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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS.
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO.
A OBRA DE LYGIA CLARK COMO REFERÊNCIA PARA A
EXPERIMENTAÇÃO DE UMA PRÁTICA EDUCATIVA SENSÍVEL.
MARIA JULIA STELLA MARTINS
SÃO CARLOS - 2007
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS
CURSO DE PEDAGOGIA
A OBRA DE LYGIA CLARK COMO REFERÊNCIA PARA A
EXPERIMENTAÇÃO DE UMA PRÁTICA EDUCATIVA SENSÍVEL.
MARIA JULIA STELLA MARTINS
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado ao curso de Pedagogia para
a obtenção da graduação sob a
orientação da Profª Drª Sandra Aparecida
Riscal.
SÃO CARLOS - 2007
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AGRADECIMENTOS
Agradeço à Profª Sandra pela orientação, pelo incentivo e auxílio na elaboração deste
trabalho, no trilhar desta vereda que significou a conclusão e concretização de parte de
meus desejos e objetivos de vida.
À Profª Emília pela confiança e parceria com que me permitiu participar como monitora da
disciplina Metodologia e Prática do Ensino e Educação Artística, o que me fez refletir e
aprender muito sobre este tema e por participar da banca avaliadora.
À Profª Waldenez, pela orientação nos estudos sobre o Trabalho Sexual.
Agradeço a todas às Profissionais do Sexo com que pude compartilhar minhas idéias e
experimentações e com quem tanto aprendi.
Ao Edu, pelas intermináveis conversas tão produtivas, por me ajudar a enxergar a mim
mesma, por mais uma possibilidade de (pro) criação e pelo catálogo da exposição da Lygia
Clark, sem o qual este trabalho seria inviável.
À Edna e ao Osvaldo, pela possibilidade de existir e por tanta compreensão, apoio e
respeito à minha trajetória.
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RESUMO
Na sociedade industrial capitalista, o trabalhador foi se alienando do processo de produção,
tornando-se executor de determinada função dentro da industria. Seu tempo passou a ser
comandado pelo tempo do relógio, o tempo das máquinas, a tempo da máxima produção. O
corpo foi gradativamente sendo reduzido ao suporte passivo do cérebro e dos eventos
mentais para a execução de determinadas tarefas, tornando-se uma peça “viva” dentro da
engrenagem da produção e do consumo de bens. Seu potencial expressivo e criativo, sua
sensibilidade, perderam espaço para sua capacidade de adequação a demanda de mercado.
Valorizou-se a funcionalidade do corpo. O corpo passou a ser entendido como máquina.
Os objetivos deste estudo foram: discutir a presença do corpo e da sensorialidade nos
processos de aprendizagem e apontar a possibilidade de uma prática educativa sensível e
criativa tomando como referência a obra da artista plástica Lygia Clark.
As intervenções junto às profissionais do sexo de uma casa noturna de São Carlos,
resultaram em proposições de atividades a partir de elementos da obra da artista,
investigando sensações e experimentando o corpo, como meio de gerar questionamentos e
construir conhecimentos, proporcionando a compreensão e experimentação da arte;
garantindo sua incorporação no cotidiano como forma de construção de identidade cultural
e de uma prática educativa sensível.
Buscamos, com isso, valorizar as Artes como campo de conhecimento e expressão
humanos, fundamental à formação integral do ser humano.
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ÍNDICE
Agradecimentos
Resumo
Sumário:
Introdução------------------------------------------------------------------------------------------ 1
Crise dos Tempos 3--------------------------------------------------------------------------------3
Os sentidos na educação 12---------------------------------------------------------------------12
Lygia Clark, para além das fronteiras------------------------------------------------------ 19
Considerações sobre o Trabalho Sexual---------------------------------------------------- 27
As Intervenções ----------------------------------------------------------------------------------32
Palavras Finais----------------------------------------------------------------------------------- 36
Referências Bibliográficas--------------------------------------------------------------------- 39
Anexo
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Introdução:
Este trabalho nasce de um encontro, do meu encontro com a obra da artista
Lygia Clark, o que resultou num
processo de descobertas, experimentações e outros
encontros que não se esgotaram ao final deste trabalho; pelo contrário, abriram tantas
outras portas...
Sua obra nos coloca em uma zona fronteiriça que nos convida à reinvenção de
nós mesmos e essa força nos leva a problematizar nossas formas constitutivas de pensar e
agir frente ao que está posto. Este convite à re-significação e à criação se espalham por
todos os campos da existência, abrem um novo olhar para a vida; a vida passa a ser vista
como obra de arte, a ser experimentada e reinventada a todos os instantes: estamos em
constante processo.
Este trabalho busca contribuir para a valorização das Artes como campo de
conhecimento e expressão humanos, fundamental à formação integral do ser humano.
Tomaremos como ponto de partida uma breve reflexão de como, no decorrer de
nosso processo civilizatório, passamos a viver uma crise da criatividade e da sensibilidade
em prol de uma análise predominantemente racionalista da realidade, e de nossa relação
com o mundo.
Após a discussão da crise da “racionalidade pura” apresentada no primeiro
capítulo, buscaremos retomar a importância do corpo e dos sentidos nos processos
educativos e formativos, e apontaremos a relação do campo das Artes com estes processos.
A seguir, apresentaremos a obra de Lygia Clark e suas contribuições para as
artes e para o tratamento do sofrimento psíquico. Buscamos estabelecer relações entre a
proposta da artista e possibilidades de práticas educativas que signifiquem a redescoberta
do corpo e seu potencial expressivo, que relataremos mais adiante no capítulo “
Intervenções”.
No capítulo Considerações sobre Trabalho Sexual, apresentaremos alguns
estudos que nos ajudaram a compreender melhor a complexidade desta ocupação e com
isso nos permitiram uma inserção ao trabalho de campo um pouco mais atenta s suas
especificidades.
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Concluiremos com o relato de algumas das intervenções junto às profissionais
do sexo, que se pautaram nas proposições aqui apresentadas, em que o corpo e suas
potencialidades expressivas foram reconhecidas como parte integrante e constitutiva da
prática educativa sensível.
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Crise dos Tempos:
Tomaremos como ponto de partida uma breve reflexão de como, no decorrer do
processo civilizatório, passamos a viver uma crise da criatividade e da sensibilidade em
prol de uma análise predominantemente racionalista da realidade e da relação com o
mundo.
Na soma das realizações humanas, um dos aspectos que nos diferenciam dos
animais são os processos educacionais, em seu caráter formal e não formal, como um dos
aspectos centrais do processo civilizatório. Coube à educação transmitir os saberes
acumulados pela humanidade ao longo do tempo, bem como a função de socializar os
sujeitos, ensinando-lhes os comportamentos socialmente aceitos pelo grupo a que
pertencem.
BIERMAN (2000) adverte que hoje a educação tem diante de si grandes
desafios, assim como a psicanálise e a governabilidade, uma vez que já não sabemos mais
para que isso serve frente às transformações ocorridas na pós-modernidade, em que “não
acreditamos mais nas formas que pautavam essas práticas na modernidade, de maneira que
temos que reinventar não apenas essas práticas, mas também produzir novos sentidos para
essas”. (ibid.p.27)
Se, por um lado, “tivemos o cuidado de não concordar com o preconceito de que
a civilização é sinônimo de aperfeiçoamento, de que constitui a estrada para a perfeição,
preordenada para os homens”, (FREUD, 1997), por outro não há como negarmos as
transformações e os avanços ocasionados pelo desenvolvimento técnico-científico; não há
como parar a roda do tempo. O que GUATTARI (1990) nos apresenta a seguir é o eixo por
onde giram todas as outras questões que neste texto serão tratadas:
“O que está em questão é a maneira de viver daqui em diante sobre esse planeta, no
contexto da aceleração das mutações técnico-científicas e do considerável crescimento
demográfico. Em função do contínuo desenvolvimento do trabalho maquínico redobrado
pela revolução informática, as forças produtivas vão tornar disponível uma quantidade
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cada vez maior de tempo de atividade humana potencial. Mas para que?”
(GUATTARI,1990.p.8).
O que buscaremos discutir aqui, não é o retorno aos modos primitivos de
existência, numa negação absoluta da civilização, num fugere urbem, como pregavam os
árcades do século XVIII. Estes poetas não abandonaram a vida nas cidades, muito menos os
ideais iluministas. Ou como “Walden, ou a vida nos bosques” de Thoreau, embora este
texto possa nos ajudar a compreender para além da superfície os processos de urbanização e
mercantilização da existência.
Partiremos da análise de alguns processos do desenvolvimento humano, nas
suas relações com o meio, com o tempo e com o corpo, que resultaram no modo como
vivemos atualmente. Se há uma crise, esta pode ser abordada como sendo uma crise da
modernidade, notadamente de um certo modo de conhecer e de se relacionar com o mundo,
característicos dos tempos modernos.
Iniciaremos o percurso de nossas investigações a partir da vertigem provocada
pelo confronto entre duas civilizações, resultado das Cruzadas e das Guerras Santas,
aproximadamente, entre os séculos XI e XIV.
Com o intuito de promover o catolicismo e combater os muçulmanos, os povos
da Europa estreitam os relacionamentos entre o Ocidente e o Oriente. Com isso, são
trilhadas novas rotas, com caráter comercial e, com esse, novo impulso, as práticas de
comércio
ganham maior vigor. Nesta época, ainda predominava na Europa a prática de
trocas de mercadorias pelo seu valor de uso, o escambo. Gradativamente, o valor de uso foi
substituído pelo valor de troca. É neste período, portanto, que o conceito de lucro lança suas
raízes e que vemos o valor qualitativo ser substituído pelo valor quantitativo, a essência do
mundo moderno.
Nesta época, uma invenção modificaria para sempre a organização da vida
humana, o relógio mecânico. Em meados do século XIV, já existiam relógios mecânicos
instalados nas torres das Igrejas.
A vida passou a se organizar a partir da contagem mecânica da passagem do
tempo, numa divisão exata das horas. O tempo medieval, cíclico; o tempo natural, das
estações e das colheitas; o tempo corporal, do comer quando se tem fome, dormir quando
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se tem sono e produzir quando é necessário, foi gradativamente substituído pela contagem
exata das horas e a organização mecânica do tempo e da vida.
Na entrada do século XV já dominávamos o tempo e iniciávamos a dominação
do espaço. É desta época o desenvolvimento das cartas de navegação e dos mapas. Os
estudos geométricos e de perspectiva de Leonardo da Vinci muito contribuíram para o
desenvolvimento da cartografia, que abrirá os caminhos para as Grandes Navegações no
século seguinte.
Desta época, uma outra invenção vai modificar por completo os rumos do
conhecimento humano: a imprensa. A invenção de Gutenberg permitiu o registro e a
reprodução de textos que antes eram manuscritos e copiados. Antes da imprensa e da
reprodução em série de textos, grande parte do conhecimento humano era registrado
corporalmente e era transmitido de geração para geração pela oralidade. Poucas pessoas
dominavam a escrita e a leitura, e ficavando restritos a um seleto grupo da Igreja. Pela
imprensa, o conhecimento passa a ser registrado no papel e transmitido para qualquer um
que o saiba ler. Neste caso, a habilidade da memória corpórea perde espaço para a
habilidade da leitura.
Isto significa uma migração da atenção humana dos sentidos e sensações- do
corpo-, para o cérebro. “Está, pois, alicerçado o mundo moderno nesta tendência que,
progressivamente, irá se solidificar: a maior confiabilidade na descrição quantitativa do
mundo em detrimento da qualitativa”. (DUARTE, 2000.p.45).
Com as Grandes Navegações do século XVI, vemos o sepultamento progressivo
das concepções cultivadas na longa Idade Média. A descoberta de novas terras tornou o
mundo algo inconcluso, algo a ser conquistado e transformado e é essa a missão do ser
humano. O homem passa a pensar no futuro e a desenvolver a idéia de progresso. Cai por
terra a idéia de um mundo perfeito criado por Deus, acabado e estático.
Mas é no século XVII que três estudiosos consolidam os novos paradigmas do
conhecimento e das concepções que a partir de agora passam a vigorar: Galileu Galilei
estabelece fórmulas matemáticas capazes de explicar os movimentos dos astros e dá início
à ciência experimental moderna; Descartes funda a filosofia moderna e estabelece a
“dicotomia cartesiana”, ou seja, separação entre o corpo e a mente. Para ele, a presença do
pensamento era o pressuposto para a existência. Funda, então, a visão do corpo como um
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intrincado mecanismo constituído de peças menores, cujo funcionamento assemelhar-se-ia
à máquina de um relógio. Nasce o corpo máquina. E desta concepção deriva a idéia de que,
por meio da exaustiva análise das partes isoladas, pode-se chegar à compreensão do
mecanismo como um todo; Francis Bacon defende que a ciência passa a ser o
conhecimento que deve ser usado para dominar e controlar a natureza.
Temos aqui os pilares que sustentaram a entrada na era da Revolução Industrial.
Com a expansão do capitalismo e a consolidação da Revolução Industrial, as
relações de produção e de organização do trabalho foram alteradas por completo.
Anteriormente, o artesão detinha o conhecimento de todo o processo de
produção; seu trabalho era organizado de acordo com suas necessidades, o tempo de
execução das tarefas era determinado segundo um tempo natural - o tempo das colheitas, o
tempo dos rituais sociais, etc. O conhecimento era transmitido de geração para geração, o
aprendizado acontecia simultaneamente à produção e à criação. O pensar/criar e o fazer
estavam inter-relacionados. O artesão era um criador ativo de sua obra.
O Iluminismo, o Século das Luzes, difunde a crença na racionalidade científica
como a principal responsável pela interpretação do mundo. Produz-se um modo de
aprendizagem e conhecimento que privilegia o exercício e o treinamento da inteligência
racional, quantitativa, capaz de quantificar matematicamente os eventos que regem a
existência humana. O tipo de racionalidade construída ao longo dos últimos cinco séculos,
caracterizada pela instrumentalidade e a funcionalidade, vieram determinando o modo
como percebemos o nosso corpo e a maneira de com ele nos relacionarmos.
Na sociedade industrial capitalista, o trabalhador foi se alienando do processo de
produção, tornando-se executor de determinada função dentro da indústria. Seu tempo
passou a ser comandado pelo tempo do relógio, o tempo das máquinas, o tempo da máxima
produção. O corpo foi gradativamente sendo reduzido ao suporte passivo do cérebro e dos
eventos mentais para a execução de determinadas tarefas. Ele se torna uma peça “viva”
dentro da engrenagem da produção e do consumo de bens. Seu potencial expressivo e
criativo, assim como sua sensibilidade perderam espaço para sua capacidade de adequação
à demanda de mercado. A funcionalidade do corpo é valorizada. O corpo entendido como
máquina. A Revolução Industrial significou um radical processo de reeducação do corpo
humano.
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DUARTE JR. (2000, p.52) aponta:
“O que significa que, a partir da Revolução Industrial, a antiga concepção do trabalho,
ligada principalmente ao corpo, ás habilidades e aos desejos do trabalhador (mesmo que,
de certa forma, limitados as suas condições sociais concretas), foi sendo substancialmente
alterada. Se o artesão do passado era o senhor de sua produção, a dominar os segredos de
um oficio que principiava na imaginação e se concluía num objeto, concretizando o
planejamento, o novo operário perdeu por completo o controle de sua atividade. Foi se
especializando numa tarefa restrita até que se visse atirado nas atuais linhas de
montagem, nas quais sequer chega a ter uma visão inteiriça do bem que ajuda a produzir.
Em suma, o trabalho na sociedade industrial moderna tornou-se uma função, tornou-se o
desempenho de uma atividade controlada e racionalmente planejada dentro de uma lógica
maior, o que faz de seu executante um mero funcionário. Peça de uma imensa
organização, a ele cabe também funcionar de modo preciso, sob pena de ser descartado e
substituído por outro que não comprometa o funcionamento do sistema como um todo”.
A separação entre o fazer e o pensar/criar, a crescente alienação dos processos
de produção e a mecanização/instrumentalização do trabalho e das relações gerou um
processo de atrofiamento das outras inteligências corporais. Esse processo alterou as formas
de conhecimento e de aprendizagem.
E é neste contexto, de urbanização, desenvolvimento industrial e tecnológico
que surge a escola e as tentativas de universalização do ensino. Coube a ela transmitir os
conhecimentos para que o indivíduo tivesse condições de atuar socialmente, disciplinando
corpos e mentes para a execução do trabalho funcional. Os processos de aprendizagem são
pensados pela perspectiva de otimizar a adequação dos alunos à lógica da escola, mais
precisamente, à lógica da indústria. GUATTARI (1990) aponta que essa lógica industrial
perpassa outras instâncias da vida cotidiana:
“Uma finalidade do trabalho social regulada de maneira unívoca por uma economia de
lucro e por relações de poder, só pode, no momento, levar a dramáticos impasses. Uma
mesma perspectiva ético-política atravessa as questões do racismo, do falocentrismo, dos
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desastres legados por um urbanismo que se queria moderno, de uma criação artística
libertada do sistema de mercado, de uma pedagogia capaz de inventar seus mediadores
sociais etc. Tal problemática, no fim das contas, é a da produção de existência humana
em novos contextos históricos”. (GUATTARI,1990, p.19).
É a partir das últimas décadas do século XIX e início do século XX, surge um
movimento de questionamento à racionalidade pura, à neutralidade científica, ao “cérebro
sem corpo”. Freud inaugura a psicanálise no início do século XX. E esta passa a ser uma
das correntes mais influentes a defender a existência de um universo para além do campo
da racionalidade, o inconsciente, onde as pulsões corporais, os instintos, emergem das eras
dionisíacas passadas e tornam-se elementos constitutivos para a compreensão do ser
humano. Na maturidade de sua vida e obra escreve:
“Já é tempo de voltarmos nossa atenção para a natureza dessa civilização, sobre cujo
valor como veículo de felicidade foram lançadas dúvidas. Não procuraremos uma
fórmula que exprima essa natureza em poucas palavras, enquanto não tivermos aprendido
alguma coisa através de seu exame. Mais uma vez, portanto, nos contentaremos em dizer
que a palavra “civilização” descreve a soma integral das realizações e regulamentos que
distinguem nossas vidas de nossos antepassados animais, e que servem a dois instintos, a
saber: o de proteger os homens contra a natureza e o de ajustar os seus relacionamentos
mútuos”. (FREUD,1997,p.42).
Pouco antes disso, Nietzsche, com seus aforismos, abre o caminho para a busca
de outras “verdades” para além da verdade pura e subverte todas as estruturas
estabelecidas: a moral, a religião, a ciência.
A princípio suas teorias pareceram não abalar em nada o contínuo progresso e
promessas de conforto propiciadas pela racionalidade e pela industrialização.
Foi com a erupção da Grande Guerra (1914-1918) que o homem foi capaz de
observar que as promessas de conforto e desenvolvimento humanos eram capazes de
promover tamanha destruição. O desenvolvimento tecnológico não estava diretamente
relacionado à emancipação humana, relacionava-se também com sua capacidade de
destruição.
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Freud, mais uma vez adianta e conclui:
“Agora, penso eu, o significado da evolução da civilização não mais é obscuro. Ele deve
representar a luta entre Eros e a Morte, entre o instinto de vida e o instinto de destruição,
tal como ela se elabora na espécie humana. Nessa luta consiste essencialmente toda a
vida,e, portanto, a evolução da espécie humana pela vida”.(FREUD, 1997.p.81-82).
Na Segunda Grande Guerra (1939-1945) que o mal se torna agudo. Nunca
dantes na história da humanidade houve registros de tantas atrocidades, de tamanha
capacidade de destruição e morte em massa. Apenas três nomes são capazes de nos fazer
lembrar o tamanho da barbárie instaurada mundo afora: Auschwitz, Hiroshima e Nagasaki.
Desde então, paira no ar o fantasma nuclear, capaz de destruir a terra inteira com
um simples apertar de botão ou uma falha técnica que resulte em vazamento. Fomos nos
acostumando com as barbáries televisionadas e hoje quase não nos espantamos mais com as
práticas de guerras, nem com a violência instaurada como o modus operandi da
contemporaneidade. Atualmente, pouco distinguimos a realidade da ficção; não sabemos se
é verdade ou um novo filme ou um game que acaba de ser lançado.
O desolamento gerado pela Segunda Guerra produz o movimento de
“contracultura” que influencia as artes, a filosofia, os comportamentos. Propunha uma nova
forma de viver, mais integrada à natureza, ao renascimento dos valores humanos, com a
estética e o prazer em primeiro plano em oposição à ganância lucrativa do mundo moderno.
O “movimento hippie” ousou trazer à tona temas escamoteados, como a expansão da
consciência para além dos limites rotineiros do cotidiano e o corpo humano como elemento
básico de nossa instalação no mundo. Boa parte dos jovens lutavam pelo direito de
expressão, por direitos políticos e sociais, por novos padrões de comportamento, como a
equidade sexual. Maio de 68 em Paris não chegou a derrubar as estruturas, mas produziu
enormes rachaduras.
Todavia, a indústria cultural não tardou a fagocitar os elementos inovadores
trazidos por estes movimentos e transformou-os em roupas da moda, em objetos e
comportamentos de consumo e lucratividade. Enquadrando a rebeldia no sistema produtivo
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e “midiático”. Hoje temos ”hippie de boutique”, “punk de boutique”, Che Guevara
estampado em roupas de marca. E os jovens hippies de outrora se transformam nos jovens
yuppies da atualidade que apregoam palavras de ordem: máxima produtividade, eficiência e
lucratividade.
A lógica sob a qual vivemos atualmente e seus resultados tornam questionáveis
a defesa deste modo de operar em favor da melhoria da qualidade de vida e da emancipação
humana. Hoje, ainda, vivemos assombrados pela fome, pela peste e pela guerra.
Produzimos um modo esquizofrênico1 de viver, em que temos uma visão parcializada da
vida e do mundo, e cremos que isso é a verdade absoluta.
Vivemos a anulação da
experiência de nosso corpo em favor de sua funcionalidade dentro da máquina de produção
e de consumo, num estado de embotamento dos sentidos e da criatividade, alimentando a
homogeneização de comportamentos e idéias. Nunca vivemos tão intensamente a brevidade
da vida, o tempo passando muito depressa e a angústia de que poderemos ser atingidos por
alguma catástrofe a qualquer instante, seja ela natural, artificial ou social. Estamos soltos no
espaço. Angustiados. Julgamo-nos civilizados e pautamos nossa existência em índices das
bolsas de valores do mercado financeiro internacional, que fazem circular trilhões em
dinheiros de um lugar para o outro e que nem sequer existem concretamente. São números
virtuais determinando diretamente nossas vidas.
Portanto, não se trata de abandonar a civilização, mesmo porque é inviável, a
menos que optássemos pela loucura - o que não é uma questão de opção. Nem tampouco se
trata de estabelecer palavras de ordem estereotipadas, reducionistas, ou ainda de fazer
funcionar uma ideologia unívoca, mas sim, de recompor a práxis humana nos mais variados
níveis. Em todas as escalas individuais e coletivas, naquilo que concerne tanto à vida
cotidiana quanto à reinvenção da democracia – no registro do urbanismo, da criação
artística, da educação, da saúde, etc. Trata-se de se debruçar sobre o que poderiam ser os
“dispositivos de produção de subjetividade”, indo no sentido de uma re-singularização
individual e/ou coletiva, ao invés de ir no sentido de uma usinagem pela mídia e da
homogeneização, sinônimos de desolação e desespero.
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Esquisofrenia: em grego, “mente partida”. Para a psicopotologia, uma psicose caracterizada pelo alto teor de
fragmentação tanto entre as funções mentais como entre estas e o corpo enquanto organismo.
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É neste sentido que a experimentação de novas práticas educativas que
propiciem a redescoberta do corpo, dos sentidos e da criatividade, que participem da resingularização individual e/ou coletiva, apontando para novas recomposições da práxis
humana , são bem vindas no momento.
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Os sentidos na Educação:
“A ecosofia2 mental, por sua vez, será levada a reinventar a relação do sujeito
com o corpo, com o fantasma3, com o tempo que passa, com os mistérios da vida
e da morte. Ela será levada a procurar antídotos para a uniformização midiática e
telemática, o conformismo da moda, as manipulações da opinião pela
publicidade, pelas sondagens etc. Sua maneira de operar aproximar-se-á mais
daquela do artista do que dos profissionais“psi”, sempre assombrados por um
ideal caduco de cientificidade”. (GUATTARI,1990.p.116).
Após a discussão da crise da “racionalidade pura” apresentada no capítulo
anterior, neste capítulo buscaremos retomar a importância do corpo e dos sentidos nos
processos educativos e formativos e a apontaremos a relação do campo das artes com estes
processos.
Se educar é levar a conhecer, é necessário que entendamos como se dá o ato de
conhecimento, a fim de direcionarmos as práticas educativas neste sentido.
DUARTE JR. (1988) esclarece que o conhecimento se dá pela capacidade
humana de atribuir significados, decorrente da dimensão simbólica produzida pela
linguagem. Não há conhecimento sem símbolos. Os símbolos e a linguagem surgem como
a tentativa de compreender e expressar a complexidade do mundo circundante. “Toda
compreensão lógica e racional somente é possível através da linguagem e de seus
derivativos (como a lógica racional e a “linguagem matemática”)”.
Mas, para que possamos pensar sobre as coisas, é preciso, primeiramente, um
estímulo que dispare os dispositivos de significação. Esses estímulos nos atingem em
dimensões anteriores ás simbolizações do pensamento e da linguagem. Atingem-nos no
plano das sensações e dos sentimentos. Para DUARTE JR. (1988) “ O conhecimento do
2
Conceito de GUATTARRI para designar a articulação ético-político entre os três registros ecológicos, o do
meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade humana.
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O autor refere-se a “fantasma” inconsciente, no sentido psicanalítico.
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mundo advém, dessa forma, de um processo no qual o sentir e o simbolizar se articulam e
se complementam.”
Para MERLEAU-PONTY (1945) a existência e o ato de conhecimento
acontecem a partir da experiência corporal e da relação que estabelecemos com o mundo
que nos circunda e alerta para a necessidade de despertarmos para a experiência com o
mundo:
“Eu não sou o resultado ou o entrecruzamento de múltiplas casualidades que determinam meu
corpo ou meu “psiquismo”, eu não posso pensar-me como uma parte do mundo, como o simples
objeto da biologia, da psicologia e da sociologia, nem fechar sobre mim o universo da ciência.
Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de
uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada. Todo o
universo da ciência é construído sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência
com rigor, apreciar exatamente seu sentido e seu alcance, precisamos primeiramente despertar
essa experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda”. (MERLEAU-PONTY, 2006.
p.3).
A afirmação de GUATTARI (1990)
complementa o que foi dito acima,
acrescentando à experiência corporal à complexa experiência da reflexão, a fim de
buscarmos esclarecer como se dá o ato do conhecimento:
“O sujeito não é evidente: não basta pensar para ser, como o proclamava Descartes, já que
inúmeras maneiras de existir se instauram fora da consciência, ao passo que o sujeito advém do
momento em que o pensamento se obstina em aprender a si mesmo e se põe a girar como um
pião enlouquecido, sem enganchar em nada dos Territórios reais de existência, os quais por sua
vez derivam uns em relação aos outros, como placas tectônicas sob a superfície dos
continentes”. (GUATTARI,1990.p.17).
A linguagem conceitual limita-se a traduzir o cognoscível, deixando à parte
tudo o que é inexplicável, tudo o que não conseguimos traduzir em palavras, mas que
percebemos, sentimos que existe. O conhecimento dos sentimentos e dos sentidos só pode
ser expresso por outras vias diferentes dos recursos lingüísticos conceituais. É através da
experiência estética, do fazer artístico que o homem consegue compreender e exprimir a
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19
complexidade do seu mundo interior, o mundo dos sentimentos.
É também pela
experiência estética, pelas vias do sensível que desenvolvemos uma forma particular de nos
acercarmos do mundo e sabermos sobre as coisas que nos cercam, dando um sentido único
para a nossa experiência. Através destas práticas o ser humano registra sua passagem pelo
mundo. Para melhor entendermos estas colocações, voltaremos à raiz grega da palavra
estética: aisthesis, indicativa da primordial capacidade do ser humano de sentir a si próprio
e ao mundo num todo integrado.4
“Na arte busca-se concretizar os sentimentos numa forma que a consciência
capta de maneira mais global e abrangente do que o pensamento rotineiro”
(DUARTE JR,1988). Temos na arte um campo do conhecimento humano. Isto significa
que é através da arte que o homem encontra sentidos que não podem se dar de outra
maneira senão por ela própria.
Se a questão que está posta é a re-significação do educar, como colocou
BIRMAN (2000), podemos buscar na experiência estética, no fazer artístico, no campo de
conhecimento das artes, uma possibilidade de re-significação do que seja educar.
“Em
geral trata-se de algo que se coloca atravessado à ordem “normal” das coisas - uma
repetição contrariante, um dado intensivo que apela para outras intensidades a fim de
compor outras configurações existenciais” (GUATTARI,1990.p.28).
A educação do sensível5 busca trabalhar em favor do refinamento de nossos
sentidos, que nos colocam face a face com o mundo. Isso significa dirigir nossa atenção de
educadores para aquele saber primeiro que veio sendo sistematicamente preterido em favor
do conhecimento intelectivo, não apenas no interior das escolas, mas, também, no âmbito
familiar de nossa vida cotidiana. Para DUARTE JR.:
“O inteligível e o sensível vieram, pois, sendo progressivamente apartados entre si e mesmo
considerados setores incomunicáveis da vida, com toda a ênfase recaindo sobre os modelos
lógico-conceituais de se conceber as significações. No entanto, em larga medida, a nossa
atuação cotidiana se dá com base nos saberes sensíveis de que dispomos, na maioria das vezes
sem nos darmos conta de sua importância e utilidade. Movemo-nos entre as qualidades do
mundo, constituídas por cores, odores, gostos e formas, interpretando-as e delas nos valendo
para nossas ações, ainda que não cheguemos a pensar sobre isso”. (DUARTE,2000.p.169).
4
5
João Francisco Duarte Jr. “O Sentido dos Sentidos: A Educação (do) Sensível”.p.15.
Educação do Sensível, termo desenvolvido por João Francisco Duarte Jr.
19
20
Neste momento poderíamos pensar em como as artes vêm sendo abordadas
dentro das escolas. A história da inserção das artes dentro dos currículos escolares é uma
história de descaso, esquecimento e desconsideração a este campo de conhecimento.
Identificada com disciplina menor, menos séria, se relaciona ao passa-tempo ou mera
diversão, sem nenhuma importância para a formação dos indivíduos. As aulas de artes
passaram a ser praticadas como “tapa buracos” em caso de falta de professores, ou
resumem-se aos “trabalhinhos” relacionados a datas comemorativas: máscara para o
carnaval, flores para o dia das mães, cocar para o dia do índio, coelho para a páscoa,
bandeirinhas para a festa junina. Ou ainda, o uso da prática artística como recompensa pelo
bom comportamento da turma: “Se vocês se comportarem, poderão desenhar”. Podemos
lembrar nossas próprias experiências em artes ao longo de nossa formação e verificaremos
que pouco de nossas experiências resultaram em práticas de criação e de re-singularização,
de produção de novos sentidos e significados.
Tomemos como exemplo uma prática muito utilizada pelas escolas atualmente,
dei o nome a esta prática de: “O varal dos Artistas”: penduram-se os artistas, os pintores
consagrados pela cultura ocidental, no varal da história e as crianças decoram a que época
pertenceram e aprendem a reproduzir um Matisse, um Picasso, um Mondrian. Esta prática
relaciona-se com a compreensão conceitual da história da arte, mas não se relaciona com a
criação, produção de novos sentidos, experimentação, elementos constitutivos da prática
artística. Acreditamos ser importante que as crianças conheçam Picasso, Matisse e
Mondrian, mas, não podemos cometer o equívoco de confundir práticas reprodutivistas e
racionalizantes com práticas artísticas.
Essa mesma situação pode ser estendida para as práticas de dança, em geral o
ballet, que com seus gestos repetitivos se aproxima mais de uma aula de adestramento
gestual, sem nenhuma produção criativa/expressiva e em geral os resultados estéticos são
lamentáveis. As práticas em artes cênicas, muitas vezes, são reduzidas à declamação de um
texto decorado pelos alunos. As aulas de música também sofrem de um “tradicionalismo”
que lhes inibe a criação, estão muito preocupados com as partituras e a execução de
determinadas peças consagradas, restringindo-se da prática o desenvolvimento da escuta e
à criação de uma identidade sonora.
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21
Em 1954, por ocasião dos Primeiros Seminários Internacionais de Música, em
Salvador, o professor Koellreutter em sua fala de abertura diz:
“Sabemos que é necessário libertar a educação e o ensino artísticos de métodos obtusos, que
ainda oprimem os nossos jovens e esmagam neles o que possuem de melhor. A fadiga e a
monotonia de exercícios conduzem à mecanização tanto dos professores quanto dos discípulos.
Não é a rotina que governará os ‘Seminários’, mas sim o espírito de pesquisa e investigação,
pois é indispensável que, em todo ensino artístico, sinta-se o alento da criação. Inútil a atividade
daqueles professores de música que repetem doutrinal e fastidiosamente a lição, já pronunciada
no ano anterior. Não há normas, nem fórmulas, nem regras que possam salvar uma obra de arte,
na qual não se vive o poder da invenção. É necessário que o aluno compreenda a importância da
personalidade e da formação do caráter para o valor da atuação artística e que a criação de novas
idéias resida no valor do artista”.( KOELLREUTTER, 1997, p. 31 apud BRITO, 2001, p.30).
Hans-Joachin Koellereutter, alemão naturalizado brasileiro, chegou ao Brasil em
1937. Seu trabalho de compositor, educador e ensaísta o tornaram uma das mais
expressivas personalidades da música e cultura brasileiras. Sobre seu trabalho como
educador musical, BRITO (2001, p.26) comenta que “suas proposições pedagógicas vão ao
encontro de pedagogos, cientistas e filósofos que visam à construção de novos paradigmas
para a formação e o exercício da cidadania de um ser humano íntegro – consigo, com o
outro, com o meio ambiente”. Apontaremos uma de suas proposições pedagógcas, o ensino
pré-figurativo, como um dos elementos a serem considerados nas proposições de novas
práticas educativas no que tange ao ensino de Artes. Para Koellreutter (1997), “o ensino
pré-figurativo das Artes é parte de um sistema de educação que incita o homem a se
comportar perante o mundo, não como diante de um objeto, mas, como o artista diante de
uma obra a criar”. Tomaremos as palavras de Koellreutter para exemplificar o que é o
ensino pré-figurativo; aqui o professor se refere ao ensino da música, mas podemos tomar
esses exemplos e relacioná-los com as outras linguagens artísticas e também com os outros
componentes curriculares.
“Ensinar a teoria musical, a harmonia e o contraponto como princípios de ordem indispensáveis
e absolutos é pós-figurativo. Indicar caminhos para a invenção e a criação de novos princípios
de ordem é pré-figurativo. Ensinar o que o aluno pode ler em livros e em enciclopédias é pós –
figurativo. Levantar sempre novos problemas e levar o aluno à controvérsia e ao
questionamento de tudo o que se ensina é pré-figurativo. Ensinar a história da música como
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conseqüência de fatos notáveis e obras-primas do passado é pós-figurativo. Ensiná-la
interpretando e relacionando as obras-primas do passado com o presente e com o
desenvolvimento da sociedade é pré-figurativo. Ensinar composição fazendo o aluno imitar as
formas tradicionais e reproduzir o estilo dos mestres do passado, mas também, os dos mestres
do presente, é pós-figurativo. Ensinar o aluno a criar novas formas e novos princípios de
estruturação e forma é pré-figurativo”. (KOELLREUTTER, 1997, p. 31 apud BRITO, 2001,
p.36).
Figurativo é um termo próprio das artes plásticas e que diz respeito a uma forma
de representação em que o artista estava preocupado em representar formas acabadas da
natureza, como uma montanha, uma flor, uma casa e uma árvore. Portanto, o ensino préfigurativo relaciona-se com aquilo que vem antes da forma, antes do conceito já
estabelecido, relaciona-se com o conhecimento primeiro, inacabado, de que nos falou
DUARTE (1988) anteriormente. Desta forma, Koellreutter acreditava que uma prática
educativa desta qualidade contribuiria para a preparação dos jovens para viverem numa
época em que ocorrem transformações num ritmo cada vez mais acelerado, construindo
uma educação que implica formação e educação permanentes, sem que perca de vista a
necessidade da humanização perante as transformações tecnológicas. Acrescenta a
importância dos professores acompanharem as transformações, buscando permanecerem
em constante formação:
“Não se deve esquecer que a rapidez com que evoluem as ciências e a tecnologia em nosso
tempo dificilmente permite acompanhar o desenvolvimento e a transformação da mentalidade e
dos hábitos intelectuais e psíquicos dos nossos jovens, pois, desde cedo, estes chegam a
conhecer e, principalmente, a viver fenômenos sociais e manifestações culturais que são
desconhecidas a uma grande parte dos professores, por não pertencerem à esfera destes últimos”
(KOELLREUTTER, 1997, p. 31 apud BRITO, 2001, p.37).
Neste tipo de prática educativa valoriza-se o diálogo e a troca de saberes entre
“educadores” e “educandos”, entre sujeitos dialógicos. A educação é vista como produção
coletiva de conhecimento, como experiência comunitária, como interação entre sujeitos que
respeitando sua diversidade cultural e os saberes trazidos de suas experiências, criam
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campos de aprendizagem, de identidade e de produção de conhecimento, apropriando-se
dos conhecimentos produzidos pela humanidade e dão-lhes novos significados. Essa
perspectiva de educação, além do respeito ao discurso do outro e à possibilidade de
aprendizagem com o outro, possibilita que tomemos outras formas de conhecimento,
diferentes do saber cientifico, o saber dominante, como formas de aprendizagem e
produção de conhecimentos. Abre-se a possibilidade de diálogo entre campos de
conhecimento. Dessa forma busca-se relacionar os saberes trazidos pelos alunos, com os
saberes sensíveis, corporais e artísticos, e os saberes científicos.
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Lygia Clark, para além das fronteiras:
“Quantos seres sou eu para buscar sempre do outro ser que me habita as
realidades das contradições? Quantas alegrias e dores meu corpo se abrindo
como uma gigantesca couve-flor ofereceu ao outro ser que está secreto dentro do
meu eu?Dentro de minha barriga mora um pássaro, dentro do meu peito, um
leão. Esse passeia pra lá e pra cá incessantemente. A ave grasna, esperneia e é
sacrificada.O ovo continua a envolvê-la, como mortalha, mas já é o começo de
outro pássaro que nasce imediatamente após a morte. Nem chega a haver
intervalo. É o festim da vida e da morte entrelaçados”. ( Lygia Clark).
Aqui, apresentaremos a obra de Lygia Clark e suas contribuições para as Artes e
para o tratamento do sofrimento psíquico.
Buscaremos estabelecer relações entre a
proposta da artista e possibilidades de práticas educativas que signifiquem a redescoberta
do corpo e seu potencial expressivo. As experiências práticas serão relatadas mais adiante
no capítulo Intervenções.
A partir da perspectiva da possibilidade de uma prática educativa que reconheça
a porção sensível que nos constitui, buscamos na obra de Lygia Clark uma referência para a
prática educativa sensível, onde o corpo, os sentidos e a experiência estética fossem o
centro da prática educativa. Sua produção discute a interação do público com a arte, suas
obras relacionam-se com a poética do corpo e aos aspectos terapêuticos da arte. Fez
algumas de suas experimentações junto às trabalhadoras o sexo do Rio de Janeiro. Uma das
trabalhadoras que participou das experimentações de Lygia Clark foi Gabriela Leite, cujo
depoimento foi gravado e apresentado na Exposição “Lygia Clark, da obra ao
acontecimento. Somos o molde. A você cabe o sopro”, realizada na Pinacoteca do Estado
de São Paulo (janeiro-março de 2006).
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Rolnik (2002) ao apresentar a proposta da última fase da produção da artista, os
Objetos Relacionais (1968), em que a interação entre sujeito e objeto estão relacionados a
uma nova produção de estados subjetivos, estados de criação e re-significação e, portanto,
relacionam-se com o estado de clínica, questiona: “a arte cura?”, para esclarecer essa
questão comenta uma das proposições da arte contemporânea:
“Portanto, um dos aspectos do que muda e se radicaliza no contemporâneo é que, a partir
do momento que a arte passa a trabalhar qualquer matéria do mundo e nele interferir
diretamente, explicita-se de modo mais contundente que a arte é uma prática de
problematização: decifração de signos, produção de sentidos, criação de mundos. É
exatamente nessa interferência na cartografia vigente que a prática estética faz obra, sendo
bem – sucedido da forma indissociável de seu efeito de problematização do mundo”.
(ROLNIK, 2002, p. 370)
Desta forma, a prática artística liberta-se de um olhar que reduz ás suas formas
constituídas e sua representação. A arte torna-se, portanto, uma prática de experimentação
que participa da transformação do mundo.
Para Clark :
“A expressão corporal tem neste caso uma importância essencial – pois que é através dela
que as células são construídas, por exemplo, abrindo os braços, criando túneis com as
pernas abertas, por onde as pessoas podem passar. Trata-se de um abrigo poético onde o
habitar é o equivalente do comunicar. Os movimentos do homem constroem esse abrigo
celular habitável partindo de um núcleo que se mescla a outros. Uma folha de plástico
aberta sobre o chão ainda não é nada. É o homem que, penetrando-a, a cria e transforma,
que depois desenvolve, no interior, um organismo vivo. Ele incorpora o conceito da ação
através de sua expressão gestual. Cessa de ser o objeto de si mesmo para se tornar o objeto
do outro, ligando o processo da introversão à extra-versão. Ele inverte os conceitos de casa
e corpo. Agora o corpo é a casa. É uma experiência comunitária. Não há regressão, pois há
abertura do homem para o mundo. Ele incorpora a criatividade do outro na invenção
coletiva da proposta.”
(Clark. 1969)
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Atualmente, Lygia Clark é uma artista brasileira de grande reconhecimento no
meio artístico internacional. No Brasil, algumas iniciativas, como exposições e mostras de
arte contemporânea, têm permitido o acesso e o início de um processo de reconhecimento
da valorosa contribuição da obra da artista para a formação cultural de nosso país. A
ousadia e a força de seu trabalho trouxeram elementos para mudanças de paradigmas, tanto
nas artes, como no campo do tratamento do sofrimento psíquico. Sua obra inicia uma nova
forma de compreender e produzir arte como também aponta para uma nova proposta de
clínica terapêutica. “O que Lygia quer é que o festim do entrelaçamento da vida e da morte
extrapole a fronteira da arte e se espalhe pela existência a fora. E procura soluções para que
o próprio objeto tenha o poder de promover este desconfiamento”.(Rolnik,1996,p.8).
Nascida em 1920 em Belo Horizonte, Minas Gerais, mudou-se para o Rio de Janeiro
em 1947, já com três filhos, e passa a estudar pintura sob a orientação de Burle Marx. Em
1950 foi a Paris, onde freqüentou o ateliê de Fernand Léger (1950-1952). Em 1954 realiza
o primeiro rompimento com a tradição das artes plásticas. Neste momento, produz uma
série de quadros (Modulares e os Contra-Relevos), na traição da abstração geométrica, em
que a moldura é fagocitada para dentro do quadro, deixando de ser limite para tornar-se
parte integrante da obra. Trata-se de um primeiro passo para fora das fronteiras do objeto.
Outra inovação deste mesmo período, foi a percepção da linha como articulação que teria a
missão de reunir e não de separar dois elementos que a compõe. A partir de agora a linha
passa a ter o valor de eixo, de estrutura orgânica construtiva. Essas inovações alteraram a
natureza do quadro e o sentido do quadro.
Em 1959, participa da formação do Movimento Neoconcreto, juntamente com outros
artistas como, Ligia Pape, Amílcar de Castro, Ferreira Gullar, entre outros. Em
“O
Manifesto Neoconcreto”, publicado pelo Jornal do Brasil do Rio de Janeiro, apresentam as
proposições do movimento Neoconcreto:
“O neoconcreto, nascido da necessidade de exprimir a complexa realidade do homem
moderno dentro da linguagem estrutural da nova plástica, nega a validez das atitudes
cientificistas e positivistas em arte e repõe o problema da expressão incorporando as novas
dimensões ‘verbais” criadas pela arte não figurativa construtiva. O racionalismo rouba a arte
toda a autonomia e substitui as qualidades intransferíveis da obra de arte por noções da
objetividade cientifica assim os conceitos de forma, espaço, tempo, estrutura - que na
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linguagem das artes estão ligadas a uma significação existencial, emotiva, afetiva - são
confundidos com a aplicação teórica que deles faz a ciência. Na verdade, em nome de
preconceitos que hoje a filosofia denuncia (M. Merleau-Ponty, E. Cassirer, S. Langer)- e que
ruem em todos os campos, a começar pela biologia moderna que supera o mecanismo
pavloviano- os concretos – racionalistas ainda vêem o homem entre máquinas e procuram
limitar a arte a expressão dessa realidade teórica.
Não concebemos a obra de arte nem como “máquina” nem como “objeto”, mas como um
quase-corpu, isto e, um ser cuja realidade não se esgota nas relações exteriores de seus
elementos um ser que, decomponível em partes pela análise, só se da plenamente a abordagem
direta fenomenológica. Acreditamos que a obra de arte supera o mecanicismo material sobre o
qual repousa, não por alguma virtude extraterrena, supera-o por transcender essas relações
mecânicas que a Gestalt objetiva e por criar para si uma significação tácita (Merleau-Ponty)
que emerge nela pela primeira vez. Se tivéssemos que buscar um símile para a obra de arte
não poderíamos encontrar, portanto, nem na máquina nem no objeto tomados objetivamente,
mas, como S. Langer e W. Wleidle, nos organismos vivos. Essa comparação, entretanto, ainda
não bastaria para expressar a realidade especifica do organismo estético.” ( GULLAR,1959).
No período de 1960 a 1964, Lygia dá mais um salto em sua criação, pois seu
trabalho passa a questionar o objeto como obra arte ao ponto em que o objeto deixa de
existir como obra e passa a ser suporte da ação do espectador-autor. O espectador é
transportado do estado passivo de admirador para um estado convidativo de ação e
interação com o objeto. A obra passa a existir no momento da interação entre sujeito e
objeto.
Primeiro cria os Bichos (1960): esculturas articuladas manipuladas pelo público.
Aqui retoma a linha como dobradiça e a obra salta do plano para o tridimensional. Lygia
Clark explica o sentido do Bicho:
“É um organismo vivo, uma obra essencialmente ativa. Uma integração total, existencial,
estabelecida entre ele e nós. Não é possível entre nós e o bicho uma atitude de passividade, nem
de nossa parte nem da dele. O que se produziu foi uma espécie de corpo a corpo entre duas
entidades vivas.” ( CLARK,1960).
Quando o público é convidado a manipulá-los rompe o isolamento tradicional
e inicia um dialogo complexo, o Bicho não faz exatamente o que quer. Suas dobradiças
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acarretam, para cada gesto, todo um jogo de movimentos que lhe dão as qualidades dos
seres orgânicos. Daí seu nome. O surgimento do espectador-ator engaja o trabalho de Lygia
Clark em uma nova etapa. Não há mais objeto, mas manifestação.
Bicho, 1960
Em 1963 surge Caminhando, que se compõe de uma fita de Mobius6 de papel,
que o espectador é convidado a recortar como quiser, Lygia Clark compõe uma
manifestação artística que se resume a um ato puro. Terminado o ato, seu suporte é jogado
fora. Sobre está obra comenta:
“De saída, o Caminhando é apenas uma potencialidade. Você e ele formarão uma realidade
única, total, existencial. Nenhuma separação entre sujeito-objeto. É um corpo-a-corpo, uma
fusão. As diversas respostas nascerão de suas vozes. A relação dualista entre o homem e o Bicho
que caracterizava as experiências precedentes, sucede um novo tipo de fusão. Na obra sendo o
ato de fazer a obra, você e ela tornam-se totalmente indissociáveis. Há um só tipo de duração o
ato. O ato é que produziu o Caminhando. Não há nada antes, nada depois”.(CLARK,1964).
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Uma fita de Möbius é um espaço topológico obtido pela colagem das duas extremidades de uma fita, após
efectuar meia volta numa delas. Deve o seu nome a August Ferdinand Möbius, que a estudou em 1858.
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Caminhando, 1963
Em Caminhando, vê-se parte de um trajeto que culminará na total
desfetichização do objeto como obra. Suas proposições se relacionam com a interação entre
os sujeitos e os objetos, direcionando toda a sua atenção para as possibilidades de criação
de novas percepções sensoriais a partir da relação com os objetos. A partir de agora, investe
toda sua força de trabalho na descoberta de novas formas de expansão do campo percepto
do corpo como porta de entrada para a interferência na cartografia do sensível. Essa
interferência na cartografia do sensível faz surgir forças de criação de novos processos de
subjetivação, de possibilidades de singularização das experiências sensíveis, de produção
de novos sentidos para aquilo que é percebido e pede para ser expresso. Abre-se um
enorme campo de experimentação e criação que salta da relação corpo-objeto e se espalha
por todos os cantos da vida. Clark passa a investir no pólo experimental da arte, em
detrimento do pólo narcísico/mercadológico. Neste momento se questiona: “Mesmo que
essa nova proposição deixe de ser considerada uma obra de arte é preciso levá-la avante
(nova modalidade de arte?)”.(Clark, apud ROLNIK, 1997,p.4).
Com os Objetos Relacionais, sua última obra, Lygia chega o mais perto que
pôde desse ponto. Saquinhos de plástico ou pano, cheios de ar,água, areia ou isopor; tubos
de borracha, canos de papelão, panos, meias, conchas, mel, e outros tantos objetos
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inesperados espalham-se pelo espaço poético que ela criou em um dos quartos de seu
apartamento, ao qual deu o nome de consultório. São os elementos de um ritual de iniciação
que ela desenvolve ao longo de “sessões” regulares com cada receptor que se apresenta.
Mas, a quê somos iniciados nesse seu consultório experimental? À vivência do
desmanchamento de nosso contorno, de nossa imagem corporal, para nos aventurarmos
pela processualidade fervilhante de nosso corpo vibrátil 7sem imagem.
ROLNIK (1997, p.4) explica esta experiência:
“Assim a iniciação que se dava no consultório experimental de Lygia Clark não tinha
rigorosamente nada a ver com uma expressão ou recuperação de si, nem com descoberta de
alguma unidade ou interioridade, em cujos os recônditos se esconderiam fantasias, primordiais
ou não, as quais se traria à consciência. Pelo contrário, é para o corpo-ovo que os objetos
relacionais nos levam e aí que eles se instalam, Esses estranhos objetos criados por Lygia têm o
poder de nos fazer diferir de nós mesmos, em proveito dos eus larvares que germinam em nosso
ventre”
Estas experimentações levaram Clark cada vez mais para uma zona fronteiriça;
marginalizada e incompreendida pelo ambiente artístico de sua época, ela passa a autointitular-se psicoterapeuta; o que também não era muito bem aceito pela ortodoxia “psi”.
Deste modo, Lygia comenta: “É um trabalho fronteira porque não é psicanálise, não é arte.
Então, eu fico na fronteira, completamente sozinha” (CLARK, apud ROLNIK, 1997,p. 4).
E esta é uma das grandes contribuições do trabalho desta artista-terapeuta: nos
colocar na zona de fronteira, na costura das bordas, na linha do desconhecido. E ao nos
depararmos com o desconhecido somos incitados a novas formas de ação, novos
agenciamentos são formados e há a perspectiva de abertura para o novo, para a criação e
produção de novos sentidos e significados, somos desligados de nossa própria mortalhacorpo e estamos na iminência de um novo nascimento.
ROLINK (1997) aponta três aspectos resultantes deste hibridismo arte/clínica
que nos ajudarão a compreender em que medida estas propostas poderão dialogar com uma
terceira fronteira: a educação.
7
Conceito formulado por Rolnik, Suely em 1989. Refere-se ao: “ ‘algo mais’ que acontece em nossa relação
com o mundo, se passa em uma outra dimensão da subjetividade, bastante desativada em nossa sociedade. É
algo que captamos para além a percepção-pois essa só alcança o visível- e quando o captamos, esse algo nos
afeta para além dos sentimentos-pois esse só dizem respeito ao nosso eu.”(ROLNIK,2002,p.369).
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31
Em primeiro lugar nota-se a revitalização do estado de arte na clínica e o estado
de clínica nas artes. Sendo assim, a superação do estado de clínica implica potencialmente
uma revitalização do estado de arte.
Em segundo lugar, tanto na clínica como nas artes vê-se a presença de uma
mesma dimensão ética: “o exercício de um deslocamento do princípio constitutivo das
formas da realidade que predomina em nosso mundo[...] Seu híbrido arte/clínica nos dá a
ver que criar condições para expor-se ao mal-estar provocado pelo trágico e desenvolver
meios para enfrentar suas exigências é a questão ética fundamental que atravessa esses dois
campos” (ROLNIK, 1997,p. 5).
Em terceiro lugar, temos a dimensão política da perspectiva de hibridação, da
prática clínica e da prática artística, como resistência à esterilidade dos territórios
constituídos e pré-determinados de enfretamento da realidade, possibilitando a abertura
para o campo experimental da vida como algo inacabado,incloncluso em processo de
construção e idealização.
Em que lugar convergem as artes, a educação e a clínica? Qual a linha que as
aproxima e as une formando um novo campo de experimentação e problematização da
realidade e da prática educativa?
Na dimensão ética das relações professor –aluno-conhecimento em que se faz
presente a possibilidade de reinvenção da prática educativa, em que podemos experimentar
a o “deslocamento do princípio constitutivo das formas de realidade que predomina em
nosso mundo”, buscando na criação e na inventividade a dimensão política de resistência
frente a “usinagem midiática” e outras formas constitutivas dos processos educativos da
atualidade. Redescobrindo a dimensão sensível e humana da arte de educar, de levar a
conhecer, tomando o corpo e suas potencialidades sensíveis e expressivas como ponto de
partida para a descoberta e reinvenção da prática educativa.
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Considerações sobre o Trabalho Sexual:
Neste capítulo faremos algumas considerações a partir dos estudos sobre
Trabalho Sexual que nos ajudaram a compreender melhor a complexidade desta ocupação e
com isso nos permitiram uma inserção ao trabalho de campo um pouco mais atenta as suas
especificidades.
O campo de estudos sobre trabalho sexual é bastante amplo, por se desdobrar
em diversos temas em que muitos atores desempenham os mais diversos papéis, nas mais
diversas condições e contextos, sob regulamentações distintas em cada parte do mundo.
Não há consenso ao tratar-se deste tema, diversas são as leituras e as interpretações, por
vezes, totalmente divergentes, mas, há um aspecto comum, a luta pelo combate ao
preconceito que recai sobre aquelas/es que optam por esta ocupação.
“O preconceito e a discriminação que cercam o trabalho sexual e quem o exerce podem ser
melhor compreendidos ao analisarmos a estigmatização em relação as trabalhadoras do
sexo. Gaspar (1985) aponta que a estigmatização é baseada numa visão construída, baseada
no tripé mãe/esposa/dona-de-casa. Brukner e Finkielkraut (1981) acrescentam que o estigma
se baseia numa visão que parte da anterior e a complementa, de que o comportamento
dessas mulheres é promíscuo, pois elas não apenas mantém relações com inúmeros homens
como, também , o fazem por dinheiro e, nesse comportamento, atuam de forma permissiva,
dissociando sexo e sentimento amoroso.”( OLIVEIRA et al,2005).
A imagem da prostituta foi construída como aquela que leva a doença moral e
física, que possuí comportamento doentio e necessita ser mantida afastada da família e das
pessoas de bem. A prostituição relaciona-se com a criminalidade e a boemia,
comportamentos que precisam ser regulados para o bem estar social. É considerada um
“fenômeno social fatal e necessário", como o crime, uma resultante de fatores
antropológicos, físicos e sociais. A sua necessidade explica-se pelo derivativo que oferece
às excitações genéricas muito intensas, que sem ela não respeitariam, talvez, nem a
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infância, nem o lar doméstico. Apesar do trabalho sexual ser uma instituição anterior ao
capitalismo, ele assumiu características próprias nesse contexto social, tomando proporções
diferentes, principalmente se for levada em conta a vida nas cidades.
A industrialização e a urbanização reorganizaram o modo de viver, a migração
para os centros urbanos em busca de trabalho, gerou bolsões de pobreza em que as
condições de existência (habitação, alimentação, saúde) são bastante precárias e os recursos
são escassos. Os desdobramentos produzidos pela miséria; a baixa escolaridade, a falta de
oportunidades profissionais e o custo de vida cada vez mais alto, somado ao apelo
constante ao consumo são responsáveis, em grande parte, pela expansão do mercado do
sexo.
O trabalho sexual, como observamos hoje, está relacionado com o
desenvolvimento das sociedades industriais capitalistas, tanto na sua expansão como na
diversificação dos serviços sexuais disponíveis. O sexo é tido como mercadoria disponível
no mercado.
Portanto, ao se encarar a prostituição como um trabalho, descriminalizava-se
essa ocupação.
Gabriela Leite (2004), líder do movimento das profissionais do sexo no Brasil e
fundadora da ONG Davida, sobre a luta pelo reconhecimento da profissão, afirma: “...é a
grande luta pelo pleno exercício de nossos direitos.... poder ser uma profissional
respeitada em todos os cantos...se orgulhar da profissão assumida”
Em 2001, o movimento brasileiro das profissionais do sexo conseguiu o
reconhecimento da ocupação “profissional do sexo”, com sua inscrição na Classificação
Brasileira de Ocupações, por isso, o termo trabalho sexual, em detrimento do termo
prostituição ou similar.
Para Ferreira (2004):
“O movimento de profissionais do sexo busca não só a libertação social, mas também
mostrar que a compreensão desse trabalho não deveria ser permeada por preconceitos e
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34
discriminações. A representação social da prostituição perpassa por várias classificações:
pecaminosa, perniciosa, amoral, mal necessário. Todas essas imagens ou classificações
do trabalho sexual esvaem a possibilidade que a trabalhadora possui de tornar-se um
sujeito social, detentora de direitos e deveres, ou seja, cidadã plena.”
Piscitelli (2005) nos esclarece os diversos olhares que recaem sobre o trabalho
sexual, salienta a importância de considerá-los e analisá-los, conjuntamente, para melhor
compreender esta ocupação e aponta como fundamental a participação das/os
trabalhadoras/es na construção de conhecimentos nesta área, pois aí sim teremos
ferramentas que nos permitem olhar com maior clareza para este campo encoberto por
preconceitos e tabus.
Por um lado a prostituição é vista como “caso extremo do exercício abusivo do
sexo”, neste caso prevalece a visão em que a profissional do sexo é percebida como
“inerente vítima de violência”, como objeto sexual, um ser passivo e carente de poder, “ a
vinculação das mulheres com o sexo é percebida como a raiz de sua opressão e abuso.”
Outro ponto de vista, apresenta “a vinculação das mulheres com o sexo é a fonte de seu
maior poder”, aqui a prostituta é tido como um símbolo de autonomia sexual, “uma ameaça
ao poder patriarcal sobre a sexualidade das mulheres”.
A autora aponta outras abordagens sobre o trabalho sexual:
“Outras, mais cautelosas, pensam no sexo como um terreno de disputa, não como um campo
fixo de posições de gênero e poder. Estas linhas de pensamento reconhecem a existência de
uma ordem sexista, mas consideram que ela não é inteiramente determinante. O sexo é visto
como uma tática cultural que pode tanto desestabilizar o poder masculino como reforçá-lo.
As práticas de prostituição, tais como outra forma de mercantilização e consumo, devem ser
lidas de maneiras mais complexas que apenas uma confirmação da dominação masculina:
em certas circunstâncias, elas podem ser espaços de resistência e de subversão cultural. Por
este motivo, estas linhas consideram que a posição da prostituta não pode ser reduzida à de
um objeto passivo utilizado na prática sexual masculina, mas como um espaço de agência
no qual se faz um uso ativo da ordem sexual existente”.( Piscitelli, 2005).
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As diversas formas de abordar o trabalho sexual, refletem a forma como é
percebida a sexualidade. De um lado o sexo é visto de forma hostil, como fonte de
opressão. No outro lado, como fonte de prazer e poder na vida das mulheres. Podemos
pensar numa terceira forma, o sexo como terreno de disputa, como campo de força8.
No contato com as trabalhadoras pude observar diversas percepções e olhares
sobre a atividade que exercem.
Para algumas, o ingresso nesta ocupação representou a libertação da opressão
doméstica; e estando satisfeitas com sua profissão, esta opção representa a ampliação de
expectativas e concretização de desejos. Para outras, “estar na noite” representa um estado
de opressão, em que não há saída, não há escolha. Para estas a profissão é um estigma a ser
carregado para o resto da vida, um castigo. Outras, ainda, possuem uma perspectiva de
transitoriedade em relação ao trabalho que exercem. Estão “nessa vida” para juntar algum
dinheiro e “sair fora”.
Isso nos aponta que para aprofundarmos a compreensão sobre o trabalho sexual
deve-se cultivar o olhar livre de sentidos reducionistas; neste campo, a diversidade ocupa
lugar de excelência.
A parceria com as trabalhadoras foi fundamental para exercer e exercitar o
olhar livre de sentidos reducionistas. Foi pela voz destas mulheres que passei a
compreender algumas as realidades do trabalho sexual e assim, desenvolver um trabalho
em estreita colaboração com suas idéias:
Acompanhar essas discussões sugere que a inovação presente em algumas linhas do debate
atual reside, sobretudo, em um deslocamento do posicionamento das pessoas que prestam
serviços sexuais. São linhas de produção acadêmica que se desenvolveram trabalhando em
estreita colaboração com as idéias de trabalhadores do sexo, entre os/as quais se dissemina a
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“Campo de força: A noção vem da física e designa o conjunto de valores de força que, numa região do
espaço, dependem só das coordenadas dos pontos pertencentes a esta região e do tempo. Nietzsche trouxe o
conceito para a filosofia para descrever o corpo, tanto biológico, como social e político. Na acepção
nietzchiana, as forças predominantes no campo, num dado momento, são designadas como ativas se
representam uma identificação e expansão da vida e como reativas se representam um empobrecimento e
coartação dos valores vitais”. (Naffa,1988).
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exigência de serem considerados sujeitos de direitos enquanto integrantes de uma categoria
ocupacional. O deslocamento se reflete em perspectivas que, longe de considerar as/os
trabalhadores do sexo vilões/ãs ou vítimas, concedem a eles um lugar de seres dotados de
capacidade de agência.” (PISCITELLI,2005 ).
Este trabalho buscou se desenvolver na esteira destas proposições. Dialogando,
encenando, dançando, convivendo pudemos perceber que não estamos encerradas em uma
única categoria, em um único papel; ora somos vítimas, ora somos vilãs, ora mães, filhas,
irmãs, amigas, parceiras, profissionais, trabalhadoras, e que estamos sempre em cena, em
papéis sociais variados.
É no conflito que os diferentes papéis nos colocam, que
percebemos nossa capacidade de agência, de nossa capacidade de ação e interação.
Esta auto-percepção, o desenvolvimento da identidade do grupo, é a base para possíveis
movimentos em direção a organização da categoria e a valorização da profissão, para que
sejam pensadas e articulas propostas que signifiquem melhorias nas condições de trabalho e
combate ao preconceito.
“Tanto em nível individual ou coletivo a primeira tarefa difícil consiste em chegar a uma
auto percepção realista de suas próprias características, potenciais e limitações, superando
falsas identidades outorgadas de fora, e atravessando as tempestades em que se alternam
excesso e ausência de auto estima. Fundamentalmente isso significa reafirmar a própria
dignidade humana diante da experiência diária de miséria, opressão e devastação cultural”.
(Evers, 1984, p.18 apud Ferreira, 2004).
O reconhecimento das especificidades do trabalho sexual orientaram as
propostas de intervenção no sentido de fortalecer a auto-percepção e a identidade cultural
do grupo, a circulação de informações e produção coletiva de conhecimento.
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Intervenções.
“É possível a certas almas sentir uma dor profunda por a paisagem pintada n’um / abano /
chinês não ter três dimensões”. Pessoa (1982, p. 141).
Em São Carlos algumas boates possuem uma casa ao lado, onde as mulheres
ficam hospedadas enquanto prestam serviços naquele local. Era nessa casa que nos
encontrávamos semanalmente para as conversas e intervenções. Um aspecto destes
encontros foi a convivência e imersão no cotidiano da casa visitada. Neste caso, não havia
nenhuma proposta de atividade; apenas, a experiência do cotidiano da casa. Passávamos as
tardes conversando sobre os mais diversos assuntos, passando pelos “casos” da casa,
cuidados com a saúde, família, amores, temores, expectativas e histórias. Nessas
experiências pude acompanhar o ritual de preparação para a “batalha”: esfoliação,
hidratação, escova, chapinha, jantar, maquiagem, cada traço, cuidadosamente, delineando,
contornando: boca e olhos. Meias, botas, lingeries, saias e tops, adereços. Pouco a pouco
vai se corporificando a outra identidade, o outro nome toma forma e, então, estão prontas
para entrar em cena mais uma vez. Algumas fazem shows, outras fazem cena, uma me
disse que quem finge melhor termina mais rápido, a outra disse que às vezes nem é
fingimento, é de verdade.
Aproveitei estas oportunidades para gerar discussão e análise de temas
relevantes que permeiam o cotidiano da mulher profissional do sexo. Entre os temas
destacam-se: direitos humanos, principalmente, educação e saúde; maternidade, condições
de trabalho, cuidados com a saúde e beleza, auto-imagem, relações com os homens:
clientes e parceiros, relação com a família, migração, nova identidade, religiosidade.
As intervenções objetivavam a vivência de experiência artística-terapeuticaeducativa, no sentido de proporcionar-lhes um estado de criação e crítica.
A partir da observação de obras de artistas plásticos, como: Toulouse Lautrec,
Hopper, Rodin, Van Gogh, Schiele, Gauguin, Klimt, Picasso, iniciávamos algumas das
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intervenções. Nestas obras estão representadas mulheres e em muitas destas representações,
a mulher prostituta.
Também foram apresentadas imagens arqueológicas de templos hindus em que as
posições do ato sexual são esculpidas nas paredes e de Deusas-Prostitutas presentes em
algumas culturas da Antiguidade (ROBERTS, 1998).
Após a observação das imagens, foi pedido que escolhessem algumas, as que
mais lhes chamavam a atenção e contassem o que imaginavam que estava acontecendo
naquela gravura. O ouvir atento permitia perceber os temas a serem trabalhados. Essas
histórias nos davam elementos para criar pequenas dramatizações e experimentações, em
que elas podiam representar diversos papéis e criar sua própria fala, seu modo de agir
frente aquela situação. Corporificavam o conflito imaginado e criavam coletivamente
possibilidades de ação frente a situação montada. Conversávamos sobre o que tinha sido
vivenciado, destacam-se, em seus relatos, expressões de alteração de sensações corporais,
como: “parece que tirei um peso das costas”, “saiu o nó do peito”, “as pernas estão mais
leves”. Outras observações também são interessantes serem notadas, “nem vi o tempo
passar”. Essas falas nos apontam para uma percepção alterada do corpo e do tempo, que
foram criadas coletivamente e que modificaram a realidade daqueles instantes, dando-lhe
potência de criação e expressão.
Outro modo de trabalhar com as imagens foi a expressão corporal e gestual,
sem o recurso da fala. Apresentava-lhes novas imagens, pedia-lhes que escolhessem, que
imaginassem o que estava acontecendo e o que aconteceria depois. Expressavam
gestualmente, dando continuidade ao movimento que estava registrado na gravura.
Enquanto uma executava o movimento as outras assistiam, depois repetiram o movimento
de cada uma e começaram a encaixar os gestos e as “estátuas” formando um corpo
coletivo. Fizemos várias experimentações partindo do movimento de cada uma. Para uma
delas a experiência teve um sentido de acolhimento, “parecia que vocês tinham me pegado
no colo”.
Uma das vezes, ao chegar na casa encontrei uma das mulheres bastante agitada,
sentia calafrios, estava passando mal desde a noite anterior. Pedi que tomasse um banho,
deitei-a em uma cama e coloquei sobre seu corpo objetos que estavam à mão, cobertores,
travesseiros, lençóis que utilizei para enrolar braços e pernas, bolsa de água quente, pedras,
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que tinha levado pensando em uma prática. Massageei partes de seu corpo e induzi a
respiração para um estado mais profundo. Gradativamente seu corpo foi aquecendo, ela foi
se acalmando, o medo foi diminuindo, mas, ainda sentia o coração disparado. Pedi, então,
que desenrolasse cuidadosamente seus braços e pernas e que os apalpasse.
Nem sempre consegui a adesão das mulheres para as atividades, por vezes estavam
muito cansadas e preferiam conversar, outras vezes não encontrava ninguém na casa, a
cada encontro era uma surpresa, pois não sabia ao certo o que aconteceria.
A migração e o deslocamento são características marcantes do trabalho sexual.
As mulheres, dificilmente, prestam serviços em suas cidades de origem, migram para
outras localidades para assumirem sua nova identidade profissional, buscarem melhores
condições de trabalho e/ou protegerem a si e seus familiares do preconceito que muitas
vezes cerca esse trabalho.
Essa característica, o deslocamento constante, imprime um modo de viver
específico. Desse modo, as intervenções também apresentaram uma dinâmica específica.
Cada encontro tem de ter um objetivo e atividades possíveis de serem contemplados em um
único encontro, pois não é possível prever se as mesmas mulheres estarão em um novo
encontro. É necessário que a ação seja intensa e múltipla em significados, seja pela via da
convivência, seja na prática artística. Torna-se inviável a realização de um trabalho
contínuo com planejamento fechado, uma vez que, a cada encontro nos deparamos com
novas mulheres e com a ausência de outras que já migraram para outros locais em busca de
lugares melhores para o trabalho.
O trabalho sexual é um tema bastante amplo e complexo, um desafio para quem
busca compreendê-lo. E, um desafio ainda maior para quem o exerce, devido a
estigmatização que recai sobre ele.
A partir das experiências aqui tratadas, pode-se recomendar que na elaboração
de políticas e práticas educativas de saúde junto às trabalhadoras do sexo deva
compreender, fundamentalmente, dois aspectos, que a nosso ver são centrais: acesso à
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informação, que lhes permita dispor de recursos legais para assegurar seus direitos e o
trabalho de valorização da profissão, que aumente a auto-estima e desenvolva a identidade
do grupo, gerando a busca por melhorias na qualidade de vida e que alimente o desejo de
organização e de luta coletiva pelo exercício digno de sua profissão.
Este trabalho teve um caráter experimental de integrar áreas de conhecimentos e
propor práticas que resultassem em alternativas de re-significação do trabalho sexual para
algumas mulheres que fazem desta sua ocupação. Ao discutirem a história do trabalho
sexual em diferentes épocas e culturas, ao experimentarem o corpo em situações diferentes
as que operam cotidianamente e ao darem corporeidade as imagens, estas mulheres
puderam redimensionar suas subjetividades, produziram novos sentidos para sua
experiência cotidiana.
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Palavras Finais:
Vivemos um tempo de intensas transformações, de crises e questionamentos em
vários campos. Sabemos que precisamos reinventar nossa forma de viver, pois, o planeta já
apresenta indícios claros de saturação. Nossa saúde física e mental estão por um fio,
tememos a violência, as catástrofes, o desemprego, a solidão, o futuro. Vivemos sob a égide
do temor, da mercantilização da existência e da usinagem midiática.
Não se trata de abandonar a civilização, mesmo porque é inviável, a menos que
optássemos pela loucura, o que não é uma questão de opção. Nem tão pouco estabelecer
palavras de ordem estereotipadas, reducionistas, ou ainda de fazer funcionar uma ideologia
unívoca, mas sim, de recompor a práxis humana nos mais variados níveis. Em todas as
escalas individuais e coletivas, naquilo que concerne tanto á vida cotidiana quanto a
reinvenção da democracia – no registro do urbanismo, da criação artística, da educação, da
saúde, etc. – trata-se, de se debruçar sobre o que poderiam ser os “dispositivos de produção
de subjetividade”, indo no sentido de uma re-singularização individual e/ou coletiva, ao
invés de ir no sentido de uma usinagem pela mídia e da homogeneização, sinônimos de
desolação e desespero.
É neste sentido que a experimentação de novas práticas educativas que
propiciem a redescoberta do corpo, dos sentidos e da criatividade, que participem da resingularização individual e/ou coletiva, apontando para novas recomposições da práxis
humana , são bem vindas no momento.
Neste tipo de prática educativa valoriza-se o diálogo e a troca de saberes entre
“educadores” e “educandos”, entre sujeitos dialógicos. A educação é vista como produção
coletiva de conhecimento, como experiência comunitária, como interação entre sujeitos que
respeitando sua diversidade cultural e os saberes trazidos de suas experiências, criam
campos de aprendizagem, de identidade e de produção de conhecimento, apropriando-se
dos conhecimentos produzidos pela humanidade e dão-lhes novos significados. Não há
hierarquização de conhecimentos, nem de papéis; não há a imposição de um discurso sobre
o outro. Essa perspectiva de educação, além do respeito ao discurso do outro e à
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possibilidade de aprendizagem com o outro, possibilita que tomemos outras formas de
conhecimento, diferentes do saber cientifico, o saber dominante como formas de
aprendizagem e produção de conhecimentos. Abre-se a possibilidade de diálogo entre
campos de conhecimento.Dessa forma busca-se relacionar os saberes trazidos pelos alunos,
com os saberes sensíveis, corporais e artísticos, e os saberes científicos.
Por tratar-se do campo, por excelência, da criação e da produção de sentidos e
significados, as Artes e suas possíveis práticas educativas-artísticas, podem apontar para
experiências de re-significação da práxis humana.
Em que lugar convergem às artes, a educação e a clínica? Qual a linha que as
aproxima e as une formando um novo campo de experimentação e problematização da
realidade e da prática educativa?
Na dimensão ética das relações professor –aluno-conhecimento em que se faz
presente a possibilidade de reinvenção da prática educativa, em que podemos experimentar
o deslocamento do princípio constitutivo das formas de realidade que predomina em nosso
mundo, buscando na criação e na inventividade a dimensão política de resistência frente a
“usinagem midiática” e outras formas constitutivas dos processos educativos da atualidade.
Redescobrindo a dimensão sensível e humana da arte de educar, de levar a conhecer,
tomando o corpo e suas potencialidades sensíveis e expressivas como ponto de partida para
a descoberta e reinvenção da prática educativa.
A parceria com as trabalhadoras foi fundamental para exercer e exercitar o olhar
livre de sentidos reducionistas. Foi pela voz destas mulheres que passei a compreender
algumas as realidades do trabalho sexual e assim, desenvolver um trabalho em estreita
colaboração com suas idéias.O reconhecimento das especificidades do trabalho sexual
orientaram as propostas de intervenção no sentido de fortalecer a auto-percepção e a
identidade cultural do grupo, a circulação de informações e produção coletiva de
conhecimento.
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O trabalho sexual é um tema bastante amplo e complexo, um desafio para quem
busca compreendê-lo. E, um desafio ainda maior para quem o exerce, devido a
estigmatização que recai sobre ele.
A partir das experiências aqui tratadas, pode-se recomendar que na elaboração
de políticas e práticas educativas de saúde junto às trabalhadoras do sexo deva
compreender, fundamentalmente, dois aspectos, que a nosso ver são centrais: acesso à
informação, que lhes permita dispor de recursos legais para assegurar seus direitos e o
trabalho de valorização da profissão, que aumente a auto-estima e desenvolva a identidade
do grupo, gerando a busca por melhorias na qualidade de vida e que alimente o desejo de
organização e de luta coletiva pelo exercício digno de sua profissão.
Este trabalho teve um caráter experimental de integrar áreas de conhecimentos e
propor práticas que resultassem em alternativas de re-significação do trabalho sexual para
algumas mulheres que fazem desta sua ocupação. Ao discutirem a história do trabalho
sexual em diferentes épocas e culturas, ao experimentarem o corpo em situações diferentes
as que operam cotidianamente e ao darem corporeidade as imagens, estas mulheres
puderam redimensionar suas subjetividades, produziram novos sentidos para sua
experiência cotidiana.
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