O CORPO AQUÁTICO –
a água como elemento erótico na poesia de João Cabral
André Pinheiro
Mestre e doutorando em Literatura comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Professor de Literatura Portuguesa da UFRN.
Palavras-chave: João Cabral; corpo; sensualidade.
Abstract
The presence of an erotic feature in João Cabral’s poetry seems to
be a little strange to his poetic project – which runs towards a lyrical
rationalization, concret images and the denyal of sentimentalism.
However, the erotic-love thematic constitutes one of the richest
moments in his work and attests the humanizing feeling, tool used
by the poet to apprehend his poetical matter. On his image file, João
Cabral uses the oddest elements to portrait the female body – as
fire, fruits, houses, etc. On this work, the body image built from the
water image will be examined, since the oscillations on waterways
current recalls the female body outlines.
Keywords: João Cabral; body; sensuality.
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vivência
A presença de uma vertente erótica na poesia de João Cabral
parece um pouco estranha ao seu projeto poético – que se voltava
para a racionalização lírica, para a concretude das imagens e para a
negação do sentimentalismo. Entretanto, a temática eróticoamorosa constitui um dos momentos mais ricos na sua obra e
atesta o sentimento humanizador com que o poeta captava seu
objeto poético. No seu acervo de imagens, João Cabral usa os mais
inusitados elementos para se referir ao corpo feminino – como o
fogo, as frutas, a casa etc. Neste trabalho, examinaremos a figura
do corpo construída a partir da imagem da água, já que a oscilação
das correntezas fluviais lembra os contornos sinuosos de uma
mulher.
36
Resumo
023
Considerações iniciais
A presença escassa, mas marcante, de uma vertente erótica na poesia de
João Cabral é um dos aspectos que mais chama a atenção em sua obra, já que a
natureza extremamente subjetiva do erotismo parece contradizer o projeto literário
defendido pelo autor. Como se sabe, Cabral era adepto de uma poesia racionalista,
de orientação concretista e livre de qualquer apelo sentimental. Por isso mesmo,
apesar de o autor ter cultivado a temática amorosa, é flagrante a tentativa de
manter o controle racional sobre o desenvolvimento das matérias. Contudo, é
preciso ver o projeto poético de João Cabral com mais prudência, pois não há
objeto erótico que esteja destituído da emoção humana.
vivência
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Por outro lado, o erotismo não está isento dos processos de racionalização,
já que, de modo geral, a relação primária do indivíduo com o objeto erótico se dá de
forma bastante consciente. Visto por esse ângulo, já não deve parecer tão estranha a
presença da lírica amorosa naquele que é considerado o autor mais racionalista da
literatura brasileira; como qualquer indivíduo, Cabral não está imune aos desejos da
alma humana, muito embora evite cair no sentimentalismo derramado – aspecto
largamente presente na tradição lírica do país.
024
Evidentemente, o corpo desponta como um objeto poético de grande
relevância para a temática erótica. No caso de Cabral, esse aspecto é ainda mais
intrigante, pois a imagem do corpo possibilita que o autor aborde um conteúdo de
forte valor subjetivo sem se distanciar da matéria palpável a que se prende tanto.
Não se deve pensar, com isso, que, na lírica cabralina, o corpo é apenas uma
imagem concreta e sem vida; a abordagem feita por João Cabral é sempre muito
densa e capta com precisão as inquietações do espírito humano. A natureza
dinâmica desse objeto se deve ao fato de que, através do corpo, o indivíduo
apreende a maior parte dos estímulos externos, inclusive os sentimentos
amorosos. Pode-se dizer que as pessoas sentem com o corpo; comunicam-se com
o corpo; necessitam de outro corpo para que tenham consciência de sua existência
no espaço. Não é de estranhar, portanto, que Anthony Giddens tenha apontado
exatamente essa comunicação entre os seres como uma das características
basilares do erotismo:
“O erotismo é o culto do sentimento, expresso pela sensação
corporal, em um contexto comunicativo; uma arte de dar e
receber prazer (...). Definido desse modo, o erotismo
permanece oposto a todas as formas de instrumentalidade
emocional nas relações sexuais. O erotismo é a sexualidade
reintegrada em uma ampla variedade de propósitos
emocionais, entre os quais o mais importante é a
comunicação” (Giddens, 1993: p. 220).
Nesse sentido, ao incluir a temática erótica em seus textos, parece que João
Cabral pretende manter um laço mais estreito com o mundo. A comunicação
pressupõe a presença de uma figura humana e, para que seja mantido o seu equilíbrio
emocional, o poeta sente a necessidade de encontrar uma pessoa com quem possa
dialogar. Voltando aos termos postos por Giddens, é bastante relevante a constatação
de que o erotismo não se esgota na possibilidade do sexo, mas constitui antes um
acúmulo de sentimentos que levam a um prazer sublime. Esse argumento ratifica
ainda mais o teor humano difundido no erotismo dos textos de João Cabral.
O crítico literário Carlos Felipe Moisés tece um comentário que, de certa
forma, converge com as idéias apresentadas por Anthony Giddens. Moisés parece
não ver mais sentido em conceber a poesia de João Cabral como uma obra
desprovida de emoção, uma vez que a preocupação com a condição humana do
indivíduo já constitui um ato amoroso do mais alto valor:
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“A mulher e o amor, realmente, parecem ocupar um lugar
reduzido na poesia de João Cabral, a não ser que, ao fim de
contas, todos os seus poemas sejam amorosos, se entendermos
que o ato de conhecimento, atento àquilo que os seres de fato
são, é sempre um ato amoroso” (Moisés, 1977: 67).
É preciso ter o cuidado, entretanto, para não confundir o desenho de um
corpo recriado esteticamente com a configuração de um corpo real, que pode
sofrer inúmeras variações de conceito. Como se sabe, o erotismo se manifesta de
modo distinto nas diferentes épocas, culturas e sociedades. Conseqüentemente, o
corpo também se define socialmente; as possibilidades da sexualidade, a visão
que a comunidade tem sobre os gêneros e os limites impostos ao corpo são
determinados por cada cultura, de modo que se torna impossível abordar esses
temas dentro de um conceito fechado.
Dentre as figuras eróticas que compõem o imaginário poético do autor, a
água merece especial atenção, pois é por meio desse elemento da natureza que os
contornos do corpo feminino ganham mais graça e beleza. A doce ondulação das
correntes fluviais impregna tamanha leveza ao componente corporal, que o leitor
facilmente se rende a um universo de encanto e abstração.
A sensualidade serena do rio
A partir de O cão sem plumas, a imagem do rio tornou-se um elemento
decisivo para a configuração da poética de João Cabral e, desde então, as águas
passaram a ser um mote constante em sua obra. Considerando que o poeta
nasceu em uma casa situada às margens do rio Capibaribe, nada mais natural que
esse ambiente bucólico da infância tenha se projetado de forma acentuada em
seus versos. Para falar a verdade, o rio se transformou numa espécie de artifício do
qual o autor extrai algumas lições para compor a sua poesia.
De certa forma, não houve escolha mais feliz do que utilizar a água como
imagem majoritária para construir um objeto erótico, já que a maleabilidade e a
oscilação das correntes possuem um aspecto sedutor e facilmente remetem às
formas sinuosas do corpo feminino. Por outro lado, o ritmo pausado dos rios
perecíveis do Nordeste sugere mesmo o ato sexual, já que se cortam e se ligam
constantemente ao longo do leito. Não se deve estranhar, portanto, a natureza
feminina que assinala as águas correntes na obra de João Cabral, segundo mostra
o exemplo de “Uma mulher e o Beberibe”, quando o autor compara a mulher com
uma vagarosa correnteza:
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vivência
O corpo é abordado por João Cabral de Melo Neto ora de forma mais
serena (como se o poeta sentisse pudor de parecer sentimental), ora de forma mais
ardente e provocante. Para os dois casos, a referência a objetos concretos
inusitados (como a casa, a gaiola, o rio, a cana-de-açúcar etc.) auxilia na
configuração erótica, uma vez que a indicação do corpo feminino aparece de forma
mais hermética e velada. Não se deve pensar, com isso, que as imagens concretas
anulam a sensualidade dos objetos; bem pelo contrário, elas revelam um universo
libidinoso que antes parecia impossível de se identificar nesses objetos.
36
De certo modo, João Cabral se manteve atento a essa relação do corpo
com a sociedade na qual ele se configura, pois – como se não bastasse a presença
de um discurso erótico cuja concepção foi orientada pela sua cultura – o poeta
muitas vezes usou as cenas e os lugares típicos de sua região para criar uma
configuração corporal. É por esse motivo que as imagens do rio perene, do fogo no
canavial e das frutas tropicais, por exemplo, foram escolhidas para assinalar o teor
erótico que emana do corpo feminino.
025
“Ela se imove com o andamento da água
(indecisa entre ser tempo ou espaço)
daqueles rios do litoral do Nordeste
que os geógrafos chamam de ‘rios fracos’”.
(Melo Neto, 1997b, p. 10)
Embora recorra ao discurso dos especialistas para emitir uma nota sobre
os rios de sua terra, o poeta também acredita que o fluxo das águas do rio Beberibe
não tem uma configuração bem definida; conseqüentemente, a mulher também é
concebida de forma muito branda. Ela se move com tamanha leveza, que já não se
pode sentir as tensões que porventura habitam o seu ser; com efeito, o movimento
lento e fraco dos seus passos confere uma espécie de serenidade à cena, deixando
ambiente e mulher livres de qualquer agitação externa. Isso não significa que João
Cabral esteja conferindo o atributo da fraqueza para a mulher; ele apenas prefere
ver a quietude como uma de suas qualidades mais caras.
vivência
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Luis Costa Lima define de forma bastante ponderada o modo como João
Cabral registra os motivos femininos em sua obra. No entendimento do crítico, o
poeta pernambucano retira da mulher todo o imaginário sentimental que
comumente lhe fora atribuído, sem perder com isso a graça que repousa em torno
de sua vivência humana:
026
“Essa ruptura, contudo visa uma direção rara no seio da poesia
contemporânea, a de procurar transformar a poesia em expressão
ativa e não só desinteressada. Daí o tratamento que recebe a
mulher. Nem envolta em misterioso halo, nem reificada, numa
absoluta presença objetual. Retiram-se-lhe os embaraços com
que era referida, a sentimentação em que era posta, a
freqüentação erótica que a consumia, para ser vista com a
naturalidade com que são vistas facas, cabras ou cana. Nesse
sentido é natural observar-se o paralelo existente entre esforço
anti-simbolizante e intento de desmitificação” (Lima, 1995, p. 312).
Parece claro, portanto, que o uso das imagens sólidas foi um meio
encontrado pelo poeta para se distanciar daquele imaginário saturado construído
em torno do tema erótico. Na verdade, os objetos concretos não chegam a interferir
de forma incisiva na vida interior dos personagens, uma vez que a mulher nunca é
apresentada como algo reificado.
Muito pelo contrário, a placidez, por exemplo, é uma propriedade tão
acentuada na obra do autor, que ainda é possível pressentir a brandura em um
poema eroticamente mais ousado, como “Escritos com o corpo”. Embora a nudez
esteja explicitamente anunciada, o poeta opta por não se distanciar de um discurso
plácido e contido; a maciez do corpo feminino e as imagens de interioridade
certamente ajudam a compor a idéia de quietude que permeia o texto:
“Quando vestido unicamente
com a maciez nua dela,
não apenas sente despido:
sim, de uma forma mais completa.
Então, de fato, está despido,
senão dessa roupa que é ela.
Mas essa roupa nunca veste:
despe de uma outra mais interna”.
(Melo Neto, 1997a, p. 284)
Foi no balanço das águas, porém, que o poeta encontrou um bom motivo
para abordar a sensualidade da mulher sem perder a serenidade que o tema exige
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e sem recorrer a um discurso muito libertino. Na poesia de João Cabral, a água
literalmente abranda o fogo do erotismo ardente, sem deixar de ser provocante e
insinuadora; na verdade, a água vela os assuntos que poderiam causar algum
constrangimento para o poeta, ainda que nela estejam revelados muitos encantos.
Em “Rio e/ou poço” a água não serve apenas para indicar os contornos físicos do
corpo da mulher, mas antes para traduzir aspectos de sua densa interioridade:
“Quando tu, na vertical,
te ergues, de pé em ti mesma,
é possível descrever-te
com a água da correnteza;
tens a alegria infantil,
popular, passarinheira,
de um riacho horizontal
(e embora de pé estejas)
então, se é da água corrente,
por longa, a tua aparência,
somente a água de um poço
expressa tua natureza;
só uma água vertical
pode, de alguma maneira,
ser a imagem do que és
quando horizontal e queda.
Só uma água vertical,
água parada em si mesma,
água vertical de poço,
água toda em profundeza,
água em si mesma, parada,
e que ao parar mais se adensa,
água densa de água, como
de alma tua alma está densa”.
(Melo Neto, 1997a, p. 235)
A princípio, cabe observar que a mulher – o elemento erótico captado por
João Cabral – está diretamente associada ao ambiente externo, como se o poeta
buscasse desviar o olhar do leitor para um campo distante do tom sentimental que
permeia a peça. Os objetos concretos e os elementos minerais aparecem no texto
com o intuito de amenizar a carga subjetiva do discurso; no entanto, a convergência
concreta antes aumenta do que dissimula o seu teor erótico, já que o mundo
mineral passa a ter atitudes humanas que não lhe eram características. No poema,
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vivência
mas quando à tua extensão,
como se rio, te entregas,
quando te deitas em rio
que se deita sobre a terra,
36
Mas quando na horizontal,
em certas horas, te deixas,
que é quando, por fora, mais
as águas correntes lembras,
027
a mulher é associada a um elemento ao qual ela não se identifica completamente,
antes diverge em alguns aspectos; trata-se do cruzamento entre as linhas vertical
(a moça de pé) e horizontal (a água corrente), tornando o objeto poético
extremamente dinâmico. Não se deve perder de vista, entretanto, que o poeta
registra essa incompatibilidade apenas para enfatizar a profundeza da mulher, que
será abordada em versos posteriores:
MULHER
ÁGUA
VERTICAL (de pé)
HORIZONTAL (corrente)
vivência
36
É importante avaliar o ambiente com o qual a mulher está sendo
comparada, já que a imagem do rio (subentendido na correnteza das águas) é
bastante significativa nesse contexto – primeiro porque constitui uma imagem
cristalizada na obra de João Cabral (como se fosse uma espécie de poética);
depois, porque ela comporta uma conotação serena. Dessa forma, o próprio
ambiente concreto já denuncia uma marca memorialista e outra erótica. Não é de
se estranhar, portanto, que, nos seus estudos sobre o imaginário da matéria,
Gaston Bachelard tenha associado o movimento da água a uma espécie de canto
sereno; o autor não hesita em afirmar que as correntes possuem uma fisionomia
feminina, seja ligada à mulher amada, seja identificada com a mãe:
028
“Dos quatro elementos, somente a água pode embalar. É ela o
elemento embalador. Este é mais um traço de seu caráter
feminino: ela embala como uma mãe. (...) Todas as imagens
estão ausentes, o céu está vazio, mas o movimento está ali,
vivo, sem embate, ritmado – é o movimento quase imóvel,
silencioso. A água leva-nos. A água embala-nos. A água
adormece-nos. A água devolve-nos nossa mãe” (Bachelard,
2002, p. 136).
Ainda que o rio não apareça em todos os poemas eróticos de João
Cabral, a água é, contudo, o elemento mais recorrente para designar o corpo
feminino. Em “A imitação da água”, poema que mantém fortes ligações semânticas
e estruturais com o texto aqui analisado, a mulher é associada a uma onda na praia.
Percebe-se claramente a tentativa de exaltar as formas onduladas do corpo
feminino, mas a metáfora anti-convencional transmite uma idéia antes contida do
que provocadora:
“De flanco sobre o lençol,
paisagem já tão marinha,
a uma onda deitada,
na praia, te parecias.
Uma onda que parava
ou melhor: que se continha;
que contivesse um momento
seu rumor de folhas líquidas”.
(Melo Neto, 1997a, p. 245)
A presença de um interlocutor direto, ainda que indefinido, em “Rio e/ou
poço”, aponta para o fato de que o sujeito precisa conviver urgentemente com
alguma pessoa. Com efeito, aos poucos a lírica cabralina vai perdendo o tom
impessoal, de modo que a exaltação dos objetos cede lugar à presença expressiva
da figura humana. O sujeito procura uma companheira porque reconhece na solidão
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o desenho de sua própria incompletude; na verdade, para que haja erotismo é
preciso mesmo que o indivíduo busque preencher as lacunas do ser através do
contato com outra pessoa, segundo apontam as análises de Joel Birman:
“O que nos move no erotismo é a certeza de nossa
incompletude, por um lado, e a crença na completude a ser
oferecida pelo gozo, por outro. Contudo, como essa segunda
possibilidade não se realiza nunca, sendo uma utopia, pois se
na sua pontualidade o gozo como uma pequena morte nos faz
crer momentaneamente que a fusão cósmica se realizou para
o sujeito, logo no despertar a incompletude se apresenta
novamente” (Birman, 1999, p. 53).
Todas essas qualificações estão associadas ao riacho, local onde a água
corre de forma mais serena; com efeito, o riacho adormece o ambiente com o
acalanto e o murmúrio suave das suas correntezas tênues. A sensação de paz que
emana dessa cena é tão intensa que o próprio ânimo dos leitores parece abrandar
diante da construção imagética; a conotação erótica, portanto, desponta num
momento de puro relaxamento. O termo horizontal (índice de que a mulher se
encontra deitada) revela, por um lado, uma posição comumente associada ao
erotismo; por outro, o estado de repouso que o poeta busca tanto alcançar:
“Quando tu, na vertical,
te ergues, de pé em ti mesma,
é possível descrever-te
com a água da correnteza;
tens a alegria infantil,
popular, passarinheira,
de um riacho horizontal
(e embora de pé estejas)”.
Ainda é preciso tecer um pequeno comentário sobre o último verso da
estrofe, destacado dos demais pelo fato de aparecer entre parênteses. Ele mostra
que toda a descrição feita não traduz a realidade da mulher, mas sim o fruto
imaginativo do sujeito. A persistência da imaginação se deve ao fato de a imagem
criadora ser mais forte do que a imagem real; por isso mesmo, o eu-lírico prefere se
entregar ao seu devaneio poético do que assimilar o conceito frígido da realidade.
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vivência
A segunda estrofe do poema está marcada pelo tom acentuado de
afetividade, uma vez que João Cabral apresenta uma mulher tomada por
sentimentos de exaltação humana (alegria). Por esse motivo, os três adjetivos
usados para qualificá-la têm uma carga emotiva muito forte; a serenidade
encontrada no termo infantil, por exemplo, mostra que essa mulher é um ser sem
maldade ou perversão; o vocábulo popular, por sua vez, está diretamente
associado às manifestações espontâneas do espírito, como se ela fosse um ser
liberto das amarras impostas pela rigidez dos padrões sociais; por fim, o termo
passarinheira remete à liberdade do vôo (passar como um pássaro), ainda que os
dicionários cadastrem o vocábulo com o sentido de caçadora ou criadora de
pássaros.
36
A estrofe que abre o poema tem um tom leve e alegre, pois, quando a
moça é associada à correnteza, ela assume todas as suas qualidades, podendo,
inclusive, passar pelos obstáculos do caminho sem sofrer qualquer tipo de dano.
Não há exagero em afirmar que a cena lembra a ondulação flutuante da vida; nesse
sentido, o objeto poético de João Cabral é, na verdade, a própria vida condensada
na forma de uma mulher.
029
vivência
36
Se as duas estrofes iniciais apresentam uma dicotomia entre uma
imagem real da mulher (que está de pé) e uma imagem formulada pelo sujeito (que
está deitada), a conjunção adversativa que abre a terceira instância sugere que, a
partir daquele momento, o conteúdo será abordado de outra maneira. Para falar a
verdade, persiste a dicotomia entre a imagem real e a imagem formulada, mas
agora em termos exatamente inversos:
030
MULHER
ÁGUA
HORIZONTAL (deitar em rio)
VERTICAL (água em profundeza)
Na acepção do poeta, quando a mulher está deitada, ela lembra a
verticalidade das águas em profundeza. Não se pode negar que essa passagem
revela um acentuado tom erótico, já que a figura humana consegue ser ainda mais
densa quando está em uma posição envolta de sensualidade. Nota-se, entretanto,
que a mulher não fica permanentemente nessa posição voluptuosa (em certas
horas te deixas); como se trata de um momento especial, é natural que o sujeito
tenha sido atraído pelo exotismo da cena. Depois, parece haver certo desleixo
nessa posição do corpo, como se a espontaneidade dos atos se sobrepusesse ao
domínio da razão e, conseqüentemente, revelasse a presença de um ser entregue
ao desejo. Para traduzir essa passagem mais frouxa e espontânea, o poeta
emprega as sibilantes como recurso formal, produzindo um efeito distante da
dicção dura e estagnada que comumente marca a sua poesia.
Na estrofe seguinte, o poeta usa uma série de termos que estão
associados ao discurso erótico. Primeiramente, a elipse do verbo ser (em como se
rio) assinala uma maior integração entre a mulher e a imagem a ela associada; com
efeito, não é necessário usar um verbo de ligação para retratar a realidade de duas
imagens que já são indissociáveis. Depois, a figura de uma mulher que se entrega a
si mesma possui uma carga sensual bastante evidente, já que o verbo entregar
revela que o indivíduo está tomado pelo desejo carnal; dessa forma, parece que o
mundo circundante já não tem qualquer sentido, tamanha é a intensidade dessa
valorização interior:
“Mas quando na horizontal,
em certas horas, te deixas,
que é quando, por fora, mais
as águas correntes lembras,
mas quando à tua extensão,
como se rio, te entregas,
quando te deitas em rio
que se deita sobre a terra”.
Como é possível verificar, a mulher se transforma no próprio rio;
entretanto, não é tarefa fácil saber se é a moça que se mineraliza ou se é o rio que
se humaniza. Essa indefinição faz com que o texto adquira um tom ainda mais
atraente, pois mostra que nem as coisas nem os seres humanos têm um contorno
muito definido. A verdade é que a figura feminina se funde à natureza do rio e
assimila as suas características mais sedutoras. A imagem do rio que se deita
sobre a terra, por exemplo, revela o encontro e a fundição de dois corpos dispostos
sobre o chão. Mais uma vez, João Cabral procura amenizar o tom sedutor de seu
texto utilizando imagens concretas, mas o hermetismo velado de sua obra acentua
ainda mais o seu teor erótico. Na verdade, as associações que o leitor faz nas
entrelinhas excitam mais do que se as informações fossem dadas explicitamente.
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Na estrofe seguinte, João Cabral continua fazendo suas considerações
acerca do corpo feminino com base na dicotomia estabelecida entre a aparência
(água corrente) e a interioridade (água de poço). A mulher é apreciada como um ser
profundo e cheio de vida interior – características sintetizadas na imagem do poço;
para o poeta, a alma feminina é uma espécie de represa que sustém a vida com o
intuito de aproveitá-la melhor. Talvez seja por isso que o crítico literário Lauro
Escorel tenha preferido ver a mulher na lírica cabralina antes como uma
representação materna do que como um objeto erótico propriamente dito:
“A tendência, expressa nesses poemas, a ver na mulher
mais um refúgio do que um objeto de deleite erótico, parece
indicar uma necessidade que o poeta experimenta, em
certos momentos, de vencer seu impulso natural, de
natureza centrífuga, e de retornar à terra, à matriz original
de onde procedeu, nostálgico de sua própria origem”
(Escorel, 2001, p. 98).
Com isso, o movimento vai se tornando cada vez mais denso, como se o
universo parasse de rodar e a mulher se bastasse nela mesma; a convivência com
sua própria interioridade a torna cada vez mais íntima e misteriosa. João Cabral se
rende ao universo feminino, pois a imagem da água estagnada está, de certo
modo, ligada a um conceito de pureza; conseqüentemente, a mulher parece não ter
sido afetada pelas mazelas do mundo exterior. Como, neste poema, a água não se
mistura a outros elementos, ela se apresenta em sua forma mais pura; daí porque o
autor aproxima, através de um recurso sonoro, as palavras água e alma, termo de
acepção metafísica pouco usual em seu vocabulário poético:
“Só uma água vertical,
água parada em si mesma,
água vertical de poço,
água toda em profundeza,
água em si mesma, parada,
e que ao parar mais se adensa,
água densa de água, como
de alma tua alma está densa”.
Se o poema analisado procurou discutir as diferenças estabelecidas
entre a interioridade e a aparência dos objetos, então é preciso reconhecer o fato
de que João Cabral não defende mais aquela idéia de que a verdadeira poesia
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vivência
As estrofes seguintes são uma espécie de desmembramento e
afunilamento das idéias esboçadas na estrofe anterior; ou seja, o poeta substitui o
discurso contido por uma reprodução em série das imagens. Diga-se de
passagem, nessa estrofe aparece uma das poucas marcas explícitas que
determinam o gênero feminino da personagem (queda; antes aparecera apenas a
expressão ti mesma); pode-se perceber, portanto, que Cabral ainda receia em
admitir o componente erótico como uma fonte importante em sua obra, mas essa
postura não é suficiente para minimizar a tonalidade sensual do seu texto. Como o
adjetivo queda exprime a idéia de um momento demorado, tem-se a impressão de
que a mulher prova a si mesma – gozando de sua própria pessoa e vivendo a vida
com intensidade.
36
Na verdade, a aproximação das imagens com a figura materna não
remove a sensualidade com que os objetos são apresentados. Por outro lado, a
necessidade de retornar às origens, conforme apontou Escorel, só vem a confirmar
o sentimento afetuoso que domina o coração do poeta – muito embora esse
sentimento agora esteja dirigido para a sua terra natal.
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pode ser colhida apenas na objetividade das formas; na verdade, os objetos já não
lhe dão o material necessário para a construção de uma poética original. Por isso
mesmo, pode-se dizer que, ao abordar a temática erótica através da serenidade
que emana do rio, o poeta imprime uma marca branda e humanizadora no traçado
do corpo feminino. Longe de ser tocado pelo processo de reificação, Cabral tenta
desesperadamente empregar vida humana aos elementos que estão naturalmente
desprovidos dessa vivência.
REFERÊNCIAS
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
BIRMAN, Joel. Cartografias do feminino. São Paulo: Ed. 34, 1999.
ESCOREL, Lauro. A pedra e o rio. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2001.
vivência
36
GIDDENS, Anthony. A transfiguração da intimidade. São Paulo: UNESP, 1993.
LIMA, Luis Costa. Lira e antilira: Mário, Drummond e Cabral. 2ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995.
MELO NETO, João Cabral de. Serial e antes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997a.
MELO NETO, João Cabral de. A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997b.
MOISÉS, Carlos Felipe. João Cabral de Melo Neto. In.: Poesia e realidade. São Paulo: Cultrix, 1977.
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