A formação profissional em música: uma reflexão pensada sob o ponto de
vista da construção social da profissão musical
Cíntia Thais Morato
Universidade Federal de Uberlândia - UFU
[email protected]
Resumo: Faço neste texto, uma revisão bibliográfica com o intuito de fomentar a
compreensão da construção social da profissão em música. O objetivo de tal fomento é
entender as circunstâncias socioculturais e históricas adjacentes à formação profissional
buscada nos cursos superiores de música. Uma vez que os alunos matriculados nos cursos de
graduação em música já atuam profissionalmente na área, o interesse em articular tal revisão
surgiu do questionamento das normas socialmente instituídas que prevêem a necessidade de
se estudar e titular para depois se trabalhar. Outrossim, o veto ao Artigo 2º da Lei nº 11.769
de 18 de agosto de 2008 (que dispõe sobre a obrigatoriedade do ensino da música na educação
básica) também problematiza normas socialmente aceitas pelas quais a atuação profissional
deve ser filtrada pela titulação acadêmica. No tocante à construção social da profissão
musical, são abordados aspectos como a precocidade da formação e da profissionalização, a
multiplicidade das atuações profissionais, além do modo diferenciado com que a profissão em
música se faz reconhecida mediante outras profissões tidas como de maior prestígio social. A
conclusão que cheguei sobre a relevância de tal discussão para a Educação Musical diz
respeito à ampliação do modo de ver a formação profissional que acontece nos cursos de
graduação em música, ou seja, a formação profissional precisa ser vista para além do tempo e
espaço acadêmico e para além das disciplinas curriculares, pois o modo como a profissão é
construída socialmente também norteia essa formação visto que deixa marcas nos alunos –
marcas que lhes dão forma. As marcas dessa dimensão social e histórica da formação
profissional em música repercutem, por sua vez, no modo com que os alunos-profissionais
darão continuidade (ou não) a essa construção.
Palavras-chave: Formação profissional, profissão em música, construção social.
1. Introdução
No ano de 2009 defendi minha tese de doutorado cuja pesquisa versou sobre a
formação profissional do músico e do professor de música de alunos universitários que já
atuam profissionalmente enquanto estudam. Uma das perguntas que me instigou foi: se as
normas socialmente instituídas prevêem que primeiro se deve estudar e se formar para depois
se trabalhar, o que possibilita que o aluno já atue profissionalmente em música enquanto cursa
a graduação na mesma área?
De volta à docência superior em 2010, ao discutir a Lei nº 11.769 de 18 de agosto de
2008 (“altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, Lei de Diretrizes e Bases da
Educação, para dispor sobre a obrigatoriedade do ensino da música na educação básica”) com
meus alunos na disciplina Estágio Licenciatura do Curso de Licenciatura em Música da
220
UFU 1 , uma onda de revolta se abateu sobre os mesmos quanto ao veto do Artigo 2º da
referida Lei, o qual legislava sobre o ensino de música a ser ministrado por professores com
formação específica na área 2 . Refletindo sobre essas questões, uma das alunas questionou:
“Mas, se todo mundo pode tocar, dar aulas, por que, ou, para que a gente tem que fazer
faculdade?” (Mariana, aula de Estágio Licenciatura 1, 06/05/2010). Nas reflexões de Mariana
havia ainda a inconformidade sobre a falta de compreensão dos colegas universitários de
outras áreas a respeito do que os alunos estudam no curso superior de música.
Todas essas problemáticas (o veto do Artigo 2º da Lei nº 11.769, a ambigüidade da
necessidade de se cursar a graduação em música, o desconhecimento do que se estuda na
graduação em música por parte de aspirantes à profissionalização em outras áreas) podem ser
melhor compreendidas através da revisão bibliográfica que proponho a seguir e que se
respalda na busca de um entendimento da profissão musical como uma construção social.
Para compreender o modo com que a profissão em música é construída socialmente
na contemporaneidade, é preciso conhecer os aspectos que lhe são peculiares: a precocidade
da profissionalização – que se torna possível mediante a precocidade da formação musical – e
a multiplicidade de atuação dos profissionais, particularidades da profissão sob as quais se
inscrevem a valorização da rede social e a estruturação intermitente. Além disso, é preciso
ainda entender como a profissão musical se difere do modo com que outras profissões
legitimadas socialmente se constroem.
2. Sobre a precocidade da profissionalização e da formação musical
A precocidade na profissionalização em música pode ser entendida de duas maneiras:
trabalhar desde tenra idade e trabalhar antes de se diplomar academicamente.
O trabalho precoce em música está vinculado ao modo com que a profissão musical é
reconhecida socialmente, ou seja, pela valorização de competências que se baseiam nas
habilidades pessoais do músico – o saber fazer –, e tem um trajeto histórico que remonta à
origem dos ofícios artesanais. Segundo Elias (1995, p. 26), na “antiga tradição dos ofícios
artesanais, era comum o pai assumir o papel de mestre e ensinar ao filho as artes do ofício,
talvez até mesmo desejando que algum dia o filho excedesse sua própria perícia”. Para esse
autor, o caráter de ofício da profissão de músico é marcado por uma “agudíssima
desigualdade social entre produtor da arte e patrono” na sociedade aristocrática europeia dos
1
Universidade Federal de Uberlândia.
As “razões do veto” podem ser conferidas no endereço eletrônico
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Msg/VEP-622-08.htm, acesso em 29 de maio de
2010.
2
221
séculos XVII e XVIII, onde os músicos tinham o mesmo status dos pasteleiros, cozinheiros e
criados na hierarquia da corte (ELIAS, 1995, p. 26).
A partir da modernidade, as sociedades complexas reservaram um tempo e um
espaço especialmente dedicados à preparação e aprendizagem de uma profissão – os tempos
da infância e juventude e os espaços escolares e acadêmicos. Chamado de educação, o sistema
que integra esses tempos e espaços acabou sendo naturalizado como único apropriado para
esse aspecto da formação humana.
Ponderando-se, no entanto, o contexto da economia produtiva em que se pautou o
desenvolvimento das sociedades ocidentais industrializadas, profissões consideradas não
lesivas aos seres humanos, pouco produtivas e, portanto, com baixa participação na economia
– como no caso das profissões artísticas, aqui em discussão a música – seguiram uma
trajetória em que puderam ser praticadas e reconhecidas sem que seus profissionais
frequentassem obrigatoriamente um espaço formal de educação ou se titulassem. Atualmente,
afirma Pichoneri (2006):
Ao contrário da maioria das profissões, onde a educação formal é o principal
caminho a ser percorrido, para o profissional da música erudita esta é apenas
uma das opções de formação possíveis, ou apenas uma das etapas que
compõem essa formação (PICHONERI, 2006, p. 3).
Pichoneri (2006) estudou a relação entre formação e profissionalização de músicos e
musicistas da Orquestra do Theatro Municipal de São Paulo; no entanto, pesquisas como as
de Coulangeon (2004), Ravet (2006), Recôva (2006) e Requião (2002) permitem afirmar que
o mesmo ocorre com a formação e profissionalização de músicos intérpretes populares que,
quando cursam a universidade, significam-na como uma complementação dos seus estudos,
“uma vez que [a universidade] não garante um saber fazer relacionado ao seu cotidiano
profissional ou ao perfil almejado” (REQUIÃO, 2002, p. 110).
Esses pesquisadores atestam que os músicos profissionalizam-se cedo, pois iniciam a
sua formação antes de ingressar na universidade – instituição socialmente reconhecida e
legitimada como preparadora da profissionalização –, aprendendo música com familiares e/ou
amigos (GOMES, 2009), participando de conjuntos instrumentais como bandas de baile,
bandas de rock (RECÔVA, 2006), bandas municipais ou marciais (GONÇALVES, 2007) e
fanfarras (BOZON, 2000), ou ainda, em escolas especializadas 3 e/ou com professores
particulares – (GONÇALVES, 2007; PICHONERI, 2006).
3
A formação institucionalizada é mais comum dentre os músicos eruditos (COULANGEON, 2004; RAVET,
2006).
222
Segundo Ravet (2006), à profissionalização precoce subjazem heranças musicais
recebidas: “Os músicos cujos pais, ou um deles, também são profissionais da música têm a
facilidade de quem foi criado nesse meio e conhece implicitamente suas regras” (RAVET,
2006, p. 5). Implicado nessas “regras” está o saber fazer, modo com que a profissão musical
é, e se faz, reconhecida socialmente. Como afirma Salgado e Silva (2005):
[...] a primazia da técnica na realização musical coloca o músico na ordem
mais ampla dos possuidores de um saber técnico; como esse saber não
depende da certificação acadêmica, o músico tem mais de um caminho
possível de formação, inclusive o de “autodidata” (embora o prefixo “auto”
possa enganar), e o da “aprendizagem informal”. Ora, o saber do autodidata,
e de fato o de qualquer técnico que presta um serviço, pode ser colocado à
prova a qualquer momento, pois é na eficiência de realizar um trabalho que
reside seu valor (SALGADO E SILVA, 2005, p. 225).
Numa profissão valorizada e legitimada pelo saber fazer, o professor é reconhecido
pelas habilidades que domina, as quais crê-se poder ser ensinadas. Segundo Requião (2002),
que estudou a atividade docente do músico professor, a docência faculta reconhecimento
social à profissionalização em música, pois confere legitimidade ao conjunto de saberes
adquiridos durante a trajetória formativa musical, bem como à atividade artística, mesmo que
essa última seja irregular e não remunerada no início. Por isso, ensinar é uma “atividade
percebida como intrínseca à atividade profissional do músico”, o qual pode conseguir na
docência uma atuação profissional mais regular e, portanto, remuneração mais segura
(REQUIÃO, 2002, p. 46). Ensinando o que sabem, posterga-se a vitrine social da profissão
através de quem sabe fazer e, por consequência, da construção do ensino profissionalizante
em música (VASCONCELOS, 2002).
3. Sobre a multiplicidade de atuações profissionais em música
O fenômeno atual da multiplicidade de atuações profissionais em música pode ser
explicado através da literatura de sociologia da música, que nos ajuda a entender porque é
possível trabalhar com música antes de se formar num curso universitário.
Além de intervir no arquivamento da memória musical, a repercussão que a
revolução tecnológica provocou no quadro geral da produção e da consequente organização
do trabalho, gerando de certa forma um desaquecimento na oferta de empregos, afetou
também a profissão em música no que diz respeito às múltiplas atuações profissionais
exercidas por uma mesma pessoa. Na ausência de empregos, as pessoas que possuem algum
domínio musical buscam trabalhar com música, ensinando ou interpretando.
223
Nesse sentido, Coulangeon (2004, p. 23) atesta que, na França, a expansão do
emprego musical é “largamente imputável a um efeito de entretenimento, resultante, de uma
parte, do desenvolvimento do ensino musical que encoraja as vocações no seio das jovens
gerações oferecendo-lhes oportunidades de emprego e sustento aos músicos intérpretes e, de
outra parte, do crescimento dos créditos públicos ao domínio musical” – crescimento que tem
sido facultado pela subvenção pública das políticas culturais francesas.
Esse contexto que “encoraja as vocações musicais nas jovens gerações” tem
provocado uma expansão no mercado musical, expansão que se deve principalmente à
progressão do número de músicos intérpretes da música popular, e dos empregos
intermitentes (contratos temporários) em música 4 . Acompanha essa expansão, entretanto, uma
jornada de trabalho que permanece modesta, pois, o acúmulo dos efetivos de professores e de
intérpretes gera uma corrida por postos de trabalhos precarizando os contratos e exigindo das
pessoas uma flexibilidade para atuar em várias atividades musicais (COULANGEON, 2004,
p. 21).
Para Salgado e Silva (2005), que estudou como os músicos estudantes do Instituto
Villa-Lobos da UNIRIO gerenciam a construção da profissão musical em relação com a
atividade universitária, a multiplicidade de atuações profissionais é caracterizada por
contextos de trabalho “transitórios”, “instáveis” e “informais”, “com temporadas de duração
mais ou menos curta, e compromissos muitas vezes não formalizados por contrato, mas, em
vez disso, tenuemente formados por acordos verbais, promessas ou apostas na possibilidade
de sucessos” (SALGADO E SILVA, 2005, p. 148).
A flexibilidade exigida pelo mercado de trabalho musical atual se caracteriza,
entretanto, pela complexidade, e não pode ser vista apenas pelas questões de empregabilidade.
Assim, a diversidade de experiências e a necessidade de adaptação geradas por esses
contextos “transitórios e instáveis” colocam os músicos-estudantes “em contato com valores e
estéticas que tendem a alargar o horizonte” (SALGADO E SILVA, 2005, p. 239),
proporcionando-lhes mais autonomia musical. Essa, porém, só poderá ser gozada dependendo
do maior ou menor grau de institucionalização do vínculo de trabalho.
De acordo com Coulangeon (2006), a multiatividade musical é capaz de instaurar um
processo de “precarização identitária” que pode ameaçar as profissões artísticas, pois, devido
à instabilidade em que vivem, os profissionais podem não conseguir se realizar musicalmente
4
Segundo Coulangeon (2004, p. 20), de meados da década de 1980 para cá, o efetivo dos intérpretes da música
erudita, em especial dos músicos permanentes de orquestra, permaneceu estável na França. O mesmo não se
pode afirmar do Brasil, cujos cargos efetivos das orquestras têm sido substituídos cada vez mais por contratos
terceirizados e temporários (SEGNINI, 2007).
224
e, por isso, não se sentirem satisfeitos com sua profissão. Por outro lado, a segurança dos
cargos estáveis em orquestras, por exemplo, pode gerar um efeito contrário, pois o modo de
organização mais rigidamente estruturado dessas instituições faculta a rotinização do trabalho
musical inviabilizando a autonomia artística dos profissionais.
Tendo visto tratar-se a profissão em música de uma profissão não regulada pela
titulação, mas por “rebaixadas barreiras de entrada” na mesma (COULANGEON, 2004), e
cujo mercado de trabalho, restrito, estrutura-se por meio de cargos basicamente “transitórios,
instáveis e informais” (SALGADO E SILVA, 2005), a multiatividade musical configura-se
também como oportunidade de construção da rede de contatos, que se torna importante baliza
para a inserção profissional. De acordo com Pichoneri (2006), a rede de contatos constitui-se
desde a formação dos músicos, notadamente aquelas que se estabelecem entre professor e
aluno – ou entre os sujeitos que ocupam esses papéis sociais –, com o primeiro repassando
alunos ao segundo ou colocando-o para substituir-lhe em suas aulas, se for o caso da
docência, ou convidando-o para tocar junto consigo, introduzindo-o no mundo das bandas já
profissionalizadas (REQUIÃO, 2002); e estende-se durante toda a vida profissional, na qual
músicos e professores sem contratos empregatícios estáveis devem permanentemente se fazer
conhecidos para conseguirem se manter em atividade. “Este ainda é o método mais utilizado
por estes profissionais para entrar [e se manter] no circuito do mercado de trabalho, já que
este continua sendo restrito e, ao mesmo tempo, competitivo” (COLI, 2003, p. 230).
4. A profissão em música e outras profissões
No que diz respeito à precocidade da atuação profissional antes de se diplomar, a
principal diferença entre a profissão musical e outras profissões está no modo social com que
a função reguladora da atuação profissional nessas últimas é construída.
Pela necessidade de regular a atuação de quem exerce profissões que podem causar
lesões à sociedade (por exemplo, direito, engenharia e as profissões na área da saúde), as
sociedades complexas buscaram meios de organizar a formação preparatória para essas
profissões. Assim, embora a formação profissional organizada por meio do ensino superior se
preocupe em garantir a experiência através dos estágios, exige-se que o profissional conclua
primeiro o curso superior para que, de posse da licença delegada pelo órgão regulador de sua
profissão, comece a trabalhar.
Mas essa é uma construção social e, parafraseando Franzoi (2006, p. 26), podemos
dizer que “o caráter ‘mais’ ou ‘menos’ [lesivo pleiteado por cada profissão] não é dado”, mas
225
concebido e articulado como um argumento capaz de justificar a disputa pelo controle do
mercado de prestação de serviços. Conforme informado por Vargas (2008, p. 83, 86), esse
controle é exercido pelas associações profissionais que se responsabilizam, com o aval do
Estado, pela regulação das profissões, estendendo-o também à reprodução dos seus quadros
de profissionais – controle sobre o qual pesa a garantia e a conservação do poder e do
prestígio social de cada profissão. Nesse contexto, junto à legislação reguladora, o diploma de
nível superior funciona como o primeiro mecanismo de filtragem do acesso ao mercado de
prestação de serviços profissionais (FRANZOI, 2006, p. 27).
Na complexidade desse processo social de construção das profissões, o controle da
reprodução dos quadros profissionais e a disputa pelo mercado de prestação de serviços, que
resguardam o poder e o prestígio social, relacionam-se com a valorização da função produtiva
desempenhada por cada profissão, bem como, com a sua participação na economia – critérios
pelos quais as profissões são reconhecidas em nossa sociedade produtiva e industrializada. É
assim que se faz comum a associação da profissão de músico com “o ócio, a não produção, ao
não trabalho” (VIEIRA, 2009, p. 148), ou, conforme explica Coli (2003):
Diferente da profissão de médico, engenheiro e advogado, as condições
profissionais do músico não gozam do mesmo tipo de prestígio que a
sociedade confere àqueles. Quando se fala de um médico, logo se manifesta
um tipo de respeito. Para o público da sociedade de massas, quando se fala
do músico, logo se pergunta que trabalho ele faz. As diferenças entre o
“prestígio” obtido por essas profissões são evidentes, porque a atividade do
médico e dos outros é reconhecidamente tratada como “serviço público e
produtivo”, enquanto o entretenimento é comumente associado à
“ociosidade” (COLI, 2003, p. 235 – 236).
No Brasil, a associação profissional autorizada legalmente a exercer a regulação
nacional das profissões musicais é a Ordem dos Músicos do Brasil (OMB). Como condição
para o exercício profissional do músico, a Lei 3.857/1960 exige, além do registro na OMB, o
registro também no Ministério da Educação (art. 16) 5 , autorizando somente a atuação dos
músicos que comprovarem capacidade técnica tendo formado-se em cursos específicos ou
submetido-se a exame “perante banca examinadora, constituída por três especialistas, no
mínimo, indicados pela Ordem e pelos sindicatos de músicos do local e nomeados pela
5
Lei N° 3.857, 22 de dezembro de 1960: Cria a Ordem dos Músicos do Brasil e dispõe sobre a regulamentação
do exercício da profissão do músico. art. 16. “Os músicos só poderão exercer a profissão depois de regularmente
registrados no órgão competente do Ministério da Educação e Cultura e no Conselho Regional dos Músicos sob
cuja jurisdição estiver compreendido o local de sua atividade”. Disponível em:
<http://www.sindmusi.com.br/legislacao/lei_3857.asp>. Acesso em: 07/09/2006.
226
autoridade competente do Ministério do Trabalho e Previdência Social” (art. 28, Lei
3.857/60).
A legitimação da referida lei não é, porém, conferida nem pelos respectivos músicos
profissionais que, sem se sentirem representados pela OMB, impetram ações civis públicas
contra a Ordem em diversos Estados do Brasil 6 ; nem pela Justiça brasileira, que, por exemplo,
em 2004, através de ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal, condenou a
OMB, pois “a exigência prevista na Lei 3.857/60, [...] não subsiste à Carta de 1988 e aos
valores que elegeu ou resguardou” (Des. Fed. Eduardo Thompson Flores Lenz apud SILVA,
2004, s/p.). De acordo com argumentos presentes nas sentenças citadas pela juíza autora desse
último processo (SILVA, 2004, s/p.), nem a sociedade legitima a regulação do exercício
profissional em música por meio da OMB:
O exercício da profissão de músico independe de inscrição junto ao
Conselho, pois a Constituição assegura a livre manifestação do pensamento,
de criação, de expressão e de informação, isentando-os de censura prévia.
Como manifestação da arte, a música e o seu autor ou intérprete submetemse à fiscalização da opinião pública, nada justificando o policiamento
administrativo realizado pelo Conselho (Des. Fed. Eduardo Thompson
Flores Lenz /PR apud SILVA, 2004, s/p.).
Juntam-se ainda a essa manifestação de indecisão gerada pelo conflito entre a lei, que
regula o exercício profissional através da exigência de uma formação em espaços específicos,
outros argumentos que, quando se compara a profissão do músico com o potencial lesivo de
outras profissões, isentam o Estado de sua regulação:
O exercício da profissão de músico prescinde de inscrição junto a conselho
de classe, pois, além de assegurado o direito constitucional à livre
manifestação do pensamento, isentando-o de censura prévia, inexiste um
interesse público a justificar o policiamento da atividade, mercê da falta de
potencialidade lesiva a terceiros (SILVA, 2004, s/p.).
A ausência de potencial ofensivo retira o interesse do Estado em fiscalizar o
mau exercício da profissão de músico (Des. Fed. Francisco Donizete
Gomes/SC apud SILVA, 2004, s/p.).
As argumentações acima são confirmadas pelo fenômeno dos alunos que atuam
profissionalmente em música enquanto cursam a graduação na mesma área, ou seja, por
6
Disponíveis em: <http://www.apademp.org.br/juridico/saibamaisprocessos.asp#>,
<http://p2.forumforfree.com/omb-ordem-dos-msicos-do-brasil-vt1386-violaoerudito.html/>,
<http://www.ajufe.org.br/005/00502001.asp?ttCD_CHAVE=9412>, acesso em 07/09/2006;
<http://www.juspodivm.com.br/novo/arquivos/jurisprudencias/informativo_406e405.doc>, acesso em
15/05/2009.
227
profissionais que são reconhecidos socialmente no mercado de prestação de serviços musicais
sem terem passado pelo filtro regulador do diploma. Além disso, a não legitimação social da
associação profissional, bem como da legislação por ela instituída para regular a profissão em
música configura-a como uma profissão de pouco prestígio, com fraco poder de aglutinação e
controle social.
5. Considerações finais
Qual a importância, para a educação musical, de se saber como a profissão musical é
construída sociamente? Os aspectos abordados nessa revisão bibliográfica dizem respeito às
“paisagens” socioculturais, históricas e político-econômicas nas quais vivem os alunos que
cursam a graduação em música, onde a quase maioria já atua como profissionais. Quais as
marcas que esse trabalhar-estudar e que essa contingência sociocultural e história estão
deixando em suas constituições como profissionais, sejam como professores, músicos, ou em
outras demandas profissionais? A formação profissional não se dá somente no tempo e
espaço acadêmico, orientada pelas disciplinas curriculares. O modo como a profissão é
construída socialmente também norteia essa formação visto que deixa marcas nos alunos –
marcas que lhes dão forma. Pela via de mão dupla, as marcas dessa dimensão social e
histórica da formação profissional em música acabam repercutindo no modo com que os
alunos-profissionais darão continuidade (ou não) a essa construção.
228
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A formação profissional em música: uma reflexão pensada