como “comportamento de menina”
a passividade, o recato.
Ao voltar do recreio, observo, na sala de aula, que Indiomara e Yasmin estão
disputando uma cadeira. Então me aproximo e mostro uma cadeira vazia. Yasmin
responde: “Essa cadeira é do Thiago eu não posso sentar aí, senão ela me bate e me
empurra”. Percebo que as meninas têm receio em disputar alguma situação com o
Thiago, em função do seu modo agressivo de empurrar e bater. Logo depois, Felipe
Massa se senta na “cadeira” do Thiago, então, ele chega, dá um murro no Felipe
Massa e continua batendo, até que a professora se aproxima e interfere solicitando que
Thiago peça desculpa ao colega e lhe dê um abraço. Thiago coloca as mãos nos
ouvidos sem querer ouvir a professora. Na atitude do Thiago, é possível perceber que
ele tenta resistir à solicitação e imposição da professora. O disciplinamento sobre as
crianças na educação infantil, muitas vezes, privilegia a contenção dos corpos como
normal, como “natural”, exigindo das crianças atitudes que não querem e não desejam
realizar. É nessa tensão que os adultos e crianças vão experienciando ensinamentos e
aprendendo juntos o lugar que ocupam. Nesse sentido, concordo com Meireles (2008,
p. 60), quando afirma:
Se a relação adulto-criança é marcada por uma tensão permanente que diz
respeito à zona de constantes negociações, ensinamentos, aprendizados e nela
se produzem tanto os sujeitos infantis quanto os adultos, é nas relações
estabelecidas entre os adultos e as crianças no contexto escolar que se
produzem também os sujeitos professor e alunos.
No cotidiano da educação infantil, há inúmeras experiências, de afetos e tensões entre
as crianças e os adultos que vão constituindo as diversas linguagens corporais, sociais
e culturais, que irão legitimar e ampliar as novas formas de expressões e capacidade
de compreensão das diferenças, que, por sua vez exigem tanto do adulto como da
criança a sua percepção em relação ao outro do que quer, do que sabe, do que
imagina, do que necessita, do que deseja e do que espera (LARROSA, 2006). É
importante destacar a afirmação de Foucault (2006, p. 105) “[...] onde há poder há
resistência”. Assim, as crianças, ao criarem formas de transgressão e resistência às
práticas educativas, anunciam possibilidades de novas formas de autonomia. No
espaço escolar, visualizamos a disciplina, as normas, o enquadramento, exigindo da
criança o silêncio, a obediência e a quietude, produzindo efeitos sobre o corpo e a
mente. Na educação infantil, é que começamos a separar os sujeitos, classificando-os
e ou hierarquizando-os. Louro (1997, p. 58) argumenta: “A escola delimita espaços.
Servindo-os de símbolos e códigos; ela afirma o que cada um pode (ou não pode)
fazer. Ela separa e institui. Informa o ‘lugar’ dos pequenos e dos grandes, dos meninos
e das meninas”.
Isso aponta o quanto o processo de socialização das crianças por meio da instituição
escolar, família, mídia televisão, cinema, livros, propaganda e brinquedos, vai produzir
discursos e significados que implicam relações de poder. Como pesquisadora, por meio
dos conceitos foucaultianos, busquei compreender como, nas relações sociais, as
crianças aprendem e constroem seus saberes infantis e (re)significam esses saberes e
poderes em suas relações cotidianas. Durante a pesquisa em campo, constatei que é
na relação com o outro que ela constitui seus valores sociais. Nesse sentido, é pela da
interação
que
a
criança
vai
internalizando
crenças,
valores
e
modos
de
comportamentos, que são adquiridos na relação estabelecida com seus pares, na
família e nas instituições que ela frequenta. Assim, é importante pensar como esses
mecanismos sociais normatizam, disciplinam, regulam o ser menina e o ser menino. Na
visão de Louro, as(os) pesquisadoras(os) devem estar atentas(os) às práticas
escolares cristalizadas que acontecem como “naturais” no cotidiano, esclarecendo que
:
Nosso olhar deve se voltar especialmente para as práticas cotidianas em que
se envolvem todos os sujeitos. São, pois, as práticas rotineiras e comuns, os
gestos e as palavras banalizados que precisam se tornar alvos de atenção
renovada, de questionamento e, em especial, de desconfiança. A tarefa mais
urgente talvez seja exatamente essa: desconfiar do que é tomado como
“natural” (Louro, 1997, p. 63).
É indispensável enxergar como se articulam os conceitos de saber e poder que
atravessam o dia a dia da instituição escolar. Como são fabricadas formas de ser
menina e ser menino. Portanto, as identidades são sempre construídas; elas não são
dadas ou acabadas num determinado momento (LOURO, 1997). Essas marcas vão se
constituindo por meio das diversas experiências do ser humano no desenrolar da sua
história. Na pesquisa em campo, constatei que a escola é um espaço cultural de poder
com significados sociais e históricos que procura dá sentido aos modos de ser menina
e menino que me possibilitou analisar a construção do sujeito feminino (menina) e
masculino (menino) no âmbito escolar. Como as crianças constituem as formas de viver
a feminilidade e a masculinidade? Quais os mecanismos utilizados nos diversos
espaços e tempos da escola?
4 DESVENDANDO O CORPO
4.1 A DINÂMICA E OS SINAIS DOS CORPOS
O que é que faço eu sou maluquinho, tô cheio de
mulher, cada um pega um pouquinho. Não quero
perder ninguém (FELIPE).
A Lagarta e Alice olharam-se por alguns tempo em
silêncio. Por fim, a Lagarta tirou o narguilé da boca e
dirigiu-se a Alice com uma voz lânguida e sonolenta.
‘Quem é você?’, disse a Lagarta. Não era um começo
de conversa muito estimulante. Alice respondeu um
pouco tímida: ‘Eu... eu... no momento não sei, minha
senhora... pelo menos sei quem eu era quando me
levantei hoje de manhã, mas acho que devo ter
mudado várias vezes desde então’ (CARROLL, apud
BUJES, 2002, p. 155).
A estrutura social do mundo capitalista tem favorecido um controle cada vez maior dos
tempos espaços na escola. Há variadas estratégias que são utilizadas no espaço
escolar com o intuito de conter, controlar os corpos das(os) alunas(os). Essas práticas
podem nos indicar como a criança lida com seu corpo e manifesta sua sexualidade nos
diferentes tempos e espaços da escola. Nesse sentido, Guacira Louro (2007, p. 1)
enfatiza:
Um corpo escolarizado é capaz de ficar sentado por muitas horas e tem,
provavelmente, a habilidade para expressar gestos ou comportamentos
indicativos de interesse e de atenção, mesmo que falsos. Um corpo
disciplinado pela escola é treinado no silêncio e num determinado modelo de
fala; concebe e usa o tempo e espaço de uma forma particular. Mãos, olhos e
ouvidos estão adestrados para tarefas intelectuais, mas possivelmente
desatentos ou desajeitados para outras tantas.
No universo escolar, são utilizadas diversas formas de poder para conter os corpos que
nela transitam. O brincar é limitado a um tempo e espaço, quando e onde as crianças
procuram romper o cerco destinado a controlar e vigiar os seus corpos. As crianças
buscam de todas as formas de resistir às imposições e as estratégias disciplinares
exercidas em relação a seus corpos. Para Foucault (2008, p. 146), quando o poder é
usado sobre nosso corpo, “[...] emerge inevitavelmente a reivindicação do próprio corpo
sobre o poder”. Esse processo de docilização é iniciado e, constantemente, produzido
pelas principais instituições: a família, a igreja, a escola. É no corpo que se instituem as
marcas, os estereótipos, e é nele que se investem principalmente as disciplinas para
que ele seja docilizado e higienizado. Assim, Foucault (2003, p. 119) afirma:
Houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo
de poder [...]. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o
esquadrinha, o desarticula e o recompõe [...]. A disciplina fabrica assim corpos
submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’.
Na obra de Foucault, “Vigiar e punir” (2003), ficam visíveis as estratégias e técnicas
para escolarizar e domesticar o corpo humano. O filósofo descreve como o corpo
humano entra numa maquinaria de poder e que a finalidade das disciplinas é a
fabricação de corpos submissos e exercitados, “corpos dóceis”.
Interpretando o pensamento de Foucault, a professora Meyer (2003, p. 34) esclarece:
A ciência do século XIX que classifica e analisa o corpo no seu detalhe que vai
legitimar uma educação do corpo para torná-lo útil e produtivo. [...] o corpo
neste momento era visto como um corpo que não pode nem desperdiçar forças,
nem exercitar-se além do desejado – o corpo produtivo.
O capitalismo investe no corpo máquina, que produz. “A disciplina aumenta as forças
do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em
termos políticos de obediência)”, assevera Foucault (2003, p. 119). Nessa perspectiva,
o corpo precisa ser domesticado e controlado. Segundo Foucault (2003, p. 118), “[...] é
dócil o corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser
transformado e aperfeiçoado”. Era preciso governar os corpos, a emergência do
capitalismo no corpo disciplinado, manipulado, modelado e treinado para atender aos
seus interesses, produzindo o máximo possível da sua força produtiva.
Também Bujes (2002, p. 42) esclarece que, nas práticas escolares, se torna fácil
identificar como o “[...] poder disciplinar atravessa o corpo infantil através de um
interesse crescente pelo monitoramento do desenvolvimento da criança”, numa
disciplina que exige um lugar previsível, num tempo previsível, fazendo coisas
previsíveis. A mesma autora assevera: “A infância, segundo esse entendimento, passa
a ser um campo privilegiado de intervenção social, de controle e regulação, de
exercício de poder e de saber” (p. 42). As marcas da escolarização, nos corpos
infantis, têm sido evidenciadas nas estratégias e práticas pedagógicas que tentam
vigiar, controlar, modelar e corrigir os corpos das meninas e dos meninos que transitam
pelo universo escolar infantil.
Bujes (2002, p. 34) ainda recorre às ideias de Foucault e reforça que era preciso
adestrar o corpo, “[...] tirando o máximo de suas forças, garantindo sua integração em
sistemas de controle eficazes e econômicos”. E continua a autora: “É o momento da
instituição das disciplinas como procedimento de poder que visa a obtenção de corpos
dóceis e úteis” (p. 34). Um corpo disciplinado, dócil, mantém uma mente disciplinada,
dócil, fácil de ser conduzida.
Para Foucault, o exercício do poder cria saber e o saber acarreta efeitos de poder.
Nesse sentido, o poder, segundo o filósofo, opera por meio de discursos,
especialmente os que veiculam e produzem verdade. As diferentes culturas vêm
inscrevendo as novas formas de representação dos corpos (belos, em formas, sem
defeitos) e nesse contexto social e histórico, os indivíduos vêm se apropriando do
corpo como uma representação de sua identidade.
Nessa perspectiva, recorro a Le Goff (1994, p. 8), quando afirma:
Os homens – no masculino e no feminino, na infância, na juventude, na
maturidade e na velhice, do nascimento até a morte – não vivem apenas no
meio dos objectos e dos pensamentos de todos os dias, vivem com seu corpo,
por meio de seu corpo. Este objecto de estudo da anatomia, da fisiologia, da
biologia, transformou-se também em objecto da história. As representações
colectivas do corpo, esse suporte de saúde, da doença, do exercício físico, da
sexualidade são diferentes, conforme as sociedades e as épocas. A história do
corpo só assume todo o seu significado ao nível do quotidiano.
O corpo é o veículo pelo qual o individuo se expressa. Segundo Rodrigues (1975, p.
47), “Estudar a apropriação social do corpo é estrategicamente importante para os
cientistas sociais uma vez que ele é sem dúvida, o mais natural, o mais concreto, o
primeiro e o mais normal patrimônio que o homem possui”.
Argumentando no mesmo sentido, Goellner (2005) enfatiza que o corpo não é apenas
um corpo, é também o seu entorno, não passa despercebido, é rigidamente
determinado pelas prescrições sociais do que cabe à mulher (menina) e do que cabe
ao homem (menino) e, assim, é constantemente transformado e reconstruído por
diversas culturas. O corpo é uma construção à qual são atribuídas diferentes marcas
culturais, em diferentes tempos, espaços, conjunturas econômicas, políticas e
históricas. Concordo com Goellner (2005, p. 29), quando diz: “Não são, portanto as
semelhanças biológicas que o definem, mas, fundamentalmente, os significados
culturais e sociais que a ele se atribuem”. As interações entre crianças e adultos
acontecem por intermédio de seus corpos que estão situados em um contexto sóciohistórico-cultural, que vai determinando e exigindo formas, gestos, expressões que vão
domesticando e influenciando cotidianamente o jeito de ser de cada um.
O corpo está em plena metamorfose. O indivíduo contemporâneo lida com a cultura,
com seus códigos morais que criam sobre os corpos os discursos. É por meio da
socialização que a criança vai internalizando crenças, valores e modos de
comportamentos, que são adquiridos na relação estabelecida com seus pares, na
família, nas instituições que ela frequenta e nos diversos espaços vivenciados (internet,
televisão, propaganda, cinema, revista etc.). Essas diversas linguagens implicam
relação de poder, pois investem no corpo sinalizando diversas formas de controle, por
exemplo: no jeito de vestir, de se comportar, de andar. Rosa (apud SANTOS, 2004, p.
19), ao se reportar ao corpo esclarece:
É nesta intersecção, entre aquilo que nos é dado [...] como herança biológica e
o que nos é dado como herança cultural, que construímos as representações
que constituem o acesso aos nossos corpos. Já não é mais só biologia [...], não
é mais só cultura [...]: o corpo que se produz aqui é resultado desta interação;
um corpo singular que não se reproduz [...] e, como híbrido, precisa sempre
dos dois. Biologia e cultura se hibridizam e constituem um corpo humano. É
esta trama que nos constitui.
Assim, o corpo é uma produção histórica que estabelece diversas formas de relação de
poder. O corpo é significado pela cultura e é, consequentemente, por ela alterado, por
meio dos hábitos, códigos, rituais e uma linguagem socialmente situada, que diz sobre
o que falar e sobre o que silenciar, o que mostrar e o que esconder. O corpo é,
portanto, uma construção sobre o qual são conferidas diferentes marcas, a partir de
múltiplos discursos. O corpo e a linguagem estão em constante desenvolvimento e
aprendizagem.
O ser humano, ao longo da história, vai construindo conhecimentos por meio do seu
corpo, na convivência, na relação cotidiana que estabelece com o outro. Esse outro
pode ser múltiplos artefatos, como a mídia, filmes, internet, revistas, músicas. E
também pode se encontrar nos espaços de trocas sociais, como a escola, família e
amigos, que fazem parte da cultura que vai internalizando modelos e modos de ser
homem e ser mulher e ser menina e ser menino. Nesse contexto, Andrade (2004) nos
ajuda a pensar o corpo como um construto social e cultural e, como tal, ele é alvo de
diferentes e múltiplos discursos. A literatura que tem examinado essa questão ressalta
que o corpo está em plena metamorfose e o indivíduo, ao mudá-lo, busca transformar
sua relação com o mundo, segundo o que as especificidades culturais de cada
sociedade valoriza em certos comportamentos, em detrimentos de outros. Essa
afirmação encontra suporte em Sant'Anna (2000, p. 237) que afirma que o
conhecimento do corpo, “[...] é por excelência histórico, relacionado aos receios e
sonhos de cada época, cultura e grupo social”. Nesse passo, Sant'Anna se refere à
exigência de conformidade aos modelos sociais do corpo e como ele vem se
transformando, se comunicando e se reconstruindo a partir dos significados atribuídos
pelos códigos de cada cultura, que vão se constituindo das expectativas corporais
socialmente esperadas em relação às meninas e meninos nos diversos lugares por
eles ocupados.
Nas palavras de Foucault (2008, p. 146), “[...] o domínio e a consciência de seu próprio
corpo só puderam ser adquiridos pelo efeito do investimento do corpo pelo poder: a
ginástica, os exercícios, o desenvolvimento muscular, a exaltação do belo corpo”. É a
cultura da malhação do corpo belo, sarado, lipoaspirado. Cada vez mais pessoas
buscam o corpo idealizado. Nesse sentido, o corpo é marcado pela cultura. Recebe
referências transitórias e assim ele vai se alterando com a passagem do tempo e
adquirindo novos códigos e linguagens.
Essa afirmação encontra suporte nas palavras Louro (1999, p. 15), quando exemplifica
o quanto os corpos são significados pela cultura, assinalando: “De acordo com as mais
diversas imposições culturais, nós os construímos de modo a adequá-los aos critérios
estéticos, higiênicos, morais, dos grupos a que pertencemos”. O corpo vai aprendendo
na história e carregando as marcas que foram produzidas nas práticas cotidianas que
não são fixas; são representações temporárias, efêmeras que vão se incorporando e
deixando marcas nos diferentes tempos e espaços. Goellner avalia que, mesmo sendo
transitórias, as referências elas “[...] não perdem seu poder de excluir, inferiorizar e
ocultar determinados corpos em detrimentos de outros” (2005, p. 33). Nesse mesmo
contexto, Goellner (2005, p. 33) evidencia: “Não é sem razão que o corpo jovem
produtivo, saudável e belo é um ideal perseguido por um número infinito de mulheres e
homens do nosso tempo cujos investimentos individuais demandam energia, dinheiro e
responsabilidade”.
A prevalecer nessa ótica de análise, trata-se de refletir as complexidades de diferentes
construções históricas que são atribuídas ao corpo da mulher (menina) e ao homem
(menino) em diferentes sociedades onde o corpo é produzido e (re)significado pelas
redes de poder.
Um longo aprendizado vai colocando as meninas e os meninos nos lugares que a
instituição escolar incorpora em seu cotidiano, penetrando no jeito de ser menina e ser
menino, apontando formas adequadas para as crianças ocuparem que são proibidas
ou permitidas. A escola desempenha com muita propriedade esse lugar de disciplinar
os corpos por um aprendizado eficaz, continuado e sutil. É interessante a interpretação
de Louro (1997, p. 61), quando enfatiza:
Gestos, movimentos, sentidos são produzidos no espaço escolar e
incorporados por meninos e meninas, tornando-se parte de seus corpos. Ali se
aprende a ouvir, a falar e a calar; se aprende a preferir. Todos os sentidos são
treinados, fazendo com que cada um e cada uma conheça os sons, os cheiros
e os sabores “bons” e decentes e rejeite os indecentes; aprenda o que, a quem
e como tocar (ou, na maior parte das vezes, não tocar); fazendo com que tenha
algumas habilidades e não outras [...].
No entanto, as crianças não são passivas a esses disciplinamentos dos seus corpos,
em virtude do acesso que elas hoje possuem, com os veículos de comunicação, que
vêm contribuindo para que elas questionem as relações de gênero no espaço escolar e
que envolvem relações muitas vezes desiguais de poder. Nesse sentido, percebi que
tanto as meninas quanto os meninos reagem, recusam ou aceitam essas formas de
feminilidade e masculinidade que a instituição escolar disponibiliza, estabelece e
reafirma como sendo a certa ou errada.
Há uma vigilância em torno da feminilidade e da masculinidade infantil por parte da
equipe escolar. A escola acaba reforçando essa divisão em atitudes rotineiras, como fila
separada, a preocupação com uma aluna que só brinca com meninos, o aluno que fica
constantemente com as meninas e, assim, as crianças vão aprendendo que seus
mundos devem ser separados e se acostumam com referências estabelecidas pela
escola, pela família, constatando que determinados gestos, comportamentos e falas
são mais adequados para meninas e ou para meninos.
A menina é ensinada a ter seu corpo resguardado na forma de sentar na sala de aula,
nas brincadeiras e nas interações com o sexo masculino; aos meninos não há esses
cuidados em relação à exposição do seu corpo. A ele são permitidas diversas
“ousadias” nesses espaços ocupados no contexto escolar. Assim, as crianças vão
internalizando funções diferentes aos seus corpos infantis e vão aprendendo identificar
diferentes formas de ser menina e ser menino nas suas relações com seus pares e
com os adultos. Foucault (2003, p. 117) nos evidência a mecânica de poder dedicada
ao corpo: “[...] ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde,
se torna hábil ou cujas forças se multiplicam”; esse poder que se situa no corpo social
penetrando no cotidiano escolar que se reflete nos brinquedos que são oferecidos tanto
para as meninas como os meninos, pois o brinquedo é um elemento cultural carregado
de estereotipias em relação à única forma de feminilidade e masculinidade inscrita na
cultura escolar que vai deixando marcas nas identidades infantis que estão se
constituindo nesse espaço, dando significados ao jeito de ser menina e ser menino.
4.2 CORPO E SEXUALIDADE: um início de reflexão
A sexualidade humana é um constructo cultural, tanto
quanto os hábitos alimentares e corporais. Nascemos
machos e fêmeas e a sociedade nos faz homens e
mulheres (MOTT, 1994, p. 6).
Oh! Mulher vem me pentear e maquiar! Eu quero me
maquiar, pois o meu namorado vem me buscar aqui
na escola (JÚLIA).
Foucault, em sua obra “História da sexualidade I”, investiga como se consolidou nos
últimos três séculos, a noção sobre sexualidade existente nas sociedades ocidentais. A
originalidade do autor é refletir a sexualidade num olhar até então não visibilizado,
como um dispositivo histórico de poder. O autor esclarece:
Todo relação é por conseguinte, uma relação de força e, portanto, uma relação
de poder. Por essa razão, o poder não se estabelece apenas de cima para
baixo, mas vem de todos os lados, é onipresente, induzindo continuamente
estados de poder localizados e instáveis (FOUCAULT, 2006, p. 103).
Foucault entende a sexualidade como um dispositivo de poder, o qual não se concentra
em um único ponto da sociedade, mas está presente, de forma circular, em todas as
relações entre homens e mulheres, meninos e meninas, professoras(es) e alunas(os).
Assim, é fundamental compreender o que significa o termo dispositivo para Foucault
(1986, p. 57):
Através deste termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto
decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações
arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas,
enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. O
dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos. Em
segundo lugar, entre esses elementos, discursivos ou não, existe um tipo de
jogo, ou seja, mudanças de posição, modificações de funções, que também
podem ser muito diferentes. Em terceiro lugar, entendo dispositivo como um
tipo que, em determinado momento histórico, teve como função principal
responder a uma urgência. O dispositivo tem, portanto, uma função estratégica
dominante.
O que Foucault esclarece é que os dispositivos podem ser de natureza política, de
natureza estratégica, de natureza sexual, religiosa etc. E que essas redes de
dispositivos de poder perpassam todas as relações como práticas ou relações de
poder. O século XVII, segundo Foucault, seria o início de uma época de repressão
própria das sociedades chamadas burguesas. A sexualidade humana, por meio da
história, manifestou-se por culturas e períodos de abertura sexual intercalado por
períodos de proibição. Na visão de Foucault (1988, p. 126):
A história da sexualidade, se quisermos centrá-la nos mecanismos de
repressão, supõe duas rupturas. Uma no decorrer do século XVII: nascimento
das grandes proibições, valorização exclusiva da sexualidade adulta e
matrimonial, imperativos de decência, esquiva obrigatória do corpo, contenção
e pudores imperativos da linguagem; a outra é no século XX; menos ruptura,
aliás, do que inflexão da curva: é o momento em que os mecanismos da
repressão teriam começado a afrouxar, passar-se-ia das interdições sexuais
imperiosas a uma relativa tolerância a propósito das relações pré-nupciais ou
extra-matrimoniais; a desqualificação dos perversos teria sido atenuada e, sua
condenação pela lei, eliminada em parte; ter-se-iam eliminado em grande
parte, os tabus que pesavam sobre a sexualidade das crianças.
Foucault descreveu muitos modos por meio dos quais o regime ocidental foi construído
historicamente em frente às questões de poder e sexualidade. Para o autor, a
sexualidade é uma construção histórica e social, faz parte dos mecanismos de
dominação do sujeito e dos grupos, através das relações de saber-poder. Assim, a
sexualidade humana tem uma história que é construída pelas diferentes culturas e
relações sociais, que pode se expressar de muitas formas. Isso significa que a
sexualidade está sempre aberta a novas significações.
Os temas sexualidade e gênero têm sido pouco pesquisados na educação infantil, mas
estão presentes no cotidiano mesmo que às vezes inviabilizados e ignorados. Segundo
Sayão (2007), a produção acadêmica carece de estudos nessa área. Nessa
perspectiva, é relevante a discussão da categoria gênero na educação infantil, pois é
também nesse espaço social que são evidenciados e construídos os valores e
expectativas da sociedade em relação ao ser menina e ser menino. O que alguns
estudos têm buscado problematizar é como essas expectativas e diferenças têm sido
produzidas e influenciado ao longo da história as construções sociais e culturais nos
diversos espaços ocupados pelas crianças, que também educam e produzem
conhecimentos. Segundo Louro (1998, p. 87): “São múltiplas as práticas sociais, as
instituições e os discursos que cercam os sujeitos, produzindo e reproduzindo
identidades, produzindo e reproduzindo diferenças, distinções e desigualdades”. Assim,
as crianças vão se expressando, se comunicando em suas experiências e nelas se
reconhecendo como meninas e meninos e aprendendo sobre si mesmas e sobre suas
relações com o meio em que está inserida.
4.3 CENAS DO COTIDIANO...
Quando eu crescer adoraria ser modelo!
Pesquisadora: Por que você acha bacana ser
modelo?
Ah! De ser modelo? Porque desfila na passarela,
tirando foto, sai na capa de revista, noticiário, nos
jornais. A modelo JÚLIAAAA é a estrela do País!
Quando eu crescer, eu vou ser modelo! (JÚLIA).
Após o jantar, as crianças retornam para a sala. Júlia, imediatamente, abre sua bolsa,
passa brilho mais uma vez nos lábios! Percebo que há uma preocupação com a
aparência da menina. Segundo Neckel (apud FELIPE, 2005, p. 55):
Se observarmos as propagandas de brinquedos dirigidas às meninas, veremos
que elas investem de forma importante na idéia de cultivo a beleza como algo
inerente ao feminino [...]. Outros itens se somam aos brinquedos, tais como
produtos de maquiagem, roupas e calçados, perfume etc, na tentativa de
reafirmar a beleza e a vaidade como algo natural.
A cultura do culto ao corpo bonito e belo, a cor do baton, a roupa e a boneca têm
penetrado de forma violenta no cotidiano das crianças e não é raro observar que as
meninas ficam extremamente instigadas em adquirir esses produtos que estão na
mídia. Esses desejos são percebidos nas falas e nas diversas interações das meninas
nos espaços e lugares por elas vivenciados. Destaca-se uma cena, no diário de campo
(22-10-2008) exemplifica o que se acabou de argumentar:
Júlia abre sua “poderosa” bolsa de maquiar e entrega alguns batons para Maria Clara e se senta cruza
as pernas e fala: “Oh! Mulher vem me pentear e maquiar!”. Imediatamente se forma um grupinho;
Indiomara, Maria Clara, Patrícia uma vai passando baton na outra. Gabriel se aproxima e fica olhando
em silêncio. Júlia fala outra vez: “Eu quero me maquiar, pois, meu o meu namorado vem me buscar aqui
na escola!”.
Nessa cena, observa-se que Júlia está se utilizando da maquiagem para se sentir
bonita e apreciada pelo “namorado”. Constantemente, assistimos a propagandas que
erotizam as crianças provocando certo ar de sedução, principalmente com as meninas.
Dessa forma, as meninas aprendem desde cedo, com esses discursos, que certos
comportamentos são adequados, quando se referem aos atributos que a sociedade, a
mídia, a internet vem construindo como “certos” para as representações de gênero e
sexualidade. E, assim, as crianças vão assumindo atitudes e posições que são tecidas
nas experiências vivenciadas que são submetidas pelo discurso mediático e nos
lugares em que elas transitam. Aprendem que a beleza exterior é algo a ser
conquistado. O desejo de ser modelo é um ideal a ser perseguido por muitas meninas
nessa cultura globalizada, que funciona como um valor de pertencimento ao mundo
midiático das revistas, jornais e noticiário, como tão bem explicitou Júlia em sua fala:
“Quando eu crescer, adoraria ser modelo! Ah! Ser modelo, porque desfila na passarela
tirando foto sai na capa de revista, noticiário, nos jornais. A modelo JÚLIAAAA é a
estrela do país. Quando eu crescer vou ser modelo!”.
Nessa fala, Júlia revela o seu desejo de ser vista, desejada e ter poder.
Em um determinado momento da pesquisa em campo, conversando com essa mesma
menina, ela expressou: “Eu fico com inveja que a menina tem um sapato que eu não
tenho! Eu quero trocar e aí a menina fala: ‘Chegue prá lá!” A mídia televisiva incita e
provoca constantemente o desejo nas crianças de consumir brinquedos, roupas e
calçados que são veiculados em diversos horários na TV de forma maciça. A reflexão
que aqui se coloca trata de desvelar um aspecto importante de ser analisado: como as
crianças se utilizam desses discursos da mídia para desejar e cobiçar objetos que são
valorizados pelo consumo e que expressam novos modos de se constituírem como
sujeitos e de serem reconhecidos pelos seus pares. Bruschi (2003, p. 92) contribui
analisando o consumo e afirmando: “[...] a identidade se tornou aplanada e trivializada
em termos de estilo, aparência e consumo onde cada um é definido pela sua imagem,
bens e estilo de vida”.
Em outra situação, observo que Indiomara veio novamente sem uniforme. Desta vez,
em função do dia chuvoso, ela está de calça cumprida rosa, blusa rosa e com
acessórios rosa: chapéu e sandália. A professora se aproxima e comenta comigo: “Ela
nunca vem de uniforme e sempre vem de saia curta”. Percebo que Indiomara vem
sempre produzida e com algo que chama a atenção não só das meninas e dos
meninos como também da professora. É relevante destacar como a professora analisa
a forma de a aluna se vestir, chamando a atenção do modo “ousado” de a aluna vir
para a escola. Nos diferentes espaços sociais, inclusive na escola, a menina é cobrada
para ter um comportamento de recato, quietude, como uma prática naturalizada no jeito
de ser menina.
Observando a sala, percebo que as crianças estão agitadas. Thiago fica mexendo nas
atividades das meninas, tentando riscar. Elas reclamam com a professora. O barulho
aumenta e a professora grita: “Eu não vou pedir silêncio ao Pré mais uma vez!” A turma
se acalma! Após a tarefa, a professora solicita que as crianças guardem os materiais,
pois está na hora do recreio. A professora se dirige às crianças dizendo que elas
podem escolher um brinquedo para levar para o pátio. Elas escolhem uma caixa de
pinos.
No pátio, as duas salas do Pré se encontram. Na turma do Pré A, as crianças ficam
mais soltas, e as do Pré B ficam sempre envolvidas com os pinos de montar. A
professora diz que sempre pede que as crianças tragam os pinos com a intenção de
que elas se ocupem e não fiquem correndo na hora do recreio. Ela me fala que tem
muito medo de que as crianças se machuquem. Será uma forma de controle dos
corpos? No espaço do pátio, não há brinquedos para as crianças maiores. Em um
pequeno local destinado para às crianças do Berçário, há um escorregador e alguns
brinquedos de plástico que imitam uma gangorra. As meninas e os meninos do Pré B
entram nesse espaço e pegam os brinquedos da turma do Berçário e começam
improvisar: algumas peças viram pranchas de surf (influência da novela Três Irmãs),13
carros e bancos. Nesse espaço, vários grupos são formados: meninas com meninas,
meninos com meninos e meninas com meninos. A professora do Pré se aproxima e me
fala novamente que sempre leva brinquedo para a hora do pátio, porque tem muito
medo de as crianças se machucarem. Percebe-se que as crianças do Pré ficam mais
sentadas em função do brinquedo que a professora traz com o objetivo de deixar as
crianças mais calmas.
Segundo Foucault (2003), o poder disciplinar fabrica corpos submissos e dóceis. Nesse
momento,
é
também
visível
que
muitas
crianças
procuram
transgredir
as
determinações brincando com seus pares de outras maneiras: correndo, inventando
papéis e objetos (carros, pranchas e barcos). Fica claro que as crianças, desde
pequenas, procuram transgredir algumas determinações revelando a sua energia,
expressividade e inventividades e, assim, junto com seus pares, vão produzindo e
reproduzindo cultura nos espaços e tempos por elas habitados.
O corpo vem, ao longo dos tempos, preservando diferentes modos de qualidades
socialmente valorizados: corpo belo, corpo bem tratado, corpo musculoso, corpo
malhado. As crianças não são indiferentes a essas representações vinculadas ao corpo
pela mídia, nos outdoors, TVs, cinemas que mostram os corpos com músculos
trabalhados, com mulheres e homens evidenciando a necessidade de se sentirem
desejados ao se mostrar ao outro. Tais imagens são minuciosamente escolhidas e
13
Novela apresentada pela Rede Globo, às 19h, muito mencionada pelas crianças no período da
pesquisa em campo.
acompanhadas de comentários que são veiculados pelas propagandas: quem é a boa?
Quem é a melhor? Quem é a n.º 1? Esses questionamentos são expressos no duplo
sentido, mostrando um corpo de biquíni, com roupas sensuais erotizando ao máximo
as propagandas. A publicidade exalta esses modelos de “corpos perfeitos” e, que no
imaginário infantil, as crianças vão se identificando com os modelos apresentados e
com os discursos veiculados pela mídia no cotidiano e, assim, vão rapidamente
externando e naturalizando as “boas” características femininas e masculinas para os
corpos. Goldenberg (2002, p. 16) afirma:
A preocupação com o corpo, a beleza e a preservação da juventude não é um
fenômeno recente. Contra a velhice o homem sempre lutou e o elixir da
imortalidade é uma fantasia que, hoje, mais do que nunca, é vendida em
terapias genéticas, tratamentos dermatológicos, cirurgias plásticas, reposições
hormonais, vitaminas.
Assim as crianças vão reproduzindo cultura, conforme registrei no diário de campo (2210-2008):
Uma menina se aproxima da professora e fala que um menino da sala do outro Pré disse que as
meninas são gostosas. O que uma criança está querendo dizer quando chama as meninas de gostosas?
De fato, nos últimos anos, a cultura do corpo-correio, corpo-recado, corpo-outdoor
(ROSA, 2004) vem se produzindo e incitando diariamente os indivíduos a consumirem
produtos de beleza que prometem a felicidade da “boa forma” aos seus corpos. O
corpo virou o objeto de consumo da vez, com os produtos, academias, plásticas e
remédios que transformam os corpos, dando-lhes beleza física a partir de
determinadas práticas que são interiorizadas por aqueles que apelam por sacrifícios
para adquirir um “belo corpo” como ponto de partida para sua identidade.
Após o pátio, as crianças se dirigem ao refeitório. Na fila, acontece de tudo: empurrões,
brincadeiras, brigas, músicas etc. Observo que Júlia não janta e sempre tem alguma
criança que lhe faz companhia. Hoje é Thais, (criança negra), que sempre é excluída
das brincadeiras. É uma forma que ela encontra de se sentir aceita no grupo. Depois
do jantar, as crianças vão para a sala de vídeo. A professora coloca um DVD que a
Júlia trouxe. Ela pergunta o que tem na fita? Júlia responde: “É uma fita que aparece ’O
Bilau’ do boneco”. A professora imediatamente se aproxima de mim e diz: “Angélica,
você me salva que tem mais experiência”, percebo a dificuldade dela em lidar com
questões do corpo e da sexualidade. O DVD conta a história de um sapo que coloca
música de rock e dança. Logo Felipe Massa se levanta e dança fazendo gestos de
quem estava tocando guitarra. A professora intervém e fala: “GENTE, VOCÊS NÃO ESTÃO
ASSISTINDO O DVD?”
Os meninos começam a cantar uma música de funk que está
passando no clip: esqueletos se rebolando insinuando cenas de sedução. Felipe Massa
e Brondim começam a dançar balançando a bunda, a professora fica incomodada e
retira o DVD. Os meninos reclamam e ela fala: “Gente, eu passei o DVD para os
meninos, agora eu vou passar para as meninas!”. O DVD é o da Xuxa. Os meninos
ainda desejavam vivenciar as músicas e fantasias da fita. Fica claro o mecanismo de
controle dos corpos, quando a professora retira, de repente, o DVD de música funk e
coloca o da Xuxa. Desse modo, pode-se entender o comportamento ‘generificado’, ou
seja, a escolha dos DVDs diferenciados para meninas e meninos. As crianças
organizam a dança das cadeiras (Júlia, Brondim, Felipe Massa, Thiago e Indiomara),
as meninas e os meninos dançam balançando a bunda. Portanto, a mídia incita
comportamentos e as crianças imitam sem saber o significado dessas expressões
corporais. De repente, a professora desliga o DVD e fala: “Todo mundo para a sala,
pois vocês não estão assistindo o DVD”. Marcelo reclama: “Poxa, professora, só as
meninas que podem dançar, a gente tava brincando de cabo de guerra”. Percebe-se
que faltou capacidade imaginativa da professora para enriquecer a atividade proposta
para o grupo, que seria importante ser compreendida e mediada por ela naquele
momento. Por meio da brincadeira, a criança internaliza a cultura e recria alguns papéis
do mundo adulto.
As crianças estão sentadas fazendo atividade, Indiomara se aproxima da professora e
fala que Brondim disse que é para ela não esquentar a perereca. A professora diz a
Brondim que não é para ele dizer essas coisas. A atitude da professora em não
problematizar a fala do aluno, tentando transferir a responsabilidade para a criança, em
relação à exposição da sua fala, contribui certamente para o silêncio, que, dessa forma,
vai regulando os gestos, os modos e a comunicação. Segundo Weeks (2007, p. 40)
“[...] a sexualidade é, na verdade, “uma construção social”, uma invenção histórica, a
qual, naturalmente, tem base nas possibilidades do corpo: o sentido e o peso que lhe
atribuímos são, entretanto, modelados em situações sociais concretas”. Desse modo,
pensando nas crianças, essas experiências e construções culturais é que a vão
dotando de valor e importância, à medida que são vivenciadas por elas. A fala da(o)
professora(o) é muito importante nesse contexto, pois ocupa um lugar preponderante
na mediação das relações das crianças com a cultura e suas descobertas.
O episódio a seguir, observado na sala de aula, exemplifica a relação das crianças com
a música:
Indiomara se aproxima e me pergunta se conheço a música do creu? Brondim se levanta e começa a
dançar, balançando o corpo para frente e para trás. As crianças veem e ficam agitadas. Marcelo,
Brondim e Felipe se deitam no chão e se remexem, fazendo movimentos alternados para cima e para
baixo.
Pesquisadora: Chego perto e pergunto: O que vocês estão fazendo?
Felipe responde: Creu!
P: O que é creu?
Felipe diz: Creu é creu!!!
E faz o movimento com o corpo para frente e para trás.
Patrícia : Tia, Creu é uma música!
Pesquisadora: Insisto e pergunto Brondim o que é Creu? Ele encosta seu corpo na parede e faz
movimentos para frente e para trás e fica sorrindo.
Marcelo, Felipe, Felipe Massa e Wellison fazem o mesmo movimento: ficam se esfregando na parede e
sorrindo.
Pesquisa: Aonde vocês ouvem a música do creu?
Marcelo responde: Toda noite passa um carro tocando a música do Creu, lá no cruzamento.
Pesquisadora: Aonde é o cruzamento?
Marcelo: É bem ali na pedra (DIÁRIO DE CAMPO, 16-10-2008).
O envolvimento de crianças com a música começa muito cedo ou até mesmo antes de
nascer, na fase intrauterina. Hoje, cada vez mais, assiste-se às crianças cantando e
dançando ao som de música com letras altamente erotizadas e preconceituosas, por
exemplo: “Um tapinha não dói”, a dança da garrafa e a dança do creu. As meninas e os
meninos dançam e repetem gestos carregados de erotismo. Muitas vezes, elas não
têm conhecimento e clareza daquilo que estão cantando e imitando. A naturalização da
erotização na cultura, por meio da música, com forte apelo sexual, tem adentrado no
universo infantil de forma preocupante e assustadora. A criança influenciada por esses
artefatos culturais, vai internalizando valores, modelos e preconceitos do mundo adulto
que ficam evidenciados em determinadas condutas, no jeito de ser menina e menino.
Para Sarmento (2004, p. 2), “O imaginário infantil constitui uma das mais estudadas
características das formas específicas de relação das crianças com o mundo”. Assim,
as crianças não são receptoras passivas das produções culturais dos adultos, da mídia
e da escola; elas vão se comunicando e estabelecendo regras, rituais, pactos e
segredos por meio do que observam, vivenciam e ouvem.
Foto 9 - Os segredos e pactos estabelecidos
Uma tarde, depois de eu ter observado as crianças nos diversos espaços e tempos da escola, escuto
Felipe e Brondim sorrindo e cantando a música: “Eu puxo seu cabelo, faço que você gosta, tô tapa na
bundinha, vou de frente, vou de costa” (DIÁRIO DE CAMPO, 20-10-2008).
As crianças, desde cedo, vão reproduzindo os valores, as discriminações, em relação
à mulher como um objeto sexual, deixando transparecer a erotização precoce
estimulada pela mídia. Isso suscita uma indagação: será que a criança, em contato e
exposta a esses valores transmitidos pela publicidade, acaba por influenciar o processo
da sua subjetividade de uma sociedade que vê o corpo como algo a ser explorado,
como uma forma de poder e de força? Weeks (2007, p. 46), em seu artigo “Corpo e
sexualidade”, provoca a discussão em relação às intricadas formas de poder que
sobressaem na nas relações afetivas e sexuais. E, assim, questiona: “Por que a
dominação masculina é tão endêmica na cultura? Por que a sexualidade feminina é
vista tão freqüentemente como subsidiária da sexualidade do homem? Quais são as
forças culturais que modelam nossos significados culturais?”.
Nesse sentido, as crianças vão se apropriando desses elementos culturais expostos
pela TV, mídia, filmes, brinquedos e internet, que exercem, de forma significativa, as
representações da sexualidade e de gênero em seus discursos e vão constituindo e
ensinando o jeito ser mulher e ser homem e, conseqüentemente, o jeito de ser menina
e de ser menino. Concordo com Silva (2007, p. 134), quando enfatiza: “A cultura é um
campo onde se define não apenas a forma que o mundo deve ter, mas também a forma
como as pessoas e os grupos devem ser. A cultura é um jogo de poder”. Assim, a
criança, desde cedo, vai aprendendo, por meio da cultura a que é submetida
diariamente, esse “jogo de poder” e vai estabelecendo processos de significações,
recriando o seu mundo e produzindo cultura:
Após brincarem no recreio e retornarem para a sala, as crianças faziam atividade proposta pela
professora, quando, de repente, Júlia mostra um dinheiro de papel dizendo que é de verdade. Thiago se
aproxima, segura seu pênis e diz: “Aqui, ô é que é de verdade!” Júlia chama a professora e ela diz para
ele não fazer isso e ir sentar-se (DIÁRIO DE CAMPO, 11-12-2008).
A escola, muitas vezes, prefere silenciar e proibir essas manifestações e linguagens
cotidianas das crianças, em vez de interpretar e problematizar a capacidade delas de
(re)inventar a cultura em suas experiências. As crianças não são passivas a todas
essas manifestações que são produzidas socialmente que vão incitando sua
curiosidade, sua imaginação, sua fantasia. Esse diálogo revela como a infância está
sendo constituída a partir dos artefatos culturais, como a música que é veiculada na TV,
nos rádios, CDs e nos espaços públicos que as crianças frequentam.
Nessa observação do diário de campo, fica evidenciado que, quando Júlia chama a
professora, ela quer revelar o lugar do adulto naquele momento e espera que a
professora tenha uma atitude em relação ao gesto do colega. Nesse sentido, Júlia
espera que a professora não seja uma mera observadora, porém a professora não
problematiza a situação e assume a postura de conter o corpo, evidenciando ao aluno
como uma atitude inadequada, a sua atitude e determinando que ele fique sentado. O
comportamento da professora nos permite perceber o poder que ela investe por meio
de uma marcação fixa aos modelos, regras já existentes, estabelecendo o que é “certo”
ou “errado”.
Nesse sentido, Foucault (1998, p. 117) afirma que a organização do tempo e dos
espaços
das
instituições
modernas,
dentre
elas
a
escola,
produzem
o
esquadrinhamento dos corpos por meio das regras de comportamento, das punições e
recompensas é “[...] ao corpo que se manipula, se modela se treina, que obedece ,
responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam”. A criança em seu processo de
socialização, vai internalizando valores, crenças, normas sociais que vão contribuir
para o processo de formação social, corporal e cultural que são transmitidos por ela,
por meio da fala, dos gestos e das brincadeiras.
Em sua pesquisa sobre gênero e infância, Wolff (2006, p. 18) ressalta: “Na voz das
crianças podemos notar que, desde pequenas, elas já se acostumam a ‘classificar’
determinados hábitos, comportamentos gestos, falas e atitudes como sendo
adequados
e
próprios
para
homens
e
mulheres”.
Nesse
sentido,
nós,
pesquisadoras(es), temos que nos desafiar cotidianamente a reiterar a importância de,
cada vez mais, aprender a ouvir as crianças nas suas diferentes infâncias e culturas.
As crianças vão construindo suas identidades nas experiências com o ambiente físico e
social e, assim, vão captando e elaborando formas de ser menina e menino nas
relações sociais. Louro (1997, p. 27), ao abordar esse assunto em suas pesquisas,
assinala que “[...] as identidades são sempre construídas, elas não são dadas ou
acabadas num determinado momento”. A criança vai construindo sua identidade
mediante suas relações, na escola, na família, na rua, com seus pares, nas
brincadeiras. A identidade é dinâmica, transitória e vai sendo construída de diferentes
formas nas diversas culturas e representações infantis.
Outra cena observada na pesquisa de campo foi a música como um artefato cultural
que favorece ao menino uma visão empobrecida das relações estabelecidas entre o
homem e a mulher que são carregadas de preconceitos:
Felipe se aproxima e começa a cantar: “O que é que faço, eu sou maluquinho, tô cheio de mulher, cada
um pega um pouquinho. Não quero perder ninguém”. Pergunto aonde ele ouviu essa música? Felipe
responde: “Tiago, amigo de Brondim que me ensinou!” (DIÁRIO DE CAMPO, 22-11-2008).
Aos meninos é ensinado desde cedo que o homem deve ser o “pegador”, atribuindo a
condição de ser macho aquele que tem várias namoradas, que é machista, moleque e
esperto. Os meninos aprendem entre si algumas atribuições sexistas que são
naturalizadas por grande parte dos adultos com quem eles convivem. Na educação
infantil, embora o ambiente esteja a cargo basicamente de mulheres, percebem-se
algumas atitudes que são carregadas de significados que reforçam, muitas vezes,
habilidades e competências diferenciadas por sexo e gênero. Tanto as meninas quanto
os meninos vão interpretando esses comportamentos como atribuições femininas e
masculinas, que muitas vezes são justificadas pelas diferenças biológicas. A pesquisa
de Finco (2007, p. 102), aponta:
Meninos e meninas desenvolvem seus comportamentos e potencialidades no
sentido de corresponder às expectativas quanto às características mais
desejáveis para o masculino e o feminino. Muitas vezes a escola orienta e
reforça diferentes habilidades nos meninos e nas meninas, de forma sutil,
transmitindo expectativas quanto ao tipo de desempenho intelectual mais
adequado para cada sexo, manipulando sanções e recompensas sempre que
tais expectativas sejam ou não satisfeitas.
Assim, as crianças controlam seu comportamento pelos limites impostos pela escola,
vivenciando o que é permitido e o que é proibido, porém, muitas vezes, elas burlam
essas regras, de acordo com seus desejos, necessidades e, dessa forma, vão
exercendo sua imaginação e fantasia.
No pátio, na hora do recreio, Júlia me chama e pede que eu tire uma foto sua. Percebo
que Júlia está fazendo de conta que está grávida.
Pesquisadora: Júlia, você está grávida?
Júlia: Sim, estou! O safado de alguém me largou e ficou com outra. Eu vou ficar com minhas filhas
(DIÁRIO DE CAMPO, 05-10-2008).
Júlia continua me pedindo para tirar várias fotos e faz muitas poses. De repente Júlia
me fala que o neném vai nascer! Indiomara me chama para ver o parto. Júlia se deita
em um escorregador do berçário que é improvisado como uma cama. Indiomara faz o
parto com ajuda de Maria Clara e Juliana. Júlia coloca a blusa que estava fazendo de
conta que era o bebê e põe nos braços como se tivesse amamentando. Thiago chega
perto e puxa dos braços de Júlia a camisa e sai correndo. Júlia sai correndo atrás e
depois de um tempo Thiago joga a camisa no chão. Júlia coloca a camisa de novo na
barriga e fica grávida novamente e diz: Não tem problema eu tenho meu filho mês que
vem! (DIÁRIO DE CAMPO, 5-10-2008).
Foto 10 – (Re) significando o mundo adulto
4.4 AS INTERAÇÕES DAS CRIANÇAS
Sou a Barbie girl. Se você quer ser meu namorado,
fique ligado, preste atenção na minha posição é
diferente, sou muito inteligente. Ande Barbie, Ande
Barbie... Já vou... Já vou... (JÚLIA, cantando a música
de Kelly Key)
No recreio, fiquei observando um diálogo entre duas meninas:
Patrícia se aproxima de Júlia e pergunta:
Júlia, você gostou da Barbie que lhe dei?
Júlia balança a cabeça dizendo que sim.
Pesquisadora: Você gosta da Barbie?
Júlia: Eu nunca tive uma Barbie, a Patrícia me deu uma que parece a Barbie.
A boneca que Patrícia deu a Júlia imita a Barbie. Tem diversos acessórios: bota, chapéu, anel e bolsa.
De vem em quando, Júlia tira a boneca da caixa e fala que vai arrumar a filha para ir ao baile.
Dirijo-me a Patrícia, Indiomara e Júlia e pergunto novamente: Vocês gostam da Barbie por quê?
Então Júlia começa a cantar: “Sou a Barbie girl. Se você quer ser meu namorado, fique ligado, preste
atenção na minha posição é diferente, sou muito inteligente. Ande Barbie, Ande Barbie... Já vou... Já
vou...
Pesquisadora: E a Barbie tem namorado?
Júlia: Não, é a música de Kelly Key.
Indiomara diz: Eu gosto da Barbie e da Polly. A minha Polly no DVD é de funk!!! Tem Polly também com
carro de corrida, Polly vai ao shopping e também navio da Polly (DIÁRIO DE CAMPO, 27-10-2008).
Na fala da Indiomara, percebe-se que não basta ter só um modelo de boneca, é
necessário ter todas as variedades e modelos possíveis. O constante apelo da mídia e
as propagandas maciças na TV instigam a criança a desejar ter sempre mais, ou seja,
os modelos recém-lançados nas lojas de brinquedos (mesmo que não sejam “de
verdade”, originais). As crianças viraram consumidoras para o mercado, como nos
alerta STEINBERG (apud FELIPE, 2005, p. 55) chamando a atenção para o fato de as
“[...] crianças terem sido descobertas como consumidoras em potencial a partir da
década de 50 do século XX, com o surgimento de novas tecnologias produzidas após a
Segunda Guerra Mundial”.14 Hoje as crianças ocupam um lugar de destaque como
consumidoras em praticamente quase todas as campanhas publicitárias e também
como anunciantes em propagandas para o mundo infantil. Muitas delas expõem as
crianças em poses sensuais nos outdoors, revistas, TV, músicas e jornais.
Foto 11 - Partilhando experiências
14
Mary Del Piore (2007), na apresentação de seu livro Histórias das crianças no Brasil, destaca
como o comércio e a indústria de produtos infantis vem aumentando progressivamente sua
participação na economia do país.
Nos estudos de Finco (2007) evidencia-se como os brinquedos possuem uma ação
carregada de significados, expectativas que vão influenciar na corporeidade das
meninas e dos meninos. Geralmente as bonecas são magras, loiras, brancas e usam
roupas e acessórios do mundo adulto. Assim, as crianças vivem um processo de
adultização precoce, ao desejar consumir objetos e produtos do mundo adulto que vão
se tornando uma fonte de identidade para as crianças consumidoras de tais objetos.
Muitos espaços das escolas de educação infantil são decorados com esses artefatos
(bonecas, brinquedos e jogos) e esses objetos passam a fazer parte do universo da
criança como “gosto infantil”, uniformizando todas as crianças em relação às suas
escolhas. Cunha (2007, p. 141) identifica:
As produções culturais, sejam elas quais forem, programam nosso olhar sobre
o mundo, definem e hierarquizam o que é bom, bonito, mal, feio e isto implica
em estabelecer diferenças, territorialidade, força de poder, inclusões e
exclusões sociais, de quem pertence e quem não faz parte daquela esfera
sociocultural.
Essas imagens invadem a vida das crianças por diversos lugares por elas ocupados
por exemplo, a escola, sua casa, a TV, o cinema e as propagandas veiculadas pela
mídia que vão impondo um olhar consumidor pela cultura midiática, daí resultando a
necessidade de se levar em conta a heterogeneidade dos mundos sociais e culturais
das crianças. Quinteiro (2002, p. 22), nos instiga sobre os saberes constituídos sobre a
infância e a criança e faz relevantes questionamentos a respeito das culturas infantis,
quando pergunta:
[...] Afinal o que sabemos sobre as culturas infantis? O que conhecemos sobre
os modos de vida das crianças indígenas, negras, brancas? O que sabemos
das crianças que freqüentam a escola pública? Como aprendem? O que
aprendem? O que sentem? O que pensam?
Os estudos realizados pela Sociologia da Infância também contribuem para a
necessidade de conhecer melhor as crianças a partir delas mesmas, do que gostam,
do que fazem, do que dizem, do que pensam em todos os espaços que transitam.
Sabe-se que, entre diferentes culturas, existem relações de poder e dominação, que
devem ser analisadas, nas ações educativas do espaço escolar, que, por muitas vezes,
tendem a ser preconceituosas em relação à orientação sexual e gênero. Desse modo,
é relevante pesquisar as experiências das crianças com seus pares nos diversos
espaços que elas transitam, (re)significando essas vivências dos fenômenos sociais em
suas emoções, desejos e ações. Diante disso, Vasconcellos (2007, p. 8) afirma:
As crianças contemporâneas estão em contato – de forma direta ou não – com
várias realidades e delas apreendem valores e estratégias de compreensão de
mundo e de formação de suas próprias identidades pessoal e social. Vivem e
interagem intensamente com outras crianças, partilhando experiências, quase
sempre em situações mediadas por adultos, mas fazem-no de forma singular,
ressignificando a cultura que lhes é apresentada, apropriando-se, reproduzindo
e reinventando o mundo, dando sentido à riqueza que a língua portuguesa nos
confere com o étimo da palavra latina “criança” (“creantia”): irmã de criatura,
criadora, inovadora, possibilidade constante de reinvenção da vida.
O estudo da infância requer um novo olhar na criança, que passa a ser compreendida
como ator social, que pensa e concebe o mundo à sua volta, que produz cultura e a
(re)significa para mundo que a cerca. Concordo com Quinteiro (2002) que enfatiza que
investigar a infância, portanto, requer do pesquisador conhecimento da história e da
condição social da criança, pois significativas transformações políticas, sociais,
culturais e econômicas vêm ocorrendo e são indispensáveis para a construção desse
novo olhar das Ciências Sociais em relação à infância.
Durante a pesquisa, fui observando como as crianças vão construindo suas relações
sociais por meio das linguagens e significados culturais que elas vão aprendendo com
as outras crianças e com os adultos com os quais elas convivem no cotidiano da
escola, na rua e nos diversos artefatos culturais que fazem parte do seu dia a dia, que
contribuem para a construção das suas brincadeiras e expressões. Nesse sentido, as
crianças vão se apropriando da cultura que vai emergindo nas manifestações e falas do
mundo adulto e infantil. As mensagens produzidas pela publicidade estão fazendo
parte cada vez mais do universo infantil e, dessa forma, vão influenciando o jeito de ser
das crianças.
Ao observar as crianças no cotidiano escolar, fui percebendo como elas vão produzindo
e estabelecendo relações que expressam suas culturas, suas falas, seus sentimentos
e, assim, vão emitindo impressões ativas sobre o mundo e vão conquistando seu lugar
de sujeito de direito que tem vez e voz na realidade em que se encontra estabelecida.
Ao abordar esse assunto, Jobim e Souza (2008, p. 24) fala da importância de a criança
ser reconhecida como sujeito, quando afirma: “Sendo sujeito, a criança não pode
permanecer sem voz”, pois é, por meio das suas dimensões relacionais
que ela
exprime suas culturas pelo diálogo com o outro e, desse modo, vai se tornando ator
social e cultural.
As crianças do CMEI estão inseridas num contexto social irremediavelmente marcado
pela violência, daí as suas expressões, músicas e linguagens retratarem cada vez mais
os conflitos sociais a que elas são submetidas diariamente. Todavia, as crianças têm a
capacidade de (re)inventar o seu mundo, nas condições da mais dura adversidade, no
momento em que tudo falta para sua sobrevivência. Para Sarmento (2004, p. 4): “As
culturas da infância transportam as marcas dos tempos, exprimem a sociedade nas
suas contradições, nos seus estratos e na sua complexidade”. A criança, então, tem a
capacidade de recriar o mundo, não importando sua condição social, pois é o contexto
social e cultural que irá possibilitar que elas se relacionem com as outras crianças e
com os adultos na significação do mundo, produzindo cultura.
Nesse sentido, as crianças vão se apropriando desses elementos culturais expostos
pela TV, mídia, filmes, brinquedos e internet, que exercem, de forma significativa, as
representações de sexualidade e de gênero em seus discursos e vão constituindo e
ensinando o jeito ser mulher e ser homem, e consequentemente, o jeito de ser menina
e de ser menino.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A viagem chega ao fim ou ao começo? Durante a pesquisa, perguntava-me aonde iria
chegar com as experiências vividas com as crianças que me fascinavam, desafiavam.
Ao mesmo tempo, diante dos meus olhares, vivi inquietações, aprendizados e desafios
diários. Pensava que fazer pesquisa é movimento, são encontros, desencontros e um
desarranjar de certezas. Como bem explicita Louro (2004, p. 13) sobre a metáfora da
viagem “[...] o que importa é o andar e não o chegar”. A autora nos instiga a refletir
sobre as travessias, deslocamentos e escolhas que fazemos em nossas “viagens”.
Assim, escolhi as crianças para atravessar as fronteiras, percursos, experimentar
surpresas e transgressões das-nas-com suas infâncias. Portanto, aprendi com elas e
comigo que pesquisar é uma viagem contínua, inacabada que aponta alguns caminhos,
pistas, estratégias, rotas, percursos com chegadas e partidas sem fim, inconclusas e
contínuas.
Este trabalho teve como foco compreender como as crianças lidam com as suas
relações de gênero no cotidiano da educação infantil. Para isso, relacionei alguns
objetivos que ajudaram a estudar a temática, analisando os elementos culturais e
sociais que mais sobressaem no jeito de ser menina e de ser menino no cotidiano da
educação infantil, identificando como as crianças definem e demarcam a sua condição
de gênero nos diferentes tempos e espaços do CMEI e também observando como as
trocas culturais são estabelecidas entre as crianças.
Para responder a essas questões, analisei as falas das crianças nas entrevistas, nas
narrativas, nas interações diárias com seus pares e com os adultos nas relações
estabelecidas cotidianamente. As narrativas das crianças esclarecem que é na relação
social que o gênero vai se constituindo. Em seus diálogos, elas vão evidenciando
alguns valores sociais e culturais que circulam no contexto de suas vidas e que elas
vão produzindo e (re)produzindo nos seus modos de se expressar, de sentir, olhar,
brincar e viver.
Na fala de uma criança, fica muito presente como ela reproduz discursos e modelos de
comportamentos moldados e naturalizados pela cultura, quando ela diz: “Tem uma
menina que finge mais falou que quer ser homem. Ela fica igual a um homem. Não fica
comportada como a gente”. Nessa fala, fica demonstrado o jeito de ser menina e de
ser menino no espaço escolar. Esse “jeito” de ser menina e menino fica definido e
demarcado desde muito cedo do modelo esperado para as meninas e meninos, nas
suas formas de ser-fazer-querer em diversas instâncias, como a escola, a família e a
mídia. A sociedade espera que as meninas sejam meigas e quietas, e os meninos
agitados e largados (impulsivos e levados).15 De tal modo, a criança, um sujeito
concreto que se constitui histórica e socialmente por meio das suas interações com o
meio social, vai revelando e interpretando o mundo que a cerca nas suas experiências
com o outro e vai indicando e atribuindo significados às suas maneiras de ser-fazer.
Ao entrevistar as crianças, ficaram evidenciados, em suas falas, os lugares que vão
sendo construídos socialmente para as meninas e meninos, quando se expressaram
em relação às práticas sociais vivenciadas por elas:
“Ser criança é estudar, trabalhar, ajudar a mãe em casa, ajudar a mãe limpar a casa, ajudar a mãe a
lavar as vasilhas. Ajudar a mãe é lavar a roupa, ajudar a mãe ´drobra` a roupa e a ajudar a mãe a cuidar
dos nenéns” (JULIANA).
“Um dia, eu tava lá em casa, aí meu pai nem falou nada, aí eu fui lá e varri a casa, arrumei as duas
camas, da minha mãe e a minha e arrumei o sofá e fiz tudo!” (MARIA CLARA).
“A menina bota saia e o menino não bota, a menina tem cabelo grande, por ‘causo’ o menino não tem
cabelo grande e usa blusa de florzinha assim, bota xuxinha, bota brinco, bota cordão” (BRONDIM).
“Vocês são umas doidonas” (BRONDIM). Menino referindo-se às meninas dançando a dança do Creu.
Constatei que as crianças vão dando algumas pistas desse lugar e jeito de ser menina
e menino nas relações sociais estabelecidas na sala de aula, nos corredores, no pátio,
no refeitório, na fila, no banheiro, em todos os espaços sociais pelos quais circulam.
Nesses espaços, fui percebendo como elas estabeleciam as relações de gênero e de
poder nos modos como se organizavam e negociavam os conflitos, resistindo a
algumas normas e lugares destinados às meninas e aos meninos.
15
Rego (1995, p. 58) afirma que: “O desenvolvimento está intimamente relacionado ao contexto
sócio-cultural em que a pessoa se insere e se processa de forma dinâmica (e dialética) através de
rupturas e desequilíbrios provocadores de contínuas reorganizações por parte do indivíduo”.
Um dos aspectos inicialmente observados na pesquisa é que a escola também institui
lugares para as meninas e para os meninos, quando a professora diz: “Não chore, você
é macho”. Observei que há comportamento considerado como “natural” para os
meninos, pois, nas construções sociais e culturais, o comportamento do menino é
marcado pela coragem e valentia, a ele não é dado o direito de chorar e ser
emocionalmente frágil e dengoso, comportamento esse tido como “natural” para as
meninas. Assim, a escola vai “fabricando” o lugar da menina e do menino, como
evidencia Louro (1997) em sua pesquisa. As crianças vão reproduzindo essas práticas
culturais e sociais em que estabelecem divisão nas brincadeiras, quando afirmam: “O
menino gosta muito de jogar bola, a menina não gosta. Os meninos batem muito nas
meninas as meninas não gostam, aí a gente num, também não gosta que bate só na
gente, não! Aí eles batem muito nas garotas, eles jogam futebol e a gente não gosta!”
(INDIOMARA).
Na pesquisa em campo, observei como as crianças incorporam comportamentos,
atitudes que produzem e reproduzem em suas relações, modos de ser menina e ser
menino que trazem consequências para a sua convivência com o grupo, quando
explicitam, por exemplo, em relação ao menino brincar de boneca: “Porque boneca é
uma coisa que foi inventada para a menina não 'pru' menino!”, ou, então, admitem, mas
na condição de o menino assumir o lugar de pai, irmão, filho e colega dizendo: “Claro
que pode, pode ser pai com certeza”. Todavia, percebi, durante a pesquisa, que as
crianças estão tentando mudar o olhar e suas atitudes em relação a essas diferenças
construídas socialmente, quando verbalizam: “Os 'menino' também pode brincar,
porque um dia, estava brincando e Brondim veio brincar com a gente de boneca, a
gente brinca tudo certinho, só tem vezes que eles ficam olhando”.
O universo infantil é socialmente construído tanto pelas crianças como pelos adultos.
Na família, na escola, na mídia, as crianças são estimuladas, desde cedo, a demarcar
e separar, em suas brincadeiras, as diferenças do universo feminino e masculino,
quando elas evidenciam isso dizendo: “Porque há diferença, menino gosta de carrinho
e menina de boneca, Aí a boneca ela gosta muito, gosta de brincar, a gente brinca
muito aqui, na escola!” (INDIOMARA).
Assim, por meio das observações em campo, foi possível verificar que se cria uma
divisão nas brincadeiras das crianças quando a professora comenta: “Hoje eles estão
como gostam”, referindo-se aos meninos jogando futebol. Nesse comentário, percebese que a bola e o futebol são brincadeiras destinadas aos meninos. A escola vai
atribuindo ao corpo e ao gênero modos de ser menina e menino com brincadeiras
diferenciadas, e as crianças, muitas vezes, acabam internalizando essas práticas que
sobressaem no cotidiano escolar que se configuram de um determinado modo e não de
outro. Essas aprendizagens em relação ao gênero, internalizadas na infância, vão se
desdobrando nas relações estabelecidas pelas crianças durante suas vidas e ora são
reproduzidas, ora elas são transformadas e recriadas num contínuo processo de
reinvenção.
À medida que ia observando as relações estabelecidas, percebi que é na brincadeira
que a criança vai representando e se apropriando das experiências que são
significativas para ela e assim vai demonstrando nas suas interações. As meninas,
geralmente, gostavam de brincar de salão de beleza, desfile, dança e representar a
mãe nas tarefas diárias, como: cuidar das crianças, lavar as roupas, fazer comida etc. A
questão com a beleza ficou muito evidente as meninas diariamente passavam baton e
glos. Os meninos brincavam com jogos de encaixe, “lutinha”, carrinhos e também
representavam a violência que eles vivenciavam no contexto de suas vidas, montando
armas com as peças de encaixe. Nos múltiplos espaços observados, percebi que a
criança vai absorvendo as regras sociais que lhes são transmitidas, porém ela também
produz cultura nas relações estabelecidas com seus pares, com os adultos, com os
objetos e com o ambiente.
Foi possível identificar, ao analisar as falas das crianças, que elas vão tentando buscar
formas de negociações aos padrões preestabelecidos. Em algumas brincadeiras,
admite-se que meninas e meninos brinquem juntos, como corda, pula-pula, piqueesconde, pique-alto, pique-gelo, pique-parede, pique-estátua, garrafa envenenada,
voley. Quanto ao futebol, também foi evidenciado por algumas crianças que a menina
pode jogar bola e futebol. Dessa forma, as crianças vão rompendo com a separação e
a diferenciação em relação ao futebol ser considerado um esporte do universo
masculino e, assim, elas vão quebrando fronteiras ao lidar com modos de viver as
relações de gênero nos espaços por elas vivenciados, de acordo com o momento e o
tipo de relação estabelecida.
Com referência às questões de gênero, observei que ainda persistem práticas
conservadoras no discurso, quando a professora substituta se aproxima e diz: “Tenho
dúvida em relação ao sexo dessa menina”, referindo-se a uma menina que
constantemente brinca com os meninos e, também, quando escreve na lousa se
reportando unicamente ao menino (“aluno”). Desse modo, a escola vai atribuindo
crenças e valores de uma sociedade que está preocupada em determinar atributos e
não adotar práticas que rompam com essas amarras construídas culturalmente de
sempre se referir às meninas e aos meninos como “alunos”, fixando o masculino plural
para se reportar às alunas e aos alunos.
Durante a pesquisa, observei em que medida o poder é exercido nas práticas
cotidianas na sala de aula, no pátio, no refeitório entre as crianças. Em uma situação
de conflito entre meninos a fala de um deles foi muito significativa, quando se referiu a
um colega: “Ah! O Marcelo é fraquinho!!! O Thiago só gosta de bater em que é
fraquinho; nos fortes ele não bate”. Nesse registro, fica evidente o que Foucault (2006)
esclarece a respeito das disputas entre os sujeitos: o poder está em todas as partes,
em todas as relações, num movimento contínuo. A organização da fila é também um
espaço de disputa do lugar principalmente da frente. Nesse momento, as meninas e os
meninos se enfrentam com empurrões, xingamentos, brigas e choro. A fila é separada:
fila de meninas e fila dos meninos. Essa prática de dividir as crianças é naturalizada
nos diversos ambientes que são ocupados por elas. Há uma fala bastante significativa,
em relação ao que acontece nesse momento: “A gente tá descendo ali na fila de mão
dada menina com menina e vem lá e corta, quase quebra o braço da gente! A gente
quando era de outra sala, num tem outra professora, era menino com menina de mão
dada! Quando a gente dava a mão, era melhor, quando a gente tava na outra sala eles
eram melhores, não eram assim, agora vai mudando de sala vai ficando assim: É...
cortando, não deixando dar a mão, machucando e não era assim! Quando a gente era
menor, a gente dava a mão, a gente brincava, pulava, agora é assim!” (MARIA
CLARA). Já no refeitório, há sempre a disputa pelo lugar da ponta na mesa do lanche,
que é geralmente cobiçado pelos meninos.
No CMEI pesquisado, percebi que há regras e normas para tornar as crianças
disciplinadas e dóceis. Isso que foi se tornando evidente nos discursos dos adultos e
das crianças. Segundo a premissa foucaultiana, o poder está centrado nas práticas
sociais e nas experiências que são produzidas num determinado tempo e lugar. Nesse
sentido, o tempo e o espaço na rotina da escola ficavam evidenciados nas
discursividades: “Só quem pode pintar é quem já acabou a tarefa” (PATRÍCIA) e “Quem
terminou tem que ficar esperando o colega sentado e não pode levantar”
(PROFESSORA).
Considerando essa realidade, posso afirmar que, na escola, são utilizadas diversas
formas de conter o corpo. Observei que as crianças tentam resistir às imposições
disciplinares em relação aos seus corpos, porém essas práticas de controle exercidas
no cotidiano evidenciam que elas às vezes incorporam gestos e expressões do mundo
adulto, quando, em suas brincadeiras, determinam: “Vão sentar e fiquem caladas”.
Essa fala mostra que, apesar das resistências por parte das crianças em não aceitar
algumas normas e regras, isso não significa que elas tenham conseguido escapar das
práticas sociais e culturais historicamente construídas. No universo da educação
infantil, há uma forte relação com as práticas que circulam na sociedade da criança
“quieta”, “dócil” e “comportada”.
Assim, foi possível perceber, nas manifestações das crianças, por meio das
brincadeiras, jogos, falas que o menino é considerado como mais violento e mais forte
quando as meninas se referem às brigas em relação ao bater no colega e expressam:
“Bem, as meninas são mais calmas, os meninos, nossa! Não dá para agüentar os
meninos não gente! Eu não aguento, alguns batem, alguns xingam! As meninas não”.
Nessa fala, há um discurso de fragilidade por parte das meninas, embora elas, muitas
vezes, tentassem romper enfrentando os meninos como uma forma de ocupar esse
espaço socialmente atribuído ao menino “de ser mais agitado e forte”.
Constatei, também, que tanto as meninas quanto os meninos resistiam em se adequar
a algumas regras e normas da sala, o que me possibilitou compreender como elas vão
explorando os espaços e as situações. Ficou evidente que elas e eles sabem que nem
sempre a vigilância e o controle por parte dos adultos vão impedi-los de burlar e
realizar os seus desejos pessoais, como ir ao banheiro, beber água ou sair da sala
para dar uma “voltinha” na escola. A “fuga” é uma forma de expor que a criança pode
transgredir o que não é permitido, resistindo às regras que lhes são impostas no
universo escolar.
Portanto, a compreensão da criança e infância como possibilidade de apropriação,
transformação
e
produção
das
culturas
infantis
é
papel
fundamental
do
educador/pesquisador. A análise e a autorreflexão da prática cotidiana, por meio de um
olhar e escuta atentos às vozes infantis, tiveram como objetivo dar visibilidade às
crianças e suas infâncias.
Instigada pelas leituras da Sociologia da Infância durante o trabalho de pesquisa fui
levada a
refletir sobre as infâncias que vêm sendo produzidas. Assim, nessa
perspectiva, busquei investigar não sobre as crianças e sim com as crianças e a partir
delas.
Assim, a partir das vozes infantis, pude conhecer (compreender) melhor o jeito de ser
da menina e do menino nas experiências vivenciadas com elas durante todo o
processo da pesquisa em campo, quando elas e eles explicitaram o que gostam, o que
pensam e o que fazem nos diversos espaços em que transitavam.
Na pesquisa, ficou evidente como as crianças vão construindo suas relações sociais
por meio das linguagens e significados culturais que elas vão aprendendo com as
outras crianças e com os adultos com quem elas convivem, no cotidiano da escola, na
rua e nos diversos artefatos culturais que fazem parte do seu dia a dia e que
contribuem para a construção das suas brincadeiras e expressões. Nesse sentido, as
crianças vão se apropriando da cultura que vai emergindo nas manifestações e falas do
mundo adulto e infantil.
Diante disso, constatei que as culturas infantis, em cada tempo, em cada lugar,
obedecem a algumas exigências sociais, o que tem conseqüência na constituição de
novas sociabilidades entre as crianças e nos modos como elas interpretam o mundo
que as cerca. Todavia, as crianças têm se revelado ativas, competentes e com uma
instigante capacidade de observação e análise das suas experiências nos diferentes
espaços sociais.
Penso que esta pesquisa pode instigar e provocar novos estudos e reflexões sobre as
relações de gênero na infância, buscando desconstruir “verdades” cristalizadas no
âmbito escolar, objetivando desvendar estereotipias e preconceitos em relação ao jeito
de ser da menina e do menino no espaço da educação infantil.
Finalizo com um fragmento de Clarice Lispector que expressa, neste momento, o meu
sentimento em relação ao texto aqui apresentado com partidas e chegadas sem fim,
mas com a certeza de ter suscitado alguns caminhos e percursos a serem
desvendados no universo da menina e do menino:
Tudo acaba mas o que te escrevo continua
O que é bom muito bom
O melhor ainda não foi escrito
O melhor está nas entrelinhas.
Foto 12 – A pesquisadora com meninas e meninos
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APÊNDICE
APÊNDICE - Termo de consentimento
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIMENTO II.
Em cumprimento ao protocolo de pesquisa, apresento aos pais/responsáveis das
crianças/sujeitos da turma Pré B, do Centro Municipal de Educação Infantil Semeando a
Vida, o projeto de pesquisa “O JEITO DE SER MENINA E MENINO NO COTIDIANO DA
EDUCAÇÃO INFANTIL” de autoria da mestranda Maria Angélica Menezes Freire, como
recomendação para a realização do Mestrado em Educação do Programa de Pós
Graduação em Educação (PPGE), da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES.
O objetivo da pesquisa é compreender como as relações de gênero se manifestam entre as
crianças e também analisar os elementos culturais e sociais que sobressaem no jeito de ser
menina e ser menino, no cotidiano da educação infantil. Desse modo, a pesquisa será
realizada na sala de aula por meio da observação participante entrevistas, fotografias e
registros em diário de campo.
Para garantir o tratamento ético dos dados, o nome da escola será mantido em sigilo, serão
utilizados nomes fictícios para as crianças (escolhidos por elas) e as fotografias/registros
serão efetuados sem comprometimento da ação educativa, preservando, sobretudo, a
integridade do grupo. Os dados – resultados da pesquisa serão apresentados na
dissertação e poderão ser utilizados para publicação. Por isso, solicitamos sua autorização,
por meio da assinatura deste termo de consentimento.
Eu,...................................................., responsável pelo aluno(a) .............................., do
PRÉ – B, autorizo sua participação no projeto de pesquisa “O JEITO DE SER MENINA
E MENINO NO COTIDIANO DA EDUCAÇÃO INFANTIL”, de autoria da mestranda Maria
Angélica Menezes Freire - PPGE/UFES, concordando com os procedimentos acima
apresentados.
Assinatura: .....................................................................
RG: ....................................
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Dissertação 07 de julho - Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós