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Problematizando a neutralidade e universalidade do conhecimento
matemático
Claudia Glavam Duarte1
Resumo: Este ensaio tem por objetivo problematizar algumas verdades consolidadas no campo da
Educação Matemática e que tem implicações diretas no modo como vamos constituindo-nos
professores/as desta área do conhecimento. A primeira “verdade”, bastante disseminada nesse
campo do conhecimento e que pretendo problematizar diz respeito à pretensão de neutralidade dessa
ciência: a matemática como uma ciência neutra, vinculada exclusivamente a processos de
objetivação do mundo. A segunda “verdade” que, articulada ao pressuposto da neutralidade
dissemina-se nesse campo do conhecimento é a universalidade do conhecimento matemático.
Problematizar esses pressupostos tem por finalidade desestabilizar o solo das idéias pré-concebidas
que fixam uma determinada maneira e jeito de ser professor/a de Matemática e de lidar com os
conhecimentos matemáticos vinculados à área educacional. Com isso, cria-se a possibilidade de
potencializar diferentes formas de pensamento que gerem outras experiências pedagógicas também
para a área da Educação Matemática.
Palavras chave: Matemática. Educação. Verdade. Neutralidade. Universalidade.
Abstract: This essay seeks to problematize some truths consolidated in the field of Mathematics
Education and has direct implications on how we will be constituted as teachers in this area of
knowledge. This first “truth”, widely disseminated in this field of knowledge and that I intend to discuss
concerns the pretense of neutrality of this science: mathematics as a neutral science, bound
exclusively to processes of objectification of the world. The second "truth", that articulated to the
assumption of neutrality spreads in this field of knowledge is the universality of mathematical
knowledge. To question these assumptions is intended to destabilize the soil of the preconceived
ideas that hold a certain way and way of being a Math teacher and deal with the mathematical
knowledge related to the educational area. This creates the possibility of enhancing various forms of
thought that could generate other learning experiences also in the area of Mathematics Education.
Keywords: Mathematics. Education. Truth. Neutrality. Universality.
Para iniciar...
- Receber as palavras, e dá-las.
- Para que as palavras durem dizendo cada vez coisas distintas, para que
uma eternidade sem consolo abra o intervalo entre cada um de seus
passos, para que o devir do que é o mesmo seja, em sua volta ao começo,
de uma riqueza infinita, para que o porvir seja lido como o que nunca foi
escrito... há que se dar às palavras que recebemos. (LARROSA, 2004, p.
15).
Inicio esta reflexão a partir da epígrafe acima, porque este texto e as palavras que
escolhi para “dar a ler” têm a intenção de colocar em suspeição outras palavras:
aquelas que tentam firmar, definitivamente, nosso modo de atuar, de ser professor e
de lidar com o conhecimento matemático. Especificamente, neste ensaio intitulado
“Problematizando a neutralidade e universalidade do conhecimento matemático”,
tenho o propósito de alinhar-me àqueles trabalhos que têm problematizado as
formas hegemônicas de se pensar o campo do conhecimento denominado de
1
Licenciada em Ciências e Matemática. Mestre e Doutora em Educação.
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matemática. Alinho-me também, com todos os trabalhos que buscam perceber a
matemática em seus nós, em suas articulações com a própria produção da
materialidade do mundo. Um mundo que sabemos é cada vez mais atravessado por
questões ambientais, por catástrofes que sinalizam os problemas advindos de certa
racionalidade. É nesse panorama que pretendo colocar em questão o campo do
conhecimento com que me tenho pré-ocupado (por estar no centro de meu pensar)
e me preocupado (pelo lugar que a matemática ocupa em relação às outras
ciências). Quando digo “colocar em questão” significa aqui minha tentativa de
sacudir as “verdades” que circulam e são aceitas de forma tranquila no campo do
conhecimento denominado de matemática e que tem implicações diretas na área da
educação.
Dois movimentos...
Acredito que, para refletirmos sobre “verdades”, que se instauram em qualquer área
do
conhecimento,
sejam
necessários
dois
movimentos
metodológicos:
o
estranhamento e a problematização. O estranhamento permite distanciar-nos da
nitidez e do brilho que possui a “verdade”. Esse brilho característico das verdades,
por vezes, ofusca o nosso pensamento, ou até, de forma mais radical acaba
impedindo-nos de pensar diferente. Assim, tenho como hipótese que o
estranhamento possibilita devolver a opacidade de tais verdades, tornando-as algo
que já não reconhecemos e aceitamos com tranquilidade.
Já o segundo movimento, o de problematização, nos permite devolver a flexibilidade
e a excitação, que me parece são características eliminadas das verdades
consagradas. Tais movimentos encontram ressonância nas ideias de Foucault
(2002, p. 29) quando afirma que é preciso, em relação a qualquer verdade
estabelecida “[...] Sacudir a quietude com a qual as aceitamos; mostrar que elas não
se justificam por si mesmas, que são sempre o efeito de uma construção cujas
regras devem ser conhecidas e cujas justificativas devem ser controladas [...].”
Com outras palavras, meu objetivo neste texto é dar visibilidade ao caráter
contingente e arbitrário de algumas verdades que atravessam e acabam por
constituir de um modo próprio o campo do conhecimento denominado de
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matemática. Colocar assim, em questão a própria matemática, buscando enredá-la
nas tramas de forças que a produzem, me parece ser bastante atraente. Ou ainda,
interrogar a matemática em suas teias de significações, indo além dela mesma,
pode abri-la a outros olhares, outras tramas, outras forças.
Problematizando verdades...
A primeira “verdade”, bastante disseminada nesse campo do conhecimento e que
pretendo problematizar diz respeito à pretensão de neutralidade dessa ciência: a
matemática como uma ciência neutra, vinculada exclusivamente a processos de
objetivação do mundo. Matemática compreendida como sinônimo de objetividade.
Nessa perspectiva, a matemática é entendida como uma ferramenta implicada
somente nos processos de objetivação do mundo, como se processos de
subjetivação não fossem por ela atravessados e acionados – matemática como
ciência neutra cujo discurso não seria afetado pelo campo social porque obedeceria
somente a suas determinações internas e sua lógica.
Quando pensada na perspectiva da objetividade pura, a matemática passa a ser
entendida como uma ferramenta capaz de oferecer uma representação fiel, “limpa”,
livre das impurezas, uma ossatura idealizada, da realidade.
Uma “realidade”
organizada, hierarquizada, classificada. Assim, a “realidade”, capturada em sua
essência, daria condições para se pensar a matemática como palavra última, como
fundamento. Chegamos então às expressões tão comumente acionadas em nossos
discursos cotidianos: é tão certo como dois e dois são quatro. Desse modo, a
matemática, com sua linguagem asséptica, seria entendida como verdade última,
como a ciência que encerra qualquer discussão, pois sua imparcialidade estaria
fundamentada na essência do real. A pretendida “assepsia” seria possibilitada pelas
características próprias desse campo do conhecimento: o formalismo e da
abstração. Penso que essas características funcionariam como um dos importantes
componentes para a formação da “grife” da matemática, e a constituiria em uma
“ciência de marca” para usar uma expressão cotidiana, tão cara aos consumistas
mais vorazes.
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No entanto, seria interessante observar que essas características: o formalismo e
abstração ocasionam, por um lado certo, um empoderamento desse campo do
conhecimento, cabe lembrar o quanto essa ciência foi pensada como ferramenta
para legitimar “as jovens ciências” tão necessitadas de afirmação e o quanto Comte,
por exemplo, esperava obter para as ciências sociais essa positividade que o
modelo matemático havia conferido às ciências naturais (LIZSCANO, 1993).
Mas, por outro lado, são essas mesmas características que lhe fornecem críticas
bastante ferrenhas. Se pensarmos no campo educacional, perceberemos a
presença daqueles que Larrosa (2004, p.246) chama de “readófilos”, os maníacos
de realidade ou os cotidianistas de plantão que criticam exatamente a distância entre
a matemática e o mundo real ocasionado pelo exacerbado formalismo e abstração.
Tal critica pode ser evidenciada nas palavras de Rota
De todas as formas de fugir da realidade, a matemática é a mais bem
sucedida. É uma fantasia que torna uma pessoa adicta porque retroage
para melhorar a própria realidade da qual estávamos tentando fugir. (ROTA,
Apud LIZARBURU E SOTTO, 2006, p. 15).
Seria oportuno, nesse momento, pontuar algumas reflexões feitas pelo sociólogo
Emanuel Lizscano (2006a) que apontam para o processo de efetivação dessa
empreitada, ou seja o processo que assegura essa pretensão de neutralidade da
matemática . Segundo esse autor:
[...] opera-se aí um sagrado processo de depuração, que segue quatro
etapas: a) separação ou demarcação entre dois âmbitos (puro/impuro), b)
manutenção sistemática da exclusão mediante uma serie de tabus e regras
protetoras c) institucionalização do esquecimento/destruição dos passos
anteriores, d) re-elaboração permanente dos resíduos contaminantes que,
insistem em re-aparecer, sem cessar, por toda a parte. Ao final desse
processo tem-se a “emergência dos elementos puros”, descontaminados
que expressam de forma exemplar essa “vontade de pureza” que move o
espírito científico. (Ibidem, p.243). [minha tradução]
No entanto, os elementos impuros, os resíduos que foram excluídos, ou a
ambiguidade da ordem estabelecida, para citar Bauman (1999), insistem em
ameaçar essa “vontade de pureza” tão necessária a manutenção da ordem. Em
torno do conceito matemático mais rigoroso se entrelaçam uma trama de
significados culturais, que foram considerados refugos, deixados de lado, mas que
insistem em apontar para o caráter pragmático, mundano que não só atribui sentido
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as invenções matemáticas, mas que também a constituem. É possível inferir que
não há matemática sem mito.
Como exemplo para verificarmos o entrelaçamento de conceitos matemáticos com
cultura, apresento mesmo que de forma breve, algumas das condições de
possibilidade para a emergência dos números negativos e do zero na cultura
oriental.
Se observarmos o pensamento chinês de espaço/tempo/número, veremos que esse
se revela intimamente devedor do substrato místico, simbólico e mágico que o
sustenta. O zero e os números negativos foram impensáveis para a racionalidade
grega clássica por serem contrários a experiência e aos modos de pensar daquela
época. Porém, os estudos de Lizscano (1993) indicam que já no séc. IX a.C o
princípio da dualidade: yin/yang, forças complementares que pressupõem a
existência de um equilíbrio, dava condições de possibilidade para a emergência de
tais números na China.
Essas ligações reafirmam o pensamento do historiador Oswald Spengler (1964) que
no inicio do século XX, afirmava: cada matemática se inscreve em sua respectiva
“mônada” cultural. Assim, existe aí um processo circular: a matemática não é
simplesmente um reflexo de instâncias culturais, mas está implicada na produção de
tais instâncias, pois o campo de problemas que considera válido, seus métodos de
solução, seus modos de argumentação, seus critérios de rigor acabam constituindo
determinadas racionalidades que estão implicadas também na constituição da
cultura.
Já no pensamento ocidental contemporâneo é possível perceber, graças ao trabalho
desenvolvido por Foucault, os encadeamentos através dos quais existe a
possibilidade de evidenciar e articular os acontecimentos, as relações de força,
(FOUCAULT, 2000, p. 5) ao que pode ser pensável/ impensável em determinada
época, também para o conhecimento matemático.
Nessa perspectiva, a partir das teorizações foucaultianas, foi possível entender a
estatística como um instrumento de uma racionalidade governamental, como uma
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tecnologia de governo. A transição, segundo esse filósofo, de um Estado atento ao
território para outro centrado na noção de população permite transformar a
estatística no instrumento maior da nova racionalidade governamental.
Assim, entender como as práticas discursivas constroem e são afetadas pelo
pensamento matemático são questões que tem me interessado. Pergunto-me, ainda
que sem resposta, como as teorizações pós-estruturalistas que borram as fronteiras
do binário, do dicotômico, estão afetando e estão sendo afetadas pelo conhecimento
matemático contemporâneo? Essa me parece ser uma questão intrigante e
desafiadora.
No entanto, parece-me que a linguagem matemática revitaliza o “mito babélico” de
uma linguagem originária comum que resgataria a possibilidade de devolver a
suposta unidade que teria sido perdida.
Nessa tentativa de revitalização encontra-
se uma segunda “verdade” que articulada ao pressuposto da neutralidade
dissemina-se nesse campo do conhecimento: A universalidade do conhecimento
matemático. Seria universal porque esse conhecimento seria transcendental. Teria
negócios com o eterno, seria anterior ao homem, pois que pertenceria ao mundo das
idéias, conhecimentos que “pairam no ar”. Nessa perspectiva, o conhecimento
estaria aguardando para ser “descoberto”- Faça-se a luz - e qualquer cultura,
obviamente que em determinado ponto de evolução, teria condições de acessar tal
conhecimento. Assim, o caráter transcendente atribuído à matemática, fica
evidenciado a partir da ideia de que, mesmo abandonados à própria sorte, seríamos
conduzidos à “descoberta” da matemática hoje utilizada.
Porém, eu gostaria de questionar essa pretensão de universalidade problematizando
a existência de uma única matemática e, para isso utilizo-me de ferramentas teóricas
desenvolvidas por Ludwig Wittgenstein, mais especificamente pelo “último
Wittgenstein”. A existência de diferentes linguagens foi enfatizada na filosofia
wittgensteiniana desta fase, pois para esse filósofo.
[...] não existe a linguagem, mas simplesmente linguagens, isto é, uma
variedade imensa de usos, uma pluralidade de funções ou papéis que
poderíamos compreender como jogos de linguagem. Entretanto, como
também não há uma função única ou privilegiada que possa determinar
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algum tipo de essência da linguagem, não há também algo que possa ser a
essência dos jogos de linguagem. (CONDÉ, 1998, p. 86, grifos do autor).
As teorizações propostas por Wittgenstein têm contribuído, de forma ímpar, para
problematizar o caráter universal pretendido pela matemática acadêmica e, em
efeito, alicerçar as afirmações a respeito da existência de diversas matemáticas.
Esta contribuição foi possibilitada pelo entendimento de racionalidade apontada por
este filósofo. Tal entendimento se afasta da busca pela fundamentação última
proveniente tanto de posturas essencialistas, através da busca por uma essência
lógica (idealista), quanto de posturas que buscam a positividade dos fatos
(positivista).
Wittgenstein problematiza a racionalidade como resultado de um modelo
representacional da linguagem - que propunha um isomorfismo entre linguagem e
mundo. De forma contrária, suas teorizações privilegiam a interação ao invés da
representação, ou seja, a racionalidade para este filósofo emerge da gramática, das
regras presentes nas interações dos jogos de linguagem, das práticas sociais
cotidianas presentes em uma dada forma de vida.
Como existem diferentes formas de vida com diferentes jogos de linguagem é
possível inferir a existência de diferentes gramáticas que possibilitam a construção
de diferentes racionalidades. Neste sentido, como professora de um curso que forma
professores de matemática para atuar no meio rural – Licenciatura em Educação do
campo/UFSC - tenho proposto aos meus alunos que identifiquem e analisem os
jogos de linguagem que se referem à matemática, presentes em diferentes formas
de vida. Assim, temos tido a oportunidade de evidenciar os jogos de linguagem
presentes nas práticas sociais do campo, os jogos de linguagem de crianças que
vendem balas em sinaleiras, os jogos de linguagem de pescadores, entre outros.
Destacar os diferentes modos de matematizar o mundo tem sido o objetivo de
muitos trabalhos vinculados a vertente educacional denominada de etnomatemática.
Tal vertente está interessada, exatamente, em identificar os modos de calcular,
medir, estimar, inferir e raciocinar de grupos que foram marginalizados
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O trabalho desenvolvido pela Etnomatemática tem sido possível porque a filosofia de
Wittgenstein desestabiliza a compreensão de existência de uma única linguagem.
Para este filósofo aquilo que conhecemos e damos significados, não está no objeto
em si, fruto de uma essência, intenção esta do idealismo, nem na positividade dos
fatos, justificativa do empirismo. O significado e, por conseguinte o conhecimento se
dá no uso que fazemos da linguagem em uma dada forma de vida.
Desta maneira, as “verdades” não são encontradas através da razão, mas
inventadas por ela. Assim sendo, é através dos usos da linguagem que são
atribuídos sentidos às atividades, aos objetos e aos acontecimentos e não apenas
aspectos alcançados por meio da percepção. Em conseqüência, aquilo que
chamamos de realidade é construído na e através da pragmática da linguagem, ou
seja, “aquilo que para os homens parece assim, é o seu critério para o que é assim.”
(WITTGENSTEIN, apud MORENO, 1995, p.33)
Todos os jogos de linguagem estão corretos desde que os critérios para esta
validação tenham sentido dentro de uma determinada forma de vida. Isto implica
que, “(...) Naturalmente, formas de vida diversas estabelecem práticas diferenciadas,
assim também, gramáticas diferentes e, consequentemente, inteligibilidades
diferentes”. Nesse sentido, não se pode falar da inteligibilidade do mundo, mas de
inteligibilidades possíveis.(CONDÈ, 2004, p.110)
O filósofo, ao afirmar a inexistência de uma essência da linguagem, admite que
nenhuma linguagem pode pretender-se universal. Existem linguagens e lógicas
particulares, e estas são fruto do contexto onde estão inseridas. Ou seja, todos os
jogos de linguagem possuem perfeição desde que façam sentido dentro de uma
determinada forma de vida. No entanto, Wittgenstein afirma:
O ideal está fixado em nossos pensamentos de modo irremovível. Você
pode sair dele. Você tem que voltar sempre de novo. Não existe um lá fora;
lá fora falta o ar vital. – Donde vem isto? A idéia está colocada, por assim
dizer, como óculos sobre o nosso nariz, e o que vemos, vemo-lo através
deles. Não nos ocorre tirá-los. (WITTGENSTEIN, 2004, p. 69).
É com os óculos da Matemática acadêmica que tem sido construído o suposto
“ideal”. No entanto, penso que é preciso considerar a Matemática como uma lente,
uma possibilidade, uma linguagem que não é o reflexo do mundo, mas que, ao
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“dizer sobre o mundo”, acaba por construí-lo e o faz de uma maneira bastante
peculiar.
Porém, a característica de universalidade do conhecimento e da linguagem
matemática tem neutralizado a possibilidade de visibilidade e legitimidade de visões
particulares da matemática. Mas existem outros modos de pensar matematicamente
o mundo?
Vários têm sido os trabalhos que apontam para outras racionalidades. A
pesquisadora Alexandrina Monteiro (2002) relata uma experiência que viveu junto a
um grupo do Assentamento Rural de Sumaré. Naquele local, a autora descreve seu
encontro com Zé do Pito, plantador de tomates, que além de dedicar-se aos
afazeres provenientes deste ofício, era responsável pela divisão do valor da conta
de luz do assentamento entre os usuários. Os procedimentos do trabalhador rural
para efetuar os cálculos se resumiam em dividir a taxa básica entre os que usaram a
luz e o valor restante dividir conforme as condições de cada família. Sua divisão era
proporcional. Porém os critérios para estabelecer tal proporcionalidade estavam
articulados a partir de “relações de solidariedade e não de capital”, ou seja,
escapavam do entendimento da matemática acadêmica.
Knijnik (2006) também tem dado visibilidade a diferentes gramáticas que acabam
por constituir um modo específico de matematizar o mundo de camponeses
vinculados ao Movimento sem terra. Seus estudos apontam para diferentes
maneiras de cubar a terra, ou seja, calcular a área de determinada superfície e para
as estruturas dos cálculos mentais, a matemática oral desenvolvida pelos
trabalhadores do campo.
Experiência também diferenciada no que diz respeito a outras formas de
matematizar o mundo foi vivenciada por Mariana Kawall Ferreira (2002), professora
de Português e Matemática na escola do Di au a rum, no parque indígena do Xingu.
Ao propor para a turma que lecionava o problema: “Ontem à noite peguei 10 peixes.
Dei 3 para meu irmão. Quantos peixes tenho agora?” obteve como resposta 13
peixes. Ao analisarmos, com as lentes da Matemática acadêmica o valor
encontrado, poderíamos pensar que tal resultado foi, no mínimo, equivocado ou que
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existiria uma “incapacidade cognitiva” por parte deste grupo de alunos, já que a
operação aritmética que responderia “corretamente” a este problema seria,
obviamente, a subtração que produziria como resultado sete peixes. No entanto, a
justificativa para a escolha da operação adição é surpreendente. De acordo com a
explicação de um aluno:
Fiquei com 13 peixes porque, quando eu dou alguma coisa para meu irmão,
ele me paga de volta em dobro. Então 3 mais 3 é igual a 6 (o que o irmão
lhe pagaria de volta); 10 mais 6 é igual a 16; e 16 menos 3 é igual a 13
(número total de peixes menos os 3 que Tarinu deu ao irmão). (FERREIRA,
2002, p. 56).
Situações como estas indicam que impor uma determinada racionalidade ou usar
somente o óculos da matemática acadêmica significa dar primazia a um modo de
pensar, a uma lógica específica: significa também a possibilidade de destruir os
valores e significados que acompanham a racionalidade de outras culturas. Pergunto
o que significaria impor para tais comunidades – do Assentamento de Sumaré, do
Parque Xingu ou do Movimento sem terra - critérios para validação de resultados
baseados somente naqueles presentes na Matemática escolar?
Tadeu da Silva (1998, p.194), entre outros, tem pontuado a importância de “ver o
currículo não apenas como sendo constituído de ‘fazer coisas’, mas também vê-lo
como ‘fazendo coisas às pessoas’”. Essa característica do currículo aponta-nos os
perigos da imposição de uma única racionalidade.
A construção dos processos de naturalização das verdades...
Mas me pergunto como fomos produzindo um “olhar” que inferioriza os modos do
“outro” pensar? Por que somente a maneira de matematizar da matemática
acadêmica é tida como correta e verdadeira? O historiador George G. Joseph nos
fornece pistas para que lancemos hipóteses para tal questão. Segundo ele
Durante os últimos quatrocentos anos, a Europa e as nações culturalmente
dependentes dela tem tido um papel dominante nos assuntos mundiais. Isto
se reflete com demasiada freqüência no caráter de algumas das obras
históricas escritas por europeus. Quando aparece outro povo, sempre
aparece de forma transitória como se a Europa tivesse se aventurado a
dirigir-se até eles; Assim, a história dos africanos ou dos povos indígenas da
América, com freqüência, parece começar só depois de seu encontro com a
Europa.(JOSEPH, 1996, p.24)
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Acontecimentos e estilos de vida anteriores a este “encontro” passam a ser
traduzidos, se o forem, como exóticos e folclóricos. No campo da História da
Matemática as argumentações desenvolvidas para as matemáticas anteriores ou as
que não seguiram o modelo grego apóiam-se, de forma geral, no caráter empírico
que essas assumiram, ou seja, apontam, para um suposto “defeito” de não
possuírem regras gerais e demonstrações. Esse “suposto defeito” ocorreria por que:
Por formação e por hábito, costumamos nos situar na matemática
acadêmica, dá-la por su-posta (isto é, posta debaixo de nós, como solo fixo)
e, desde aí, olhar para as práticas populares, em particular, para os modos
populares de contar, medir, calcular... Assim colocados, apreciamos seus
rasgos tendo os nossos como referência. Medimos a distância que separa
essas práticas das nossas, isto é, da matemática (assim mesmo, no
singular). (LIZSCANO, 2006b, p.125).
Essa comparação fica evidenciada na obra de Morris Kline, professor de matemática
e historiador estado-unidense contemporâneo, que em seu livro: “A cultural
Approach” (1962) dedica apenas três páginas das setecentas que perfazem sua
obra à contribuição da matemática egípcia e babilônica. Sua justificava para tal
procedimento está na afirmação de que as contribuições desses povos foram quase
insignificantes. Morris Kline compara tais contribuições “a garatujas de crianças
frente às grandes obras literárias”. (Ibidem, p.179).
A desqualificação de técnicas que “fogem” ao estilo do método axiomático dedutivo
das demonstrações, de caráter generalizador tem tido repercussões na História da
Matemática.
Uma dessas repercussões pode ser observada em relação ao processo de
desvalorização experienciado pelo matemático hindu, que viveu no inicio do século
XX, Srinivasa Ramanujan, (1887 - 1920). Os métodos desenvolvidos por
Ramanujam diferiam daqueles desenvolvido pelos matemáticos “convencionais”.
Ramanujam usava um quadro para cálculos e só transferia os resultados para seu
caderno quando estava satisfeito com suas conclusões, não sentindo necessidade
de demonstrar que seus resultados estavam corretos. Isto, provavelmente se deva
as influências de sua cultura visto que ele atribuía suas formulações à intervenção
divina, mais especificamente à deusa Namagiri. O brilhantismo e a notoriedade
deste iminente matemático hindu só veio a ser reconhecida depois de seu encontro
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com G. H. Hardy, professor da Universidade de Cambridge, considerado o
“matemático de verdade.
Ramanujan, este hindu, nascido em uma pequena cidade do sul da Índia, cuja
existência esteve imersa em uma cultura brâmane, talvez, tenha cometido a audácia
de ignorar tais preceitos científicos, mesclando aspectos “contaminados” de sua
cultura com o conhecimento matemático. Como conseqüência deste ato “ilícito”,
Ramanujan foi interditado, por um longo período, de ver seus trabalhos como
pertencentes à “matemática da tribo burguesa, para usar uma expressão de
Lizscano (2006b).
Tessituras finais
A crença em uma suposta neutralidade e universalidade do conhecimento
matemático ou a reflexão que suscita a obra de Ramanujan dizem respeito à
necessidade de moldar-se a um método específico para que algo possa ser
considerado como matemática. Ajustar-se a um método específico, a uma norma,
faz parte, no encaixar-se em uma determinada ordem: a ordem da matemática
acadêmica
Assim, tendo como referência as “verdades” disponibilizadas pelo campo da
matemática acadêmica, vamos atribuindo valores, hierarquizando, toda e qualquer
forma de matematizar o mundo que não tenha equivalência com a “nossa”
matemática. Obviamente, esse processo tem tido implicações nos processos de
subjetivação para pensarmos o outro.
No entanto, acredito que a potência desses saberes sujeitados, ou que se
encontram na exterioridade selvagem, para usar expressões foucaultianas,
encontra-se exatamente em demonstrar a arbitrariedade do conhecimento
considerado científico. São os refugos que insistem em aparecer, mas que por
serem exatamente refugos, possibilitam “soltar o ar fresco das outras possibilidades”
(SILVA; CORAZZA; ZORDAN, 2004, p.22).
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Foi com esta finalidade que produzi essa reflexão. Busquei retirar um pouco do
brilho de “verdades” produzidas no campo do conhecimento matemático para abrir a
possibilidade de tecer novos fios que não se pretendem melhores ou piores, mas
simplesmente outros... Penso que essas “verdades”: a neutralidade e a
universalidade
estabelecem
diferenças;
constroem
hierarquias
e
produzem
identidades no interior de processos de significação. Mas se constituíram “em
asserções que se tornaram tão “verdadeiras” que é difícil ver precisamente o que
pode haver nelas de questionável”.
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Problematizando a neutralidade e universalidade do