Maria de Melo é psicóloga, formada pela Universidade de São
Paulo, psicoterapeuta reichiana numa abordagem energéticosistêmica. Tem cerca de trinta artigos publicados, co-autora do
livro “Vida a Dois” (Ed. Siciliano) e autora do livro “A Coragem
de Crescer – sonhos e histórias para novos caminhos” (Ed.
Record).
Mesa: A CLÍNICA NAS REDES SOCIAIS
MARIA DE MELO
Mesmo sem admitir, somos protagonistas dos fatos sociais. Estamos sempre
sustentando e sendo sustentados pelo nosso entorno, próximo e distante. A
percepção profunda (sensação de órgão, na linguagem reichiana) desse fato
impulsiona um agir mais potente na definição de nosso destino, seja como pessoa,
humanidade, filhos do planeta Terra ou seres cósmicos.
A possibilidade desse padrão de consciência capaz de perceber inter-relações,
redes, algo para além de “coisas”, só ocorre a partir de um certo patamar de
desenvolvimento da estrutura emocional humana. Antes disso, ainda ofuscada,
nossa visão não consegue enxergar a essência integradora da vida. Não por acaso,
temos feito opções que colocam em grave risco a vida e o próprio planeta.
A função da psicologia clínica, assim como da ciência em geral, é colocar-se a
serviço da revitalização da vida, corrigindo o desvio da separação e recuperando
nossa base comum como parte de uma identidade maior.
O setting terapêutico se propõe como um campo, um sistema-relação, que oferece
ao paciente condições de se reorganizar numa direção evolutiva, de mais
complexidade, mais vitalidade. Nesse sentido, a clínica pode tornar-se um
importante agente micropolítico ao atuar no indivíduo, o tecido vivo das redes
sociais, para que ele se transforme num agente vitalizador dentro dessas redes,
consciente de sua função de co-construtor de si mesmo e da realidade.
Como psic óloga clínica, psicoterapeuta, passo o dia todo em encontros com
pessoas e grupos no meu consultório. Esse trabalho se insere no que chamamos
de redes sociais? Sim. Na verdade, tudo que fazemos no cotidiano – cada gesto,
cada atitude, cada ação – está dentro dessa rede. Cada gesto é como uma pedra
jogada no lago da vida. Cria um centro de eventos no ponto onde a pedra atinge a
água, e dali parte uma onda que vai se difundindo por todo o lago (universo). Nada
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é isolado; tudo tem conseqüências. Cada ponto, cada ser, constrói ou destrói, tece
a rede da vida, tenhamos ou não consciência disso.
A psicoterapia tece a base da rede social, a estrutura emocional do indivíduo. E
uma boa teia precisa que cada um de seus pontos funcione bem. A psicoterapia
deveria oferecer condições para impulsionar a consciência da pessoa, para a
retomada do processo evolutivo prejudicado, paralisado por marcas entrópicas,
desvitalizadoras, de acontecimentos da história individual. Se despertar a
consciência de si, se esse movimento for genuíno e profundo, a pessoa
necessariamente despertará para o mundo que a cerca; é olhar dentro de si para
enxergar dentro das coisas.
A vida é uma teia de inter-relações dinâmicas e complexas. Uma pedra também
está dentro da rede da vida, mas entre ela e um ser humano há uma diferença
essencial de padrão: a consciência de si e do campo – consciência de si como um
campo de energia dentro de outros campos de energia, sistema dentro de sistemas.
Essa consciência é típica do ser humano. Somos seres energéticos e, portanto,
irradiamos, vibramos. Somos presença energética e, como tal, influenciamos o
campo. Positiva ou negativamente, mas sempre inexoravelmente.
No caminho da maturidade humana, ocorre saltos quânticos de consciência, de
complexidade. Num determinado patamar da escada evolutiva, a pessoa se abre
para uma visão panorâmica da vida, integra conceitos, idéias, relações. Tem
consciência da rede de ligações e suas inter-relações. Essa consciência ilumina o
tecido da teia da vida, traz potência ao siste ma indivíduo e, conseqüentemente, à
teia onde ele está inserido. Traz vitalidade à rede.
Todo o sistema-si se transforma – novas necessidades, novo código moral, novo
padrão de comportamento, novo padrão energético. Capacidades cognitivas e
perceptuais tornam-se pluralistas e universais; a perspectiva ou a preocupação não
é mais estritamente pessoal. Há uma nova sensação do Eu, mais integrado em si
mesmo e ao todo – o “fora de si”, a rede de sistemas que constitui a realidade.
Cooperar faz sentido e torna-se uma necessidade. Tecer a vida é a melhor
brincadeira dessa fase, é o natural, fisiológico. O Eu sabe-se do mesmo tecido que
o outro-de-si, uma fraternidade essencial se mostrou à intuição; o Eu é o outro, nas
complexas inter-relações da teia da vida. Qualquer ponto que se rompe nessa
malha reduz a vitalidade da rede, toca toda a teia, até sua menor parte. O
movimento, a luz de cada indivíduo toca o todo e ele sente, sabe disso.
Ao oferecer um campo em que há essa possibilidade de reorganização da estrutura
do indivíduo, a clínica toca com potência a teia da vida, trabalha para “não deixar
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esgarçar o tecido da rede”. E seres humanos assim fazem o tecido da vida tornarse vitalizado e vitalizador de si mesmo e do outro-de-si, dos sistemas que o contém.
Sem o crescimento de cada um de nós, não mudamos a direção do movimento do
processo da vida neste planeta. É em cada fio, trabalho pessoal, profundo,
cuidadoso, amoroso, que a rede se fortalece. Dois trabalhos se fazem necessários
nas redes sociais: a macropolítica, ou a ação direta nas instituições e comunidades,
e a micropolítica, o trabalho profundo nos indivíduos.
A psicologia tem essa função social, de interferir no processo evolutivo, estar
presente nesse movimento rumo à vitalidade. É a evolução se fazendo no nível de
cada pessoa, que se transforma em rede, que assume proporção de civilização.
O trabalho sobre o indivíduo – seja na clínica psicológica, seja por outros caminhos
– é essencial, pois sabemos que é a estrutura emocional da pessoa que define
suas possibilidades de opções; define suas conexões e estas determinam as redes
as quais, por sua vez, se traduzem em cultura.
Se a estrutura do indivíduo não permite uma percepção, esta não acontece; ele
simplesmente não enxerga. Só enxergamos aquilo que n ossa estrutura permite.
A realidade existe; nós a apreendemos ou não. Nada se cria. No caso do
mecanicismo, o movimento estava lá; Descartes soube lê-lo e expressá-lo. Assim
ocorre com o pensamento funcional ou o novo paradigma. Depende da estrutura
emocio nal de cada indivíduo.
Essa estrutura precisa evoluir para poder abarcar outra releitura da realidade. Caso
contrário, o indivíduo vai precisar reduzir a realidade, o universo, sua visão de vida,
para manter a própria estrutura e não se desagregar. Daí dec orre a necessidade da
transformação da estrutura emocional humana, para que, como sociedade,
possamos sustentar redes sociais vitalizantes, capazes de dar apoio ao salto
evolutivo que nos colocará num círculo virtuoso, em vez do círculo vicioso em que
nos encontramos até hoje.
Temos de trabalhar nos dois pólos do mesmo campo: o indivíduo e a sociedade.
Mas a alavanca disso é a consciência, a percepção do campo, e isso se dá em
cada indivíduo. A consciência permite que a pessoa possa se reposicionar, ir para
um nível que ofereça mais saídas.
O psicoterapeuta na clínica não pode perder de vista que somos seres inseridos
num campo maior, o social, e que a ação terapêutica precisa alcançar aquele nível.
Se está focando o indivíduo de forma a isolá-lo do contexto social, a psicologia está
doente. Está paralisada, fixada. E a sociologia que não tenha entranhado em si que
é o indivíduo que compõe o grupo também está doente.
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Nós, no setting psicoterapêutico, estamos agindo no campo indivíduo ou indivíduos,
mas não podemos achar que por isso o social não é assunto nosso. O social está
sempre no campo humano. Manter a consciência profunda disso é importante para
o psicoterapeuta clínico. E esse nível de consciência depende da condição da
estrutura psicológica do terapeuta, da sua complexidade enquanto sistema vivente.
É preciso ser capaz de sustentar o contato consigo mesmo (vertical) e com o
campo (horizontal) simultaneamente.
Parece-me importante que o psicoterapeuta tenha acesso à consciência de redes,
tenha atingido esse grau de desenvolvimento estrutural. Só assim poderá percorrer
todos os degraus do espectro da consciência humana – desde o fusional, fetal, até
graus elevados, transpessoais – entrar em ressonância com cada um deles, sem se
perder ou se prender exclusivamente a algum; terá assim mobilidade suficiente
para percorrer todo o espectro, entrar em ressonância para tentar resgatar o
movimento de vitalidade do paciente.
Saúde é essa possibilidade de circular em toda a espiral de desenvolvimento, tendo
consolidado os níveis inferiores, os primeiros degraus dessa escada, e estar numa
condição de mover-se livremente em todas as direções, sem perder-se de si e de si
no outro-de-si. Essa condição precisa estar presente na estrutura do psicoterapeuta
para que ele possa fazer sua função facilitar um campo suficientemente vitalizado
para seu paciente.
Por isso, é importante que o terapeuta tenha um grau suficiente de complexidade
em sua estrutura emocional para poder oferecer um campo rico em trocas, muitos
canais de c ontato, de conexões, uma consciência de si mesmo dentro do universo
– a vivência de redes, da teia da vida.
O indivíduo está na rede, mesmo sem consciência disso. Mas a consciência de si e
do entorno faz a diferença da potência da rede da vida. Essa é a função da vida
humana: iluminar a teia da vida.
Somente uma estrutura mais complexa consegue se defender sem precisar fecharse. Na complexidade, na busca constante de um fluxo, de não paralisar, é possível
continuar sustentando contatos, comunicações verdadeiras e transformadoras,
mesmo no meio de grandes conflitos. Fazer da crise uma oportunidade evolutiva.
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Maria Melo - Clínica Rubens Kignel