BODAS DE PRATA
Há 25 anos começava na Rádio Nova «O Sexo dos Anjos». Se
anjos e diabos não tivessem chamado o Zé Gabriel para lhes ale‑
grar a eternidade com música africana e sorriso doce, talvez lhe
sugerisse, e ao Aurélio, festejarmos as bodas de prata. Afinal os
grupos de rock fazem­‑no a torto e a direito, por nostalgia, medo ao
anonimato ou falta de dinheiro, porque não nós? Mas em tasca
portuense, não na rádio.
Porque reunião à volta de microfone seria erro grave, a frescura
do programa é irrepetível. Abstenho­‑me de dissertar sobre compe‑
tência (nossa) ou qualidade (do produto final), não me cabe avaliá­
‑las. Mas recordo a cores berrantes o que sentíamos — nas grava‑
ções ou em directo, uma espécie de inocência adolescente; grata a
um público que nos mimou durante anos, mas ciosa da campânula
feita de música e palavras em que vivia. O jantar seria uma celebra‑
ção risonha; tentar reviver aquele ambiente, um insulto a memórias
repousando na minha estante, por gentileza de ouvintes, «pensei que
o doutor gostaria de ter as gravações…». Nunca as ouço, mas gosto
de as saber ali, fotografias sonoras da mais extraordinária alquimia
que experimentei em rádio ou televisão.
Se a Palavra foi venerada no programa, tímida a nossa na abor‑
dagem da de outros, mas esculpida o melhor que soubemos e com
enorme gozo, arriscá­‑la em letra de forma nunca me ocorreu. Até ao
dia em que o Francisco Vale me desafiou a pelo menos tentar, ao fim
da tarde, no Ministério da Justiça. Seguiu­‑se um trabalho longo, era
preciso adaptar sem trair, às vezes eu desesperava e o Francisco
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teimava, alturas houve em que o seu eterno «estimado Júlio Macha‑
do Vaz» deve ter escondido enorme enfado pelas minhas hesitações.
Aos diálogos com o Aurélio, limitados pela duração do programa,
juntaram­‑se textos em associação tão livre que partiam nas mais
diversas direcções e chegavam a apeadeiros inesperados, eu descia
e o verso do Zé Mário namorava­‑me os lábios, «o que eu andei para
aqui chegar». O Francisco permanecia imperturbável, julgo
lembrar­‑lhe o diagnóstico optimista — «caos criativo». Eu apenas
sentia o caos…
O livro saiu, através dele surgiu o convite do Carlos Cruz para
uma das suas conversas à quarta­‑feira. Da que mantivemos nos
bastidores, comigo já liberto de fato e gravata, nasceu a hipótese do
«Sexualidades», no ano seguinte desaguei no pequeno ecrã. Sem
estar psicologicamente preparado para tudo o que isso representa‑
va, acho que sobrevivi porque o Carlos, a Cila do Carmo, a Patrícia
Reis e a Catarina Soares se encarregavam de tudo o que me afastas‑
se do essencial — permanecer genuíno, fiel ao tipo que começara a
falar «daquilo» nos anfiteatros do ICBAS e continuara a fazê­‑lo no
«Sexo dos Anjos».
Arrisco­‑me a dizer que conseguiram. O programa foi encapotada‑
mente censurado seis meses depois e exilado para horário de filme
pornográfico no segundo canal, apesar dos pedidos em contrário de
estudantes, Conselhos Directivos, Associações de Pais, gente anóni‑
ma que punha o nome no fim das cartas. Recordo abraço e riso
aberto do Mário Castrim numa Feira do Livro — «Homem,
prestaram­‑lhe a maior das homenagens, têm medo de si». Não me
atrevi a contrariá­‑lo, além de gostar dele e lhe respeitar imenso a
certeira opinião, jamais edulcorada pela simpatia que nos juntava,
mas o pensamento era estranho — o filho da burguesia portuense
transformado em arauto da libertinagem… Vinte anos volvidos, ima‑
gino que quem tomou a decisão deva tomar calmantes ao ler primei‑
ras páginas a abarrotar de sexo e não sexualidade, tiragem oblige.
E o livro, que dera o tiro de partida, surgiu como possível solução
para a efeméride — porque não reeditar O Sexo dos Anjos? Pó sa‑
cudido, textos revisitados, duas dificuldades surgiram — havia pági‑
nas que não me apetecia ressuscitar; e seria artificial separar O
Sexo dos Anjos e Domingos, Sábados e Outros Dias, tinham sido
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Prefácio
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escritos no mesmo estado de espírito, a quem ocorre separar ir‑
mãos? O mesmo não se passava com Conversas no Papel, mas Esti‑
lhaços retomava a melodia e fechava uma década complicada, basta
lembrar que era dedicado a um irmão de afecto que morrera e a
outro que acompanhava o Alzheimer de minha Mãe. O primeiro
texto chorava a morte de meu Pai…
Será o resultado uma espécie de best of… paroquial? Não sei, sou
suspeito. Com a bênção do Francisco, escolhi palavras de prazer e
dor que voltaria a escrever. Pareceu­‑me critério aceitável para assi‑
nalar a relação fundamental, trabalhosa mas inescapável — a que
vivo comigo mesmo no papel.
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QUE HÁ­‑DE SER DE NÓS?
A distância está na cabeça, livre dos mecos à beira­‑estrada. Quan‑
do visito as Astúrias, sinto­‑me em viagem, para lá dos Pirenéus é a
outra face da Lua, mergulho nas cabinas telefónicas várias vezes por
dia, preciso de ter a certeza de que o Porto e as pessoas (?) ainda
existem. Com a Galiza é diferente, dir­‑se­‑ia a Casa no Campo da
canção da Elis Regina, busco sempre espaço e tempo, mas ao virar
da esquina, vou ali e volto. Escrevi lá a Tese, a barba por fazer e
vinho rasca pelas malgas de Portonovo; ensaiei lutos e momentos
felizes; vi os putos crescer a chapinhar na ria e sonhei um casamento
diferente, que me permitisse gozar a dois as livrarias de Santiago;
acabei por me habituar às nieblas e à ternura rude de Dora, minha
anfitriã, «D. Julio, los hombres no se deben quedar solos». O marido
e os filhos não se atrevem a contrariá­‑la, porque seria eu o kamikaze?
Em Areas, o matriarcado é indiscutível.
Os homens são pulhas, está bom de ver que já a traí. No Verão, a
ria de Pontevedra torna­‑se insuportável, casino na Toxa, Iglesias no
iate, meio Porto em Sanxenxo (a outra metade fica em Moledo).
Receoso do mau feitio da Dora, solidário com o seu ciúme, acelero
em Pontevedra e passo à clandestinidade. Descobri Muros assim, à
revelia de portuenses e galegos, fechado na concha.
Sempre fui um masoquista interesseiro, adoro voltar e descrever
em pormenor cada desgraça; colecciono furos, hotéis sem água quen‑
te, restaurantes caros e maus, estradas sem saída. Megalómano, rosno
«isto só a mim», com a volúpia do ateu a quem o Senhor decidiu
punir carinhosamente, tanto azar desafia a lei das probabilidades.
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Vem do Alto, sem a menor dúvida. Por isso demandei o hotelzito com
a firme certeza de ouvir o «completos» da praxe. Não estavam, pior
ainda!, poderia escolher entre dois quartos de características diferen‑
tes e preço semelhante. Odeio o livre­‑arbítrio, arrependo­‑me sempre,
aparecem defeitos escondidos e vantagens ignoradas, os quartos de
hotel devem ser rigorosamente iguais, com uma pequena margem de
manobra para o cliente. Mínima. Escolher o pequeno­‑almoço, regular
o ar condicionado e pôr o dístico de «não incomodar», que tanto irri‑
ta empregadas com pressa e aspiradores sádicos.
Preparei­‑me para utilizar o método do vinho: uns segundos na
boca, expressão sonhadora e ignorância crassa, «pode servir». Não
foi preciso, apaixonei­‑me por um dos quartos mal o vi. Tinha sido
roubado às águas­‑furtadas, subia­‑se por escada em caracol até uma
saleta que dava para a varanda (sujota) pendurada sobre a ria. Tectos
às três pancadas, clarabóia, fosse eu escritor e não saía dali sem obra
feita. Duas camas de solteiro, resolutamente distantes e pregadas à
parede. Recordei protestos ferozes, «não sabias pedir uma cama de
casal?», é bom quando nos puxam as orelhas e obrigam a pensar nos
pequenos nadas, indispensáveis ao amor. Dessa vez, apenas silêncio,
mas não de alívio. Pesado, de tanta ausência.
A saleta continuou a dormitar, em face do talento inexistente,
mas a varanda pagou­‑as todas. De acordo, não era limpa, fazia
lembrar, estranhamente, aqueles pátios onde aterram os caprichos
dos vizinhos, seráficos em reuniões de condomínio. «Eu? Talvez a
senhora do terceiro andar.» Acusação injusta, mas quem a mandou
faltar? Restos de outros clientes, preguiça das empregadas, tudo
esquecido e perdoado à vista da ria, lânguida, passeando­‑se entre
Noia e Finisterra. O fim da Terra… Dava que pensar, a Terra não é
chata, mas os homens continuam supersticiosos. O fim da Terra…
Um presságio. Muros soava melhor, mais sólido e protector, decidi
ficar uns dias.
A rotina invade tudo, mesmo férias terapêuticas. Sou um típico
banhista de esplanada — leio até me cansar; desato a pensar no que
não devo; angustio­‑me; em desespero de causa, volto a ler, as linhas
passam, opacas. Como gambas al ajillo, bebo cañas, explico que a
tortilha à espanhola em Portugal é mais rica, não se fica por ovos e
batatas. Vegeto, sempre na esperança de uma acalmia neuronal, as
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