VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP
Reflexão tanatológica: dos helenistas a Montaigne
Alan Barbosa Buchard1
Resumo: Este artigo tem como objetivo esboçar as teorias tanatológicas dos filósofos Epicuro,
Sêneca e Montaigne. Constatando a presença da angústia e do medo da morte na maioria das
pessoas, esses filósofos perceberam que tais sentimentos constituem um entrave à aquisição da
felicidade. Partindo do pressuposto de que a filosofia é o instrumento utilizado nessa busca pela
eudaimonia, a função do exercício filosófico, para tais pensadores, será livrar o ser humano de
tais medos. Concomitantemente mostrarei as influências recebidas já no período renascentista
dos filósofos da antiguidade tardia. A filosofia é retratada aqui como arte de viver e terapêutica
dos medos.
Palavras-chave: Helenismo. Tanatologia. Montaigne. Ética.
Abstract: This article aims to outline the thanatologcy theories of philosophers Epicurus,
Seneca and Montaigne. Noting the presence of anxiety and fear of death in most people, these
philosophers realized that such feelings constitute an obstacle to the acquisition of happiness.
Assuming that philosophy is the instrument used in this search by eudaimonia, the function of
philosophical exercise, for these thinkers, the human being will be rid of such fears.
Concomitantly show the influences already received in the period of Renaissance philosophers
of late antiquity. The philosophy here is portrayed as art of living therapy and treatment of fears.
Palavras-chaves: helenismo, tanatologia, Montaigne, ética.
Keywords: Hellenism. Thanatology. Montaigne. Ethics.
* * * Antecessores na reflexão tanatológica2
Desde os primeiros passos da filosofia, a Morte apresenta-se como um dos
principais problemas para a razão humana, e um de seus assuntos mais controvertidos.
Desafiando o intelecto, escondendo-se atrás de um véu de mistérios, ela foi ao longo de
muitos séculos alvo de diversas reflexões. Podendo já ser notada na filosofia dos présocráticos3 a reflexão tanatológica perpassa a história da filosofia, ora ocupando lugar
privilegiado, ora em segundo plano.
1
Graduando em filosofia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Bolsista FAPERJ. Orientador:
Prof. Dr. Marcus Reis Pinheiro. Email: [email protected]
2
Etimologicamente “tanatologia” deriva do termo grego Thánatos que refere-se a divindade que
representa a morte. Faço, portanto, o uso da palavra tanatologia como o estudo da morte, ou mais
precisamente, o estudo das reflexões filosóficas a cerca da morte.
3
Lúcio Vaz afirma: “A filosofia desde seu início se debateu ainda que camufladamente com a morte:
então, não foram os pré-socráticos que, constatando a alternância incessante entre geração e corrupção,
vida e morte, procuraram a permanência de um princípio?” (A simulação da morte – Versão e aversão em
Montaigne. p. 63)
Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 120 VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP
Apesar de esse trabalho ser focado nas reflexões tanatológica dos helenistas e de
Montaigne, mostrarei, mesmo que brevemente, o contorno assumido por essa reflexão
na filosofia socrática.
Sócrates e a morte do sábio
No diálogo platônico Fédon, Sócrates, reiteradas vezes vão afirmar não ser a
filosofia outra coisa se não a reflexão tanatológica.4 Estar pronto para a morte, segundo
o filósofo, é estar pronto para aquele derradeiro momento em que a alma humana,
libertando-se de sua prisão, que é o corpo, poderá reencontrar-se com as almas Perfeitas,
com quem esteve junta outrora. O exercício tanatológico, encarnado como das
principais ocupações da filosofia socrática permitirá, portanto, ao indivíduo a obtenção
do estado de inabalável convicção que é indispensável no momento da morte em que
ocorre a libertação e purificação da alma. Nas palavras de Sócrates: “O homem que
realmente consagrou sua vida à filosofia é senhor de legítima convicção no momento da
morte.”5.
A vida de Sócrates, e, principalmente, sua morte tornaram-se paradigmas para as
filosofias posteriores. Segundo Lúcio Vaz, “o principal motor de muitas reflexões éticas
sobre o morrer e a morte entre os antigos foram os próprios eventos da vida de
Sócrates”. A altivez, tranquilidade e até mesmo a alegria demonstrada pelo filósofo
ateniense na hora de sua morte inspirará a postura que os filósofos helenistas almejam
conquistar no último momento de suas vidas.
Assim como Sócrates, os helenistas também desenvolveram uma ética que torna
possível a tranquilidade diante da morte, e assim, diante da vida. Para Pierre Hadot, as
filosofias do período helenístico definem quase nos mesmos termos suas concepções de
sabedoria, à saber, um estado de perfeita tranquilidade da alma.6 A morte como ausência
4
Fédon 67e: “Assim, pois, Símias, em verdade estão se exercitando para morrer todos aqueles que, no
bom sentido da palavra, se dedicam à filosofia...” e 64a: “Receio, porém, que, quando uma pessoa se
dedica à filosofia no sentido correto do termo, os demais ignoram que sua única ocupação consiste em
preparar-se para morrer e em estar morto.”
5
PLATÃO. Fédon: Coleção Os Pensadores. Trad. José Cavalcante de Souza. São Paulo: Nova Cultural,
1987. 63e 6
“A bem dizer, à primeira vista poder-se-ia perguntar se as concepções de sabedoria eram tão diferentes
assim de uma escola para outra. Todas as escolas helenísticas parecem, com efeito, definí-la quase nos
mesmos termos e, antes de tudo, como um estado de perfeita tranqüilidade da alma. Nessa perspectiva, a
Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 121 VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP
completa da vida no indivíduo e a morte como “processo de morrer”7 constituirá um dos
principais entraves para aquisição dessa tranquilidade almejada pelos filósofos.
Portanto, não é de se espantar que no período helenístico, onde o éthos é a busca pelo
viver bem, haja uma intensa produção literária e filosófica sobre a relação entre a vida e
morte.
O espírito socrático foi retomado na filosofia helenista na medida em que os
filósofos deste período subordinaram a física e a lógica à ética, não considerando as
duas primeiras como um fim em si mesmas. Para Sócrates, o verdadeiro filósofo é
aquele que sabe viver sua vida de forma coerente, ou seja, uma completa harmonia entre
doutrina e vida. Nas palavras de Reale: “Filósofo não é quem sabe apenas pensar e
construir sistemas, mas é, sobretudo, quem sabe viver e morrer em acordo com o seu
sistema.”8 Sócrates, portanto, é elevado ao status de sábio, pois foi o primeiro que soube
realizar, de maneira paradigmática, essa interseção.9
Cada escola filosófica helenista desenvolveu sua terapêutica10 para a
problemática da morte. Esboçarei, especificamente, a tanatologia de Epicuro, em sua
Carta a Meneceu, refletindo a filosofia helenista; de Sêneca em sua De Brevitate Vitae e
Epistulae, como representante do período imperial; por fim, apresentarei a tanatologia
em Montaigne, filósofo que retoma todos esses antecessores no período do
Renascimento.
Epicuro e o Nada da morte
A morte, para Epicuro, é um mal apenas para aquele que nutre falsas opiniões
sobre ela. Partindo do pressuposto que as almas e os corpos são compostos de átomos, a
filosofia aparece como uma terapêutica dos cuidados, das angústias e da miséria humana.” Cf. Hadot, P.
O que é filosofia antiga? p.154
7
Lúcio Vaz em seu livro A Simulação da morte, ao falar de Montaigne, estabelece quatro sentidos que o
filósofo renascentista dá a morte, e que creio que possa ser utilizado também para as filosofias
helenísticas. Eis os quatros sentidos: “(...) o primeiro sentido é o estado de ausência vital tal como a
conhecemos; o segundo, o ponto infinitamente pequeno de cessação da vida, ou seja, de passagem da vida
para a morte no primeiro sentido; o terceiro engloba o momento ou momentos finais da vida, designando
o processo de morrer (...). O quarto sentido de morte, (...), é o da perda da força vital; se quisermos, a
partir dessa compreensão, incluí-lo no recorte temporal, podemos dizer que se trata da morte que, desde o
nascimento, está distribuída ao longo da vida...” p. XXIV
8
Reale, Giovanni. Filosofias helenísticas e epicurismo. p. 13
9
Os diálogos Apologia à Sócrates e Fédon comprovam essa postura socrática ao mostrar a tranquilidade
do filósofo ateniense diante da morte. 10
Vide nota 5.
Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 122 VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP
morte não é nada mais que a dissolução desses compostos. Uma vez dissipados os
átomos a consciência e a sensibilidade são perdidas.11 A filosofia tanatológica de
Epicuro, portanto, é fundamentada em dois aspectos de seu pensamento: em primeiro
lugar, em sua ética hedonista do prazer e da felicidade, ela própria fundamentada na
teoria do conhecimento sensível – experencialismo12; e em segundo, em sua visão
atomista e materialista do mundo. Se o que existe são os átomos e seus compostos, a
alma, que também é um composto de átomos, na hora da morte dissipa-se. Disso segue
que, uma vez “morta”, a alma está impossibilitada de ter sensações. Não havendo
sensações, não há dor ou prazer, portanto, não há sofrimento ou felicidade. Dessa forma,
Epicuro oferece um remédio (pharmacon) ao temor da morte – um dos principais medos
do ser humano.
13
A sabedoria epicurista para o problema da morte resume-se,
finalmente, na seguinte máxima: “O mais terrível dos males, portanto, a morte, não é
nada para nós, uma vez que, quando somos, a morte não é, e quando ela chega nós não
somos mais.”14
Sêneca e a brevidade da Vida
No período imperial, Sêneca se depara com a brevidade da vida nos seres
humanos. Não raro deve ter ouvido queixas de que a vida deveria ser mais longa, ou
escutado pessoas lamentando a morte inesperada de alguém próximo. Se o filósofo
realmente ouviu essas queixas não é possível afirmar categoricamente, contudo, através
de suas palavras em suas obras De brevitate vitae e Epistulaes, é possível
conjecturarmos assim. Ele, como os demais pensadores, experimentou a morte: seja
indução – constatação empírica da mortalidade –, seja por dedução – se todo homem é
mortal, logo o próprio filósofo é mortal.
Em resposta a angústia humana frente a finitude do indivíduo, Sêneca aconselha
a moderação. Segundo o filósofo, considera breve a vida e não aceita morrer o homem
11
Epicuro. Carta a Meneceu. 124:“Habitua-se a pensar que a morte não é nada para nós, porque todo
bem e todo mal residem na faculdade de sentir, da qual a morte é, justamente, privação. [...] Ela não tem
nenhum significado nem para os vivos nem para os mortos, porque para uns não é nada, e, quanto aos
outros, eles não são mais.”
12
Schumacher. Confrontos com a morte. p. 193
13
Epicuro postula quatro remédios (tetra pharmacon) para os quatro maiores medos do ser humano: 1)
temor dos Deuses e do além; 2) medo da morte; 3) medo da dor; 4) medo da permanência dor mal (da
dor) – Diógenes Laércio X, 139-140.
14
Epicuro. Carta a Meneceu. 124ss
Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 123 VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP
que não aproveitou devidamente a existência e, por isso, deseja estendê-la.15 A entrega
desenfreada aos desejos e exigências alheias16 são causas do apego a vida; apego que
considera como mal a morte. Somado a isso está a excessiva expectativa dos bens
futuros, que faz com que se perca o presente ao entregar o psicológico humano ao medo
de não alcança-los.17 Sêneca, então, prescreve o comedimento para a eliminação do
apego a vida, causa do medo da morte.18 Portanto, através do exercício da moderação
aplicado aos bens materiais, as situações presentes, e aos projetos futuros, é possível
obter melhor aproveitamento do tempo e a supressão do desejo exacerbado das coisas
materiais que prendem os indivíduos a vida.19
Sêneca chega a afirmar que se podemos morrer a qualquer momento não é sábio
nos apegarmos desesperadamente aos bens fortuitos20, nem, tampouco, criar projetos
com objetivos a longa distância21, para que, dessa maneira não estejamos desperdiçando
nossa vida na expectativa de alcançarmos bens que, à rigor, não nos são garantidos. Ora,
se aprendermos com a morte essa lição de desprendimento, nos desapegaremos da vida,
tornando-a mais tranquila. Montaigne, em seu ensaio Que filosofar é aprender a
morrer22 retomará essa concepção de desapego.23
Além do exercício da moderação, Sêneca aconselha o constante meditar sobre os
males futuros.24 Refletir ao decorrer da vida sobre a própria finitude pode adequar os
sentimentos de uma pessoa a essa realidade, ao passo que evitar pensar na morte pode
trazer desespero quando realmente aquela se deparar com esta. Através da aceitação da
condição de finitude humana e do constante refletir sobre o fim que aguarda a todos,
15
Sêneca, De brevitate vitae, X, 5.
ibdem. III, 4.
17
ibdem. V, 7.
18
Epicuro já havia chamado atenção para isso em sua Carta a Meneceu, 130: “É preciso julgar a cada
vez, com base no cálculo e na consideração das vantagens e desvantagens; pois às vezes um bem vem a
ser para nós um mal e um mal, ao contrário, um bem.” Em Sentenças Vaticanas, 68, Epicuro também
afirma: “Nada basta àquele para quem o suficiente não basta.”
19
Sêneca, De brevitate vitae, VII, 8.
20
Sêneca, Epistulae, VIII, 3.
21
De brevitate vitae, IX, 1. 22
Nas edições dos Ensaios de 1580, 1588 e no Exemplar de Bourdeaux.
23
No ensaio I, 20, Montaigne afirma: “Quem aprendeu a morrer desaprendeu de servir. Saber morrer
liberta-nos de toda sujeição e imposição.” A sujeição e imposição que ele se refere aqui é a próprio apego
desenfreado a vida que prejudica nossa existência.
24
Prática também aconselhada por Montaigne: Os ensaios, I,20. Vale ressaltar a diferença entre Sêneca e
Montaigne que Lúcio Vaz enfatiza em seu livro: “Em Sêneca, a meditação da morte é exclusivamente
uma reflexão argumentativa e retórica sobre a morte em geral; ao posso que Montaigne, além de
obviamente incorporar essas táticas teóricas, acentua o peso da imaginação da própria morte, como uma
ficção ou sequência de ficções macabras que se colocam diante de um personagem singular – ele
mesmo.” Cf. Lúcio Vaz, A simulação da morte. p. 18
16
Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 124 VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP
cada indivíduo pode alcançar o desprendimento necessários para uma morte tranquila e
impassível. Para Sêneca, “o sábio sente os incômodos da dor, da velhice e da pobreza,
mas os vence.”25 Sócrates e Catão – sábio estoico – são retomados nesse contexto como
exemplos de sábios que morreram de forma louvável.
Assim como ocorre em Montaigne, o pensar na morte não tem por objetivo
trazer ao homem uma ansiedade pelos fatos futuros, nem tem a imaginação do momento
de nossa morte a função de nos engessar e nos estarrecer, impedindo-nos a ação. Pelo
contrário, a reflexão tanatológica tem por objetivo a aceitação de que a vida, por ser
finita e efêmera, deve ser vivida cuidadosamente, de maneira a alcançarmos a
tranquilidade e serenidade de espírito.
Que filosofar é aprender a morrer26
No ensaio de nome homônimo ao título acima, Montaigne apresenta sua
filosofia tanatológica em constante diálogo com os filósofos e demais pensadores
helenistas. Fazendo citações diretas a filósofos estóicos como Sêneca, Cícero, ao
filósofo Epicuro – apesar de não citá-lo diretamente – e o epicurista Lucrécio, além de
poetas como Horácio, Ovídio e Virgílio, o filósofo renascentista almeja eliminar sua
angústia existencial diante da morte. Crendo no caráter inevitável e imprevisível da
morte, Montaigne pergunta: “se ela nos assusta, como é possível dar um passo à frente
sem temor?”27 Tentar superar essa ansiedade é o objetivo do ensaio que iremos analisar.
O filósofo, portanto, recorre às filosofias helenísticas na busca da felicidade de que os
pensadores helenistas tanto falaram.
Como dito anteriormente, no período helenístico e imperial a filosofia é vista
como um instrumento através da qual se alcançará a felicidade, não possuindo um fim
em si mesma. Independente das diferenças de percurso rumo à felicidade entre as
escolas helenísticas, todas elas, entretanto, consideram ser o exercício filosófico algo
prático, do cotidiano, direcionado ao próprio indivíduo.
Montaigne, compactuando dessa postura, afirma em seu ensaio: “Na verdade, ou
a razão se abstém ou ela deve visar apenas nosso contentamento, e todo o seu trabalho
25
Sêneca, Epistulae, IX, 2.
Os Ensaios, I, 20 27
Os ensaios, I, 20, p.123
26
Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 125 VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP
deve ter como objetivo, em suma, fazer-nos viver bem e a nosso gosto...”28 Viver bem,
portanto, é agir bem. E agir bem é agir com a consciência de que todos os dias nos
encaminham para a morte.29 Para Montaigne, se aprendermos a lição do morrer bem,
aprenderemos a do viver bem.30 Na teoria filosófica montaigniana a aceitação da morte
e a busca pela felicidade possuem estreita relação.
Para Montaigne, devido ao caráter inevitável da morte faz-se necessário a
reflexão que alivie o indivíduo da angústia que acompanha a compreensão deste fato.31
Para conseguir frescor a seus tormentos, Montaigne retomará a teoria filosófica de
Epicuro, segundo a qual, a morte não é nada para nós.
A tanatologia epicurista é a maior fonte de inspiração para Montaigne em seu
ensaio Que filosofar é aprender a morrer. Lucrécio, um dos sucessores de Epicuro é
constantemente citado com intuito de fundamentação teórica pelo filósofo renascentista.
Chegando a conclusão epicurista segundo a qual a morte não é nada para nós32,
Montaigne conclui que não há motivo para nos preocuparmos com ela. Além disso, o
filósofo renascentista remete-nos a máxima epicurista da relação entre o bem viver e o
bem morrer ao dizer: “Quem ensinasse os homens a morrer estaria ensinando-os a
viver.”33
Mais do que puramente provar o erro epistemológico de temer a morte,
Montaigne preocupa-se com a torrente de sentimentos que perpassam o psicológico
humano. Não apenas preocupado com a realidade objetiva da Morte, o filósofo está
preocupado com o eu que contempla essa objetividade. Isso fica evidente quando ele
usa como exemplo o indivíduo que, sob pena de morte, é incapaz de apreciar até mesmo
as iguarias da Sicília.34
Há no Ensaios de Montaigne uma característica que remete ao que falamos
anteriormente sobre Sêneca. Assim como o filósofo imperial, Montaigne concebe que a
constante representação mental da morte, do momento infinitesimal que antecede este
28
Ibidem, p. 120
Ibidem, p. 141: “Todos os dias caminham para a morte; o último chega a ela.”
30
Ibidem, p. 133: “Quem ensinasse os homens a morrer os ensinaria a viver.”
31
Ibidem, p.122: “Mas, quanto à morte, ela é inevitável. (...) E consequentemente, se nos causa medo, ela
é contínuo motivo de tormento e que não pode absolutamente ser aliviado.”
32
Epicuro. Carta a Meneceu, 124. 33
Os ensaios, I, 20. p.133
34
Horácio, Odes, III, i, 18: “Nem as iguarias da Sicília terão para ele [condenado] seu doce sabor, nem os
cantos dos pássaros e os acordes da lira irão devolver-lhe o sono.” apud Os Ensaios I, 20, p.123
29
Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 126 VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP
momento, do “processo de morrer” e da morte já presente no momento do nascimento35,
faz com que nos acostumemos com essa realidade, livrando-nos do medo pela
familiaridade com este momento. A constância demonstrada no ato da morte, para
Montaigne, só é possível se ao longo de toda sua vida a pessoa refletiu sobre essa
questão.
Montaigne pretende alcançar pela reflexão tanatológica a altivez dos sábios
louvados por ele em seu Ensaios. O ideal helênico da “bela morte”36 impregna suas
obras. Conquanto, devo sinalizar que essa concepção montaigniana de bela morte é
característica do Ensaios das edições de 1572. A morte que prova a constância do
filósofo e julga os frutos de sua vida é louvada nessa primeira edição do Ensaios. Com
os acréscimos da edição de 1588, percebemos que Montaigne parece mudar sua
concepção de “bela morte” para uma morte “sem alarido, que não seja sentida por ele
mesmo nem pelos outros.”37 Portanto, essa preparação para morte e firmeza ao enfrentála que nas edições de 1572 são a pedra de toque da sabedoria, já não serão mais nas
edições de 1588. Nas últimas edições a despreocupação com a morte parecerá a
verdadeira sabedoria. Nas palavras do filósofo: “No julgamento da vida de outrem,
sempre observo como se desenrolou o fim; e uma das principais preocupações da minha
é que ele se desenrole bem, isto é, quietamente e surdamente.”38
A última característica de Montaigne que representa uma inovação para com os
antigos é a presença em seus textos da rejeição dos rituais que antecedem os momentos
finais de uma pessoa.39 Para o filósofo, os semblantes e as cerimônias “assustadoras” de
que se cercam as pessoas no momento da morte amedronta mais do que a própria
morte.40 Portanto, se quisermos superar esse medo da morte, devemos retirar a máscara
tanto das pessoas quanto as coisas. Das pessoas através da reflexão tanatológica, das
35
Lúcio Vaz. Vide nota 6.
Pierre Villey na introdução ao capítulo 19 do livro I. Cf. Montaigne, Os ensaios, I, 20. p. 114
37
ibdem. 38
Montaigne, I, 20. p.118. Essa citação corresponde a um acréscimo feito pelo filósofo nas edições de
1582. Nas edições anteriores lê-se “com segurança” ao invés de “surdamente”. Tal mudança reflete a
concepção, já em idade mais madura, do filósofo de morte serena.
39
Lúcio Vaz chama-os de “instrumentos de apoio social no momento de morrer”. A simulação da morte.
p.13
40
Montaigne, I, 20, p. 142: “Na verdade creio que são essas atitudes e preparativos assustadores de que
nos cercamos que nos causam mais medo do que ela [morte]: uma forma totalmente nova de viver, os
gritos das mães, das mulheres e dos filhos, a visita de pessoas estupefatas e transidas, a assistência de um
grande número de criados pálidos e lacrimosos, um quarto sem luz, círios acesos, nossa cabeceira
invadida por médicos e pregadores; em sua, todo o horror e todo o pavor ao nosso redor.” 36
Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 127 VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP
coisas através do retorno às advertências da mãe Natureza que não vê na morte se não
uma passagem de uma coisa a outra, sem juízos morais.
Considerações Finais
Montaigne foi um filósofo renascentista de tendência eclética. Em sua filosofia
transparecem contornos das inúmeras escolas clássicas. Como todo grande pensador,
muitas vezes sua obra não é de todo coesa: é possível observar digressões e até mesmo
contradições em seus ensaios. Em sua tanatologia não seria diferente. Epicurismo,
ceticismo, estoicismo estão presentes. Todos eles procuraram remediar de alguma forma
a angústia humana pela finitude, livrando-nos do medo da morte. A filosofia entendida
como o somatório de teoria e prática é adotada pelos filósofos helenistas e observada
também em Montaigne. Fazer filosofia, portanto, é fazer de tudo para viver bem. E
nessa busca pela felicidade, muitos pensadores se chocaram contra esse grande
problema existencial que é a morte. Seja buscando o prazer pela eliminação do
sofrimento, seja aceitando resignado os movimentos da Fortuna e praticando a
moderação, o epicurismo e o estoicismo conseguiram, cada um a sua maneira, eliminar
a ansiedade que também perseguiu o filósofo renascentista durante sua vida. Assim
como os antigos, Montaigne queria viver bem, e para ele, isso dependeria de sua reação
diante da morte. Daí a urgente necessidade nele, assim como nos filósofos da
Antiguidade tardia, do pensar a morte.
Referências
EPICURO. Carta a Meneceu. Trad. Álvaro Lorencini, Enzo Del Carratore. São Paulo:
UNESP, 1997.
HADOT, P. O que é a filosofia antiga? Trad. Dion Davi Macedo. São Paulo: Loyola,
1999.
MONTAIGNE, M. Os ensaios: livro I. Trad. Rosemary Costhek Abílio. d’Aguiar. São
Paulo: Martins Fontes, 2002.
PLATÃO. Fédon: Coleção Os Pensadores. Trad. José Cavalcante de Souza. São Paulo:
Nova Cultural, 1987
REALE, G.. Filosofias helenísticas e epicurismo. Trad. Marcelo Perine. Edições
Loyola, São Paulo, Brasil, 2011. p. 13
SCHUMACHER, B. N. Confrontos com a morte: a filosofia contemporânea e a
questão da morte. Trad. Lúcia Pereira de Sousa. São Paulo: Edições Loyola, 2009.
SENECA, L. A. Moral Epistles. Trans. by Richard M. Gummere. The Loeb Classical
Library. Cambridge, Mass.: Harvard UP, 1917-25. 3 vols.
Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 128 VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP
SÊNECA. De la brièveté de la vie. (Tome II). In: Dialogues. Trad. par A. Bourgery.
Paris: Les Belles Lettres, 1955.
VAZ, L.. A simulação da morte: versão e aversão em Montaigne. São Paulo:
Perspectiva; Belo Horizonte: UFMG, 2011. (Estudos; 293)
Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 129 
Download

Reflexão tanatológica: dos helenistas a Montaigne