"A César o que é de César e a Deus o que é de Deus"
Representações Sociais do Lucro na Perspectiva de Empresários do Ramo de Artigos
Religiosos da Região do Triângulo Mineiro
Autoria: Alessandro Gomes Enoque, Alex Fernando Borges, Jacquelaine Florindo Borges,
Vilmar Paulo Mariano Filho, Patrícia Dantas
Resumo
Este estudo, de natureza essencialmente qualitativa, foi realizado junto a empresários que
comercializam artigos de cinco denominações religiosas brasileiras (catolicismo,
protestantismo, espiritismo, umbanda e candomblé) nas quatro principais cidades do
Triângulo Mineiro (Uberlândia, Uberaba, Ituiutaba e Araguari). Tendo como objetivo
principal analisar as representações sociais do lucro na perspectiva de empresários do ramo de
artigos religiosos da região do Triângulo Mineiro, foram realizadas 30 (trinta) entrevistas
semi-estruturadas no período de junho a dezembro de 2012. Tais representações foram,
ainda, apreendidas no campo da análise de discurso, lançando importantes luzes sobre a
influência do elemento religioso nas práticas gerenciais.
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1. Introdução
Invertendo a lógica do materialismo histórico de cunho marxista, Weber (1981, 1982,
2001) analisou os fenômenos do lucro e do trabalho assalariado sobre a perspectiva cultural
do contexto do protestantismo americano. Segundo Martinelli (1994), o capitalista
empreendedor weberiano é relativamente distinto dos seus predecessores, caracterizando-se
pela busca do ganho econômico, tolerância ao risco e a subordinação do consumo sobre a
acumulação.
Na abordagem weberiana, a religião atua como um elemento cultural extremamente
relevante na conformação do empreendedorismo em determinada sociedade. Cumpre
destacar que a íntima relação entre a dinâmica religiosa de determinada localidade e a
existência de atividades empreendedoras pode ser prontamente observada, por exemplo, em
cidades mineiras como Diamantina, Ouro Preto, Mariana, bem como em festas religiosas
tradicionais (e temporárias) como as de São Geraldo em Curvelo e São Judas Tadeu em Belo
Horizonte.
As atividades empreendedoras que se desenvolvem nessas cidades e nessas festas
religiosas tradicionais podem ter origem em três dimensões fundamentais. A primeira está
relacionada à comercialização de produtos voltados para a alimentação dos visitantes
(salgados, bebidas e refeições, etc.). A segunda diz respeito à venda de produtos acessórios
das mais diversas categorias como panelas, eletrônicos, roupas etc. A terceira e última
dimensão diz respeito à comercialização de produtos de natureza sagrada: bíblias, imagem de
santos, crucifixos etc. É essa última dimensão que estimulou a confecção do presente artigo.
Em cidades do interior do estado de Minas Gerais e mesmo de outros estados brasileiros,
caracterizadas por intensa atividade religiosa, a vida cotidiana e a economia local são
marcadas por um tipo de comércio que se poderia chamar de transitório (principalmente
quando ocorre nos períodos de festas religiosas). Todavia, pode-se observar que a
mercantilização do sagrado alcançou, na atualidade e para a realidade brasileira, contornos de
formalização de sua atividade, bem como a utilização de práticas gerenciais tradicionais do
setor industrial. Tais práticas visam garantir a sobrevivência dos empreendimentos de cunho
religioso, gerando riqueza necessária à sobrevivência das famílias locais e também
impulsionando a economia de cidades do interior do país. Desse modo, muitos desses
empreendimentos podem se tornar um negócio lucrativo e promissor.
Este trabalho, de natureza essencialmente qualitativa tem como objetivo principal
analisar as representações sociais do lucro na perspectiva de empresários do ramo de artigos
religiosos de cinco denominações religiosas brasileiras (catolicismo, protestantismo,
espiritismo, umbanda e candomblé) da região do Triângulo Mineiro (Uberlândia, Uberaba,
Ituiutaba e Araguari).
Este artigo será estruturado nas seguintes seções, além desta introdução:
representações sociais: percursos teóricos; procedimentos metodológicos; análise dos
resultados; considerações finais; e referências.
2.Representações Sociais: percursos teóricos
É fato comumente aceito que a noção de representações sociais, formalmente
delineada no trabalho seminal de Serge Moscovici, La psychanalyse, son image e son public,
é credora do conceito durkheimiano de representações coletivas. Tal noção apresenta-se,
aliás, como um ponto de inflexão na obra do segundo autor ao deslocar seu interesse da ênfase
da morfologia social, fundamento principal dos fatos sociais (DURKHEIM, 1999a,
2
DURKHEIM, 1999b) para a valorização do simbólico como elemento explicativo da
realidade. Esta transição, materializada nas Formas elementares da vida religiosa
(DURKHEIM, 2003) e em Sociologia e Filosofia (DURKHEIM, 1970), eleva a categoria das
representações coletivas como arcabouço teórico fundamental das análises sociológicas do
referido autor a partir de então. Tal importância pode ser facilmente comprovada na análise
que Durkheim (2003) estabelece acerca das religiões primitivas, bem como o papel das
mesmas no rol das representações. Para o autor, “(...) os primeiros sistemas de representações
que o homem produziu do mundo e de si próprio são de origem religiosa” (DURKHEIM,
2003, p.15). Neste sentido, o estudo das representações religiosas possibilitaria, para o autor,
a compreensão das representações coletivas, por um lado e das realidades coletivas, por outro.
[...] os ritos são maneiras de agir que só surgem no interior de grupos
coordenados e se destinam a suscitar, manter ou refazer alguns estados
mentais desses grupos. Mas, então, se as categorias são de origem
religiosa, elas devem participar da natureza comum a todos os fatos
religiosos: também elas devem ser coisas sociais, produtos do
pensamento coletivo” (DURKHEIM, 2003, p.16)
É através da analogia com os sistemas biológicos/mentais, aliás, que o autor traça sua
análise das representações coletivas. Para Durkheim (1970), a sociedade teria como substrato
o conjunto dos indivíduos associados, da mesma forma que a vida psíquica tem por base as
estruturas biológicas. Nesta perspectiva, “(...) as representações que são a trama dessa vida,
originam-se das relações que se estabelecem entre os indivíduos assim combinados ou entre
os grupos secundários que se intercalam entre o indivíduo e a sociedade total” (DURKHEIM,
1970, p.33). É importante destacar, neste ponto, a noção durkheimiana de que as
representações coletivas nascem de um processo elaborativo e cooperativo, mas não de seus
indivíduos considerados isoladamente. Nas palavras do autor, “(...) os sentimentos privados
apenas se tornam sociais pela sua combinação, sob a ação de forças sui generis, que a
associação desenvolve” (DURKHEIM, 1970, p.34). Em decorrência deste processo
cooperativo, estes sentimentos privados seriam transformados em “outra coisa” exterior a
dimensão particular. Tais representações, de natureza independente do universo individual,
emanariam, portanto, para o autor, seu caráter obrigacional e coercitivo, como pode ser
facilmente observado nas manifestações e práticas religiosas.
É interessante notar que, para o autor, os sentimentos privados, sendo divergentes por
definição, seriam neutralizados e apagariam mutuamente no plano coletivo. Durkheim (1970),
neste sentido, não admite a possibilidade de que determinados grupos sociais possam impor
suas visões particulares para o restante da coletividade, negligenciando o papel da ideologia
na construção das representações coletivas. Há que se destacar, no entanto, o fato de que,
para o autor,
[...] o todo não se forma senão pelo agrupamento das partes e este
agrupamento não se faz em um instante, por um milagre repentino; há
uma série infinita de intermediários entre o estado de isolamento puro
e o estado de associação caracterizada” (DURKHEIM, 1970, p.37)
De acordo com o fragmento acima, embora o autor não inclua, como em Moscovi, a
idéia de universo reificado na conformação das representações coletivas, o mesmo admite o
papel dos grupos primários (família) e secundários (escola) no processo de elaboração das
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mesmas. A construção das representações coletivas seria, portanto, um processo elaborativo,
cooperativo e, essencialmente, histórico.
Conforme Pereira de Sá (1993), o escopo explicativo da teoria durkheimiana de
representações coletivas poderia parecer suficiente ao contexto do início do século XX (época
do lançamento das Formas Elementares da Vida Religiosa). Os novos fenômenos
representacionais da sociedade contemporânea não poderiam ser abarcados, no entanto e
segundo o próprio autor, pela noção de representações coletivas. Para Pereira de Sá (1993), é
neste contexto específico que a abordagem psicossociológica de Moscovici e seu conseqüente
conceito de representações sociais parece fazer sentido. Além disto, a tentativa de uma nova
compreensão do campo da psicologia social por Moscovici ressalta, conforme Lane (1993),
uma situação de extrema insatisfação com o saber tradicional desenvolvido pela psicologia
americana.
Esta “nova” compreensão do campo da psicologia social procurava, basicamente,
acentuar o caráter social de fenômenos intra-individuais, buscando superar deficiências do
conceito de percepção e cognição.
A Psicologia Social procura superar esta dicotomia (individual/social)
visualizando o indivíduo e suas produções mentais como produtos de
sua socialização em um determinado segmento social.
A
individualidade, nesta perspectiva, emerge como uma estrutura
estruturada que tem potencial estruturante (SPINK, 1993, p.304)
Para Sawaia (1993, p.76), o conceito de representações sociais de Moscovici poderia
ser descrito como sendo o conjunto de “(...) modalidades de conhecimento particular que
circulam no dia-a-dia e que têm como função a comunicação entre indivíduos, criando
informações e nos familiarizando com o estranho de acordo com categorias de nossa cultura,
por meio da ancoragem e da objetivação”. Em uma perspectiva semelhante, Spink
(1993,p.300) define representações sociais como sendo “(...) modalidades de conhecimento
prático orientadas para a comunicação e para a compreensão do contexto social, material e
ideativo em que vivemos”. Ainda de acordo com a autora,
[...] são [...] formas de conhecimento que se manifestam como
elementos cognitivos – imagens, conceitos, categorias, teorias -, mas
que não se reduzem jamais aos componentes cognitivos. Sendo
socialmente elaboradas e compartilhadas, contribuem para a
construção de uma realidade comum, que possibilita a comunicação.
Deste modo, as representações são, essencialmente, fenômenos sociais
que, mesmo acessados a partir do seu conteúdo cognitivo, têm de ser
entendidos a partir do seu contexto de produção. Ou seja, a partir das
funções simbólicas e ideológicas a que servem e das formas de
comunicação onde circulam (SPINK, 1993, p.300)
No que se refere às definições propostas acima, alguns elementos importantes devem
ser destacados. Em primeiro lugar, a tipificação das representações coletivas como sendo
uma modalidade de conhecimento “prático”, do “dia-a-dia” representa uma ampliação não só
do campo da psicologia social, mas, também, da própria sociologia do conhecimento. A
dicotomia entre universos reificados e universos consensuais de Moscovici exemplifica, neste
sentido, uma nítida separação entre um conhecimento de cunho erudito (próprio da ciência,
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por exemplo) e outro se senso comum. Tal separação (reificado/consensual), aliás, lança
luzes importantes acerca das condições de produção e reprodução dos discursos dos diversos
grupos sociais, bem como no papel dos aparatos ideológicos.
De acordo com Spink (1993, p.305), o estudo da representações sociais revelaria,
ainda, a “(...) concomitância de conteúdos mais estáveis e de conteúdos dinâmicos, mais
sujeitos a mudança”. As representações sociais seriam, neste sentido, palco tanto de
permanências culturais quanto da diversidade e instabilidade. Tal diversidade levaria,
segundo a autora, a compreensão das representações sociais como sendo um elemento
fundamentalmente processual, com a função social de criação e manutenção de uma
determinada ordem social. Neste sentido, a função das representações sociais seria a de atuar
como um elemento que “familiariza o estranho”. Tal processo, denominado por Moscovici
como “ancoragem” e por Berger e Luckmann (1983) como “esquemas tipificadores”, consiste
em uma domesticação daquilo que não compreendemos, do novo. É importante destacar, no
entanto, que tal “ancoragem” (ou tipificação) seria feita a partir de representações já
existentes.
Moscovici considera que a classificação dá-se mediante a escolha de
um dos paradigmas ou protótipos estocados na nossa memória, com o
qual comparamos então o objeto a ser representado e decidimos se ele
pode ou não ser incluído na classe em questão (PEREIRA DE SÁ,
1993, p.38)
O outro processo envolvido na elaboração das representações sociais seria o da
“objetivação”. Conforme ressaltado por Spink (1993, p.306), “(...) a objetivação é
essencialmente uma operação formadora de imagens, o processo através do qual noções
abstratas são transformadas em algo concreto, quase tangível (...)”. Para Pereira de Sá (1993,
p.39), “(...) a objetivação (...) consiste em uma operação imaginante e estruturante, pela qual
se dá uma forma – ou figura – específica ao conhecimento acerca do objeto, tornando
concreto, quase tangível”. É importante destacar que o processo de objetivação serviria,
ainda, como elemento de cristalização dos universos simbólicos de uma determinada
sociedade.
Um terceiro ponto importante a ser abordado diz respeito ao papel da linguagem como
um elemento fundamental na construção do universo das representações sociais. Não é de se
estranhar, portanto, que Berger e Luckmann (1983) apontem que as objetivações comuns da
vida cotidiana são mantidas, primordialmente, pela significação lingüística. Para os autores, a
participação na vida cotidiana, e sua potencial transcendência, somente é possível a partir da
existência de um sistema de sinais vocais denominado linguagem. Tal noção aproxima,
consideravelmente, os universos da sociologia e da psicologia aos da lingüística,
possibilitando o uso de metodologias de análise da última no estudo das representações
sociais.
3. Procedimentos Metodológicos
Este estudo, de natureza essencialmente qualitativa, foi realizado junto a empresários
que comercializam artigos religiosos de cinco denominações religiosas brasileiras
(catolicismo, protestantismo, espiritismo, umbanda e candomblé) nas quatro principais
cidades do Triângulo Mineiro (Uberlândia, Uberaba, Ituiutaba e Araguari). Tendo como
objetivo principal analisar as representações sociais do lucro na perspectiva de empresários do
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ramo de artigos religiosos da região do Triângulo Mineiro, foram realizadas 30 (trinta)
entrevistas semi-estruturadas no período de junho a dezembro de 2012. Tais entrevistas
foram gravadas e transcritas, de modo que pudessem ser recuperadas e analisadas conforme a
orientação teórica proposta e os objetivos da pesquisa.
A justificativa para a utilização de entrevistas semi-estruturadas neste trabalho residiu
no fato de que o entendimento da realidade pesquisada deveria ser buscado no próprio
discurso fornecido pelos entrevistados. Na medida em que falam de sua própria realidade, os
entrevistados deixam transparecer, além dos fatos objetivos, elementos subjetivos que podem
ajudar a esclarecer o fenômeno estudado.
Neste sentido, o procedimento de análise de dados inseriu-se no campo da análise de
discurso. Tendo como objetivo fundamental a transposição do limite formal do enunciado e
uma aproximação do universo semântico (principalmente em seu aspecto ideológico), o
campo da análise do discurso nasceu no horizonte do marxismo francês da década de sessenta
e avançou, sobremaneira, sobre outras disciplinas como a Sociologia e a Antropologia. Uma
vez que as representações sociais do lucro foram apreendidas no campo do discurso,
entendeu-se que tal abordagem seria a mais adequada na compreensão das condições de
produção e reprodução de tal atividade no contexto das cidades escolhidas.
4. Análise dos resultados
No que tange aos empreendimentos relacionados a religião católica, a seleção lexical
do fragmento discursivo (001) apresenta, como personagens explícitos, as figuras do sujeitoenunciador ("eu", "você"), dos clientes ("alguns clientes", "uns cara", "o pessoal"), do padre
("ai o padre falou assim", "ô padre"), além dos filhos ("educar seus filhos"). No que diz
respeito aos clientes, nota-se uma clara transição, ao longo do fragmento, na forma de
tratamento dos mesmos por parte do enunciador. Em um primeiro momento, o termo
utilizado ("cliente") revela contornos de formalidade, em parte devido a proximidade das
figuras da loja e da religião ("loja que tem produtos de religião"). Na medida em que o
fragmento discursivo avança, o termo "cliente" é substituído por "uns cara" e "o pessoal" no
momento em que o sujeito-enunciador relata uma conversa informal com um padre onde
demonstra clara insatisfação quanto as reclamações relativas ao preço dos produtos ("ô padre,
uns cara, o pessoal vai lá me encher o saco").
Além disto, fazem parte, ainda, do fragmento discursivo, as figuras explícitas da
bíblia, do CD, da religião, do lucro e da usura. No que diz respeito as duas primeiras (bíblia e
CD), nota-se que as mesmas foram elencadas como exemplos ilustrativos dos produtos
religiosos comercializados no âmbito da loja, talvez pelo fato de que ambos são os mais
representativos no faturamento da empresa. Convêm destacar, ainda, que tal escolha destaca
a dicotomia passado/presente, tradição/modernidade presente no âmbito da religião católica
contemporânea. À bíblia, compreendida enquanto um produto de natureza tradicional (talvez
relacionada a um público também tradicional), contrapõe-se o CD como um artefato
carregado de modernidade e, potencialmente, direcionado a um público mais jovem.
(001) [...] alguns clientes acham porque é uma loja que tem produtos
de religião, tem [...] eu tenho que dar de graça [...] por incrível que
pareça né. Mas [risos], é [...] num tenho, eu num [...] nunca, como
num outro dia eu perguntei para um padre, falei “ô padre, uns cara, o
pessoal vai lá me encher o saco, diz que [...] diz que eu to cobrando
caro e tal, mas o preço é tabelado: bíblia, CD, essas coisas é tudo
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preço tabelado, você não tem como você colocar outro preço, vem
pronto lá”, aí o padre falou assim “não, você tem que comer, você tem
que vestir, tem que educar seus filhos, então [...] a religião não
condena lucro nenhum, desde que ele não seja [...] usura né [...]
(Entrevistado 01 - Gestor Empreendimento Católico)
Outra figura forte e presente no fragmento discursivo (001) é a religião. O termo
aparece em dois momentos do fragmento. Em um primeiro ponto, o mesmo apresenta-se
como um elemento que distingue o termo "produtos" ("produtos de religião"). Neste sentido,
o sujeito-enunciador faz uma clara alusão de que o produto que é comercializado na loja é,
essencialmente, de natureza religiosa, excluindo a venda de artigos laicos.
Em um segundo momento, o termo "religião" emerge como um sujeito ativo, presente,
com voz e características "humanas", que não condena o lucro, mas, sim, a usura ("[...] a
religião não condena lucro nenhum, desde que ele não seja [...] usura né"). Nota-se, a partir
daí, a forte presença da ideologia católica que impacta o discurso do sujeito-enunciador, bem
como suas próprias práticas gerenciais. A partir do discurso do agente religioso (padre),
pode-se constatar que o lucro, para a Igreja Católica, é visto como algo "natural" a dinâmica
de um empreendimento comercial e vital a sobrevivência do empresários. É sintomático,
assim, o uso por parte do agente dos verbos "comer", "vestir" e "educar", diretamente
relacionados a dimensão da sobrevivência básica humana.
Observado a partir da perspectiva do empreendimento, a sobrevivência é vista
enquanto manutenção das atividades da empresa. Assim, o lucro seria necessário na medida
em que é a partir dele que os salários dos funcionários e as demais contas são pagas. Tais
elementos podem ser também identificados nos fragmentos discursivos (003) e (004).
O que aparenta ser condenável no discurso religioso é, exatamente, a extrapolação do
limite do lucro enquanto elemento de sobrevivência tanto do empresário e de sua família
quanto do empreendimento. Conforme visto, o lucro para sobrevivência do empresário e de
sua família restringe-se ao comer, vestir e educar. Exclui-se, daí, a utilização do lucro para
fins acumulativos ou ostentatórios o que caracterizaria o elemento da usura. Conforme pode
ser visto na seleção lexical do fragmento discursivo (002), a ideologia católica, ressignificada
no discurso do sujeito-enunciador, trata a usura enquanto um elemento que prejudicaria o
outro (no caso específico, o cliente) na relação de consumo. Neste sentido, "exagerar" na
obtenção do lucro caracterizaria, para o sujeito-enunciador, o prejuízo ao próximo (aproveitarse do outro).
(002) [...] Então a igreja condena esse lucro que pra mim é um
dinheiro, como foi coloca no mesmo, profano ai que não vai me valer
de nada, e eu vou tá prejudicando o outro. (Entrevistado 02 - Gestor
Empreendimento Católico)
(003) [...] pois é, o lucro hoje é muito assim, nós precisamos de
sobreviver, então eu tenho aquele lucro que é o lucro é vamos falar
assim, natural né, uma coisa que não pesa pra ninguém, uma margem
boa pra mercadoria. Agora aquele lucro exarcebado, uma coisa fora de
base ai a religião condena não só pra eu ter demais, mas que eu to
tirando do outro né. (Entrevistado 02 - Gestor Empreendimento
Católico)
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(004) [...] eu acho que [a obtenção do lucro com a venda de produtos
religiosos] é bem tranquilo, que eu acho que é bem para o sustento
mesmo, pra funcionar mesmo. (Entrevistado 03 - Gestor
Empreendimento Católico)
Tal realidade levaria, conforme pode ser observado no fragmento discursivo (005), a
idéia do lucro (em patamares de "sobrevivência") enquanto algo "justo". Algo que não
prejudicaria nem o empresário (na manutenção de suas despesas privadas e empresariais) nem
o cliente (na realização da compra de artigos religiosos com preços acessíveis). O conceito de
justiça, tão forte e premente na ideologia católica, nortearia, assim, a prática organizacional
em sua dimensão financeira. Além disto, conforme pode ser visto nos fragmentos discursivos
(005) e (006), a manutenção do lucro em patamares aceitáveis na perspectiva dos dogmas
religiosos da Igreja Católica levaria os empresários a caracterizá-lo, também, enquanto sendo
"natural" (005) e "normal" (006).
A caracterização do lucro enquanto "natural" e "normal" poderia ser compreendido
como um mecanismo psicológico do indivíduo para lidar com o conflito comercialização de
produtos religiosos versus dogmas da religião. Conforme pode ser visto na seleção lexical do
fragmento discursivo (007), o sujeito-enunciador faz uso do recurso da repetição como forma
de reforçar o discurso do conflito enquanto um elemento notadamente presente no momento
de abertura do empreendimento.
(005) [...] pois é, o lucro hoje é muito assim, nós precisamos de
sobreviver, então eu tenho aquele lucro que é o lucro é vamos falar
assim, natural né, uma coisa que não pesa pra ninguém, uma margem
boa pra mercadoria. Agora aquele lucro exarcebado, uma coisa fora de
base ai a religião condena não só pra eu ter demais, mas que eu to
tirando do outro né. Então um negócio custa 5, eu vendo assim a 25 ,
além de eu estar errando pra eu ta acumulando de forma errada eu to
tirando daquele,que as vezes vai apertar tudo pra poder pagar os 25 né.
[...] Então a igreja condena esse lucro que pra mim é um dinheiro,
como foi coloca no mesmo, profano ai que não vai me valer de nada, e
eu vou tá prejudicando o outro. [...] Então esse lucro, vamos falar
assim, fora de base que a gente vê , esse não só a igreja condena, mas
o nosso interior também condena né. (Entrevistado 02 - Gestor
Empreendimento Católico)
(006) [...] eu acho que tem que ser algo justo né [a quantidade do
lucro], porque toda empresa tem que viver de lucro [...], porque senão,
não sobrevive certo, então é uma coisa que seja justa pra mim e para o
cliente NE, então você tem que fazer um paralelo ai, é uma coisa que
você não pode coloca um valor muito exorbitante certo, que abuse e
outra se você colocar um preço muito alto você não vende mercadoria
também NE. (risos) então se quiser vende então tem que... Então tem
que abrir uma medida para isso ai. Não(não vê contradição ao obter
lucro vendendo produtos religiosos), eu vejo como uma coisa normal
como qualquer outra, sabe então isso ai é a mesma coisa, como
comercio mais é uma coisa mais prazerosa porque voce estar sempre
passando uma coisa de bom, certo. Eu tenho certeza se você esta
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vendendo uma bíblia vai ler a bíblia vai aprender NE. Um santo, uma
imagem e tal então eu acho assim que é mais prazerosa." (Entrevistado
02 - Gestor Empreendimento Católico)
(007) [...] nas minha orações eu ficava é, assim, existe um conflito...
existe um conflito,né porque primeiro pela minha formação, eu sei que
o negócio tem que ser viável, eu tenho que, né gerar recursos
financeiros, eu tenho que vender, eu tenho que trabalhar,né é o aspecto
financeiro da comercial da loja, então assim, em termos pessoais e
espirituais no início gerava um conflito, então eu sigo muito aquilo
que a bi... e Deus colocava pra mim [...] que é aquela passagem que
fala,né é: " Daí a Cesar o que é de Cesar, e a Deus o que é de Deus"
(Entrevistado 04 - Gestor Empreendimento Católico)
Esse conflito, presente nos fragmentos discursivos (005) e (007) e interiorizado pelo
indivíduo ("não só a igreja condena, mas o nosso interior também condena né"), parece ser
resolvido em várias instâncias. Em uma primeira instância, o empresário busca resolver,
através do instituto da oração, este conflito interior ("[...] nas minhas orações eu ficava é,
assim, existe um conflito..."). Conforme pode ser visto na seleção lexical do fragmento
discursivo (007), a "resposta" as orações vêm através da "intervenção divina" ("Deus colocava
pra mim [...] que é aquela passagem que fala,né é: " Daí a Cesar o que é de Cesar, e a Deus o
que é de Deus").
É interessante notar, neste ponto, o uso de uma passagem bíblica por parte do sujeitoenunciador como estratégia de reforçar o discurso de que, na realidade, não existe um conflito
entre as condições materiais de existência do negócio e os dogmas da religião a qual o
empresário está ligado. Para o sujeito-enunciador do fragmento discursivo (007), as
necessidades do mundo material estariam ligados "ao que é César" (aquilo que é próprio do
mundo profano). Neste sentido, o indivíduo e o negócio necessitariam, para sua
sobrevivência e manutenção, do dinheiro proveniente do lucro da comercialização de artigos
religiosos. Conforme dito acima, este lucro, que não extrapola o "justo", faz-se necessário
neste mundo "de César" (há que se destacar, no entanto, certos dogmas religiosos presentes no
discurso como, por exemplo, a aversão a usura e a honestidade na gestão do negócio). Por
outro lado, haveria, por parte do sujeito-enunciador, uma dimensão espiritual ("a Deus o que é
de Deus") que seria descolada do mundo material. Tal separação no discurso entre as
dimensões material ("de César") e espiritual ("de Deus") resolveria, em parte, o conflito
presente no cotidiano do empresário que comercializa artigos religiosos.
Um outro ponto importante a ser destacado é a idéia de que os empreendimentos, na
visão dos sujeitos-enunciadores, não são de natureza puramente econômica. Tais negócios
ultrapassariam tal dimensão e seriam, na perspectiva dos mesmos, instrumentos de
"evangelização".
(008) [...] o objetivo da venda [...] é para... para um bem maior né [...]
que quem leva o artigo, é para o bem dele. (Entrevistado 05 - Gestor
Empreendimento Católico)
(009) [...] eu acredito que ela faz isso mais por questão de
evangelização mesmo. (Entrevistado 06 - Gestor Empreendimento
Católico)
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No que tange aos empreendimentos relacionados a religião espírita, alguns
apontamentos devem ser levantados. Em um primeiro momento, convêm destacar que os
mesmos possuem uma visão também normalizada em relação ao lucro, conforme pode ser
visto na seleção lexical do fragmento discursivo (010).
(010) Não, não tem problema não, Deus num... num acha ruim uma
pessoa ganhar dinheiro não (risos). Pelo contrário, assim a... é... Deus
quer a qualidade de vida pra todo mundo, entendeu? [...] o lucro não é
uma coisa errada não... entendeu? Faz parte da vida né... de todo
mundo. (Entrevistado 07 - Gestor Empreendimento Espírita)
Tal fato pode ser comprovado pelo uso da repetição da negação associado aos termos
problema e errada ("Não, não tem problema não" e "[...] o lucro não é uma coisa errada não
[...]"), bem como a afirmativa de que o lucro "faz parte da vida [...] de todo mundo". Esta
última, parece aproximar-se da abordagem da ideologia católica que localiza a dimensão
material da vida ao universo mundano/profano ("de César"). Além disto, é interessante notar
que, para a ideologia espírita, o lucro é visto enquanto consequência normal da própria
atividade comercial ("[...] o lucro é um... uma consequência normal") e inerente a vida. Tal
fato pode ser visualizado na seleção lexical do fragmento discursivo (011), que relaciona,
através de elementos doutrinários da própria religião, o "dinheiro" e o "progresso" ao sangue
que corre no corpo humano.
(011) O lucro... olha, é... Hermano nos ensina e a lógica realmente
consiste nisso...“o dinheiro tá pro progresso igual ao sangue tá pra
saúde do corpo... ele tem que movimentar”, entendeu? Então a gente,
pelo menos eu, o dinheiro é muitíssimo importante. Ele circula tudo,
ele... ele dá oportunidade, ele... ele é tudo... né, ele bem usado, ele
realmente patrocina o progresso (Entrevistado 07 - Gestor
Empreendimento Espírita)
(012) [...] o lucro é um... uma consequência normal [...] dentro da
filosofia espírita. O que ele recrimina é o que que você vai fazer com
esse lucro né. Então... se você vai usar tudo em benefício próprio é...
até não é discriminado usar em benefício próprio, desde que esse
benefício esteja beneficiando outras pessoas. (Entrevistado 08 - Gestor
Empreendimento Espírita)
É interessante notar, no entanto, que o lucro é visto enquanto "consequência normal"
da atividade econômica somente na medida em que o mesmo é utilizado para o benefício ao
próximo. Há, por assim dizer, para a ideologia espírita, a idéia de que o empreendimento
comercial é, também, um canal de “divulgação da doutrina”.
Neste sentido, a
comercialização de livros com o intuito de transmitir as mensagens difundidas pela doutrina
espírita reveste-se de um caráter subjetivo e simbólico, na medida em que assume, em
determinadas situações, primazia sobre a própria questão do lucro. A empresa, enquanto uma
possível representante da religião espírita, seria um “ideal”, um negócio para “fazer circular o
livro o mais rápido possível”, difundindo o conhecimento e os preceitos provenientes da
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doutrina do espiritismo, e revelando, de uma maneira totalmente imbricada, a congruência
entre a empresa e a questão da religiosidade.
(013) O que o condena não só dentro do estabelecimento comercial
de artigos religiosos que é o meu caso, mas em toda... atividade
comercial normal que ele condena é a concentração de... valores assim
de lucro, em benefício de “ah, já tenho uma casa, vou comprar uma
chácara então...”, “ah, já tenho uma casa e uma chácara, vamos
comprar um clube, uma fazenda...” não, isso não, isso é... isso aí a
doutrina espírita acha que o dinheiro tem que ser usado pra propiciar
bem estar e trabalho pra... as pessoas, condições de outras pessoas
também ter oportunidade. (Entrevistado 08 - Gestor Empreendimento
Espírita)
O que parece ser condenável na ideologia espírita é, exatamente, a concentração do
lucro em benefício próprio. Conforme pode ser visto no fragmento discursivo (013), a
concentração de valores e bens com o claro intuito de acumulação individual privada não é
bem vista pela doutrina espírita. Os valores e bens adquiridos através da atividade comercial
seriam, apenas, "instrumentos" para o trabalho fraterno de auxílio ao próximo.
No que tange aos empreendimentos relacionados a religião evangélica, não há,
também, reprovação quanto a natureza do lucro auferido pelas empresas. Conforme pode ser
observado na seleção lexical do fragmento discursivo (014), o sujeito-enunciador utiliza da
figura explícita da bíblia para reforçar o discurso de que a religião evangélica não reprova o
lucro empresarial. O que parece sintomático é a idéia de que a usura, compreendida enquanto
excesso ou ostentação do lucro, é reprovável para a ideologia protestante.
(014) [...] então a gente não tem na palavra que a bíblia reprove o
lucro, o que a bíblia reprova é a usura. (Entrevistado 09 - Gestor
Empreendimento Evangélico)
Além disto, há uma idéia explícita para os empresários que mercantilizam artigos
evangélicos de que a prosperidade material seria seguida pela prosperidade espiritual. Neste
sentido, a observância de regras morais-religiosas restritas seria, para o indivíduo, uma forma
de encontrar tanto a riqueza material quanto espiritual. Tal realidade, presente nos fragmentos
discursivos (015) e (016), contrapõe-se a ideologia católica de que as duas dimensões
(material e espiritual) estariam desconectadas ("A César o que é de César e a Deus o que é de
Deus"). Esta ideologia da prosperidade teria, por objeto, superar uma certa moral cristã e
superar a dimensão do conflito na mentalidade do empresário que mercantiliza artigos
religiosos.
(015) [...] porque a palavra de Deus diz que a gente tem que ser
próspero, prospero financeiramente, não existe erro né, em você ser
bem sucedido, em você ser prospero em você ter lucro, não existe. O
que, o que é errado é você usar tudo isso pro mal né, não existe erro
nisso, não existe é, por exemplo, não existe diferença em com o lucro
que eu tenho na empresa eu compra um carro, eu compra uma casa, na
minha religião não tem isso.” (Entrevistado 10 - Gestor
Empreendimento Evangélico)
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(016) [...] nós aprendemos sobre a prosperidade que a prosperidade
está a relação com Deus. [...] Primeiro a prosperidade é a nossa
relação com Deus, Jesus nos disse [...] “primeiro segue as coisas do
reino de Deus, e as demais coisas serão acrescentado.” [...] E eu vou te
dizer uma coisa se eu tivesse muito dinheiro, eu não sei onde eu iria
parar, porque eu ainda não estou preparado para ser rico. [...] O rico
nem ele está preparado porque se ele descuidar, o que acontece ele
perde a riqueza dele da noite para o dia. Porque não está, porque não
tem base sólidas. (Entrevistado 11 - Gestor Empreendimento
Evangélico)
No que tange aos empreendimentos que comercializam artigos religiosos relativos a
umbanda e ao candomblé, pode-se constatar, como pode ser visto na seleção lexical do
fragmento discursivo (017) que o lucro é visto de uma maneira positiva pelo sujeitoenunciador. Tal lucro é, inclusive, objeto de busca por parte dos gestores que utilizam de
práticas religiosas para que o mesmo seja alcançado ("acende vela, toma banho, reza pros
santos"). Nota-se, a partir daí, uma relação mais objetivada em relação a busca e manutenção
do lucro, talvez devido ao fato de que a umbanda e o candomblé não são religiões de natureza
fortemente contemplativa como o catolicismo, por exemplo. As práticas religiosas seguem,
quase sempre, uma relação de troca entre a graça a ser alcançada e a oferenda, fazendo com
que seja instaurada uma relação mais objetiva de troca.
(017) [...] Ah não, na minha [religião o lucro é visto de] forma
positiva, tanto é que se não der lucro a gente acende vela, toma banho
(risos), reza pros santo...[...] (Entrevistado 12 - Gestor
Empreendimento Umbanda/Candomblé)
(018) [...] não a minha religião não diz nada a respeito do lucro, não é
problema da minha religião ela não fala a respeito do dinheiro,
dinheiro não é coisa de Deus, dinheiro é coisa dos homens. Então a
religião te ajudar para você se manter, agora para você ficar rica ela
nunca vai te ajudar, viu. Nenhuma religião vai te ajuda para fica rico,
ou para ter dinheiro em excesso, se Deus coloca dinheiro em excesso
na sua mão é porque ele que ver o que você vai fazer com aquele
dinheiro. (risos) A quem você vai ajudar com aquele dinheiro,
dinheiro não é coisa de Deus. (Entrevistado 13 - Gestor
Empreendimento Umbanda/Candomblé)
Além disto, conforme pode ser visto na seleção lexical do fragmento discursivo (018),
parece não haver dogma religioso estabelecido no candomblé e na umbanda que autorize ou
desautorize o lucro empresarial. O que parece haver é, exatamente, uma constatação de que o
dinheiro não é algo do mundo espiritual mas, sim, do universo mundano/profano. Neste
sentido, a religião não teria por objeto fomentar a prosperidade econômica do indivíduo.
Além disto, para esta denominação religiosa, o excesso de dinheiro não se configuraria
prontamente como usura mas, sim, como um "prova divina" que testaria o livre-arbítrio do
indivíduo.
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5. Considerações Finais
Este estudo, de natureza essencialmente qualitativa, foi realizado junto a empresários
que comercializam artigos de cinco denominações religiosas brasileiras (catolicismo,
protestantismo, espiritismo, umbanda e candomblé) nas quatro principais cidades do
Triângulo Mineiro (Uberlândia, Uberaba, Ituiutaba e Araguari). Tendo como objetivo
principal analisar as representações sociais do lucro na perspectiva de empresários do ramo de
artigos religiosos da região do Triângulo Mineiro, foram realizadas 30 (trinta) entrevistas
semi-estruturadas no período de junho a dezembro de 2012. Tais entrevistas foram gravadas e
transcritas, de modo que pudessem ser recuperadas e analisadas conforme a orientação teórica
proposta e os objetivos da pesquisa. Uma vez que as representações sociais do lucro foram
apreendidas no campo do discurso, entendeu-se que tal abordagem seria a mais adequada na
compreensão das condições de produção e reprodução de tal atividade no contexto das
cidades escolhidas.
A análise e discussão dos resultados encontrados permite concluir que, para os
empresários de artigos religiosos de denominação católica, o lucro é visto enquanto algo
"normal", "natural" e, até mesmo "justo". O que aparenta ser condenável na ideologia católica
é, exatamente, a extrapolação do limite do lucro enquanto elemento de sobrevivência tanto do
empresário e de sua família quanto do empreendimento. Conforme visto, o lucro para
sobrevivência do empresário e de sua família restringe-se ao comer, vestir e educar. Excluise, daí, a utilização do lucro para fins acumulativos ou ostentatórios o que caracterizaria o
elemento da usura. Tal realidade não afasta, no entanto, a natureza conflitiva do dilema
"vender artigos com lucro" versus "dogmas religiosos", fortemente presente no discursos dos
empresários. Para aqueles de denominação católica, a resolução deste conflito aponta na
direção de uma separação entre o universo material/mundano/profano ("de César") e o
imaterial/espiritual/sagrado ("de Deus") no âmbito dos discursos.
Em relação aos empresários de artigos religiosos espíritas, os mesmos possuem uma
visão também normalizada em relação ao lucro. Além disto, para a ideologia espírita, o lucro
é visto enquanto consequência normal da própria atividade comercial. É interessante notar, no
entanto, que o lucro é visto enquanto "consequência normal" da atividade econômica somente
na medida em que o mesmo é utilizado para o benefício ao próximo. Há, por assim dizer,
para a ideologia espírita, a idéia de que o empreendimento comercial é, também, um canal de
“divulgação da doutrina”.
Em relação aos empresários de artigos religiosos evangélicos, não há, também,
reprovação quanto a natureza do lucro auferido pelas empresas. O que parece sintomático é a
idéia de que a usura, compreendida enquanto excesso ou ostentação do lucro, é reprovável
para, também, para a ideologia protestante. Além disto, há uma idéia explícita para os
empresários que mercantilizam artigos evangélicos de que a prosperidade material seria
seguida pela prosperidade espiritual. Neste sentido, a observância de regras morais-religiosas
restritas seria, para o indivíduo, uma forma de encontrar tanto a riqueza material quanto
espiritual. Conforme visto no âmbito deste trabalho, esta ideologia da prosperidade teria, por
objeto, superar uma certa moral cristã e superar a dimensão do conflito na mentalidade do
empresário que mercantiliza artigos religiosos.
Por fim, no que tange aos empreendimentos que comercializam artigos religiosos
relativos a umbanda e ao candomblé, pôde-se constatar que o lucro é visto, também, de uma
maneira positiva. Tal lucro é, inclusive, objeto de busca por parte dos gestores que utilizam
de práticas religiosas para que o mesmo seja alcançado. Nota-se, a partir daí, uma relação
mais objetivada em relação a busca e manutenção do lucro, talvez devido ao fato de que a
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umbanda e o candomblé não são religiões de natureza fortemente contemplativa como o
catolicismo, por exemplo. As práticas religiosas seguem, quase sempre, uma relação de troca
entre a graça a ser alcançada e a oferenda, fazendo com que seja instaurada uma relação mais
objetiva de troca. Além disto, parece não haver dogma religioso estabelecido no candomblé e
na umbanda que autorize ou desautorize o lucro empresarial. O que parece haver é,
exatamente, uma constatação de que o dinheiro não é algo do mundo espiritual mas, sim, do
universo mundano/profano. Neste sentido, a religião não teria por objeto fomentar a
prosperidade econômica do indivíduo.
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