RELATÓRIO FINAL
TOCATA ABERTA:
Um espaço experimental musical afetivo
José Luiz Kinceler1,
Leonardo Lima da Silva2
Palavras-chave: Tocata Aberta, música, dispositivo artístico, processos colaborativos.
O presente artigo tem como matriz a Tocata Aberta como uma forma de experiência musical e afetiva,
que desde 2008, atua como um dispositivo artístico1 capaz de viabilizar processos criativos que
possibilitassem a produção de subjetividades entre os envolvidos. Cabe aqui ressaltar o caráter pósdisciplinar que a Tocata Aberta se desenvolve, pois raramente se configurou como uma prática
autônoma em música, mas como um dos dispositivos/saberes a serem compartilhados e vivenciados
em situações de convívio, no campo da arte colaborativa. A música antes de ser vista, organizada e
analisada é em essência um movimento contínuo que produz relações afetivas. “A arte como
prolongação de um puro estar no mundo”, como bem sugere Laddaga, nos indica que a formação de
uma cultura de arte é também um estado dinâmico que se forma quando ideias vão sendo vivenciadas
e compartilhadas em determinado contexto, capazes de cristalizar e iluminar outras práticas e
possibilidades de vivenciar o cotidiano.
Breve histórico das tocatas abertas
Os encontros proporcionados pela Tocata nos últimos cinco anos, podem ser descritos como um
modelo experimental de como a música pode ser ativada em espaços não convencionais possibilitando
troca de saberes e afetos entre os envolvidos. Em contato com outras linguagens, outros projetos e
acima de tudo, com outras pessoas, contribuíram para esta ideia que só é possível em multiplicidade.
A Tocata Aberta Saber, enquanto projeto, teve inicio no ano de 2008 como desejo articulado entre
Francis Pedemonte e Aline Volkmer, na época graduandos do curso de Artes Visuais e pesquisadores
do projeto “Vinho Saber – Arte Relacional em sua forma Complexa”.Foram vivenciados naquela
época a confecção de instrumentos em cerâmica como primeiro passo do projeto, visto que a ideia era
disponibilizar os instrumentos confeccionados para a realização de um encontro musical com os
participantes da oficina, músicos e que possibilitasse a participação do público. Para situar essa
primeira experiência da Tocata há dois trechos, escritos por Francis e Aline os quais, sucessivamente,
nos oferecem alguns pontos de partida.
[1] A intenção é fazer como que todos os presentes se permitam manter uma
relação sincera com a música, sem medo de se expressar. Tocar algum
instrumento musical é como falar sem palavras. Não é preciso saber ler ou
escrever partitura para entender a linguagem sonora, pois estamos
constantemente associando imagens, sons, aromas, sabores, e texturas em
nosso cotidiano. Trata-se de propor um estreitamento entre a música e as
pessoas. Quão fértil pode ser uma “relação musical” quando ela se estende
para fora deste encontro? Quão inusitados e originais podem ser os
improvisos?2
[2] A ideia era de criar um espaço móvel, uma descontinuidade temporal
com o outro, onde pessoas pudessem se encontrar e experimentar a música
com instrumentos diferentes, instrumentos sem regra, e fazer da Tocata uma
1
José Luiz Kinceler, Professor do Departamento de Artes Visuais, CEART – [email protected].
Leonardo Lima da Silva, acadêmico em última fase do curso de Licenciatura em Artes Visuais, CEART,
bolsista de iniciação científica PROBIC/UDESC.
2
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música coletiva sem partitura, improvisada. Que este espaço ao mesmo
tempo em que causasse certo incomodo por estar fora do lugar, pudesse ser
incorporado e se tornar uma espécie de dimensão alternada de tempo e
espaço do lugar que ocupasse. Um lugar que poderia existir em cada um que
compartilha da experiência de estar ali.3
O interesse naquele momento da pesquisa Tocata Aberta Saber era o de experimentar um método que
envolvia referentes de outros campos de saber, com a realização de uma oficina para a confecção de
instrumentos em cerâmica, projeções com videoarte durante as Tocatas e o compartilhamento do
próprio fazer musical. Para desenvolver esta noção, tínhamos como táctica criar um ambiente
marcado pelo convívio intensificado, onde o participante das oficinas e encontros da Tocata pudessem
vivenciar descontinuidades em suas subjetividades. Os locais onde foram realizadas estas primeiras
Tocatas tinham características muito distintas e estabeleciam grande parte do grau de participação do
público, pois não se pretendia formar audiência em uma Tocata e sim integrar todos a um mesmo
propósito, o de fazer música no território da colaboração.
A compreensão do espaço da Tocata como um lugar praticado4 que de acordo com CERTEAU
(1996), o local é entendido como uma ordem estabilizada e passa a constituir um espaço ao ser
permeado por fluxos e deslocamentos de um coletivo que resignificam e atualizam constantemente. O
dispositivo que transforma o espaço em lugar é efêmero, mas adquire tal condição justamente por uma
vivência temporal do indivíduo em determinado lugar, segundo o autor. As constantes passagens de
lugar para lugar-praticado, é que permite estabelecer relações mais afetivas.
É necessário colocar também que não havia grande divulgação para as Tocatas e os convites eram
sobretudo pessoais, tanto pelos proponentes e pelo os que já participaram e em decorrer deste
processo, houve a formação de um grupo que passou a acompanhar com frequência os encontros. No
entanto, não havia o interesse em formar um grupo fechado, pois o que movia as Tocatas era a
diferença, a constante variação dos espaços de encontro e a alternância de participantes. Foram
realizadas em espaços abertos, fechados tanto públicos quanto privados, e raramente em locais
específicos para uma apresentação tradicional de música. Houveram Tocatas com cinco e até
cinquenta pessoas, mas o método em todos os casos era similar, um ou mais participantes iniciavam
um motivo rítmico ou melódico e os demais improvisam uma resposta e todas essas respostas
compunham camadas rítmicas e melódicas, onde toda a vibração do ambiente sonoro se fazia entre
encontros e desencontros. Até que em um determinado ponto, todos parecem estar imersos em uma
atmosfera sonora rica. O mais importante do que “falar” em uma Tocata é ouvir o outro, fazer uma
leitura imediata do que ele diz musicalmente, para assim poder tecer uma consonância entre sons.5
A proposta da Tocata apesar de simples em sua ideia, na prática assume uma complexidade única, pois
depende do envolvimento de cada um. Este envolvimento se traduz em termos de uma disposição em
estabelecer um diálogo pela música do que alguma habilidade técnica em executar este ou outro
instrumento. Os diferentes tipos de instrumento utilizados também influenciam em muito o tipo de
interação durante as Tocatas, na maioria dos casos, formações com maior número de instrumentos
percussivos, com poucos melódicos, permitiam uma melhor comunicação entre as pessoas. Outros
instrumentos elétricos ou bateria, tendem a assumir o protagonismo da Tocata, não permitindo que
outras vozes coexistam. Um questão importante é que não há distinção entre o músico profissional e o
amador em uma Tocata, pois não foram poucas às vezes em que as tentativas de organizar o som de
maneira específica por algum músico profissional resultou negativo, no sentido de intimidar outros
participantes que não dominavam algumas convenções musicais e conferir um gênero específico para
algo que era livre de convenções rigorosas. Proporcionar um estado de experimentação, de ensaio
livre, onde mesmo quem nunca tocou um instrumento antes, possa criar relações e se comunicar pelo
som, sempre foi e ainda é um ponto fundamental durante as Tocatas.
Colocar a prática da Tocata como um encontro musical é um desafio se tomarmos como ponto de
referencia noções tradicionais de apresentação, recital ou mesmo ensaio musical. Por estes e tantos
motivos as tocatas abertas sempre soam diferentes um da outra. Antes de considerar o processo
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musical que envolve as Tocatas Abertas, podemos situar primeiro como uma forma de encontro, um
espaço para troca de saberes em processos criativos compartilhados em arte.
Noções sobre o encontro como forma relacional
O deslizamento da prática artística em direção ao encontro, a convivência e a colaboração é um
processo em que a noção de ato criativo6, encontra outros limites e não se traduz somente como um ato
que procure “dar conta” de uma forma para espaços pré-concebidos, ou mesmo afirmar-se enquanto
forma específica [a obra de arte] como bem observou o teórico e curador francês Nicholas Bourriaud.
Segundo o pensamento do autor, a forma não se apresenta mais como uma unidade coerente,
autônoma e completa, logo a obra de arte não detém o monopólio da forma, ela é apenas um
subconjunto na totalidade das formas existentes7. Em recente entrevista, BOURRIAUD (2006)
sintetiza suas intenções de seu livro Estética Relacional (1996) e nos coloca da seguinte maneira:
[...] eu tentei dizer que as origens do sentido [de um forma artística] é dupla
e se constrói entre o artista e o observador [...] A convivência em contexto
participativo é o que produz o sentido, não uma criação pura, como se o
artista chegasse e dissesse “este é o significado da obra de arte, como se
fosse um deus”8.
O encontro, a convivência e o seu agenciamento contínuo, é o que permite que este tempo de criação
seja estendido, duradouro, e passe a atuar como um modelo de mundo viável. De fato, a pesquisa da
Tocata, quando teve início em meados de 2008, compartilhava em vários aspectos a ideia de encontro
descrita por BOURRIAUD (2006), em que ele sugeria que esta forma relacional, é esboçada somente a
partir do estar juntos, quase indispensável nas práticas artísticas que almejam tocar outros limites para
ampliar as possibilidades de habitar o mundo cotidiano sob práticas micropolíticas.
Pierre Huyghe é um dos artistas que BOURRIAUD (2006) utiliza-se para formar o seu corpo teórico.
Ele nos propõe uma leitura interessante, onde coloca que o grande desafio para o artista é criar um
mundo, mas qual seria essa metáfora para o mundo? Certamente não é aquele do artista moderno onde
o sentido de seu fazer estava a par de sua obra e no seu potencial de exibição e afirmação, em tom de
contestação e enfrentamento de uma tradução ou comportamento. A maioria das propostas de Huyghe,
que envolvem criação de roteiros, audiovisuais e fotografia, partem da criação de uma ficção que ao
ser vivenciada é capaz de produzir outras realidades, da forma que nos diz:
Não estou interessado em filmar a realidade como foi dada e não estou
interessado em construir ficção, estou interessado em montar uma realidade,
em produzir uma realidade e só então documentar essa realidade. Eu fiz,
por exemplo, uma celebração em uma pequena cidade próxima a Nova
Iorque, é uma cidade em construção. Eu procurei o que todas essas pessoas
tinham em comum e achei algo muito básico que é a ligação à natureza deste
lugar, e nessa base muito, muito simples eu invento um roteiro [...] O que
você vê na segunda parte do filme é a comemoração em si, eles comemoram
aquilo. Eu organizo a celebração inteira do desfile, ao concerto, à comida, ao
prefeito, ao discurso, às crianças brincando, tudo. De certa forma é um
roteiro, é uma receita, é uma trilha sonora, essa trilha pode ser tocada
novamente ano que vem, na mesma época, 11 de Outubro, você
simplesmente pega essa partitura e lê: desfile, desempacotar, desdobrar [...]9
O essencial não é produzir uma ficção em si, mas uma realidade que possa ser vivenciada a partir de
uma ficção, um evento performático que toque o real cotidiano das pessoas. Um processo que se faz
em tempo estendido. Passível de ser reproduzido sem precisar da presença do artista como mito ou
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detentor único do saber, mas que possibilite o agenciamento e o contato das próprias pessoas do local
a criarem suas próprias mitologias. O envolvimento, agenciamento e celebração deste dia, no caso
deste trabalho de Huyghe chamado Streamside Day, é um pretexto para aproximar as pessoas e
fortalecer suas relações entre elas mesmas, com o local de sua residência e com a natureza. Assim, de
acordo com BOURRIAUD:
A essência da pratica artística residiria, assim, na invenção de relações entre
sujeitos; cada obra de arte particular seria a proposta de habitar um mundo
em comum, enquanto o trabalho de cada artista comporia um feixe de
relações com o mundo, que geraria outras relações, e assim por diante, até o
infinito10.
Partindo dessas considerações, é possível compreender a Tocata, não no sentido estável de uma obra
de arte, mas como processo contínuo de um estado de arte, de confluência de desejos múltiplos, capaz
de produzirem realidades a serem habitadas por sons. Compreendendo que o processo criativo ocorre
em tempo estendido e não como uma aparição , em que na sua repetição de um encontro encontrem
sua diferença. As noções de dispositivo para Deleuze, presentes na filosofia de Foucault, e
principalmente, a leitura do dispositivo artístico por Brian Holmes parecem oferecer alguns subsídios
para podermos compreender agenciamentos como este no campo da arte, a nível de complexidade de
enunciados e formas compartilhadas, que instauram zonas experimentais dialógicas.
Na linha que Deleuze nos propõe a pensar, podemos imaginar o dispositivo com um grande mapa nãolinear, onde percorrem linhas de natureza distintas, heterogêneas, que se aproximam e se afastam e
traçam processos sempre em desequilíbrio e em constante fluxo, onde cada dispositivo tem seu regime
de luz, uma maneira como cai a luz, se esbate e se propaga, distribuindo o visível e o invisível,
fazendo com que nasça ou desapareça o objeto que sem ela não existe11. Linhas de luz, de enunciação,
de subjetivação que se entrecruzam, bifurcam, cobrem e combinam e eventualmente se quebram, pois
não possuem contornos nem coordenadas definidas. A movimentação do regime de luz é constante
pois comporta três instâncias maiores também em constante atualização, analisadas por Foucault,
Saber, Poder e Subjetividade12, que por sua vez possuem em sua complexidade seus próprios
dispositivos que em suas múltiplas linhas se interconectam. Desta forma podemos compreender que a
transição de um regime de luz para outro, é algo que ativa a criação de outras linhas bem como
esmaece outras, afetando a cadeia de relações entre dispositivos. E esta necessidade de criação ou
reformulação de outras linhas de força, é uma ocasião onde o campo da arte responde de maneira
intensa, é nesta ocasião que o dispositivo artístico parece apresentar com intensidade a presença de
linhas de subjetivação13.
E como podemos constatar é cada vez mais raro ativar relações, ainda mais cultivá-las, em um modelo
de sociedade onde parece ser consenso que toda manifestação musical é intermediada por outras
intenções que produzem a forma espetáculo para fins lucrativos, que é justificável em parte por
questões que incluem a própria sustentabilidade do músico para desenvolver sua atividade. O palco,
nesta leitura, parece ser o último passo do processo de uma composição, que coloca em teste a
música/produto frente uma audiência, como a galeria, no caso da pintura ou escultura. Ambos espaços
supõem um público disposto a pagar pela forma final do produto no momento de sua exibição. Com
bem nos orienta Holmes nesta passagem:
La exposición es el momento en que el proyecto artístico se valoriza en
nuestra sociedad; por tanto, se trata del momento en que las condiciones
económicas de su producción vienen a influir sobre su mismo proceso,
conjuntamente con las ideologías subyacentes que enmascaran tales
condiciones. Y ello sucede hasta tal punto que sería ingenuo hablar del
dispositivo artístico sin hacerlo también de sus modalidades expositivas.14
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Mas seria essa a única maneira de tocar ou ouvir música? Como produto embalado e destinado ao
consumo? Ou para tomar outra questão sugerida por Barthes (ano), qual é o propósito em compor se é
para confinar o produto dentro do recinto do concerto ou na solidão de ouvir o rádio?15
Sobre o desejo de fazer música juntos
O pensamento em arte que nos leva ao caminho do estar juntos, para assim ativar processos criativos é
um processo complexo e desafiador, se considerarmos o campo da arte como um dos principais
produtores e veiculadores da ideia de obra de arte, do gênio, do criador, que ao longo dos últimos
séculos foi decisivo na manutenção da diferença, como se somente o artista fosse digno de ser criativo.
Esta divisão foi decisiva para a construção de um público específico que correspondesse aos interesses
políticos, sociais e comerciais do sistema da arte.
Numa perspectiva histórica recente, John Cage (1912 – 1992) foi dos compositores e artistas que mais
contribuíram para pensar o som e a música para além de territórios já estabilizados. Esboçou teorias
que desafiaram as concepções tradicionais de criação e autoria musical, influenciando outros artistas,
muitos dos quais viriam compor o grupo multimídia Fluxus, que incorporaram em seus happenings as
ideias de Cage sobre o som e objetos sonoros. George Maciunas, foi um deles e nos coloca com
clareza: Já não se trata de as pessoas serem conduzidas por alguém que assume a responsabilidade. É
como diz McLuhan: uma situação tribal. Precisamos de ajuda para fazer (colheita, arte) o que tem de
ser feito16.
Outro crítico e escritor, Roland Barthes (1915-1980) ao dissertar sobre música nos coloca que sempre
pensou que existiam dois tipos de música aquela que se ouve, e a que se toca. Segundo o autor
primeiramente houve o ator de música seguido pelo grande intérprete, do período romântico e por
último o técnico, que livra o ouvinte de toda a atividade e esmaece a noção do fazer música. A
atividade musical torna-se neste caso um fazer específico nas mãos de músicos, como os únicos aptos
a dominar esta linguagem. O desejo de fazer música é quase que instintivo ao ser humano e não pode
ser compreendido somente em um circuito teórico e prático em torno de obras musicais, como bem
nos esclarece SMALL17:
Creo que la música no es cosa sino actividad, es algo que hace la gente. La
cosa aparente llamada música desaparece en el momento que uno la mira un
poco más cuidadosamente. Entonces, hacer la pregunta '¿qué es la música?'
es hacer una pregunta que no tiene ningúna respuesta posible.Los eruditos de
la música occidental, por lo menos, parecen haber intuido que las cosas son
Los eruditos de la música occidental, por lo menos, parecen haber intuido
que las cosas son así, pero en lugar de dirigir su atención sobre la actividad
que es la música, han mantenido un proceso de elisión mediante el cual la
palabra 'música' se identifica con 'obras de música',así que la pregunta '¿cuál
es el significado de la música?' se transforma en '¿cuál es El significado de
esta obra, o estas obras, de música?', la cual es mucho más manejable,
aunque no es la misma pregunta. 18
No ínicio do cápitulo Duas cenas da Linguagem19 LADDAGA utiliza a passagem de uma entrevista
com WU MING 420. A passagem é sobre um livro, The Songlines21 que segundo LADDAGA conta
sobre as viagens do autor, Bruce Chatwin, em busca de um certo conhecimento acerca da concepção
aborígine da relação entre canção e mundo22. No livro, segundo testemunho relato dos aborígenes,
acreditava-se que os ancestrais ao viajar pelo país difundiam nas linhas de suas pegadas um rastro de
palavras e notas musicais e que a canção era mais que meio de comunicação, era um artefato de
produção direta da sociedade. Seguindo este viés, LADDAGA, faz ligação com os jogos de canções,
realizados nos banquetes da Grécia Antiga, onde o momento central do banquete era o momento em
que se improvisavam canções, em que cada brinde era um convite a uma resposta, que continuassem,
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desafiassem ou mesmo mudassem para outra canção. (...) Las enunciações musicais estaban
inmediatamente vinculadas alas discusiones éticas, y estas al juicio religioso o político (...) e servián
a propósito de reforzar la “soliedaridad de los hombres que participaban em ellas”.23
Se insistirmos em ter de um lado o ouvinte na função passiva e do outro o músico como produtor,
temos uma visão de uma perspectiva estritamente consumista e espetacularizada como nos alertou
HOLMES, ao referir-se a exposição como o momento de valorização de um projeto artístico. Apesar
de ser impossível ignorarmos essa condição e tendência mercadológica, é observável que estas funções
definidas estão com suas fronteiras cada vez mais diluídas e em estado de carência para reformulação.
Ouvir e fazer música hoje são atividades cada vez mais amplas e complexas tanto em sua produção
quanto recepção. Em parte, estas mudanças estão relacionadas às inovações tecnológicas que
proporcionaram outras maneiras de ouvir e fazer música, graças a possibilidade de gravação e
reprodução de áudio. O registro de uma performance musical é algo extremamente recente na história
da música e permitiu difusão de músicas produzidas em diversas culturas, bem como possibilitou o seu
estudo, visto que parte do aprendizado em música se faz, ouvindo, assim como se aprende a escrever,
em boa parte, lendo.
Considerações
Apesar de tantas conquistas no campo da música, mais democráticas e transversais, nos parece que o
formato de apresentação musical ainda conserva a distância cômoda entre o artista e público, relação
que facilmente é reduzida ao entretenimento e ao espetáculo. É evidente que quanto maiores as
ferramentas e conhecimento e experiência no fazer música, maiores serão as possibilidades de
experimentar a linguagem em sua complexidade. No entanto, toda informação necessita de ocasião
para tornar-se conhecimento e neste caso, compartilhar momentos de convívio proporcionados pelas
Tocatas, mostrou-se um terreno fértil para experimentação e prática sonora e artística, capaz de nos
reinventar enquanto sujeitos.
1
http://rsalas.webs.ull.es/rsalas/materiales/lr%20Holmes,%20B.%20El%20dispositivo%20art%C3%ADstico.pdf
acessado em julho de 2013.
2
Trecho por Francis Pedemonte, os grifos são para nossa tradução. acessado em
http://www.ceart.udesc.br/revista_dapesquisa/volume3/numero1/plasticas/francis-kinceler.pdf
3
Trecho por Aline Volkmer acessado em
http://www.ceart.udesc.br/revista_dapesquisa/volume3/numero1/plasticas/aline-kinceler.pdf
4
Segundo Certeau, Um lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de
coexistência... um lugar é portanto uma configuração instantânea de posições. Implica uma indicação de
estabilidade... Existe espaço sempre que se tomam em conta vetores de direção, quantidades de velocidade e a
variável tempo. O espaço é um cruzamento de móveis (p.201-2).
5
Consonância neste caso exemplifica o que vulgarmente na música é usado para descrever dois sons que
parecem se fundir harmoniosamente, ao contrário da dissonância que produz entre dois ou mais sons uma tensão,
estado transitório que pede conclusão ou repouso.
6
Em entrevista transcrita, Deleuze nos alerta: Um criador não é um ser que trabalha pelo prazer. Um criador só
faz aquilo de que tem absoluta necessidade. Essa necessidade — que é uma coisa bastante complexa, caso ela
exista — faz com que um filósofo (aqui pelo menos eu sei do que ele se ocupa) se proponha a inventar, a criar
conceitos, e não a ocupar-se em refletir, mesmo sobre o cinema.
7
[1996: 2]
8
http://www.youtube.com/watch?v=zcDnA9nESVM [tradução livre]
RELATÓRIO FINAL
9
Tradução livre do vídeo [00:10:25].Acessado em: http://www.youtube.com/watch?v=6SiSu4peR6o (14 de
agosto de 2013)
10
BOURRIAUD, [1996:30-31]
11
Deleuze, Gilles. O mistério de Ariana. Ed. Vega – Passagens . Lisboa, 1996.Tradução e prefácio de Edmundo
Cordeiro.[p.01]
12
Os objetos visíveis, os enunciados formuláveis, as forças em exercício, os sujeitos numa determinada posição,
são como que vectores ou tensores. Por isso, as três grandes instâncias que Foucault vai sucessivamente
distinguir, Saber, Poder e Subjectividade, não possuem contornos definidos de uma vez por todas; são antes
cadeias de variáveis que se destacam uma das outras. É por via de uma crise, sempre, que Foucault descobre uma
nova dimensão, uma nova linha. Os grandes pensadores são um tanto sísmicos, não evoluem, procedem por
crises, por choques.
13
Pois também uma linha de subjetivação é um processo, uma produção de subjetividade num dispositivo: ela
está pra se fazer, na medida em que o dispositivo o deixe ou torne possível. È uma linha de fuga. Escapa às
outras linhas, escapa-se-lhes. O <<SiPróprio>>(Soi) não é nem um saber nem um poder. É um processo de
individuação que diz respeito a grupos ou pessoas, que escapa tanto às forças estabelecidas como aos saberes
constituídos: uma espécie de mais-valia. Não é certo que todo dispositivo disponha de um processo semelhante.
14
The Artistic Device. Or, the articulation of collective speech, accesible en y . Traducción castellana de
Marcelo Expósito, revisada por Brian Holmes. Disponível em: www.enmedio.info/el-dispositivo-artistico-o-laarticulacion-de-enunciaciones-colectivas-brian-holmes, acessado em 07 de agosto de 2013.
15
BARTHES, [1977:149]
.
16
CAGE, [1985:29]
17
Autodescrição de Small: No soy musicólogo, ni etnomusicólogo. En primer lugar, no tengo formación
profesional em ninguna de esas disciplinas, y, en segundo lugar, no tengo ganas de limitarme así. Prefiero pensar
en mí solamente como músico que piensa en su arte. El Musicar: Un ritual en el Espacio Social, disponível em:
www.sibetrans.com/trans/a252/el-musicar-un-ritual-en-el-espacio-social
18
Ibid
19
LADDAGA [2006:225]
20
Um dos escritores da Wu Ming Foundation, grupo de escritores italianos que desde 2000 adotaram um
assinatura comum para veicularem seus escritos, que transitam sobre cultura, práticas ativistas, sociais e
artísticas. Site oficial: www.wumingfoundation.com e link traduzido em português:
www.wumingfoundation.com/italiano/portugues_direto.html
21
[...] caminos, senderos, trayectorias del saber informal, “autopistas del conocimiento”, de metáforas que
remiten a otras metáforas, en las que se esconde el saber original que hace falta para orientarse en el desierto. El
propio Chatwin explica: “Comercio significa amistad y cooperación; y para el aborigen el principal objeto del
comercio era la canción. La canción, por lo tanto, trajo la paz. Sin embargo siento que los trazos de la canción no
son necesariamente un fenómeno australiano, sino universal: que eran los medios a través de los cuales un
hombre delimitaba su territorio, y de esa manera organizaba su vida social. Tengo una visión de los trazos de la
canción extendiéndose a través de los continentes y las edades; que cualquier hombre que ha hollado la tierra ha
dejado un rastro de canto (del cual podemos, de vez en cuanto, pescar un eco); y que estos rastros deben
remontarse, en tiempo y en espacio, a un aislado bolsón de la sabana africana, donde el Primer Hombre, abriendo
la boca para desafiar los terrores que le rodeaban, gritó la primera estrofa de la Canción del Mundo: "¡yo soy!"”.
“Nota 1” da entrevista Entrevista con Wu Ming: mitopoiesis y acción política disponível em:
http://www.fundanin.org/wuming1.htm
22
Ibid, (tradução livre).
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23
LADDAGA [2006:227]
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