Conflitos, Direitos e Moralidades
em perspectiva comparada
Volume I
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Ga r amond
U N I V E R S I T Á R I A
Conselho Editorial
Bertha K. Becker
Candido Mendes
Cristovam Buarque
Ignacy Sachs
Jurandir Freire Costa
Ladislau Dowbor
Pierre Salama
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Roberto Kant de Lima, Lucía Eilbaum
e Lenin Pires (orgs.)
Conflitos, Direitos e Moralidades
em perspectiva comparada
Volume I
NUFEP/UFF – FINEP-PRONEX (FAPERJ/CNPq)
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Copyright © dos autores, 2010
Direitos reservados para esta edição
Editora Garamond Ltda
Rua da Estrela, 79 - Rio Comprido - RJ
20251-021 – Rio de Janeiro, Brasil
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Revisão
Carmem Cacciacarro
Editoração Eletrônica
Luiz Oliveira
Capa
Estúdio Garamond
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
DO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.
G198d
Garcia, Antonia dos Santos, 1948Desigualdades raciais e segregação urbana em antigas capitais: Salvador, cidade
D’Oxum e Rio de Janeiro, cidade de Ogum / Antonia dos Santos Garcia. - Rio
de Janeiro : Garamond, 2009. 14X21cm; 544p.
Apêndices
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7617-157-7
1. Discriminação racial - Salvador (BA). 2. Discriminação racial - Rio de Janeiro
(RJ). 3. Segregação - Salvador (BA). 4. Segregação - Rio de Janeiro (RJ). 5.
Pobreza urbana - Salvador (BA). 6. Pobreza urbana - Rio de Janeiro (RJ). 7.
Negros - Salvador (BA) - Condições sociais. 8. Negros - Rio de Janeiro (RJ) Condições sociais. I. Título.
09-0163.
CDD: 307.760981
CDU: 316.334.56(81)
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Sumário
Apresentação · 7
Roberto Kant de Lima, Lenin Pires e Lucía Eilbaum
Concepções de igualdade e (des)igualdades no Brasil
(uma proposta de pesquisa) · 19
Luís Roberto Cardoso de Oliveira
Parte I
As mercadorias e seus estabelecimentos:
um olhar comparativo sobre o comércio ambulante
nos trens do Rio de Janeiro e de Buenos Aires · 37
Lenin Pires
“Choque de ordem na Lapa”: uma análise sobre
as lógicas e práticas de policiamento no ‘centro
cultural’ do Rio de Janeiro · 71
Haydee Caruso
Policiamento das incivilidades e demandas por segurança
em Montreal (Canadá): percepções da comunidade e
práticas policiais · 111
Marie-Eve Sylvestre
Engenharias do policiamento em Portugal.
No campo com os policiais de segurança pública · 143
Susana Durão
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As delegacias especializadas de atendimento à mulher
no Estado do Rio de Janeiro na visão de suas delegadas · 163
Lana Lage da Gama Lima, Sabrina Souza da Silva,
Paula de Carvalho Neves e Leonardo Mendes Barbosa
Parte II
Administração de conflitos judiciais em mercados
metropolitanos brasileiros: consequências e dissonâncias na
atualização de modelos avançados de Estado e de Mercado · 193
Maria Stella Amorim
Sentidos de justiça e reconhecimento em formas
extrajudiciais de resolução de conflitos em Belo Horizonte · 221
Daniel Simião, Vitor Barbosa Duarte,
Natan Ferreira de Carvalho, Pedro Gondim Davis
Acesso à justiça e resolução de conflitos.
Os serviços dos Centros de Integração da Cidadania na
percepção de seus usuários · 251
Jacqueline Sinhoretto e Liana de Paula
Fábrica de carimbos: mediação de conflito e papel do
judiciário no JECRIM-Belo Horizonte (MG) · 275
Andreia dos Santos e Eduardo Batitucci
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Apresentação
Esta coletânea constitui o primeiro volume de uma série que reúne
produtos acadêmicos de um conjunto de iniciativas realizadas por
uma rede de pesquisadores que, há vários anos, vem se dedicando de
forma conjunta ao estudo dos processos de administraçxão institucional de conflitos em perspectiva comparada. Tal rede foi formalizada
em 2002, com a criação da Rede Internacional de Investigação
sobre a Justiça e a Criminalidade (RIEC), na qual vêm colaborando
pesquisadores nacionais e internacionais na realização de estudos
empíricos comparados sobre questões vinculadas à administração
policial e judicial dos conflitos no espaço público.1
Com o passar dos anos, a organização contínua de mesasredondas, palestras e grupos de trabalho em eventos acadêmicos
reconhecidos na área das ciências sociais e humanas,2 a organização
de seminários nacionais e internacionais, a participação de pesquisadores doutores em bancas de mestrado e doutorado e a realização
de publicações conjuntas, entre outras atividades, permitiram a
divulgação do trabalho desenvolvido pela Rede. Assim, ela foi,
progressivamente, incorporando outros grupos de pesquisa e pesquisadores que partilhavam não apenas uma temática, mas também
a convicção de que o trabalho comparativo e em rede era o caminho
para produzir um entendimento sociológico dos significados e o
funcionamento dos sistemas de justiça criminal e segurança pública,
1 Atualmente a rede reúne pesquisadores da Argentina, Angola, Brasil, Canadá,
França e Portugal.
2 Os pesquisadores da rede têm participado sistematicamente das reuniões da
Associação Brasileira de Antropologia (ABA), da Associação Nacional de História
(Anpuh), na Reunião de Antropologia do Mercosul (RAM), dos encontros da
Associação de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), da
Associação Latino-americana de Antropologia (ALA), do Congresso Luso-Afro
Brasileiro de Ciências Sociais, das Jornadas de Investigación en Antropologia
Social organizadas pela Sección de Antropologia Social da FFyL-UBA.
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das percepções por parte dos diversos atores que neles interagem
e das lógicas distintas de administração institucional de conflitos
nesses espaços.
Nesse caminho, em meados de 2006, apresentamos uma proposta
de pesquisa em rede no âmbito da Chamada em Ciências Sociais
lançada pela Finep. O projeto tinha como foco o estudo dos processos de descentralização da administração de conflitos na área
da segurança pública e da justiça criminal a partir da realização de
pesquisas com guardas municipais no Estado do Rio de Janeiro, nos
Juizados Especiais Civis e Criminais no Rio, em Minas Gerais e
Distrito Federal e nos Centros de Integração da Cidadania em São
Paulo. Também foi proposto, no âmbito do projeto, como parte do
trabalho de extensão universitária, a elaboração de diagnósticos
e planos de segurança pública e social municipal em parceria
com municípios do Estado do Rio de Janeiro. Aprovado o projeto
pela Finep, em novembro de 2006, tendo o Núcleo Fluminense
de Estudos e Pesquisas (Nufep) da UFF como instituição sede,
participaram como grupos de pesquisa associados o Programa de
Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília,
o Núcleo de Estudos de Instituições Coercitivas da Universidade
Federal de Pernambuco, o Programa de Pós-graduação em Direito
da Universidade Gama Filho, o Instituto Brasileiro de Ciências
Criminais (IBCCrim-SP), o Instituto de Segurança Pública do
Estado do Rio de Janeiro (ISP-RJ) e a Fundação João Pinheiro
(FJP-MG).
Alguns meses depois, recebemos também a notícia da aprovação
de uma outra proposta dirigida à constituição de um Núcleo de
Excelência no âmbito do Edital Pronex-2006, lançado pela Faperj e
pelo CNPq. O projeto, denominado “Sistemas de Justiça Criminal e
Segurança Pública, em uma perspectiva comparada: administração
de conflitos e construção de verdades”, encaminhado pelo Nufep,
somou à nossa rede a participação de dois núcleos de pesquisa emergentes, o Núcleo de Estudos e Pesquisas de Mulher do Programa de
Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade de Minas
Gerais e o Núcleo da Exclusão e da Violência da Universidade
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Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, como também o
já consolidado Equipo de Antropologia Política y Jurídica da
Universidade de Buenos Aires, tradicional parceiro de pesquisas e
publicações conjuntas. O Núcleo de Excelência articula um conjunto de pesquisas que têm como foco a análise e compreensão das
diversas lógicas de funcionamento das agências dos sistemas de
segurança pública e de justiça criminal e a natureza dos conflitos
envolvidos nelas.
No contexto destes projetos, foram organizados seminários entre os pesquisadores participantes, com o objetivo de apresentar e
discutir os avanços e resultados das pesquisas envolvidas nos dois
projetos mencionados. O primeiro deles foi realizado em Porto
Alegre, na sede da PUC-RS,3 em julho de 2007, por ocasião da realização nessa cidade da VII Reunião de Antropologia do Mercosul
(RAM). O segundo, em junho de 2008, logo após a 26ª Reunião
Brasileira de Antropologia, em Porto Seguro (BA). Aproveitando
as circunstâncias desses congressos, ambos os encontros se beneficiaram também da participação de outros pesquisadores afins às
temáticas discutidas. O segundo encontro também contou com a
participação dos consultores internacionais integrantes do projeto
financiado pela Finep, professores Sofia Tiscornia, da Universidade
de Buenos Aires, e Daniel dos Santos e Fernando Acosta, ambos
da Universidade de Ottawa, Canadá. Eles comentaram os trabalhos
apresentados durante o seminário, aportando uma visão comparativa fundamental para o desenvolvimento das pesquisas e para as
reflexões sobre elas, sugerindo também novos caminhos a serem
explorados.
Os volumes I e II desta coletânea são parte dos resultados desses
dois encontros, combinando trabalhos apresentados no Grupo de
Trabalho Sistemas de Justiça Criminal e Segurança Pública, em uma
perspectiva comparada: processos institucionais de administração de
3 Para tanto, contamos com o apoio do professor Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo,
dos programas de Pós-graduação em Ciências Criminais e em Ciências Sociais dessa
Universidade, que foi convidado e aceitou agregar-se ao Núcleo de Excelência.
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conflitos, coordenado por Roberto Kant de Lima e Sofia Tiscornia
na 26ª Reunião Brasileira de Antropologia, com aqueles discutidos
durante o seminário. Reunimos, então, um conjunto de artigos que
discutem, a partir dos resultados de pesquisas empíricas, processos
e lógicas de administração institucional de conflitos em diversos
espaços sociais. Pesquisas realizadas em cidades do Estado do Rio
de Janeiro, em Belo Horizonte (MG), em São Paulo (SP), no Distrito
Federal e no Brasil, no âmbito nacional, se articulam e debatem com
outras desenvolvidas em Buenos Aires, Montreal e Lisboa.
A perspectiva comparada adotada, seja a partir do trabalho em
rede, seja também a partir das experiências de internacionalização
dos próprios pesquisadores da rede,4 tem se mostrado um recurso
fundamental na produção de conhecimento e na compreensão das
realidades sociais pesquisadas. Esse exercício tem contribuído
para a desnaturalização das rotinas, práticas e valores da própria
sociedade, grupo ou instituição, a partir dos possíveis contrastes
com outras sociedades, grupos ou instituições.
Por outro lado, a perspectiva comparada também tem se revelado
fundamental em outros dois sentidos: a partir da participação de
profissionais provenientes de diferentes disciplinas e da participação
4 A rede, sob coordenação do Nufep e do PPGA, tem participado e participa dos
seguintes convênios internacionais: Capes-SPU – Programa de Centros Associados
de Pós-graduação Brasil-Argentina (2005-2009); Programa de pesquisa e intercâmbio com o departamento de Criminologia da Universidade de Ottawa, Dr.
Daniel dos Santos; idem, com o CERAL – Professor Pierre Teisserenc – Convênio
entre a Universidade de Paris XIII e UFF; idem, com o Groupe de Sociologie
Politique et Moral da École des Hautes Études en Sciences Sociales; “S’engager à
partir d’un ancrage territorial. Une perspective comparatiste sur les (im)mobilités
territoriales, les mobiles de l’action publique et les mobilisations pour le Bien
commun”, coordenado por Marc Breviglieri e Laurent Thévenot; idem, com o
GERN – Groupe d’Études sur les Normativités, coordenado por M.René Lévy; idem,
Programa CNPq – Pró-África (Brasil e Angola), com a Universidade Agostinho
Neto (Angola); idem, Programa Capes – Cofecub/Brasil – França – Universidade
Federal Fluminense/Universidade de Paris X (1998-2002; 2005-2008); idem, Capes
– Secyt Universidade Federal Fluminense (Nufep) e Universidade de Buenos Aires
(Equipo de Antropologia Política e Jurídica) (2005-2007).
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de pesquisadores em distintos níveis de sua formação acadêmica.
Ambos os aspectos, de fato, têm caracterizado, desde sua fundação,
o modo de produção acadêmica do Núcleo Fluminense de Estudos
e Pesquisas e dos projetos a ele associados. Em relação ao primeiro aspecto, pesquisadores com formação, além da antropologia,
nas áreas da história, do direito, da biologia, da criminologia, da
ciência política, da economia, entre outras, têm contribuído, por
um lado, na produção de um conhecimento mais abrangente das
realidades sociais pesquisadas e, por outro lado, na socialização
de profissionais de outras disciplinas na produção de pesquisas
empíricas conforme o método próprio da antropologia. De forma
semelhante, em relação ao segundo aspecto, a participação de
estudantes em nível de ensino médio, graduação e pós-graduação
junto com pesquisadores doutores seniores e recém-doutores tem
favorecido a formação e integração dos alunos em experiências de
pesquisa e de produção do conhecimento, especialmente em uma
área de grande e crescente relevância sociológica como a segurança pública e a justiça criminal. Assim, formou-se um corpus
de material empírico sobre formas de administração institucional
de conflitos e se delinearam reflexões teóricas sobre os processos
de reconhecimento e legitimação da cidadania, dos direitos civis
e sociais, sobre os mecanismos que caracterizam e dão vida ao
funcionamento das burocracias estudadas e sobre a natureza dos
conflitos que elas pretendem ou devem administrar.
São vários os aspectos do funcionamento das agências dos
sistemas de segurança pública e de justiça criminal e das formas e
lógicas de administração institucional de conflitos que têm aparecido
de forma recorrente nas pesquisas realizadas pelos pesquisadores
da Rede. Gostaríamos aqui de apenas mencionar alguns deles.
Em primeiro lugar, a falta de articulação, no Brasil, entre as
instituições da segurança pública e da justiça criminal. Isso porque,
embora elas sejam pensadas como constituindo um “sistema”, as
análises sobre o funcionamento de cada uma delas têm demonstrado que elas agem de forma fragmentada. Assim, representamse mais como segmentos de corporações em defesa de interesses
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particulares do que como instituições organizadas dentro de uma
rede integrada de serviço público. Isso tem levado também a uma
permanente tensão entre formas universalistas e particularistas,
igualitárias e hierárquicas, de autonomia e subalternidade, de interpretação e aplicação da lei e de exercício do poder público nas
lógicas de administração institucional de conflitos por parte dos
agentes públicos intervenientes.
Nesse contexto, as sucessivas etapas que os conflitos percorrem
no sistema de justiça criminal, além de estarem reguladas por leis
e normas específicas, possuem lógicas de atuação diferenciadas,
informadas por tradições e práticas próprias de cada uma das instituições e atores envolvidos. Assim, longe de existir uma lógica
universalista orientadora das políticas e dos serviços públicos, é
possível visualizar formas particulares e desarticuladas de administração institucional de conflitos, prevalecendo lógicas corporativas,
mais do que institucional e sistêmica, de tratamento dos conflitos e
de elaboração e implementação de políticas públicas no setor.
Isso conduz a um segundo aspecto ressaltado por nossas pesquisas: a falta de articulação entre as formas e lógicas que orientam a
administração institucional de conflitos e as diferentes naturezas dos
conflitos envolvidos. No âmbito das políticas públicas, a violência
que se instaura na sociedade tem sido ora atribuída ao incremento
da chamada “criminalidade violenta”, caso em que a repressão
aos “criminosos” seria a política mais eficiente para controlá-la
ou combatê-la, ora tem sido considerada como o resultado final de
um longo processo de inadequadas administrações institucionais
de conflitos, que minam a credibilidade das agências de justiça e
segurança pública, consolidando terreno fértil para o surgimento de
mecanismos de socialização e de formas de sociabilidade violenta
entre os membros da sociedade.
Contudo, tais agências, destinadas legal e formalmente a administrar condutas definidas juridicamente como crimes e classificadas
midiática e socialmente como eventos de uma crescente violência,
lidam na maior parte do seu tempo de trabalho com conflitos sociais
que não necessariamente infringem a lei penal, mas que, em sua
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maioria, são o resultado de relações de proximidade entre pessoas
conhecidas entre si, seja por laços de parentesco, vizinhança, trabalho ou amizade. Paradoxalmente a essa constatação, pouca atenção
institucional tem sido dada a esses conflitos, constatando-se uma
ausência de estratégias e mecanismos de administração e prevenção.
Recorrentemente mais preocupados com o “combate” ao “tráfico
de drogas” ou, mais recentemente, com os crimes associados às
denominadas “milícias”, este desinteresse institucional parece
corresponder também ao valor negativo que policiais militares e
civis, funcionários do Judiciário e guardas municipais outorgam, nas
suas rotinas de trabalho, ao atendimento e tratamento de conflitos
de natureza “menor”, classificados geralmente por estes agentes
como questões externas ou impróprias às atribuições da polícia ou
do Judiciário.
Acreditamos que essas características institucionais estejam
ligadas, por um lado, à formação profissional que é ministrada nas
instituições de justiça criminal, ora voltada para as representações
jurídico-punitivas do direito penal, ora para as instruções operacionais de cunho militar, onde há missões a cumprir e inimigos a
combater e derrotar; por outro, às representações jurídicas hierarquizadas sobre a estrutura da sociedade brasileira, fortemente presentes
na cultura jurídica do processo penal e que em muito diferem dos
“princípios jurídicos” que orientam o direito constitucional. Tal
ambiguidade, na prática, naturaliza a aplicação de diferentes meios
para administrar institucionalmente conflitos entre iguais e conflitos
entre desiguais, independentemente da natureza dos conflitos, mas
fortemente dependente do status dos envolvidos.
Ora, isso não só naturaliza a distribuição desigual da justiça, da
punição e da sujeição criminal (Misse, 1999, 2005) – legitimando a
crença de que “bandidos” são os “outros” –, ao mesmo tempo que
cria forte sensação de impunidade – de novo, porque os “outros”
não foram punidos! –, mas também produz, no espaço público, um
ambiente de desigualdade explícita que impede a normalização, em
público, dos comportamentos sociais e a valorização da civilidade
como opção orientada pelo princípio estruturante das relações em
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público, aplicando-se as regras de forma universal, igualmente a
todos os que ocupam o espaço público, e não apenas entre aqueles
que dele se apropriam particularizadamente.
Sobre estas questões, formuladas e desenvolvidas a partir dos
resultados das pesquisas desenvolvidas e em andamento, é que se
debruçam as discussões dos artigos aqui publicados, organizados,
inicialmente, em dois volumes. Neste primeiro, os trabalhos são
introduzidos com o artigo inicial de Luís Roberto Cardoso de
Oliveira, que apresenta uma discussão sobre concepções de igualdade, sugerindo as noções de isonomia jurídica e desigualdade
de tratamento para refletir e compreender as peculiaridades do
exercício da cidadania no Brasil, em perspectiva comparada. Essas
questões, propostas pelo autor a partir das pesquisas realizadas
desde a década de 90 no Brasil, no Canadá e na França, oferecem
um quadro teórico e reflexivo importante para mergulhar na leitura
dos artigos seguintes.
Estes, organizados em duas partes, apresentam etnografias sobre
processos de administração judicial de conflitos nos quais as noções
de igualdade e desigualdade jurídicas, cidadania, direito e justiça
estão presentes ora como instrumentos analíticos, ora como categorias nativas. Na primeira parte, os artigos enfatizam os processos de
administração policial institucional de conflitos no espaço público,
a partir da apresentação de pesquisas empíricas e reflexões sobre
diversas experiências sociais envolvendo a instituição policial, ou
outras agências de controle social, e sua relação com as formas de
interação de setores da população com esses agentes.
No primeiro artigo, Lenin Pires apresenta uma descrição e análise
comparativa entre os mecanismos formais e informais de controle
institucional (policial, judicial ou de segurança privada) da atividade
de vendedores ambulantes nas cidades de Buenos Aires e do Rio de
Janeiro, buscando captar lógicas distintas de representação e relacionamento com as regras e normas instituídas nas duas sociedades.
Já o artigo de Haydée Caruso explora o policiamento em um
bairro distintivo da região do centro da cidade do Rio de Janeiro – a
Lapa –, procurando compreender como a chamada “preservação da
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ordem pública” é constituída e negociada entre policiais, moradores
e frequentadores que conformam o campo do controle e regulação
social naquela região.
Em uma direção semelhante, encontram-se os artigos de MarieEve Sylvestre e Susana Durão, sobre o policiamento em Montreal e
Lisboa, respectivamente. No primeiro, Sylvestre analisa as formas
de policiamento dos comportamentos antissociais relacionados à
ocupação dos espaços públicos em Montreal, no contexto da adoção
de uma política contra as chamadas “incivilidades”. No segundo,
Durão analisa a denominada Polícia de Segurança Pública, desenhada para a polícia urbana portuguesa, buscando demonstrar a
existência de um paradoxo nesta política que sublinha a dimensão
de atividade anticriminal da polícia num país que tem manifestado
fracos índices criminais.
O artigo conjunto de Lana Lage, Sabrina Souza da Silva, Paula
de Carvalho Neves e Leonardo Mendes Barbosa analisa as práticas
de administração de conflitos envolvendo violência doméstica, a
partir da pesquisa em Delegacias Especializadas de Atendimento à
Mulher (DEAM) e em delegacias distritais em diferentes regiões do
Estado do Rio de Janeiro. Focalizam neste artigo as representações
e opiniões das delegadas responsáveis por essas agências sobre os
casos atendidos.
Na segunda parte, os artigos focalizam os processos de administração institucional de conflitos, mas desta vez com ênfase nas
descrições e problematizações sobre a atuação de suas instâncias
judiciárias. Os artigos têm em comum a análise do funcionamento
de instituições criadas após a Constituição de 1988 com o objetivo
de desafogar os tribunais comuns e gerar mecanismos mais céleres de administração da justiça. Essas diversas reformas na área
judiciária tiveram como foco, inicialmente, a implementação de
mecanismos de administração que atendessem à natureza específica
de conflitos de “menor potencial ofensivo”. Seguindo essa linha,
os quatro artigos descrevem os processos de criação de algumas
dessas instâncias e o seu funcionamento, chamando a atenção para
a manutenção de lógicas de administração de justiça tradicionais e
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para a falta de correlação entre as estratégias desenvolvidas pelos
agentes e a natureza dos conflitos envolvidos.
Particularmente, o artigo de Maria Stella Amorim analisa as
demandas apresentadas em relação aos direitos do consumidor nos
Juizados Especiais Cíveis no Rio de Janeiro. Nessa dinâmica, destaca,
por contraste com outras sociedades de mercado, as especificidades
das relações de direito contratual e do direito do consumidor na
sociedade brasileira, chamando a atenção para a interferência do
Estado nessas relações. Segundo Amorim, tal interferência estatal é
associada à categoria “hipossuficiência”, vigente no direito brasileiro,
que bloqueia a normatização igualitária das partes nos contratos e a
socialização de responsabilidades mútuas entre atores participantes
de mercados livres. O artigo, nesse sentido, é mais uma contribuição
para refletir sobre as noções de igualdade e desigualdade jurídicas
presentes no direito brasileiro.
O artigo de Daniel Simião, Vitor Barbosa Duarte, Natan Ferreira
de Carvalho e Pedro Gondim Davis apresenta iniciativas recentes
do poder público e da sociedade civil organizada de criação de
instâncias alternativas de resolução de conflitos, focalizando a
análise etnográfica nas práticas de mediação em atendimentos
feitos por Núcleos de Mediação e Cidadania, do programa Polos
de Cidadania da Universidade Federal de Minas Gerais, em duas
favelas de Belo Horizonte. Assim, o artigo busca explorar, por meio
de uma perspectiva etnográfica, os limites e os potenciais em jogo
na implantação de espaços de resolução mediada de conflitos.
O artigo de Jacqueline Sinhoretto e Liana de Paula visa discutir
questões do acesso à justiça a partir da perspectiva dos usuários dos
Centros de Integração da Cidadania (CIC) na cidade de São Paulo.
Nesse sentido, explora este novo serviço, criado com o objetivo de
disponibilizar serviços estatais de resolução de conflitos nas áreas
da periferia metropolitana, a partir da avaliação que os usuários dos
centros fazem em relação ao atendimento e às soluções obtidas.
Por último, o artigo de Eduardo Batittucci e Andréia dos Santos
propõe uma mudança de perspectiva sobre problemas semelhantes,
isto é, a análise do funcionamento de novas instâncias de acesso a
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justiça. Neste caso, a partir da análise quantitativa e estatística dos
dados colhidos junto aos processos em julgamento, em 2006, no
Juizado Especial Criminal de Belo Horizonte, buscam traçar o fluxo
dos processos que foram julgados, os condicionantes organizacionais
desse Juizado Especial e as características de vítimas e agentes dos
processos julgados naquele ano. A análise dos dados levantados
mostra que, junto a uma maior procura desse tipo de serviço entre a população, muitas vítimas desistem do prosseguimento dos
processos sem que o Judiciário tenha desenvolvido procedimentos
substantivos em prol da administração desses conflitos.
Esperamos com estas breves palavras ter despertado a curiosidade dos leitores, atraindo-os para que partilhem de discussões
cada vez mais amplas, provocativas e estimulantes com os autores
desta coletânea e pesquisadores da nossa rede.
Roberto Kant de Lima
Lenin Pires
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