“OFÍCIO DE CONSOLAR: receber e transmitir a consolação de Deus
“Olhar o ofício de consolar que Cristo nosso Senhor exerce” (EE. 224)
José Antonio Garcia, sj
Manresa vol. 75 n.296 (2003) pp. 269-286
S. Inácio utiliza a expressão acima quando apresenta, na 4ª Semana dos Exercícios, a contemplação das
aparições do Ressuscitado.
Consolar é o que define a ação do Ressuscitado transformando a situação dos seus discípulos: a tristeza se
converte numa alegria contagiosa, o medo em valentia e audácia, a negação de Cristo em
profissão de fé e martírio... Não se trata de um ato pontual senão de um “ofício” que definirá
para sempre a atividade de seu Espírito no mundo.
- Quê conteúdos estão latentes atrás da expressão “ofício de consolar”, com a qual
S. Inácio qualifica a ação do Ressuscitado?
- O “ofício de consolar” que o Cristo Ressuscitado exerce, e do qual somos sujeitos
receptores, não revela, ao mesmo tempo, um chamado a todos nós, a exercer o ministério da consolação?
- E, sendo assim, que situações de nosso mundo estão mais necessitadas dessa consolação que somente Deus pode conceder, mas da qual nós podemos ser mediadores?
Em nosso uso habitual, a palavra “consolação” e o verbo “consolar” apontam para um profundo e rico
significado: revelam um tipo de proximidade e comunhão com o outro capaz de transmitir-lhe compreensão, alento, acolhida, impulso... ou seja, uma transmissão de energia que desperte nele suas próprias
capacidades de reação diante de uma situação de tristeza, de fracasso, de desespero ou sofrimento...
Para S. Inácio, consolação e consolar são a linguagem e ação de Deus no ser humano, comunicação do
Criador com a criatura, iniciativa de Deus que, quando é recebida com agradecimento e pureza, isto é,
como dom gratuito e como escuta disponível, nunca deixam a pessoa consolada no mesmo lugar ou
situação onde estava antes.
A consolação de Deus é sempre dinamizadora daquilo que é divino no ser humano.
Por ser manifestação da comunicação do Espírito de Deus ao espírito humano, gera sempre na pessoa,
amor, alegria, fé, entusiasmo..., e termina sempre em missão.
Em síntese, eis os traços mais fortes da consolação inaciana:
a) A consolação espiritual é um dom gratuito de Deus que há de ser reconhecido e agradecido como tal:
“que não está em nós trazer ou ter grande devoção, amor intenso, lágrimas, nem outra qualquer
consolação espiritual, mas que tudo é dom e graça de Deus nosso Senhor “ (EE. 322).
Quando o ser humano se apodera da consolação, a perverte e se perverte.
b) Esse dom do Espírito cria em nosso interior um “campo de força” que centra e unifica a percepção de nós
mesmos, do mundo e das coisas com respeito a Deus.
A consolação espiritual, segundo S. Inácio, produz no consolado o milagre de que “não pode amar em si
mesma nenhuma coisa criada sobre a face da terra, senão no Criador de todas elas” (EE. 316).
Tudo é em Deus, não isoladamente em si. As pessoas, os acontecimentos e as coisas não são a-teus, sem
Deus, senão que estão habitados e sustentados por Ele.
Amá-los, sem amar neles a Deus é mutilação da realidade e idolatria.
No homem ou mulher consolados manifesta-se uma luminosidade e coerência desconhecidas, tanto da
realidade exterior como de sua auto-percepção interna.
Uma experiência de novidade, de nova inteligência de tudo, de profunda alegria e gozo espiritual que irradia
desde o centro da pessoa para sua sensibilidade, que modifica sua conduta e da qual não poderá esquecer-se
jamais. Isto é o que lhe ocorreu a S. Inácio na famosa ilustração do Cardoner (Aut. 29-30).
c) Além do componente vivencial, a consolação inaciana, como moção que é, contém sempre um elemento direcional: mostra o caminho a seguir e confere fortaleza e energia para seguí-lo.
Uma consolação divina manifestada, por exemplo, em forma de “alegria interna” ou de “iluminação da
mente” ou de “aumento de esperança, fé e caridade”, tem um inegável nível de vivência emocional
interna. Em alguns casos esse impacto emocional interior pode ser tão penetrante e invasor que se
constitui como uma “experiência cume”. Quem sente uma experiência assim não sabe como expressá-la,
mas seus efeitos são sempre de longo alcance e duração.
Mas a consolação espiritual não permanece enclausurada nesse primeiro nível. Mais ainda: se
permanecesse aí, seria uma consolação “suspeitosa”.
A consolação de Deus termina sendo uma pro-vocação à liberdade humana: indica um caminho a
seguir, como algo querido por Ele; sugere e aponta para uma eleição ou para uma mudança.
Assim como em tempo de desolação não se pode fazer mudança, em tempo de consolação sim,
devemos fazê-la, porque na consolação é o bom espírito que nos guia, de cujos conselhos podemos
“tomar caminho para acertar” (EE. 318).
Não tomá-lo equivaleria a criar um curto-circuito no dinamismo da consolação, a cair num narcisismo
autocomplacente, a ficar no Tabor da vivência; isso significaria estancamento, retrocesso e morte.
Ambos níveis da consolação, o vivencial e o direcional, são certamente inseparáveis, mas distintos.
É possível que em alguma consolação e durante algum tempo, o aspecto vivencial seja tão invasor e forte
que só produza uma muda adoração. Num segundo momento, no entanto, e sem separar-se do primeiro,
toda consolação verdadeira termina em vocação e em missão.
Na consolação Deus nos chama a ser seus colaboradores, a dar aos outros gratuitamente o que
gratuitamente recebemos, a “mudar-nos”, a seguir adiante “na via começada do divino serviço”, a viver
o “magis”, inerente à espiritualidade inaciana, e que nunca é fruto do voluntarismo humano senão da
experiência do amor de Deus percebido sempre como “maior”.
Nas cenas evangélicas das aparições, o efeito da presença do Ressuscitado sobre os discípulos termina
sempre em reconhecimento, chamado e envio, em restauração de uma vocação e missão.
Jesus ressuscitado exerce sobre eles um específico “ofício de consolar”, cujo efeito é iluminar o
caminho pelo qual, em seu nome e com Ele, eles hão de percorrer.
Consolação e “ofício de consolar” desembocam certamente em missão, em “tomar caminho para
acertar”; mas a segurança e a decisão do que há de fazer, experimentada na consolação, nasce e vem
precedida pela experiência de uma alegria pura e totalmente desinteressada pelo Senhor.
Alegria interna e verdadeira que procede e provoca a missão.
Segundo S. Inácio, nada mobiliza tanto como o agradecimento e nada revela tanto o agradecimento
como a alegria pura pelo bem do outro. A gratuidade é o habitat natural da consolação e do consolado.
Deus nos consola para que possamos consolar.
A consolação que recebemos do Senhor não nos é dada tendo em vista um desfrute narcisista e fechado
deste dom espiritual, mas tem a finalidade de capacitar-nos para o “ministério da consolação”.
É um dom para a missão; se não se exerce, ou seja, se alguém se apropria dela como coisa pessoal, morre.
Dessa consolação de Deus, da qual nós mesmos e nosso mundo tanto necessitamos, somos chamados a
fazer-nos receptores e mediadores.
Trata-se de uma consolação que é pura graça, que não está ao alcance de nossa mão dá-la a nós
mesmos, nem dá-la aos outros, mas da qual podemos ser agradecidamente receptores e gratuitamente
mediadores. Com isso, a consolação pode estender-se a outros muitos rincões da existência humana.
Não é de estranhar que a dedicação de corpo e alma ao ministério da consolação espiritual figurasse
entre as razões pelas quais S. Inácio e os primeiros companheiros pediram ao Papa Paulo III, em seu
primeiro esboço da Companhia, que os dispensasse do coro e de outras atividades comunitárias, e que este
ministério da consolação passasse a formar parte, entre outros, da Fórmula do Instituto da Companhia.
É tempo de auto-compreender-nos e atuar frente aos outros como enviados a exercer ativamente o
“ofício de consolar”, tendo sempre presente que a consolação verdadeira pertence somente ao Espírito,
já que não é outra coisa que a gratuita auto-comunicação do Deus trinitário à humanidade.
É Ele mesmo quem deseja compartilhar conosco este ofício, o ofício de consolar.
Texto bíblico: 2Cor. 1,3-7
S. Paulo fala da consolação de Deus como dom para uma missão. Somos pois consolados em nossas tribulações
para poder consolar os outros nas suas.
O consolo que recebemos está destinado a transbordar-se para os outros em forma de comunicação de alegria
intensa e de orientação para a realidade, os dois componentes nucleares da consolação espiritual entendida em
chave inaciana.
Na oração: faça memória de experiências onde você sentiu a consolação de Deus;
recorde situações onde você foi o mediador da consolação de Deus.
FONTE: CEI-JESUÍTAS - Centro de Espiritualidade Inaciana
Rua Bambina, 115 - Botafogo – RJ – 22251-050
[email protected] / www.ceijesuitas.org.br
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