UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE LETRAS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS STRITO-SENSU
SUBÁREA DE LITERATURA COMPARADA
NO “CALDEIRÃO DA HISTÓRIA”:
A REALIDADE LABIRÍNTICA NAS NARRATIVAS DE
KAFKA, COETZEE E CHICO BUARQUE
ILMA DA SILVA REBELLO
Orientador: Prof. Dr. PAULO AZEVEDO BEZERRA
NITERÓI
2011
2
ILMA DA SILVA REBELLO
NO “CALDEIRÃO DA HISTÓRIA”:
A REALIDADE LABIRÍNTICA NAS NARRATIVAS DE
KAFKA, COETZEE E CHICO BUARQUE
Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Federal Fluminense,
como requisito parcial para obtenção do Grau de
Doutor em Literatura Comparada. Área de
Concentração: Estudos de Literatura.
Niterói
2011
3
ILMA DA SILVA REBELLO
NO “CALDEIRÃO DA HISTÓRIA”:
A REALIDADE LABIRÍNTICA NAS NARRATIVAS DE
KAFKA, COETZEE E CHICO BUARQUE
Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Federal Fluminense,
como requisito parcial para obtenção do Grau de
Doutor em Literatura Comparada. Área de
Concentração: Estudos de Literatura.
Aprovada em _________________ de _______.
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________________
Prof. Dr. PAULO AZEVEDO BEZERRA – Orientador
UFF
___________________________________________________________________
Prof. Dr. LUIS FILIPE RIBEIRO
UFF
___________________________________________________________________
Profª. Drª. SUSANA KAMPFF LAGES
UFF
___________________________________________________________________
Profª. Drª. MUNA OMRAN
UNIPLI
___________________________________________________________________
Prof. Dr. ANDRÉ LUIZ DIAS LIMA
FAETEC/RJ
Niterói
2011
4
A todos que valorizam a literatura enquanto um
espaço fecundo de reflexões.
5
AGRADECIMENTOS
A Deus, por estar sempre ao meu lado;
À minha família, pelo apoio incondicional;
Aos amigos que encontrei nessa caminhada: Márcia Reis, Gracinete e Lucia
Manna;
À Marcela Miller Barbosa, pela tradução do resumo;
Ao Professor Dr. Paulo Bezerra, pela competente e dedicada orientação;
Ao Professor Dr. Luis Filipe Ribeiro, pelas sugestões no Exame de
Qualificação;
À Professora Drª. Susana Kampff Lages, pelas sugestões e incentivo;
À Professora Drª. Lucia Helena, pelos conhecimentos adquiridos;
À Professora Drª. Anélia Pietrani, por sua generosidade e incentivo;
Ao Instituto de Letras da UFF, pela acolhida.
6
Se o livro que estamos lendo não nos despertar com uma
pancada na cabeça, para que o estamos lendo? [...]
Precisamos de livros que nos afetem como um desastre, que
nos angustiem profundamente, como a morte de alguém que
amamos mais do que a nós mesmos, como ser banidos para
florestas distantes de todos, como um suicídio. Um livro tem de
ser o machado para o mar congelado dentro de nós (KAFKA,
1966:27-28).
7
RESUMO
Este trabalho faz um estudo da realidade labiríntica que cerca os
personagens de Na colônia penal (1919) e O processo (1925), de Franz Kafka, Vida
e época de Michael K (1983), de J. M. Coetzee, e Benjamim (1995), de Chico
Buarque. A problemática do nome, a atmosfera sombria, a tragicidade dos
personagens e as muralhas sociais e interiores formam um campo semântico de
opressão e medo a rondar a consciência dos indivíduos. Estudamos, portanto, a
maneira como um ambiente de medo e escuridão, caracterizado nos dois sistemas
repressivos – o do apartheid e a ditadura brasileira, além do ambiente sombrio das
obras de Kafka – incide sobre a vida e a época dos personagens. As reflexões foram
norteadas pelos estudos de Mikhail Bakhtin sobre o dialogismo, de Michel Foucault
sobre os dispositivos disciplinares e de Georg Lukács sobre a narração e a
fisionomia intelectual dos personagens artísticos.
Palavras-chave: labirinto, poder, lei, dialogismo, tempo.
8
ABSTRACT
This work undertakes a study of the labyrinthine reality enveloping the
characters of In the penal colony (1919) and The trial (1925), by Franz Kafka, Life
and times of Micheal K (1983), by J. M. Coetzee, and Benjamim (1995), by Chico
Buarque. The issue of name, the sombre atmosphere, the tragicalness of the
characters and the social and inner walls create a semantic field of oppression and
fear that lurk in the conscience of the individuals. It is, therefore, a study of the
manner in which the environment of fear and darkness characterised by both
repressive systems – that of apartheid and that of the Brazilian dictatorship, as well
as Kafka’s sombre environments – influence the life and times of the characters. The
considerations were oriented by the studies of Mikhail Bakhtin when relating to
dialogic, Michel Foucault when relating to the disciplinary dispositions, and Georg
Lukács when relating to the narration and intellectual physiognomy of the artistic
characters.
Key Words: labyrinth, power, law, dialogic, times.
9
LISTA DE SIGLAS
B
BE
CF I
CF II
CM
CP
D
IDS
MS
NCP
NE
P
VEMK
Briefe 1902-1924
Benjamim
Cartas a Felice I – 1912
Cartas a Felice II – 1913
Cartas a Milena
Carta ao Pai
Diários: 1910-1923
In der Strafkolonie
Memórias do subsolo
Na colônia penal
Narrativas do espólio
O processo
Vida e época de Michael K
10
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS .............................................................................
12
1. OS AUTORES E SEU TEMPO
1.1. Franz Kafka: o sonhador de pesadelos .......................................................
21
1.2. J. M. Coetzee e a literatura do apartheid .....................................................
32
1.3. Chico Buarque: a literatura contra o silêncio ...............................................
39
2. O UNIVERSO LABIRÍNTICO DE JOSEF K.
2.1. A história do absurdo ...................................................................................
46
2.2. O mundo fragmentado e sombrio ................................................................
49
2.3. O estranho e o natural .................................................................................
72
3. NA COLÔNIA PENAL E OS LABIRINTOS DA DOR
3.1. A narrativa do horror ....................................................................................
79
3.2. As relações de poder ...................................................................................
82
3.3. Do horror ao horror: o sofrimento-espetáculo ..............................................
89
4. MICHAEL K: O HOMEM DOS LABIRINTOS SUBTERRÂNEOS
4.1. A história de um jardineiro sem lar ..............................................................
95
4.2. O abismo intransponível entre o eu e o mundo ...........................................
98
4.3. Entre o humano e o não-humano ................................................................
112
5. BENJAMIM E OS LABIRINTOS FANTASMAIS
5.1. A narrativa de um tempo perdido ................................................................
121
5.2. Tempo das sombras, tempo da pedra .........................................................
125
5.3. O jogo de duplos e as representações fantasmais ......................................
132
6. DOS SENHORES K., AS VÍTIMAS, AO SENHOR ZAMBRAIA:
REALIDADES LABIRÍNTICAS
6.1. Da concepção de mundo à escrita: a construção da representação e da 142
linguagem ...................................................................................................
6.2. Nos labirintos da lei .....................................................................................
149
11
6.3. Sonhos interrompidos ou o paraíso perdido? ..............................................
162
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS ...........................................................................
169
8. INDICAÇÃO BIBLIOGRÁFICA
8.1. Obras citadas ...............................................................................................
174
8.2. Obras consultadas .......................................................................................
180
12
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Todo século deixa vestígios na literatura que ele cria. O século XX, que Eric
Hobsbawm qualificou como “era dos extremos”1, teve sua história marcada por
grandes catástrofes e pelos maiores abalos políticos, sociais e científicos já
experimentados. Isto gerou as mais profundas tensões na vida dos homens e, por
associação, produziu uma literatura dotada de uma originalidade ímpar e marcada,
na superfície e em sua profundidade, por todas essas tensões. O psiquismo dos
grandes artistas da palavra não podia ficar imune à ação desse clima, pois a nova
realidade surgida das guerras e das revoluções sociais e científicas abalou
profundamente a imagem do universo na cabeça de todos eles e cada um reagiu a
seu modo à nova realidade.
Desse modo, as formas dessa reação foram muito diversas, o que se deveu
às peculiaridades individuais dos autores, às diferenças de seus sistemas de
pensamento, às suas posições políticas, filosóficas, religiosas, em suma, à
personalidade intelectual de cada um. É de suma importância verificar que a
realidade histórica que influenciava os sentimentos e pensamentos dos escritores
variava de país para país, o que certamente contribuiu para as diferenças que
marcaram as literaturas de diversas línguas. Distintas eram as tradições na cultura,
na filosofia, nas artes em geral e na própria literatura, mas nosso interesse se volta
de fato para o que ficou de comum, aquilo que nos permite aproximar, estabelecer
algum tipo de diálogo entre as literaturas de países distintos em diferentes períodos
da história do século XX ao XXI.
1
HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. Tradução de Marcos
Santarrita. 2. ed. 37. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
13
Ao lermos pela primeira vez as quatro obras que norteiam esta pesquisa: Na
colônia penal (1919) e O processo (1925)2, de Franz Kafka, Vida e época de Michael
K (1983), de J. M. Coetzee, e Benjamim (1995), de Chico Buarque, fomos instigados
pela realidade labiríntica dos personagens, uma das inúmeras leituras possíveis.
Impressionamo-nos com a atmosfera sombria e aterrorizante envolvendo Josef K. e
os habitantes da colônia penal, os labirintos subterrâneos pelos quais circula Michael
K, que se enterra para fugir de um mundo em guerra, e as representações
fantasmais3 de Benjamim. As quatro narrativas nos despertaram para novas
pesquisas, e ao passarmos dias catatônicos diante de uma folha de papel em
branco4,
numa
alusão
ao
ghost-writer,
de
Chico
Buarque,
afloraram
questionamentos e uma sede infinita de descoberta. É assim que mergulhamos
neste trabalho.
O leitor talvez esteja inquieto com a escolha de três autores que escreveram
em contextos diferenciados e colocados pela crítica em patamares distintos. No
entanto, longe de qualquer julgamento, um dos critérios utilizados para essa seleção
foi justamente o diálogo que poderíamos estabelecer entre narrativas de épocas
diversas. Além deste, percebemos com a leitura das narrativas algumas questões
que, juntas, parecem apontar para a existência de uma realidade labiríntica: a) a
problemática do nome, b) a atmosfera sombria, c) o estranho e o natural, d) a
tragicidade dos personagens, e) as muralhas sociais e interiores. Portanto, veremos
como esses temas aparecem nas obras.
2
As datas das obras Na colônia penal e O processo se referem ao ano de publicação. Foram escritas
em 1914. Franz Kafka iniciou O processo no mês de agosto, em que eclodiu a Primeira Guerra
Mundial.
3
Aqui, a expressão “representações fantasmais” tem o sentido de algo ilusório, numa referência às
inúmeras representações de Benjamim como modelo-fotográfico. Ele não consegue se desvencilhar
dos diversos papéis profissionais do passado.
4
HOLANDA, Francisco Buarque de. Budapeste. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p.38.
14
A) O herói kafkiano é denominado algumas vezes somente pela inicial K. Os
personagens da novela Na colônia penal são denominados apenas pela profissão
que exercem. Já Michael K se quadruplica: Michael K, Michael, K e Michaels.
Benjamim, um ex-modelo fotográfico em decadência, tudo o que não quer é o
anonimato, condição almejada pelo personagem de Coetzee.
B) A falta de contornos identitários indicia uma atmosfera angustiante e
fantasmagórica5 que povoa o universo dos três protagonistas. Josef K. convive com
uma acusação misteriosa; Michael K se esconde no subsolo para fugir de um mundo
em guerra; e Benjamim não consegue decifrar os fantasmas que o circundam,
sobretudo certa fantasmagoria do clima político, que se traduz na advertência do Dr.
Campoceleste a Benjamim de que seus passos estariam sendo vigiados. Segundo o
narrador, “as autoridades apostavam que ele [Benjamim], inadvertidamente,
terminaria por levá-las a Castana Beatriz e seu concubino” (BE,133-134). A
atmosfera de O processo supõe uma luminosidade crepuscular, reforçando a
atmosfera de sombras, como podemos observar nos corredores e caminhos que
Josef K. percorre. Embora o espaço físico, na obra de Coetzee e Chico Buarque,
não pareça envolto pela penumbra, cabe refletir sobre a maneira como um ambiente
de medo e escuridão, caracterizado nos dois sistemas repressivos – o apartheid e a
ditadura brasileira – incide sobre a vida e a época dos personagens. Em Na colônia
penal, há um clima de opressão e medo pairando sobre os personagens anônimos.
C) Os acontecimentos que escapam à ordem tradicional dos fatos se
apresentam como se fossem algo natural, principalmente em O processo. O leitor
atento perceberá o aparecimento de personagens e situações peculiares sem
explicação prévia. Em Benjamim, por exemplo, um gato preto atravessa a rua e o
5
Fantasmagórico no sentido de algo aterrorizador e sombrio (FERREIRA, s/d:611).
15
personagem pensa tê-lo avistado anos atrás. Quanto mais incomum é a aventura
vivida, de forma mais natural é narrada, pois apesar de inabitual, os três
personagens parecem aceitá-la com naturalidade. Na novela kafkiana, o
funcionamento da máquina de tortura, que, como tal, é marcado por grande
crueldade, é narrado com muita naturalidade. Kafka coloca seus personagens em
situações inexplicáveis; isto requer um estudo mais detalhado.
D) Há também a existência de uma tragicidade no destino dos personagens,
que se apresenta na falta de solução e na impossibilidade de salvação de Josef K.,
dos habitantes da colônia penal, de Michael K e de Benjamim. Cabe ressaltar que a
tragicidade nesse contexto não está relacionada ao trágico clássico tal como Édipo.
Mas há um diálogo. Édipo, destinado pela fatalidade a ser um criminoso, luta contra
ela. No entanto, ele é terrivelmente castigado pelo crime que foi obra do destino. A
tragicidade se cumpre no fato de o homem sucumbir no caminho que tomou para
fugir da ruína. O homem trágico, como diz Vernant (2002:372), é “um homem duplo,
dilacerado, problemático”. O salvador de Tebas se revela, ao mesmo tempo, seu
destruidor. Édipo é o contrário do que acreditava ser. As obras da nossa pesquisa
dialogam com as fontes do pensamento trágico no sentido de apresentarem um
modo conflituoso de relação do homem com o mundo. Os personagens são vítimas
de contextos sociais opressores e condenados a um destino ruim, sem possibilidade
de escolha. Eles vivem como se estivessem dentro de um labirinto, buscando
referências e respostas para resolver os seus problemas, como é o caso de Josef K.
E) As muralhas sociais e interiores cerceiam os personagens. Eles não
conseguem transpor as barreiras entre os dois mundos: o social e o individual.
Michael K se impõe uma redução zoomórfica, vive como uma “formiga” e em
buracos a fim de escapar do mundo hostil. Paradoxalmente, ele “se enterra” para
16
permanecer vivo. Josef K. não consegue se esconder ou fugir do processo e sente
dificuldades em entender a realidade a sua volta, assim como Benjamim, que não
compreende o labirinto político em que está metido. Na novela kafkiana, os
personagens são condenados sem direito à defesa. Os personagens estão
mergulhados no “caldeirão da história” (VEMK,176). O contexto social das narrativas
aparece como um grande caldeirão efervescente. Michael K vive em meio ao
apartheid, na África do Sul. Benjamim convive com a ditadura civil-militar brasileira.
Embora o contexto histórico não apareça bem delimitado nas obras kafkianas,
podemos relacioná-las a uma época sombria, de início do século XX. As obras
literárias, segundo Bakhtin (2003:362), dissolvem as fronteiras de seu tempo. Por
isso, os leitores conseguem tecer relações entre o tempo pregresso e o tempo em
que vivem.
Nosso objetivo, então, é refletir sobre algumas questões como a realidade
labiríntica das narrativas, o posicionamento de cada autor, a maneira pela qual o
tempo, o espaço e a narrativa configuram essa atmosfera labiríntica, o tipo de
diálogo possível entre as obras de Coetzee, Chico Buarque e Kafka, no grande
tempo que se estende do início do século XX à nossa atualidade.
As nossas reflexões estão sendo norteadas pelos estudos de Mikhail Bakhtin
desenvolvidos em Questões de literatura e estética e Estética da criação verbal, e os
de Michel Foucault em Vigiar e punir e Microfísica do poder, além de alguns textos
importantes de Georg Lukács, como “A fisionomia intelectual dos personagens
artísticos”6 e “Narrar ou descrever”7. Algumas obras também foram importantes para
6
LUKÁCS, G. “A fisionomia intelectual dos personagens artísticos”. In: ______. Marxismo e teoria da
literatura. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968a. p.165214.
7
LUKÁCS, G. “Narrar ou descrever”. In: ______. Ensaios sobre literatura. 2. ed. Tradução de Leandro
Konder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968b. p.47-99.
17
o amadurecimento do presente estudo como A condição humana e Origens do
totalitarismo, de Hannah Arendt. A obra Genealogia da moral, de Nietzche, ajudounos a entender o “sofrimento espetáculo”, de Na colônia penal, a partir dos conceitos
de “culpa”, “dor”, “credor” e “devedor”, entre outros, apresentados pelo autor.
Lendo as narrativas de Kafka nos damos conta das dificuldades encontradas
por quem se propõe a analisá-las. Sua fortuna crítica é extensa e consagrada:
Benjamin, Adorno, Deleuze, Guattari, Arendt, Anders, Heller, Blanchot, Rosenfeld,
entre muitos outros. O sul-africano Coetzee, ganhador do Prêmio Nobel em 2003 e
de dois Booker Prize, em 1983, por Vida e época de Michael K, e em 1999, por
Desonra, também é objeto de pesquisa de muitos estudiosos no Brasil e no exterior.
Chico Buarque, por sua vez, figura importante no cenário brasileiro contemporâneo,
é estudado por escritores como José Castello, Afonso Romano de Sant’ Anna,
Gustavo Conde, Roberto Schwarz, entre outros intelectuais. É árdua, portanto, a
leitura da vasta fortuna crítica de cada autor, mas em alguns momentos elas serão
importantes para o amadurecimento das nossas reflexões.
Quanto à organização dos assuntos discutidos neste trabalho, elaboraremos
um capítulo sobre cada uma das obras literárias. Antes, porém, no capítulo intitulado
“Os autores e seu tempo”, faremos uma pequena biografia e também comentários
sobre a relação dos autores com a criação literária e o seu tempo. Em cada capítulo
sobre as obras literárias apresentaremos um resumo de cada narrativa. O segundo
capítulo “O universo labiríntico de Josef K” será destinado à discussão da obra O
processo, a partir das reflexões suscitadas sobre o mundo aprisionador e sombrio do
protagonista. No terceiro capítulo, abordaremos o texto Na colônia penal focalizando
o que denominamos “os labirintos da dor”. O quarto será sobre “os labirintos
subterrâneos” do personagem Michael K da obra de Coetzee, que cava um buraco
18
para se esconder de um mundo adverso. No quinto, faremos um estudo da obra de
Chico Buarque refletindo principalmente sobre o personagem Benjamim e os seus
“labirintos fantasmais”. Aqui a expressão “labirintos fantasmais” se refere ao mundo
sombrio do protagonista e também ao fato do mesmo viver apegado ao passado
glorioso. Haverá ainda um sexto capítulo dedicado à leitura aproximativa das quatro
obras, denominado “Dos Senhores K., as vítimas, ao Senhor Zambraia: realidades
labirínticas”. Neste, pretendemos averiguar como a narrativa, o tempo e o espaço
labirínticos se entrecruzam e de que maneira as quatro obras dialogam por
intermédio dos leitores.
A fim de uma melhor compreensão do tema a ser estudado, recorremos ao
mito do labirinto. O labirinto tem sua origem longínqua e diversa e remonta ao mito
grego de Teseu, ao palácio de Minos, onde estava o Minotauro e de onde o herói só
conseguiu sair com a ajuda do fio de Ariadne. O vagar sem rumo e o próprio termo
“labirinto” têm se manifestado de maneira contundente na literatura. Muitos poetas e
romancistas relacionam a imagem do labirinto à representação da metrópole, a partir
do século XIX, em virtude das dificuldades do percurso urbano.
No nosso trabalho, o labirinto está relacionado à realidade aprisionadora dos
personagens, presos nas redes burocráticas e num contexto social de opressão. O
espaço labiríntico é a tradução de relações histórico-sociais conflituosas. Devem-se
ressaltar, portanto, duas concepções de labirinto: o que segue um único caminho e o
que se estende em múltiplas direções, evidenciando as várias possibilidades de
escolhas e erros8. A primeira está relacionada à concepção medieval do labirinto: um
caminho longo e tortuoso, mas um só, que está em Deus. O labirinto, nesta
perspectiva, torna-se “a via de salvação” (BRUNEL, 2005:559).
8
Cf. BRUNEL, Pierre (org.). Dicionário de mitos literários. Tradução de Carlos Sussekind. et. al. 4. ed.
Rio de Janeiro: José Olympio, 2005. p.555.
19
A primeira tensão que o labirinto apresenta é a do um e a do múltiplo9. Na ida,
Teseu se confronta com os inúmeros caminhos e, na volta, com aquele marcado
pelo fio mágico de Ariadne. Nesse sentido, o mito expõe o problema da escolha e,
ao mesmo tempo, apresenta o meio para resolvê-lo (no caso de Teseu, o fio
mágico). Os nossos personagens se deparam com a ausência de escolha. Josef K.,
Michael K e Benjamim são confrontados com a falta de perspectiva e se agarram à
única possibilidade que conseguem vislumbrar. Eles não possuem o fio de Ariadne
para que possam se desvencilhar da situação em que se encontram.
O destino dos personagens, em sua maioria trágico, tem por base o
enclausuramento do indivíduo em seu próprio mundo, tema tão recorrente em
Dostoiévski. Contudo, neste, há uma busca desesperada de saída. A imagem do
personagem passando por inúmeras adversidades nos remete à ideia da provação
do herói, estudada por Bakhtin (1993) em seu livro sobre a teoria do romance.
Bakhtin (ibid., p.182-188) menciona que a ideia de provação foi acumulando
conteúdos ideológicos diversos ao longo do tempo. No romance sofista, esse
conceito está ligado às ideias de crise, de transformação, de martírio ou de tentação.
No romance de cavalaria clássico, encontramos a provação da coragem, da
fidelidade, além das provações por sofrimento e seduções. No romance do século
XIX, é a provação da vocação, do eleito e a sua provação pela vida; além da prova
da personalidade forte que se opõe por algum motivo à coletividade. Em oposição
ao romance de provação, os românticos apresentam o “romance de aprendizagem”.
De acordo com Bakhtin (ibid., p.185), a ideia de provação “não possui relação com a
formação do homem”, ela advém de “um homem pronto e submete-o à provação
segundo um ponto de vista de um ideal também já pronto”. No romance de
9
BRUNEL, Pierre (org.). Dicionário de mitos literários, op. cit., p.556.
20
aprendizagem, “a vida, com os seus eventos, esclarecida pela ideia de
transformação, revela-se como uma experiência do herói, uma escola, um meio, que
pela primeira vez formam e modelam seu caráter e sua visão de mundo” (BAKHTIN,
1993:186). Mas, para o pensador russo, a ideia da transformação, da educação e a
da provação não se excluem e “podem entrar numa união profunda e orgânica”
(ibid.).
Nota-se, portanto, que o embate dos personagens com o mundo foi
adquirindo contornos diversos ao longo do tempo. Nas obras da nossa pesquisa, as
dificuldades dos protagonistas não estão relacionadas às provações como nos
romances anteriormente mencionados por Bakhtin (ibid., p.182-188). Em Kafka,
Coetzee e Chico Buarque, os personagens enfrentam situações adversas num
mundo cheio de temor e inquietude, vivendo como num grande caldeirão
efervescente. Ao contrário dos romances de provação, cujas qualidades dos
personagens são dadas desde o início, nas obras da nossa pesquisa, a cada página
os personagens vão adquirindo novos contornos, surpreendendo o leitor com a sua
singularidade. O mundo não é um mero pano de fundo, mas está inteiramente
relacionado à vida dos personagens. Há uma interação entre cada personagem e o
mundo labiríntico em que vivem.
Ler as obras dos autores selecionados é mergulhar no “caldeirão da história”,
na “era dos extremos”, como diz Hobsbawn. As obras impressionam pela riqueza
literária e pela reflexão apresentada em tempos tão sombrios. São livros
pertubadoramente belos e dolorosos que expõem a solidão de homens diante de um
poder arbitrário. Como diz Kafka (1966:27-28), “um livro tem de ser o machado para
o mar congelado dentro de nós”, lançando luz sobre situações humanas que
desafiam a nossa compreensão.
21
1. OS AUTORES E SEU TEMPO
1.1. FRANZ KAFKA: O SONHADOR DE PESADELOS
Ao lermos as obras de Franz Kafka, adentramos numa realidade perturbadora
e sombria. A biografia e as narrativas do autor travam um tenso diálogo, como têm
apontado críticos como Erich Heller (1976). O escritor tcheco apresenta uma
literatura de situações-limite, fruto de um momento histórico crítico e da sua
experiência pessoal conturbada. Antes de mergulharmos nas suas obras, é
necessário refletirmos sobre a sua vida e o seu tempo. Afinal, quem é Franz Kafka?
O escritor nasceu em Praga no ano de 1883 e faleceu em 1924, tendo vivido,
portanto, as transformações políticas, econômicas e sociais do fim do século XIX e
início do século XX e, principalmente, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
Muitos escritores, pensadores e pesquisadores têm se confrontado com a difícil
tarefa de “decifrar” as obras do escritor tcheco. E, por isso, muitas são as
interpretações: Max Brod, que se recusou a queimar os escritos de Kafka, via nas
narrativas a busca por um Deus inalcançável; Camus o considera o escritor do
“absurdo”; outros, um profeta do Holocausto. Mas o seu maior crítico foi ele mesmo.
Em seus diários e cartas, especialmente Carta ao pai (1919), Kafka examina a sua
infância e a sua vida adulta.
Franz Kafka desperta no leitor uma grande perturbação. Sua obra enigmática
mostra as dificuldades em submetê-la a qualquer classificação. Ao longo do tempo,
o termo “kafkiano” tem sido empregado como um adjetivo, com os sentidos de
condenação, melancolia, angústia, algo inexplicável e abstruso. O adjetivo é usado
22
também para qualificar a situação atormentada do homem moderno preso nas teias
burocráticas da vida cotidiana.
Franz Kafka era um judeu de Praga, nascido tcheco e falante de alemão. O
escritor mostrou, segundo Mairowitz (2009:18), poucos indícios ou interesse no
judaísmo como religião. Numa ocasião, Kafka escreveu: “O que tenho eu em comum
com os judeus? Quase não tenho nada em comum comigo próprio [mesmo]”10
(D,223). Tendo iniciado os estudos em Química, em Letras e em História da Arte,
Kafka se decide por Direito. A partir de então, começa a sua vida profissional em
escritórios, o que será o seu suplício até a morte. Mas isto lhe permitia reunir um
farto material para as suas interpretações judiciais e burocráticas. Sua carreira
literária inicia-se oficialmente em 1909, com a publicação de “Descrição de um
combate”. Essa carreira irá se desenvolver paralelamente à sua vida profissional.
A vida sentimental é um dos pontos críticos de sua biografia. Felice Bauer,
Grete Bloch, Milena Jesenska, Julie Wohryzeh e Dora Dymant foram as cinco
mulheres com as quais o escritor manteve relações amorosas, mas não conseguiu
realizar-se através delas. As correspondências com as três primeiras foram reunidas
com o título de Cartas a Milena e Cartas a Felice.
A correspondência com Felice mostra as dificuldades do escritor diante do
matrimônio. Ao propor casamento a Felice, Kafka apresenta várias razões contra a
proposta e um argumento a favor. Entre as razões contrárias estão: o fato de ter
nascido para ficar só e também a necessidade da solidão para realizar as tarefas
que lhe interessavam. O único argumento a favor é a incapacidade de viver
10
Anotação no Diário de 8 de janeiro de 1914.
23
sozinho11. Como podemos perceber, seus motivos são contraditórios, pois ele
precisa viver sozinho, mas ao mesmo tempo se sente incapaz de fazê-lo. Nas cartas
que se seguem, Kafka acrescenta outros obstáculos, entre eles o fato de ficar muitas
horas escrevendo12.
Nas cartas a Felice, além das angústias perante o matrimônio e a vida que
levava, Kafka revela a sua percepção da criação literária: “[...] nunca puede estar
uno lo bastante solo cuando escribe, por eso nunca puede uno rodearse de bastante
silencio cuando escribe, la noche resulta poco nocturna, incluso”13. Em seguida, o
escritor faz uma impressionante descrição do que considera uma escrita perfeita:
con frecuencia he pensado que la mejor forma de vida para mí, consistiría
en encerrarme en lo más hondo de una vasta cueva con una lámpara y
todo lo necesario para escribir. Me traerían la comida y me la dejaríam
siempre lejos de donde yo estuviera instalado, detrás de la puerta más
exterior de la cueva. Ir a buscarla, en camisón, a través de todas las
bóvedas, seria mi único paseo. Acto seguido regresaría a mi mesa, comería
lenta y concienzudamente, y en seguida me pondría de nuevo a escribir. ¡Lo
que sería capaz de escribir entonces! ¡De qué profundidades lo sacaría! ¡Sin
esfuerzo! Pues la concentración extrema no sabe lo que es el esfuerzo. Lo
único es que quizás no perseverase, y al primer fracaso, tal vez inevitable
incluso en tales condiciones, no podría por menos que hundirme en la más
grande de las locuras: ¿Qué dices a esto, mi amor? ¡No retrocedas ante el
habitante de la cueva! [grifo do autor] (CF II, 245).
A condição de exílio do escritor é constante na literatura moderna. Kafka se
considera um escritor noturno, cuja obra nasce das horas em que não conseguimos
dormir. Para ele, escrever é a tentativa de se libertar de todas as coisas que tornam
a vida insuportável, como a violência e a burocracia do Estado. Através da escrita,
ele consegue expressar os sentimentos e os desejos mais ocultos, ficcionalizandoos a partir do engenhoso trabalho da criação literária. A escrita depende, portanto,
11
Carta de 16 jun. 1913. In: KAFKA, F. Cartas a Felice y outra correspondencia de la época del
noviazgo II – 1993. Traductor: Pablo Sorozábal Serrano. 2. ed. Madrid: Alianza Editorial, 1978b.
p.394-398.
12
Carta de 21 jun. 1913, ibid., p.402-403.
13
Carta de 14 jan. 1913, ibid., p.245.
24
do grau de penetração na realidade, da qual se extraem sentidos que se encontram
com outros e instauram um diálogo, como ressalta Bakhtin (2003).
As narrativas kafkianas são, em sua maioria, inacabadas e não se
“enquadram” na concepção tradicional de conto, novela, romance...
A obra O
castelo é marcada pelas lacunas. É uma obra inacabada, um terreno fértil para as
especulações dos leitores. As lacunas geram nestes a sensação da representação
de um mundo dos sonhos por causa das supressões, das interrupções, do clima
opressor e labiríntico, do aparecimento de personagens sem uma explicação prévia,
entre outros aspectos. Kafka torna visíveis suas interrupções. Não completa as
frases e nem as apaga, deixando-as e começando de novo. Ao longo do seu diário,
ele se queixa do barulho em casa que não lhe permite se concentrar, como o ruído
das portas batendo, dos gritos da irmã e do pai andando de um lado para o outro.
Por isso, é considerado um “escritor-noturno”, pois preferia o silêncio da noite para
tecer as suas narrativas. Para ele, escrever é uma maneira de se desligar do mundo.
O veredicto, ao contrário das outras obras, foi escrito de um só fôlego, como
menciona no Diário:
14
Esta história, O processo [sic] [O veredicto] , escrevia-a eu de um jato
durante a noite 22 para 23, das dez da noite às seis da manhã. Quase não
conseguia tirar as pernas de debaixo da secretária, elas ficaram rígidas de
estar tanto tempo sentado. A terrível tensão e alegria, a maneira como a
história se desenvolveu perante mim, como se eu estivesse a andar sobre
as águas. [...] Como tudo pode ser dito, como há para tudo, para as mais
estranhas fantasias, um grande fogo à espera em que elas perecem e
renascem outra vez. A convicção confirmada de que com o escrever este
romance me encontro nas planuras vergonhosas da escrita. Só desta
maneira é que se pode escrever. Só com uma coerência destas, com esta
abertura total do corpo e da alma (D, 23 set. 1912, p.187-188).
14
O relato se refere à escrita de O veredicto e não de O processo, como traduziu Maria Adélia Silva
Melo para a edição portuguesa.
25
Numa “abertura total do corpo e da alma”, as relações entre os homens e o
mundo são traçadas por Kafka. Em O veredicto, vemos, de um lado, o isolamento
pessoal do escritor e, de outro, o choque do personagem com o mundo
burocratizado. Nesta narrativa, o personagem sucumbe ao poder tirânico do pai e se
afoga, conforme o veredicto dado: “eu o condeno à morte por afogamento!” (KAFKA,
2004d:24). Desse modo, a construção narrativa, com lacunas, interferências ou de
“um só fôlego”, apresenta na forma e no conteúdo, uma concepção de mundo que
mostra indivíduos singulares e, ao mesmo tempo, questiona os problemas gerais da
época.
As obras kafkianas constituem, em sua maioria, uma reação a um poder sem
limites, que abrange todos os setores da sociedade como uma sombra. Um poder
que faz o ser humano se sentir pequeno e impotente, como atestam O veredicto, A
metamorfose, O desaparecido ou Amerika, dentre outros. O primeiro representante
desse poder teria sido o pai Hermann Kafka, mencionado, principalmente, em Carta
ao pai (1919). Essa problemática aparece de maneira quase obsessiva no Diário, em
31 de outubro de 1911, quando Kafka fala do seu “ódio” em relação a Hermann, que
o cobria de censuras e os insultos aos seus amigos, como Max Brod, chamado de
“maluco” (meschugge), e Isaac Löwy, de “gente estranha”, inútil. Em carta a Milena,
Kafka diz: “Se alguma vez quisesses saber como era minha vida em outras épocas,
mandar-te-ei [sic] de Praga a carta gigantesca que há cerca de meio ano escrevi a
meu pai, mas que ainda não lhe entreguei” (CM,55).
Em O veredicto (1912), o jovem Georg Bendermann é condenado à morte por
afogamento pelo pai, em virtude da falta de atenção para com um amigo que partiu
para a Rússia. Esse conto é um dos raros em que o protagonista se submete sem
resistência ao veredicto autoritário ao se jogar no rio. A metamorfose (1912) também
26
é um relato sobre o poder. Ao ser transformado, sem querer, num gigantesco inseto
(Ungeziefer), Georg Samsa é ameaçado e abandonado pelos membros da própria
família e se deixa morrer. Em Carta ao pai, Kafka queixa-se de que o pai o considera
um “parasita” e um “inseto”.
Em O desaparecido ou Amerika, de 1914-1915, os personagens dominadores
são figuras paternas (o pai de Karl Rossmann e o tio Jakob), os “desclassificados”
(Delamarche) e os altos administradores (o gerente e o porteiro do Hotel Ocidental).
Todos manifestam seu autoritarismo sem justificativas morais, racionais e humanas.
É comum nos textos de Kafka a utilização da figura “como um cão” para classificar
os que obedecem a tudo sem resistir, apontando para o aspecto inumano dos seus
personagens.
A sua relação com o processo de escrita é conturbada. Em dezembro de
1910, Kafka faz, no Diário, observações sobre a sua própria dificuldade de escrever:
“quase não há palavras que eu escreva que estejam de [sic] harmonia com as outras
[...]” (15 de dezembro), “[estou] simplesmente perdido” (18 de dezembro),
“desgraçado, desgraçado, [...] durante o dia não escrevi nada” (25 de dezembro).
Kafka acrescenta em 20 de dezembro: “tenho constantemente no ouvido uma
invocação: ‘Se viesses invisível juízo!’” (D,20-25). São diários, como diz Bradbury
(1989:224), de “um sonhador de pesadelos”. O pesadelo está na própria realidade e
ele não tem como escapar. O barulho no apartamento onde mora com a família, o
trabalho estafante e burocrático durante o dia, a tuberculose que o atormenta e os
acontecimentos políticos e sociais de início do século XX são grandes obstáculos à
criação. Mas também são o combustível de sua escrita. Em virtude do emprego no
“Instituto de Seguros de Acidentes de Trabalho”, Kafka conhece bem o mundo
burocrático e as terríveis condições dos trabalhadores das indústrias. O escritor
27
convive com as manifestações e saques de lojas e departamentos públicos, comuns
na época da Primeira Guerra Mundial, além do crescente ódio aos judeus
considerados “uma raça sarnenta”. A realidade se apresenta como um pesadelo. Por
isso, ele sente necessidade de viver para a literatura, transmitir o “mundo horrível
que tem dentro da sua cabeça”15 com o intuito de libertá-lo, de expor todas as coisas
que tornam a sua existência um martírio (D,195). O ato de escrever vira uma
urgência, uma libertação:
esta tarde tenía ocasión de escribir, ocasión que todo mi ser exige
unanimemente, si no de un modo inmediato sí al menos movido por esa
desolación interior que se propaga, pero he escrito solo lo suficiente apenas
para soportar la jornada de mañana [...] (CF I, 11 para 12 de dezembro,
1912, p.171).
Nessa perspectiva, escrever é viver e resistir a todas as contrariedades que
tentam inviabilizar a existência. O autor encontra no ato de escrever uma maneira de
suportar a vida: os problemas familiares, a doença, o trabalho e o mundo hostil.
Através da escrita, Kafka apresenta personagens singulares, mostrando o modo pelo
qual enfrentam seus problemas e o conjunto de relações que os liga, de forma
extremamente profunda, viva e universal.
A figura paterna teve grande influência na vida de Franz Kafka. Para Kafka
pai, o “homem gigantesco”, o filho era um fracasso e um Schlemiel (imprestável)
(CP,13). O escritor faz esta observação sobre as atitudes paternas:
Era preciso prestar atenção para que não caíssem restos de comida no
chão, no final a maioria deles ficava embaixo de você [do pai]. À mesa não
era permitido se ocupar de outra coisa a não ser da refeição, mas você [o
pai] polia e cortava as unhas, apontava lápis, limpava os ouvidos com o
palito dos dentes (ibid., p.19).
15
Anotação no Diário de 21 de junho de 1913.
28
Percebe-se, portanto, que o pai não era capaz de cumprir as próprias regras
impostas ao filho. Mais adiante, Kafka ressalta: “De certo modo a pessoa já estava
punida antes mesmo de saber que tinha feito algo errado” (CP,24). É esta a
premissa que perpassa várias obras de Franz Kafka, entre elas, O processo e Na
colônia penal. A consciência da punição antecipada cria no indivíduo uma censura
interior que o põe continuamente de sobreaviso contra qualquer atitude que venha a
assumir futuramente e introjeta nele uma espécie de medo de agir, medo de tomar
atitudes. Essa consciência da punição antecipada é uma fonte de angústia e
insegurança, daí os movimentos sinuosos dos personagens kafkianos. Apesar da
relação complicada com a família, principalmente com o pai, Kafka não se rebela. É
através da escrita que ele mostra resistência.
Certa ocasião, Kafka confessa a Max Brod que gostaria de intitular a sua obra
de “Tentativa de evasão para fora da esfera paterna” (BROD, 1962:44). O escritor
vive de um lado o mundo rígido e opressor do pai e de outro, o mundo livre da
escrita, da criação. Os tormentos da relação com o pai e o trabalho burocrático são
importantes para a sua concepção da ilogicidade do despotismo das superestruturas
opressoras. Para o pai, um homem de negócios, o lucro e o sucesso são provas de
poder e de virilidade do homem, e a arte, uma fuga às responsabilidades, uma
inutilidade. O estranho complexo de inferioridade em relação ao pai gera a
necessidade de fuga, que ele só encontra na literatura. Portanto, a literatura é
resistência a tudo isso, é o ajuste de contas com o pai opressor, a denúncia contra
ele, a válvula de escape para o mundo da liberdade, a tentativa desesperada de
refletir sobre pesadelos dos quais não conseguia acordar.
No “Instituto de Seguros de Acidentes de Trabalho” do Reino da Boêmia, em
Praga, Kafka trabalhava para reduzir a taxa de acidentes de trabalho que eram
29
inúmeros. O escritor supervisionou a implementação de muitas medidas a fim de se
evitarem os acidentes e sempre se colocava do lado dos prejudicados. Mairowitz e
Crumb (2009:71) mostram desenhos do relatório de Kafka sobre as partes
defeituosas dos equipamentos responsáveis pelos acidentes e as amputações. Este
fato nos faz lembrar a máquina de tortura da novela A colônia penal. A máquina de
torturar pessoas parece uma metáfora do sistema de trabalho na indústria, que
Kafka conhecia muito bem. Os trabalhadores eram submetidos a horários estafantes
e sujeitos a horríveis acidentes.
A Primeira Guerra Mundial eclode quando o escritor inicia a escrita de Na
colônia penal e O processo. A guerra gerou horrores inéditos e assinalou o colapso
da civilização (ocidental) do século XIX. Tratava-se, na visão de Hobsbawm
(2008:16), de:
uma civilização capitalista na economia; liberal na estrutura legal e
constitucional; burguesa na imagem de sua classe hegemônica
característica; exultante com o avanço da ciência, do conhecimento e da
educação e também com o progresso material e moral; e profundamente
convencida da centralidade da Europa, berço das revoluções da ciência,
das artes, da política e da indústria e cuja economia prevalecera na maior
parte do mundo, que seus soldados haviam conquistado e subjugado; uma
Europa cujas populações (incluindo-se o vasto e crescente fluxo de
imigrantes europeus e seus descendentes) haviam crescido até somar um
terço da raça humana; e cujos maiores Estados constituíam o sistema da
política mundial.
Sob os efeitos de uma época caótica e labiríntica, chamada por Hobsbawm
de “Era da catástrofe”, Kafka escreveu as suas obras, abordando temas como o
poder, a submissão e a humilhação. O início do século XX foi uma época de
acontecimentos extremados, sem precedentes, principalmente o horror provocado
pelas guerras. Houve, a partir de 1914, uma regressão dos padrões então
30
considerados normais. As pessoas tiveram que aprender a viver nas condições mais
brutalizadas e intoleráveis possíveis.
A acusação no início de O processo se tornou memorável na literatura
moderna, assim como a descrição de horror do aparelho de tortura em Na colônia
penal. São inegáveis as influências de Dostoiévski, de quem Kafka era leitor, nessas
obras. Os personagens kafkianos vivem no limiar entre a realidade e o pesadelo,
como veremos, sofrendo interferências de “forças superiores” ocultas, assim como
os protagonistas do escritor russo.
“Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável”
(MS,15). Quem fala é um “homem subterrâneo”, o personagem sem nome – a quem
não podemos chamar de herói, pois ele se recusa a tal denominação – de Memórias
do subsolo (1864), de Dostoiévski. Ele é um desses personagens que encontramos
nas obras de Kafka, funcionários, solitários, que trabalham ressentidos em suas
escrivaninhas. Dostoiévski via esse homem subterrâneo como uma figura que
representava o seu tempo e, como podemos ver, o de Kafka também. Nessa obra do
escritor russo, instaura-se a hipótese da culpa que o escritor de Praga apresenta em
suas obras no século XX. Assim diz o personagem subterrâneo: “[...] eu sou o
primeiro culpado de tudo e, o que é mais ofensivo, culpado sem culpa e, por assim
dizer, segundo as leis da natureza” (ibid., p.21). Mais adiante, o personagem faz
uma observação que Kafka, de uma outra forma, apresenta no conto “A partida”,
cujo personagem cavalga para alcançar o seu objetivo, que era simplesmente ir para
“fora daqui”16. Nas palavras do personagem de Dostoiévski:
16
“– Para onde cavalga, senhor? – Não sei direito – eu disse –, só sei que é para fora daqui, fora
daqui. Fora daqui sem parar: só assim posso alcançar meu objetivo. [...] ‘fora daqui’, é esse o meu
objetivo”. In: KAFKA, Franz. Narrativas do espólio (1914-1924). Tradução e posfácio de Modesto
Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002b. p.141.
31
O homem é um animal criado por excelência, condenado a tender
conscientemente para um objetivo e a ocupar-se da arte da engenharia, isto
é, abrir para si mesmo um caminho, eterna e incessantemente, para onde
quer que seja [grifo do autor] (MS,46).
É o homem exilado de si mesmo, “nem bom nem mau”. Essa visão existencial
sombria Franz Kafka soube mostrar em sua literatura, principalmente com o seu
personagem célebre Josef K., um funcionário de banco, que ignora todos os que o
cercam até o momento em que se vê “detido”.
Dostoiévski, em O idiota (1869) e em Os demônios (1872), expôs as
contradições e as crises de sua época, como o desmascaramento do terror e do
totalitarismo e a dominação. Como bem assinalou Bradbury (1989:43), “as
personagens de Kafka são os filhos de Dostoiévski numa época diferente, e são eles
que o trazem para o presente”. O homem subterrâneo não consegue “tornar-se um
inseto”17, mas o seu descendente, Gregor Samsa, o faz em A metamorfose. Vemos
nas obras kafkianas um pouco do ressentimento e da solidão dos personagens de
Dostoiévski.
Franz Kafka conseguiu com suas narrativas tematizar o espírito de sua época:
o vazio, as opressões labirínticas e os “exílios interiores”. Os personagens de Kafka
guardam uma relação com o homem subterrâneo de Dostoiévski. Em escritores
como Tolstói, Gogol e Kierkegaard, o escritor tcheco encontrou inspiração para falar
desse homem condenado ao exílio interior.
Kafka expôs em Na colônia penal, como veremos mais adiante, o uso da
tecnologia a favor da barbárie. O homem subterrâneo dostoiévskiano num trecho da
narrativa comenta:
17
DOSTOIÉVSKI, F. Memórias do subsolo. Tradução, prefácio e notas de Boris Schnaiderman. 5. ed.
3. reimp. São Paulo: Editora 34, 2008. p.18.
32
[...] ainda vivemos numa época bárbara, porque (sempre de um ponto de
vista relativo) ainda hoje se cravam alfinetes em seios; que, mesmo
atualmente, embora o homem já tenha aprendido por vezes a ver tudo com
mais clareza do que na época bárbara, ainda está longe de ter-se
acostumado a agir do modo que lhe é indicado pela razão e pelas ciências
[grifo do autor] (MS,37).
Conforme exposto, o homem ainda não conseguiu desvincular-se da época
bárbara e continua agindo longe do bom-senso. O século XX nos ensinou a
esquecer que no passado, numa convenção internacional, as hostilidades da guerra
não deviam começar sem aviso prévio e explícito. A ciência, que deveria ser usada a
favor do bem-estar e da melhoria das condições de vida, é usada também como
instrumento de manipulação e dominação. Essa época bárbara da qual o homem
não conseguiu desvincular-se, apresentada por Dostoiévski, ressoa nas narrativas
de Kafka, um de seus leitores. Essas questões também serão abordadas, de forma
diversa, nos outros escritores que fazem parte desta pesquisa.
1.2. J. M. COETZEE: A LITERATURA DO APARTHEID
John Maxwell Coetzee, nascido em 1940, na Cidade do Cabo, na África do
Sul, tem se revelado um dos escritores mais importantes da atualidade. Naturalizado
australiano, Coetzee mora atualmente em Adelaide, na Austrália. O escritor estudou
em escolas católicas inglesas e diplomou-se em Matemática e Língua Inglesa pela
Universidade da Cidade do Cabo. Deu aulas de inglês na Universidade do Estado de
Nova York, nos Estados Unidos, de 1968 a 1971. Nessa época, teve seu Green card
negado pelo governo, provavelmente por ter participado de protestos contra a
intervenção norte-americana no Vietnã. De volta à África do Sul em 1972, Coetzee
foi professor de literatura na Universidade da Cidade do Cabo. De 1984 a 2003,
33
lecionou em várias universidades norte-americanas, entre elas, Harvard e Stanford.
O escritor iniciou a sua obra ficcional no final da década de 1960. Em 1968, concluiu
a sua tese de doutorado sobre o escritor irlandês Samuel Beckett, uma de suas
referências literárias.18
Coetzee traz consigo o peso de ser “representante de uma geração para
quem o apartheid foi criado”19. O escritor, crítico e professor cresceu em meio aos
conflitos sociais e políticos da África do Sul. Embora pouco conhecido aqui no Brasil,
escreveu grandes obras que lhe renderam alguns prêmios importantes como o
Nobel de Literatura e o Booker Prize.
Entre as suas obras, podemos citar: À espera dos bárbaros (1980), Vida e
época de Michael K (1983), Foe (1986), O mestre de Petersburgo (1994), Desonra
(1999), A vida dos animais (1999), Juventude (2000), Elizabeth Costello (2003),
Homem lento (2005) e Diário de um ano ruim (2007). Algumas de suas obras fazem
críticas ao colonialismo e suas consequências. O romance Desonra, que expõe
conflitos entre negros e brancos, chegou a ser considerado racista pelo Congresso
Nacional Africano, o partido hegemônico no governo pós-apartheid.
Em 1980, com a publicação de À espera dos bárbaros, Coetzee ganha
prêmios que o tornaram conhecido mundialmente, entre eles o CNA Literary Award
da África do Sul. Em 1986, faz uma releitura do romance Robinson Crusoé (1719),
de Daniel Defoe, ao escrever o romance Foe. Nesta obra, Susan Barton conta a Foe
18
Cf. “J. M. COETZEE e o apartheid”. Folha de S. Paulo, São Paulo, 30 ag. 2009. Caderno Mais!, p.47. POYNER, Jane. “Introduction”. In: ______ (org.). J. M. Coetzee and the idea of the public
intellectual. Athens: Ohio University Press, 2006. p.1-20. ATTWELL, David. “Contexts: literary,
historical, intellectual”. In: ______. J. M. Coetzee south Africa and the politics of writing. Berkeley:
University of California Press, 1993. p.9-34.
19
Resposta de J. M. Coetzee em entrevista a David Atwell, in: ATWELL, David. “An exclusive
interview with J. M. Coetzee”. Kultur&Nöje. 8 December 2003. Disponível em
<http://www.dn.se/kultur-noje/an-exclusive-interview-with-j-m-coetzee-1.227254>. Acesso em: 16 jan.
2010.
34
a história de Cruso20 e Friday, que habitavam uma ilha deserta. Com esta obra,
Coetzee recebeu o Jerusalem Prize, em 1987. Em O mestre de Petersburgo (1994),
imagina a vida de Dostoiévski no século XIX, na Rússia, e também ganha prêmio
internacional. Avesso à exposição, o escritor raramente é visto em público e nem
costuma aparecer na entrega das premiações, como aconteceu na cerimônia do
Booker Prize.
Muito se comenta sobre a influência dos problemas raciais e políticos da
África do Sul. Embora nem sempre especifique a África do Sul como cenário de suas
narrativas, em Vida e época de Michael K, o país é palco de grande parte da ação.
Este romance apresenta um país etnicamente dividido. É impossível abordar esta
obra sem falar no contexto do apartheid. A narrativa tematiza o racismo contra a
maioria negra que envolve a falta de liberdade – traduzida sobretudo, no toque de
recolher e nas patrulhas –, e também a burocracia, que exige “passes” para ir e vir.
Anna K, mãe de Michael K, é empregada doméstica e mora com o filho num
minúsculo quarto embaixo de uma escada. Diante de um futuro incerto, a narrativa
problematiza o isolamento do indivíduo, estranho em relação a seu tempo. Resta-lhe
viver em tensão com um mundo em constante guerra.
A África do Sul, tendo oficialmente adotado um regime racista, com direitos de
voto e propriedade desiguais, estava dividida entre africâneres (os descendentes de
holandeses, com seu idioma próprio) e a população branca de origem britânica. Em
1948, o apartheid foi oficializado pelo Partido Nacional, em reação ao crescimento
de grupos oposicionistas. Entre as suas normas legais, podemos citar:
20
Attwell (1993:107) menciona que o nome do personagem teve por origem o sobrenome de um
pastor amigo de Coetzee, Timothy Cruso.
35
É ilegal que uma pessoa branca e uma negra tomem juntas uma xícara de
chá num café de qualquer lugar da África do Sul sem que obtenham
permissão especial para fazê-lo (apud PEREIRA, 1986:59).
Para decidir se uma pessoa é ou não “pela aparência, evidentemente
branca”, o funcionário competente leva em consideração “seus hábitos,
educação, modo de falar, aspecto e comportamento geral” (ibid., p.60).
As normas supracitadas impressionam e mostram o que é viver num país com
imensas desigualdades sociais. Condenado pela Organização das Nações Unidas
(ONU), o apartheid (sistema de desenvolvimento nacional separado, ou apartado,
segundo a cor e a raça) é a exacerbação do racismo e a da dominação branca no
continente africano, pois o mesmo institucionalizava a separação da sociedade por
raças, sob o rigoroso comando da raça branca, considerada “como de essência
superior”21.
O sistema sul-africano, ao contrário do nazista, que objetivava dizimar a
maioria judia, não pretende a eliminação da maioria dos africanos, pois se nutre e
depende do trabalho deles. Nesse contexto de dominação, há, portanto, uma
correlação entre negro e explorado. Na África do Sul, havia três grupos raciais: 1) o
grupo branco; 2) o grupo africano, que inclui “toda pessoa, membro de uma raça ou
tribo indígena da África, ou aceita geralmente como tal”; 3) o grupo de cor, que inclui
“todas as pessoas que não sejam membros do grupo branco ou do africano” (ibid.,
p.26-27).
Dentro do apartheid, o “grupo de cor” recebe um tratamento preferencial em
relação ao “grupo africano”. A cor é usada como critério legal para tratamento
desigual entre os homens e reserva aos brancos um conjunto de privilégios,
advindos da exploração da população negra. Essa dominação se exerce de fato
21
Cf. PEREIRA, José Francisco. Apartheid – o horror branco na África do Sul. 3. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1986. p.17.
36
através da exploração econômica. Os brancos eram detentores de quase 90% das
terras cultiváveis da África do Sul e os negros eram tão somente seus empregados.
Dentro desse contexto de dominação, o Ministro do Trabalho podia reservar
uma classe de trabalho somente para brancos ou proibir o empregador de substituir
empregados brancos por africanos. De acordo com Pereira (1986:30), “uma pessoa
negra que realizar, seja como favor especial ou a título gratuito, uma atividade
considerada ‘especializada’ e destinada a branco, é igualmente culpada de delito
reprimido com multa [...], ou prisão por um ano, ou ambas as coisas”.
Essa política de dominação se explica pela existência de uma situação
particular de “colonização interna”, que se consolidou ao longo do processo de
desenvolvimento do capitalismo local. Ao analisarmos as formas históricas de
opressão e dominação da nação africana, percebemos que a exploração da
população negra e o sofrimento que lhe são impostos já vêm do período em que a
África do Sul era uma colônia inglesa, governada por colonos brancos, o que faz do
apartheid um tipo especial de neocolonialismo.
A segregação oficial começa em 1913 com a Lei das Terras, que dividiu o
solo africano, reduziu a posse de terra dos africanos sobre o seu próprio território e
delegou aos brancos a quase totalidade das áreas, conforme mencionado por
Pereira (ibid., p.35).
A política do apartheid também se manifestou no aspecto linguístico. O
afrikaans, língua do governo racista da África do Sul, foi imposto nas escolas negras.
A língua não era internacional e servia para isolar a população. Esta língua era
usada pela polícia, sempre que se exigia o “passe” (documento a ser mostrado pela
população negra para se locomover dentro do território).
37
Mas a luta anti-apartheid tomou impulso através das ações em defesa da
liberdade e da igualdade. Nessa luta, Nelson Mandela se destacou. Considerado
pelo governo um terrorista, Mandela passou quase três décadas no cárcere. Como
jovem estudante de direito, envolveu-se na oposição ao regime do apartheid, que
negava aos negros (maioria da população), mestiços e indianos (uma expressiva
colônia de imigrantes) direitos políticos, sociais e econômicos. Sua luta contra a
segregação racial o tornou presidente da África do Sul de 1994 a 1999. O sonho que
o sustentou durante os vinte e sete anos que passou na prisão foi o que ele
compartilhou com Martin Luther King Jr.: que um dia as pessoas seriam julgadas não
pela raça, mas pelo caráter.
Desde a queda do nazismo, em nenhum lugar essa política desumanizadora
tinha sido institucionalizada de forma tão meticulosa quanto na África do Sul.
Mandela descreveu o apartheid como um “genocídio moral”, “não com campos de
concentração, mas com o extermínio insidioso da autoestima das pessoas”
(CARLIN, 2009:10). Por isso, o apartheid foi considerado por muitos países, entre
eles, os Estados Unidos, a França e a antiga União Soviética, no auge da Guerra
Fria, “um crime contra a humanidade”, segundo a definição da Organização das
Nações Unidas.
Para Mandela, a única maneira de libertar o seu povo era fazer com que os
próprios brancos abolissem o sistema de segregação racial. Para isto, seria
necessário conquistá-los, tratando-os com respeito. Em 1995, Mandela usou a Copa
do Mundo de Rúgbi como instrumento para alcançar a meta que estabelecera para o
período em que seria presidente da África do Sul: reconciliar negros e brancos e
criar as condições para a paz em seu país. Nesse jogo, brancos e negros sentaramse lado a lado. As eleições de 1994 criaram uma nova África do Sul, mas restava o
38
desafio de criar os sul-africanos, ou seja, de estabelecer uma nova identidade não
mais fundada na segregação racial.
Em 1990, foi decretado o fim do apartheid, a partir de inúmeros protestos da
população, os quais vitimaram muitas pessoas. O fim da segregação racial não
significou o término do preconceito racial e a discriminação no país. A luta continua
na África do Sul. As diferenças sociais ainda são imensas. Há bairros luxuosos ao
lado de muita miséria. Após o apartheid, foi criada, em 1995, através da Lei da
Unidade Nacional, a Comissão Verdade e Reconciliação, com o objetivo de
reconstruir a identidade do povo africano e estabelecer uma cultura valorativa contra
a impunidade e a defesa dos direitos humanos. Várias leis discriminatórias foram
anuladas e novas leis criadas para impedir a exclusão social e a segregação. No
entanto, a população africana continua até hoje marcada pelo estigma da cor e pelas
lembranças do apartheid, cuja extinção não resultou no fim do analfabetismo, da
miséria e do desemprego. O sistema de ensino continua precário e, com pouca
qualificação, falta emprego para a população negra. A violência urbana continua
sendo um grande problema, com altas taxas de homicídio e racismo. A situação
atual ainda contém as sementes do passado, mas abriu-se um longo e difícil
caminho a ser percorrido pela população da África do Sul com vistas à superação
das diferenças sociais, econômicas e culturais herdadas de anos de segregação
racial. Na consciência ficou o sonho de uma terra onde não existissem barreiras a
impedir uma pessoa, seja qual fosse a sua raça, de se tornar membro pleno da
nação africana e participante da economia. Esse sonho é um dos pilares que
sustenta a obra Vida e época de Michael K, como veremos. Num contexto tão
opressor, só mesmo o sonho para fazer brotar a esperança.
39
1.3. CHICO BUARQUE: A LITERATURA CONTRA O SILÊNCIO
A auto-definição de “seresteiro, poeta e cantor”, exposta em Noite dos
mascarados22, não caracteriza mais Chico Buarque, que vem se dedicando à ficção.
As suas várias facetas – cantor, compositor, dramaturgo, ficcionista e poeta –
permitem-nos defini-lo como um “artesão da palavra”. Além dessas aptidões, o
escritor mostra em sua obra o comprometimento com as questões políticas e sociais
do nosso país. É difícil falar de Chico Buarque sem mencionar o Brasil.
Filho de Sérgio Buarque de Hollanda – intelectual ilustre, autor de Raízes do
Brasil – e de Maria Amélia Alvim Buarque de Hollanda (pianista amadora), e nascido
em 19 de junho de 1944, o autor tornou-se uma figura importante para a cultura
brasileira. Leitor de Flaubert, Céline, Camus, Sartre, Dostoiévski e Tolstói, sua obra
é composta por inúmeras músicas, romances e peças de teatro. Ourives da palavra,
Chico é autor das peças Roda viva (1968), Calabar, o elogio da traição (1973), Gota
d’água (1975), Ópera do malandro (1979) e da novela Fazenda modelo (1974). A
partir da década de 90, o escritor tem se dedicado à obra romanesca, com a
publicação de Estorvo (1991), Benjamim (1995), Budapeste (2003) e Leite
derramado (2009).
Os três primeiros romances problematizam – entre outras questões – a
solidão de personagens nas grandes cidades. Estorvo e Benjamim apresentam um
clima de desesperança e opressão, exclusão e desânimo, cujas ruínas apontam
para
um
mundo
carente
de
perspectivas,
com
protagonistas
totalmente
desenraizados e alheios à realidade. Ambos os personagens “não veem luz no fim
22
Cf. Homepage de Chico Buarque: <www.chicobuarque.com.br>. Acesso em: 17 jan. 2010.
40
do túnel”, mas ainda assim marcham, na tentativa de sobreviver às artimanhas da
vida.
O romance Estorvo apresenta o trajeto de um personagem anônimo,
desempregado, vivendo às margens do presente: sem sentido, sem volta e sem
projetos. Logo no início, o protagonista, após ver pelo olho mágico do seu
apartamento um rosto misterioso, resolve fugir sem um motivo aparente. Sua visão
parece confusa: “estou zonzo, não entendo o sujeito ali parado de terno e gravata
[...]” (HOLANDA, 2004b:7). Nessa obra, enfatiza-se a distinção entre “ver” e
“conhecer”, na medida em que o personagem, através do olho mágico, vê o
visitante, mas não tem noção da sua identidade, ou seja, não o reconhece. Os
personagens e a cidade são anônimos. Uma vez que tudo na narrativa é colocado
de forma indefinida, os personagens principais não são nomeados.
O nome, para Cassirer (1972:68), não é um mero símbolo, mas “parte da
personalidade de seu portador”. O filósofo afirma que essa conexão entre
personalidade e nome se desenvolve desde as culturas mais antigas. Na sociedade
romana, os escravos não tinham direito a nome, pois “não podiam funcionar como
personalidades independentes” (ibid., p.69). Em Estorvo, não há um nome que
represente os personagens. Eles são apresentados a partir dos atributos físicos ou
função social. Os personagens anônimos são indefinidos, podendo remeter a
qualquer homem, portanto, destituídos de personalidade.
Paradoxalmente, em Benjamim, tudo o que o protagonista não quer é o
anonimato. Todavia, embora tenha um nome (Benjamim Zambraia), sua vida e sua
história também se perdem no torvelinho das suas memórias. Benjamim é a história
de um ex-modelo fotográfico em decadência, que tem a sensação de estar sendo
filmado, como se o mundo fosse um reality show, um set de filmagem. Apesar de
41
possuir um único nome, Benjamim se perde nas inúmeras máscaras e identidades
que toma para si.
Num outro romance de Chico Buarque, Budapeste, o estilhaçamento do ser,
dentre outras vertentes, também se tematiza na figura do duplo, assim como em
Benjamim, e nas complicadas relações familiares de Estorvo. O personagem se
duplica em José/Zsoze Costa/Kósta. Ele escreve textos para outras pessoas,
simulando escrever como se fosse um outro. Além disso, vive em duas cidades,
insere-se em duas estruturas familiares e fala dois códigos linguísticos, o português
e o húngaro. Trata-se, portanto, de representar na simulação ficcional uma outra
simulação, já que o personagem-narrador é um ghost-writer. José/Zsoze
Costa/Kósta tenta encontrar-se refletido em seus livros, que não são seus, são
apenas reflexos, pois escreve por outros. É o dramático papel de encarnar o outro. O
caminhar entre duas realidades faz com que esse personagem se sinta um
estrangeiro, diferente e alheio a tudo. Ao viver da duplicidade, ele aparece
desprovido de pátria, lar ou lugar, pois está sempre em trânsito.
No romance Leite derramado, um homem num leito de hospital, membro de
uma tradicional família brasileira, conta a história de sua linhagem, desde os
ancestrais portugueses até o tataraneto, um garoto, morador do Rio de Janeiro
contemporâneo. A obra é, portanto, uma saga familiar caracterizada pela
decadência social e econômica, tendo como pano de fundo a história do Brasil.
Como mencionamos anteriormente, é difícil falarmos da obra de Chico
Buarque sem nos referirmos à sociedade brasileira, principalmente dos anos
marcados pela ditadura civil-militar. Ela é o panorama que rege o destino de
Benjamim Zambraia, personagem da nossa pesquisa. Em outras palavras, a obra de
Chico – seja em suas peças, romances e músicas – conta a história do seu tempo
42
ao falar dos descaminhos do homem na sociedade. As canções do autor se
revestem de um inegável comprometimento com o social, ora “rendilhado de
romantismo juvenil”, como é o caso de Marcha para um dia de sol, ora já “com uma
realização estética que lhe confere maturidade”, perceptível em Pedro Pedreiro
(MENESES, 2002:18). No entanto, não nos estenderemos muito em suas
composições musicais23.
A formação de Chico Buarque aconteceu num clima histórico de muito
populismo: o trabalhismo getulista, o nacional-desenvolvimento dos anos JK, a
fundação de Brasília, entre outros. Além disso, foi também o período das
vanguardas artísticas, como a poesia concreta (1956), a poesia práxis, o Cinema
Novo (Ruy Guerra e Glauber Rocha), a Bossa-Nova, os grandes trabalhos de
arquitetura de Oscar Niemeyer.
Já na universidade, Chico se vê em meio à emergência dos movimentos
populares, que atingiram o ápice de 1962 a 1964. Foi um dos momentos de intensa
fermentação ideológica e social do Brasil: o movimento estudantil atuante, o
movimento operário, a luta pela reforma agrária, a criação da Universidade de
Brasília por Darcy Ribeiro etc. A vida do compositor foi impregnada por esse clima.
No entanto, toda a euforia foi abruptamente interrompida em 1964, com o golpe
militar. O lirismo ingênuo e adolescente cede espaço para o lirismo nostálgico que
vai se tornar dominante na composição de Chico Buarque na década de 60. A
grande marca será “o retorno a uma situação em que não haja dor” (ibid., p.22).
Essa recusa da realidade presente é, na visão de Adélia Meneses (ibid.), uma
“resistência à massificação do mundo industrializado; resistência à sociedade
atomizada e mutiladora”.
23
Sobre o exame desta questão, ver MENESES, Adélia Bezerra de. Desenho mágico – poesia e
política em Chico Buarque. 3. ed. ampl. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.
43
Em 1968, é decretado o AI-5: prisões, torturas, censuras, desaparecimentos e
exílios configuram-se como panorama da época. O exílio, seja na procura de um
outro país, seja interiormente, torna-se uma realidade para Chico Buarque. Em fins
de 1968, ele compõe Sabiá: “quero deitar à sombra de uma palmeira que já não há/
Colher a flor que já não dá”24. A pátria é exposta, nessa composição, pela carência.
A partir desse momento, acontece uma passagem do “poeta social” ao “poeta
político”, com canções como Apesar de você (1970) e Cálice (1973), esta última em
parceria com Gilberto Gil. A “semântica da repressão” e a “sintaxe da repressão” se
tornam elementos estruturais nas canções25. O conteúdo e a sintaxe das músicas
remetem ao momento político-social sombrio. Emprega-se uma linguagem figurada
para a abordagem da opressão vivida pelo país. A repressão aparece de forma
velada nas letras das músicas, como podemos perceber na canção “Acorda, Amor”.
Conforme ressaltado por Adélia Meneses (2002:71-72), notam-se referências à
época sombria: a ditadura (“Era a dura/ Numa muito escura viatura”), as prisões na
calada da noite (“Não é mais pecado nada/ Tem gente já no vão da escada/ [...]/ São
os homens”), o sumiço inexplicável (“Mas depois de um ano eu não vindo/ Ponha a
roupa de domingo/ E pode me esquecer”), os empecilhos (“Se você corre, o bicho
pega/ Se fica, não sei não”), a insegurança (“Dias desses chega a sua hora”). No
entanto, podemos interpretar a canção de uma outra maneira: o malandro eliminado
pela polícia dos “Esquadrões da Morte”. Dessa forma, segundo Adélia Meneses
(ibid., p.72), as prisões de madrugada, a insegurança e o sumiço são comuns a
ambas situações – a marginalidade social (os criminosos) e a marginalidade política
(os contrários ao regime).
24
Cf. Homepage de Chico Buarque: <www.chicobuarque.com.br>. Acesso em: 17 jan. 2010.
Cf. MENESES, Adélia Bezerra de. Desenho mágico – poesia e política em Chico Buarque, op. cit.,
p.36.
25
44
Voltando a sua obra romanesca, especificamente Benjamim, a narrativa
acontece no espaço de tempo entre os doze tiros do pelotão de fuzilamento,
disparados simultaneamente. Não há perspectiva futura e o passado se torna
presente. A memória do protagonista se revelará um labirinto de sombras, um túnel
escuro, o lugar da solidão. A “semântica da repressão” e a “sintaxe da repressão” da
ditadura civil-militar fazem parte da construção romanesca. As referências ao
momento histórico aparecem na linguagem indireta. Não são mencionados termos
como “ditadura civil-militar” ou “repressão”, mas se fala de “casal foragido da lei”,
“investida de oficiais inescrupulosos”, entre outros. A época é retratada como algo
distante e misterioso. As prisões, o sumiço e os impasses remetem ao campo
semântico da repressão. O tratamento misterioso da política é exposto na
objetividade do narrador diante dos fatos narrados. A cidade vive o tempo da pedra,
do mundo massificado, da exploração generalizada, do consumo, da cultura do
espetáculo. A condição humana, diante das sombras do tempo, é caracterizada na
obra. Benjamim mostra, portanto, os descaminhos de um sujeito que não conta com
ninguém, nem consigo mesmo, vivendo num labirinto fantasmático.
As canções e as narrativas do escritor aparecem como uma arma contra o
silêncio imposto pela censura da época de repressão. Nelas a história brasileira é
apresentada nas pequenas experiências cotidianas: nos pedreiros que esperam
trens e aumentos que não chegam, nas prostitutas infelizes, nos malandros, nos
pivetes e nos guris. Aqui, o silêncio não está relacionado com a ausência de
palavras, mas com o “ficar calado”, à cassação do direito de expressão.
Minuto de silêncio, lei do silêncio, impor silêncio, quebrar o silêncio... São
muitos os sentidos da palavra silêncio. Num texto, o sujeito da enunciação pode
sugerir sem dizer, como acontece com as canções de Chico Buarque “Cálice” e
45
“Apesar de você”. Em “Apesar de você”, percebe-se a associação à realidade
repressiva do poder e que configura uma situação de escuridão: “Hoje você é quem
manda / Falou, tá falado / Não tem discussão [...] Todo esse amor reprimido / Esse
grito contido / Esse samba no escuro”26. Desse modo, a época sombria da ditadura
não é representada de forma clara, mas através de associações convencionais,
como podemos perceber também em Benjamim.
26
Cf. Homepage de Chico Buarque: <www.chicobuarque.com.br>. Acesso em: 27 mai. 2010.
46
2. O UNIVERSO LABIRÍNTICO DE JOSEF K.
2.1. A HISTÓRIA DO ABSURDO
“Alguém certamente havia caluniado Josef K.”. É com essa frase que Franz
Kafka inicia O processo. O narrador onisciente conta a história do último ano de vida
do personagem Josef K., um funcionário importante de um banco. Na manhã em que
completou trinta anos de idade, Josef K. é acordado, na pensão onde se hospeda,
por dois funcionários da Justiça, que lhe comunicam a sua detenção. No início, K.
pensa que é uma brincadeira em virtude do seu aniversário, mas logo percebe que a
acusação é séria. Os agentes, que se dizem subordinados a uma autoridade
superior, negam-se a comunicar o motivo da detenção. Em meio ao estranhamento27
da situação na qual se vê envolvido, Josef K. afirma-se inocente. O superior lhe
comunica, então, que poderia responder ao inquérito em liberdade e exercer
normalmente a sua profissão, mas deveria comparecer a todos os interrogatórios do
tribunal de justiça.
Numa manhã de domingo, avisado pelo telefone, Josef K. vai ao primeiro
interrogatório. O tribunal está situado num prédio afastado do centro, habitado por
funcionários. No prédio, homens em mangas de camisa estão debruçados na janela,
fumando ou segurando nos parapeitos crianças pequenas. Em outras janelas, há
pilhas de roupas no varal. As pessoas chamam umas às outras aos gritos. Uma
vitrola toca num volume ensurdecedor.
Numa sala superlotada, Josef K. se apresenta ao juiz de instrução, que o
confunde com um pintor de paredes. Na audiência, o juiz de instrução usa um
27
Aqui estranheza no sentido de espantoso, fora do comum.
47
pequeno livro de notas como autos do processo, “uma espécie de caderneta escolar,
velha, disforme de tanto ser folheada” (P,44). Enquanto K. faz um longo discurso
mostrando o absurdo da sua detenção e a corrupção dos funcionários da justiça, um
jovem estudante mantém relação sexual com a lavadeira do prédio, na sala de
audiência.
No domingo seguinte, Josef K. volta ao tribunal, mas não há audiências
naquele dia. K. conversa com a lavadeira, que lhe diz ser a esposa do oficial de
justiça e, por ser bonita, é obrigada a ser amante de juízes, estudantes e moradores
do prédio, com a permissão do marido, que receia perder o emprego. A lavadeira se
oferece a K. e lhe deixa ver os livros que estão na mesa do juiz. Ao abri-los, ele
percebe que são livros obscenos e romances. O personagem conhece o oficial de
justiça, que o leva ao andar superior, onde fica o cartório: um longo corredor obscuro
com compartimentos separados por grades. O ambiente é tão repugnante que Josef
K. desmaia.
No banco, onde exerce a função de procurador, Josef K. assiste ao
espancamento dos dois funcionários denunciados por ele no tribunal. Estes
funcionários roubaram as roupas de K. no dia da detenção. Josef K. tenta evitar o
castigo, mas não consegue. O espancador diz: “fui empregado para espancar, por
isso espanco” (ibid., p.89).
Numa tarde, K. recebe a visita do tio Karl, que, tendo sabido do processo,
oferece ajuda ao sobrinho, levando-o ao advogado Huld. Este está doente, mas
atende os dois no quarto. Enquanto o tio conversa com o advogado, K. conhece a
jovem Leni e se relaciona sexualmente com ela. Durante os encontros com o
advogado, este, sempre de cama, lhe faz longos discursos sobre a máquina
48
burocrática do tribunal, mas não lhe informa nada sobre o seu processo, pois ainda
está aguardando o momento oportuno para redigir a petição inicial.
Um industrial, cliente do banco, aconselha Josef K. a entrar em contato com o
pintor Titorelli, que prestava serviços aos juízes do tribunal. O pintor explica que
existem três possibilidades de absolvição: a real, que ninguém nunca conseguiu; a
aparente, provisória, sob a influência de amigos dos juízes, a qual pode perder seu
efeito e o acusado ser preso novamente; e o processo arrastado, em que o
procedimento judicial é mantido de forma permanente no estágio inferior do
processo, obrigando o acusado a estar em contato com os juízes constantemente.
Desanimado, Josef K. volta pela última vez à residência do advogado Huld
para dispensar seus serviços. K. encontra o comerciante Block, outro cliente do
advogado e amante de Leni, que, apesar de ter contratado mais cinco advogados e
abandonado seus negócios para se dedicar integralmente ao seu processo, após
cinco anos ainda não obteve nenhum resultado. Josef K., após uma longa
discussão, dispensa a ajuda do advogado e nunca mais volta a procurá-lo.
Num dia chuvoso, Josef K. tem a incumbência de mostrar alguns
monumentos artísticos a um amigo italiano do banco, que visitava a cidade pela
primeira vez. K. marca um encontro na catedral, porém, ao chegar lá, encontra não o
cliente italiano, mas um sacerdote, o capelão da prisão. Este o chama num grito. O
sacerdote lhe revela que seu processo vai mal, pois o tribunal inferior já considera
sua culpa provada. Após tecer comentários sobre o tribunal, o sacerdote lhe conta a
parábola “Diante da lei”. Nesta, um homem do campo chega ao portão de entrada da
lei. Mas o porteiro não o deixa entrar. O homem pergunta se então não pode entrar
mais tarde e o porteiro retruca que “é possível”. O camponês fica à espera. Ele
agrada e até mesmo suborna o porteiro. Este aceita, mas continua negando a sua
49
entrada. Os anos vão passando e o porteiro torna-se tão familiar que o camponês
fica conhecendo até “as pulgas da sua gola de pele” (P,215). Após muitos anos, o
camponês à beira da morte pergunta por que até aquele momento nunca ninguém
havia passado por aquela porta. O porteiro diz que aquela entrada havia sido feita
para ele. Em seguida, o porteiro entra e fecha a porta. Josef K. e o sacerdote travam
um tenso diálogo sobre a parábola.
Na véspera do seu trigésimo aniversário, de noite, dois senhores foram à
pensão onde K. morava e o levaram para fora da cidade, junto a uma pedreira
deserta. Durante a caminhada, Josef K. percebe que “as folhas de uma janela
abriram-se” e indaga-se: “quem era? Um amigo? Uma pessoa de bem? Alguém que
participava? Alguém que queria ajudar? Era apenas um? Eram todos? Havia ainda
possibilidade de ajuda?” (ibid., p.227). Josef K., na ânsia de viver, interroga o
tribunal: “onde estava o juiz que ele nunca tinha visto? Onde estava o alto tribunal ao
qual ele nunca havia chegado?” (ibid., p.228). Em desespero, ergue as mãos e
estica os dedos, como se estivesse suplicando. Os funcionários da justiça retiram o
paletó, o colete e a camisa de K., dobrando-as cuidadosamente. Enquanto um dos
senhores colocava as mãos na garganta de K., o outro pegava uma faca de
açougueiro e cravava no seu coração, virando-a duas vezes. Josef K. exclama:
“como um cão”.
2.2. O MUNDO FRAGMENTADO E SOMBRIO
Franz Kafka começou a escrever aquele que foi considerado pela crítica um
dos maiores romances do século, O processo, em agosto de 1914. Tempos depois,
o escritor se confessaria “quase incapaz” de dar prosseguimento à obra. Modesto
50
Carone, que escreveu o “Posfácio” à tradução brasileira do romance, afirma que o
romancista, às vezes, interrompia a escrita, deixando uma lacuna na folha, a fim de
tentar o capítulo seguinte. A dispersão de textos, muitos inacabados e divididos,
aponta para as lacunas de uma realidade fantasmagórica28. O texto apresenta o
mal-estar de uma escrita que procura manter o enigma, o mal-entendido, as
suposições.
A vasta fortuna crítica de O processo nos faz refletir sobre a possibilidade de
se dizer algo de novo sobre essa obra. Segundo Bakhtin (2003:362), as narrativas
dissolvem as fronteiras de seu tempo, vivem nos séculos posteriores, no “grande
tempo”. Ao longo dos anos, as obras vão se enriquecendo com novos sentidos,
construídos em cada momento histórico. O romance é um gênero em formação,
atualizado constantemente pela “complexidade e pela extensão insólitas de nosso
mundo” (BAKHTIN, 1993:428). Nesse sentido, as obras literárias estão sempre
abertas às diversas leituras.
Na perspectiva de Bakhtin, as grandes obras constituem uma forma singular
de atribuir sentidos ao homem e ao mundo. Essas obras trazem, implícita ou
explicitamente, o que o pensador russo chama de “imensos tesouros dos sentidos”,
que em sua época ainda não foram desvelados, potencializando-os em toda a sua
plenitude. É por isso que as narrativas de Kafka são tão atuais, apesar de escritas
no início do século XX. Portanto, as obras não se restringem à época
contemporânea do escritor. Elas apresentam irradiações do passado e projeções
para o futuro, sendo revisitadas por sucessivas gerações, indo além de seus limites
de espaço e tempo.
28
No nosso trabalho, a palavra “fantasmagórica” é utilizada com o sentido de algo aterrorizador e
sombrio (FERREIRA, s/d:611).
51
O homem não é um ser acabado, mas em processo de formação, que reflete
em si mesmo “a formação histórica do mundo”. A capacidade de ver o tempo e de ler
o tempo é, para Bakhtin (2003:225), a “capacidade de ler os indícios do curso do
tempo” [grifo do autor]. O artista procura interpretar as intenções humanas e as
diversas gerações.
Dessa forma, em virtude da relação estabelecida entre as obras literárias e o
tempo, mencionada anteriormente, torna-se necessário discutirmos a concepção de
mundo apresentada em O processo, a fim de entendermos a realidade alienante,
injusta e opressora expressa na narrativa.
Nas primeiras páginas, deparamo-nos com o lado sombrio e obscuro da
realidade de Josef K. Qual é a acusação que paira contra ele? Quem o acusa?
Como se desenrolará o processo judicial? As interrogações são muitas e instauram
uma atmosfera de dúvidas. O texto não responde as dúvidas do leitor, mas
apresenta perguntas cada vez mais inquietantes. As interrogações levam a uma
outra e principal pergunta: Quem é Josef K.? Esta é a pergunta-chave para
tentarmos compreender a realidade labiríntica do personagem. As únicas
informações que temos são: Josef K. é procurador de um banco; tem trinta anos;
não mantém uma relação estreita com os familiares; não tem esposa, namorada e
amigos; mora numa pensão; a satisfação da necessidade da relação sexual é obtida
quase mecanicamente: uma vez por semana, à hora marcada, visita uma prostituta.
Portanto, Josef K. vive isoladamente, não pertence a ninguém e não se integra ao
meio. Não nos é apresentada a história de sua procedência. O protagonista ganha
sentido a partir da relação estabelecida com o mundo.
A instauração de um processo penal obriga Josef K. a sair do seu isolamento.
E, buscando respostas, ele toma conhecimento de empregados subalternos do
52
banco, de funcionários da justiça, sente necessidade da ajuda de um advogado,
recebe a visita do tio e aceita ajuda, relaciona-se sexualmente com a jovem Leni na
esperança de apoio e visita o pintor dos tribunais, Titorelli. Enfim, as pessoas ao seu
redor parecem finalmente começar a existir. Embora solitário, Josef K. não existe
sozinho. Ele se liga aos outros. Mesmo que o personagem, inicialmente, não trave
um diálogo ou perceba os outros, existe uma cadeia de relações entre eles. Josef K.
é representado no conjunto de relações que o liga à realidade social e aos seus
problemas. A singularidade do personagem aparece justamente nas relações
estabelecidas com os outros personagens ao redor.
Lukács (1968a) menciona a importância da “fisionomia intelectual”29 através
da qual o escritor caracteriza e amplia a vivência dos personagens. A obra parte de
temas e personagens particulares e, na medida em que vai se construindo, outros
particulares vão se relacionando e construindo o universal. O mundo é, portanto, um
grande labirinto que arrasta para dentro de si uma infinidade de personagens, cujos
problemas viram o de todos. O conjunto de caracteres que individualizam Josef K.,
como sua função e as relações estabelecidas com as pessoas ao redor, torna o
personagem “amplo, profundo e universal”, como veremos mais adiante (ibid.,
p.175).
Os lugares pelos quais o protagonista transita são limitados: a pensão, o
banco, o tribunal, o cartório e a catedral. Esses ambientes são marcados pela
redução dos códigos de convivência social, pois não constrói laços tradicionais de
identidade, mas relações impessoais com indivíduos tomados como meros
passageiros: clientes, usuários, hóspedes, entre outros. Cada indivíduo é
simplesmente um entre os vários anônimos que transitam por esses lugares.
29
“A fisionomia intelectual dos personagens artísticos”, p.165-214. In: LUKÁCS, G. Marxismo e teoria
da literatura, 1968a, op. cit.
53
O espaço na narrativa, além do caráter impessoal, também se revela como
um labirinto. São diversos os momentos em que o narrador menciona escadas,
corredores e portas. Josef K. se sente perdido ao percorrer os corredores asfixiantes
do tribunal, como podemos perceber a seguir:
K. voltou-se para a escada que devia levá-lo à sala de audiência, mas ficou
outra vez parado, pois além dessa escada viu no pátio três outras
escadarias e, fora isso, uma pequena passagem no fundo, que parecia dar
acesso a um segundo pátio. Irritou-se por não lhe terem indicado melhor o
caminho [...] (P,39).
O protagonista parece estar num labirinto diante das três escadarias. O
labirinto é composto de uma multiplicidade de caminhos com o objetivo de impedir a
chegada do viajante ao local desejado. As escadarias, os corredores e as portas
constituem grandes obstáculos para Josef K., dominando-o e sobrepondo-se a ele.
O protagonista não consegue se desvencilhar do emaranhado de veredas. Ele fica
atordoado diante das passagens que encontra. Como um símbolo de defesa, o
labirinto sugere a presença de algo precioso. Temos a impressão de que as
escadarias e corredores têm o objetivo de dificultar o acesso dos condenados à lei.
A acusação que paira sobre K. é misteriosa. Ao visitar os cartórios do tribunal, o ar
sufocante, pesado e irrespirável provoca em K. o sentimento de completo
aturdimento:
– Então não quero ver tudo – disse K., que aliás se sentia efetivamente
cansado. – Quero ir, como se chega à saída?
– Será que o senhor está perdido? – perguntou atônito o oficial de justiça.
[...]
– Venha comigo – disse K. – Mostre-me o caminho, eu vou errá-lo, aqui há
tantos caminhos [grifo nosso] (ibid., p.69).
54
Os vários caminhos encontrados por Josef K. não são uma trilha para chegar
a um objetivo ou destino, mas, sobretudo, uma marca do aprisionamento. O
protagonista caminha pelas suas veredas e não consegue chegar ao ponto que
deseja atingir, ou seja, descobrir o motivo do processo contra ele. Quanto mais
caminha, ou seja, procura solucionar o seu problema, mais Josef K. se complica. O
isolamento e o sentimento de impotência são cada vez maiores. Ele continua
marchando, perseverando. Busca um passado desconhecido causador do processo
e tenta se desvincular de um presente angustiante. E isso é o que há de
surpreendente na concepção de mundo em O processo: a presença de um paradoxo
– a experiência da frustração, de um lado, e a perseverança, de outro. Josef K. tenta
explicar algo que não pode ser explicado: a sua detenção. Nessa caminhada,
persevera em busca de respostas, mas quanto mais avança, mais se frustra ao
perceber a burocracia e a corrupção dos trâmites jurídicos. K., como diz Carone
(2006:478), é “uma vítima da corrupção e do caráter associal de uma dominação
criminosa e totalitária que prenuncia o fascismo”.
Sísifo personifica bem esse dilema da perseverança e do fatalismo30 ao ser
condenado pelos deuses a empurrar incessantemente uma pedra até o alto da
montanha e ter que refazer o trabalho, pois ela tornava a cair. O mito de Sísifo
caracteriza um trabalho inútil e a impotência, pois a cada fracasso, há uma repetição
vã31. Na narrativa kafkiana, o personagem tenta forçar um contato com o
“responsável” pela sua detenção, mas cada tentativa é um fracasso. O fracasso é a
força que o põe em movimento e o impulsiona a ir até o fim.
30
Paulo Bezerra, em “Sísifo: a utopia das utopias” (2006), diz que no fatalismo o homem está
subordinado a uma força sobrenatural que o sobrepõe e também a uma ordem social primordial.
31
Cf. CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paula Watch. 4. ed. Rio de
Janeiro; São Paulo: Record, 2007.
55
Michel Foucault, em Vigiar e punir, procura discutir os poderes e micropoderes exercidos na sociedade para controle da população e que são também
instrumentos de violência. A prisão funciona como uma manifestação de controle
social. O escritor investiga a história das prisões e os suplícios infligidos pelos
antigos regimes punitivos e mostra que as formas de punição não ficaram
simplesmente mais brandas e, sim, mais abrangentes, a partir da lógica do mundo
capitalista (FOUCAULT, 2009).
Vemos, em O processo e mais adiante em Na colônia penal, um sistema
punitivo que procura manter um controle total sobre a vida e o corpo do indivíduo. O
caráter secreto do julgamento é um componente a mais no sistema de controle. O
saber aparece como um privilégio absoluto da acusação. Nesse sentido, o completo
alheamento do condenado funciona como uma espécie de suplício, já que ele não
pode se defender ou se rebelar. Josef K. tem a sua reação tolhida por uma força
burocrática e poderosa. O desconhecimento da acusação impede a sua defesa. Na
obra, há duas formas de tortura. Ela acontece numa dimensão psicológica,
perceptível na ansiedade do protagonista e na falta de respostas, e fisicamente, com
o espancamento dos dois guardas Franz e Willen, punidos pelo roubo das roupas de
Josef K.
Nas sociedades atuais, a prisão se transformou na forma moderna de controle
a ocupar o lugar do suplício. No entanto, o controle absoluto sobre a vida e o tempo
do condenado não é exclusivo da prisão. O Estado controla a vida da população
através de outros sistemas como o educacional, o de saúde, entre outros. Na obra
kafkiana, o poder exercido sobre a sociedade é apresentado prioritariamente nas
estruturas judiciais, que controlam a vida dos indivíduos como uma instituição
intocável e inquestionável.
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Foucault faz uma reflexão sobre o Panóptico de Bentham, uma figura
arquitetural que funciona como uma espécie de laboratório de poder:
[...] na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre: esta é
vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a
construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a
espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior,
correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite
que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na
torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado,
um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da
torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas
cativas nas celas da periferia. [...] Cada um, em seu lugar, está bem
trancado em sua cela de onde é visto de frente pelo vigia; mas os muros
laterais impedem que entre em contato com seus companheiros
(FOUCAULT, 2009:190).
A construção parece um grande labirinto. Os “detentos” são vistos, mas não
veem. O efeito da construção instaura nos detentos um estado consciente e
permanente de que são vistos e vigiados. Bentham, segundo Foucault (ibid., 191),
colocou a concepção de que o poder devia ser visível e inverificável. Visível porque
o detento terá sempre diante de si a silhueta da torre central de onde é espionado. E
inverificável, pois “o detento nunca deve saber se está sendo observado; mas deve
ter certeza de que sempre pode sê-lo”. Desse modo, os detentos são totalmente
vistos, sem nunca ver. O Panóptico não deve ser considerado como um simples
encarceramento, mas “um mecanismo de poder levado à sua forma ideal” (ibid.,
p.194). Um poder que é exercido diretamente sobre os indivíduos, com o objetivo de
intervir, coagir e dominar.
A realidade labiríntica de Josef K. se assemelha à construção arquitetônica de
Bentham. O personagem está sozinho diante dos problemas que enfrenta, mas é
constantemente vigiado. Assim como os detentos da construção, Josef K. se
encontra preso, embora responda ao processo em “liberdade”. No entanto, é uma
57
falsa liberdade, em virtude da constante vigilância. K. tem os passos controlados,
mas não consegue perceber as figuras humanas que representam o poder. A
narrativa mostra, portanto, um “supercontrole”, no qual as pessoas devem estar
constantemente em observação.
Voltando ao espaço labiríntico, as inúmeras escadarias, corredores e portas
encontradas por Josef K. indicam a existência de um caminho que o leva
diretamente à instância máxima responsável pelo seu processo. Ainda que
misteriosamente impenetrável, existe um caminho, obstruído por inúmeros
compartimentos, salas e corredores.
No tribunal, “uma estreita escada de madeira dava acesso provavelmente ao
sótão, fazendo uma curva, de maneira que não se via o seu fim” [grifo nosso] (P,62).
O caráter infinito e inalcançável do topo da escadaria dialoga com o processo
movido contra Josef K. A escada aparece como símbolo das instâncias jurídicas. O
aspecto obscuro e sinuoso da escada é uma quase metonímia da obscuridade e da
sinuosidade do processo. Há uma relação entre o espaço físico do tribunal e o
processo movido contra K.: ambos são obscuros e de difícil compreensão. O Estado
exerce um controle sobre a vida dos indivíduos podendo dispor deles de acordo com
as suas determinações. O processo penal é indefensável e a execução é
humilhante.
A descrição do tribunal e dos cartórios beira o absurdo. Os escritórios do
tribunal ficam nos sótãos da cidade grande, lugares onde colocamos coisas inúteis e
que queremos esquecer. Mas, o próprio tribunal é incapaz de esquecer. O cartório,
por sua vez, “não era uma instalação capaz de infundir muito respeito”, era o lugar
onde os inquilinos “jogavam a sua tralha inútil” (ibid., p.63). Os acusados ficavam à
58
espera em corredores soturnos. Em visita aos cartórios do tribunal, Josef K. sente-se
como que “mareado”, à deriva em alto mar:
Acreditava encontrar-se num navio em mar grosso. Para ele, era como se a
água se precipitasse contra as paredes de madeira, como se do fundo do
corredor chegasse um estrondo de águas dobrando sobre si mesmas, como
se o corredor balançasse no sentido da sua largura, e como se as partes
interessadas subissem e descessem dos dois lados (P,76).
A náusea revela o mal-estar de Josef K. diante da situação na qual se vê
envolvido. Esse sentimento de aturdimento é logo desfeito, quando ele é conduzido
para fora do cartório. Ao sair daquele lugar, “era como se todas as suas forças
tivessem voltado de uma só vez” (ibid.). Os funcionários, por sua vez, habituados à
atmosfera do cartório, “suportavam mal o ar relativamente fresco que vinha da
escada” (ibid.). Verifica-se, portanto, o contraste entre o acusado Josef K. e aquele
que já está acostumado com as instâncias jurídicas, subjugado pelo sistema
opressor e burocrático. O protagonista sente dificuldades em respirar o ar asfixiante
do cartório, enquanto os funcionários não suportam o ar puro que vinha de fora.
Estes parecem corpos dóceis e adestrados pelo sistema jurídico a ponto de não
conseguirem se relacionar com o que está fora desta esfera burocrática. Eles
aceitam a realidade opressora, contra a qual nada podem fazer. A única forma de
sobrevivência é a rendição total ao maquinário dilacerante das estruturas judiciais e
políticas. O narrador, num determinado momento, esclarece que é preciso:
Tentar perceber que aquele grande organismo judicial fica, por assim dizer,
eternamente pairando e que na verdade, quando se muda alguma coisa por
conta própria, a partir da posição que se ocupa, retira-se o chão debaixo
dos próprios pés, e se pode sofrer uma queda, ao passo que o grande
organismo cria facilmente para si mesmo, em outro lugar, um substituto para
a pequena perturbação [...] [grifo nosso] (ibid., p.122).
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As instâncias jurídicas são definidas como um “grande organismo”, no qual
cada parte está interligada a outra. Quando uma parte sofre algum tipo de dano, são
instaurados novos mecanismos para suprir a carência. Desse modo, o poder
funciona em cadeia. A onipresença do sistema jurídico eternamente pairando é um
indício de sua ubiquidade e da condição trágica do cidadão no Estado totalitário, que
tem mil olhos para espiá-lo. O sistema jurídico, conforme mencionado por K., está
em toda parte e sempre alerta.
No caso de Josef K., a procura por respostas pode provocar danos e, assim,
“retira-se o chão debaixo dos próprios pés”. A decisão acertada “é se conformar com
as condições existentes” (P,122). O conformismo é uma ferramenta da dominação
que visa não apenas à sujeição, mas tornar a pessoa cada vez mais obediente e útil.
Percebe-se, portanto, a falta de alternativas para Josef K. em meio a essa atmosfera
de opressão.
Essa atmosfera obscura e sombria aparece em várias descrições ao longo da
narrativa. Ao ser despertado, Josef K. não recebe o café da manhã como de
costume. Quando vai pela primeira vez ao tribunal, “o tempo estava turvo” (ibid.,
p.38). Numa das visitas à instância do tribunal no sótão, o ar pesado causa-lhe malestar e vertigens. No entanto, a abertura de uma lucarna não melhora o seu estado,
pois ao invés de ar puro entra sujeira e fuligem (ibid., p.71-72). O ateliê do pintor
Titorelli tinha o ar abafado e, apesar de possuir uma janela, o vidro era fixado na
moldura, sem possibilidade de abertura. A ausência de janelas e a impossibilidade
de abertura aludem à total opressão.
O ambiente, demarcado pelas janelas, é muito marcante na narrativa. No
momento da “detenção” de Josef K., um casal de idosos e um homem observavam
do prédio em frente (ibid., p.18-19). Num outro momento, o hábito de olhar pela
60
janela de Josef K. causa a indignação do tio Albert: “Você está olhando pela janela!
– exclamou o tio de braços erguidos” (P,94). As janelas remetem à abertura para o
mundo exterior, como se o personagem buscasse apoio para resolver as
dificuldades. No momento de sua morte, K. vê as janelas de uma casa se abrindo e
pensa que talvez pudesse ser uma ajuda (ibid., p.227). Desse modo, as janelas
traduzem as vias de acesso ao mundo exterior, e, ao mesmo tempo, a exclusão total
desse mundo.
As janelas e portas também assumem o caráter de barreiras que dificultam o
acesso a alguma coisa ou algum lugar. A empregada do advogado Huld só abre a
porta após muita insistência dos visitantes (ibid., p.101). Do quarto de despejo do
banco, Josef K. ouve os gritos dos guardas que estavam sendo espancados. Mas ao
sair do quarto e bater a porta, “os gritos desapareceram por completo” (ibid., p.90). A
porta, portanto, remete à passagem para o conhecido e o desconhecido. Ela é o
acesso ou o obstáculo para se descobrir o que motiva o processo contra K. Ela não
apenas indica uma passagem, como também convida a atravessá-la. Ao ser
interpelado, na catedral, pelo sacerdote (capelão do presídio), Josef K. pensa em
fugir: “No momento ainda estava livre, ainda podia continuar andando e escapulir por
uma das três pequenas portas escuras de madeira à sua frente, não muito distantes”
(ibid., p.210). Nesse sentido, as portas apresentam-se como uma possibilidade de
fuga e consequente salvação.
A atmosfera nesses ambientes aparece impregnada por uma névoa sombria,
associando-se às dificuldades encontradas por Josef K., na tentativa de entender e
solucionar a sua detenção. Há, portanto, um diálogo entre as estruturas narrativas
de tempo e espaço e a concepção de mundo expressa na obra. A escuridão revela o
seu caráter simbólico, como podemos perceber no grito do sacerdote diante dos
61
comentários difamatórios de K. sobre o tribunal: “Será que você não enxerga dois
passos adiante” (P,213). Josef K. não consegue enxergar ou entender o que se
passa diante dos seus olhos em virtude das sombras, num sentido figurado, que o
impedem de ver além. O tempo turvo e a obscuridade do processo de K. se
relacionam, mostrando que ambos estão interligados.
Na maioria das cenas em que o protagonista é levado a procurar respostas
dentro de espaços que se assemelham a um labirinto – a pensão, o banco, o
tribunal, a igreja – uma mulher o está esperando como uma espécie de conforto,
como a esposa do oficial de justiça e a enfermeira Leni. Essas personagens
femininas, secundárias na narrativa, parecem ter a função de distrair ou iludir Josef
K. A personagem Leni trabalha como enfermeira e governanta para o advogado,
mas também parece oferecer distração aos homens acusados do tribunal,
principalmente os que exibem sentimento de culpa. O próprio sacerdote (capelão do
presídio) alerta Josef K. quanto às ajudas que ele busca: “Você procura demais a
ajuda de estranhos [...] Principalmente entre as mulheres. Não percebe que não é
essa a ajuda verdadeira?” (ibid., p.212).
A estrutura social em O processo abrange diversos níveis. Apesar de alguns
personagens secundários terem nomes, eles são marcados, sobretudo, pela
profissão ou parentesco. Poderíamos dividi-los em grupos: 1º) os ligados ao poder
judiciário: inspetor, guardas (Franz e Willen), estudante de direito (Berthold), chefe
de cartório, oficial de justiça, juiz de instrução, encarregado de informação, capitão
(Lanz), advogado (Huld), sacerdote (capelão do presídio), pintor Titorelli (espécie de
agente do poder); 2º) pertencentes às camadas subalternas: prostituta (Elsa),
lavadeira, professora de francês (Montag), enfermeira (Leni), sobrinha (Erna), dona
da pensão (Grubach), cozinheira (Anna), datilógrafa (Bürstner); 3º) pertencentes ao
62
setor econômico: procurador do banco (Josef K.), proprietário rural (Albert Karl),
comerciante (Block), industrial. A descrição de cada um gira em torno da função
exercida. Os personagens com alguma ligação com o tribunal são descritos usando
barba e com insígnias de tamanho e cor diversos nas golas dos casacos.
A descrição dessa estrutura é essencial para a construção da visão labiríntica,
sombria e opressora da sociedade. Os personagens parecem conhecer o segredo
por trás da detenção de Josef K. e os trâmites judiciais. As atitudes desses
personagens mantêm a sensação de sufocamento e de emparedamento que ronda
K., como os “conselhos” do pintor Titorelli sobre o processo, que ao invés de
promover o entendimento, obscurecem-no mais ainda. A lavadeira, que mantém
uma relação estreita com os tribunais especiais, também não ajuda K. a ter acesso
ao processo. A função desses personagens na narrativa parece mostrar a
incapacidade de Josef K. em lidar com o processo em andamento. Ele é a imagem
do indivíduo despreparado para o mundo. Uma vez modificada a rotina – não lhe
entregaram o café da manhã como de costume –, K. é incapaz de agir diante do
imprevisto.
Os personagens não se sobressaem pelo caráter ou alguma ação praticada,
mas de acordo com a função ou posição que ocupam dentro do mundo oposto a
Josef K. Segundo Anders (2007:62),
as pessoas que Kafka faz entrarem em cena são arrancadas da plenitude
da existência humana. Muitas, de fato, não são outra coisa senão funções:
um homem é mensageiro e nada mais que isso; uma mulher é uma “boa
relação” e nada mais que isso. Mas este “nada mais que isso” não é uma
invenção kafkiana: tem seu modelo na realidade moderna, na qual o homem
age só em função especial, na qual ele “é” sua profissão, na qual a divisão
do trabalho o tornou mero papel especializado [grifo do autor].
63
Como bem expôs Anders, a profissão é a forma exclusiva do homem e “nada
mais que isso”. Esta questão não é, portanto, uma invenção kafkiana, mas alude à
sociedade moderna, na qual o valor humano é medido de acordo com o papel
exercido. A divisão do trabalho acontece de acordo com a especialização de cada
um. Essa identificação entre homem e profissão faz com que Kafka traga para a
cena personagens que exercem funções/profissões que, numa sociedade em que a
igualdade de direito predomine, não deveriam existir como o espancador.
A definição dos personagens pela sua função ou tarefa é sintoma de um
mundo que transforma os indivíduos em peças de engrenagem. Os seres humanos
são rebaixados à função de objetos, que fazem funcionar o sistema, que os anula,
os desumaniza e os mata como seres, como sujeitos. A afirmação do espancador
em O processo mostra essa questão: “fui empregado para espancar, por isso
espanco” (P,89). Sem o menor indício de consciência, ele apenas obedece. Uma vez
apanhados com a “mão na massa” e submetidos a processos, todos os torturadores
dizem que apenas cumpriam ordem superior. São evasivos quanto à capacidade de
julgar, inaptos a refletir sobre os eventos, a questionar os próprios atos e incapazes
de se colocarem no lugar do outro. A resposta do espancador nos remete a alguém
despojado de poder de decisão, que não vive, pois é guiado pelos outros. Este
personagem se esgota na função exercida, sendo, portanto, destituído de qualquer
valor que o ultrapasse. O conjunto de elementos fundamentais, como a moral, a fé, a
honestidade etc., desaparece das consciências individuais. O espancador é um
funcionário que representa apenas “um dente” no conjunto de engrenagem e, por
isso, acredita-se livre de qualquer atribuição individual de culpabilidade e
responsabilidade.
64
Marx, nos Manifestos de 1844, indicou os quatro principais aspectos da
alienação: 1) a alienação dos seres humanos em relação à natureza; 2) à sua
própria atividade produtiva; 3) à sua espécie; e 4) de uns em relação aos outros.
Portanto, o conceito de alienação está ligado ao estranhamento do homem em
relação à natureza e a si mesmo e a manifestação desse processo na relação entre
homem-humanidade e homem e homem32. O homem passa de sujeito ativo a objeto
do processo social. Ele não vive sua própria vida, mas desempenha funções
preestabelecidas.
Os guardas espancados, quando progridem, tornam-se espancadores
também, mas em virtude da denúncia de K. de que eles tomaram o seu café da
manhã e pegaram as suas roupas, a carreira estava arruinada. Se K. não os tivesse
denunciado, mesmo que os superiores tomassem conhecimento da falta, eles não
seriam punidos. Nas palavras de Willem – um dos guardas – “tínhamos perspectivas
de progredir”, verifica-se o conceito de alienação exposto, apesar da constatação:
“recebemos neste momento estas pancadas horrivelmente dolorosas” (P,87;88). A
atitude de K. é ainda mais estranha. Ele tenta subornar o espancador a fim de evitar
a violência, mas ao ouvir os gritos de um dos guardas desfere contra ele um golpe,
com medo de que os colegas de trabalho o surpreendessem em negociações
ilegais. Essa atitude expõe os paradoxos de se usar os mesmos meios ilícitos – o
suborno – de uma justiça corrupta.
A descrição da cena do espancamento assim como todas apresentadas ao
longo da narrativa são minuciosas. Os gestos e as atitudes são expostas
detalhadamente. O aspecto psicológico dos personagens nos é transmitido pelas
32
Cf. MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004 e MÉSZÁROS,
István. A teoria da alienação em Marx. Tradução de Isa Tavares. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2006.
p.20.
65
coisas que os rodeiam, além do tempo e do espaço, através da atmosfera sombria e
dos corredores e portas asfixiantes. No momento do espancamento, um dos guardas
se esconde atrás do outro a fim de evitar a agressão (P,87). Percebemos, portanto,
o medo do personagem traduzido em seus gestos ou atitudes.
Lukács, em “Narrar ou descrever”33, contrapõe o predomínio da narração ao
predomínio da descrição em alguns romancistas, como Emile Zola e Liev Tolstói.
Segundo ele, o autor que privilegia a descrição faz crer que a realidade se refere ao
que está sendo dito no momento em que é descrita. A narração, ao contrário,
“distingue e ordena”, estimulando a compreensão da realidade como um processo
em transformação (LUKÁCS, 1968b:66). Lukács associa narrar e descrever,
respectivamente, à atitude de quem vive os acontecimentos e à atitude de quem se
limita a observar de forma contemplativa. Com esse enfoque, as coisas podem ser
descritas, mas os fatos concernentes aos “destinos humanos” devem ser narrados.
Embora a nossa pesquisa não trabalhe com a concepção de romance que perpassa
a crítica literária de Lukács, entendemos que os seus estudos sobre o narrar e o
descrever são importantes para uma melhor compreensão dessas questões no
universo romanesco. Em O processo, os personagens demonstram como são pelo
modo como agem, ou seja, narração e descrição estão relacionadas. Kafka não
apenas observa o drama dos homens, mas o narra, enriquecendo os personagens e
as situações.
Na visão de Rosenfeld (1976:233), a “narrativa kafkiana se verifica em geral
tendo por foco o herói, a partir de quem é projetado o mundo”. Não é Josef K. que
narra O processo, mas um narrador que se refere ao protagonista através do
pronome “ele”. Desse modo, a visão do mundo é transmitida objetivamente. A
33
Texto de 1936, publicado em: Ensaios sobre literatura, 1968b, p.47-99.
66
narração em terceira pessoa gera uma linguagem sóbria e fria. O leitor ignora o
passado do protagonista, indicado muitas vezes apenas pela letra K.
A tragicidade perpassa a realidade sombria e obscura de Josef K., em virtude
da falta de solução e da impossibilidade de salvação. O personagem não aceita
simplesmente seu destino, mas procura decifrá-lo. Ele vai a alguns lugares em
busca de informação sobre seu caso – empurra portas, atravessa corredores –, mas
nenhuma das tentativas o ajuda a solucionar o enigma da detenção. Ele não possui
o fio de Ariadne, como Teseu, a fim de ajudá-lo a encontrar uma saída para o seu
problema.
Para Lukács (2007:213), “a ‘história romanesca’ obriga seus heróis a
rebelarem-se contra a necessidade (coisa que jamais ocorre na tragédia), a
carregarem o fardo tanto maior de lutarem à própria revelia contra o destino
opressor”. Em nota, o escritor diz que “[...] enquanto o homem trágico se bate com o
destino, o homem da ‘história romanesca’ luta contra o destino” [grifo do autor]. A
solidão trágica diante do destino inelutável é o grande impasse. O trágico está no
fato de o homem sucumbir no próprio caminho que escolheu para fugir da ruína,
como é o caso de Édipo, que resolve partir a fim de evitar a “profecia” do oráculo de
que viria a ser o assassino de seu pai e o esposo de sua mãe. Mas a fuga de seus
supostos pais o conduz ao encontro do seu verdadeiro pai. O que seria a salvação
se transforma em aniquilamento. Szondi, em Ensaio sobre o trágico, faz um
comentário que explica essa questão em Édipo:
[...] nos três destinos que compõem ao mesmo tempo um só destino, os
oráculos marcam uma gradação trágica, em que os elementos antagônicos
ficam cada vez mais ligados, a duplicidade sendo reduzida à unidade de
modo cada vez mais inexorável: Laio foge de seu assassino pelo caminho
que o leva ao encontro dele – o jovem Édipo tenta escapar do ato mortal
anunciado e comete esse ato em sua fuga – o rei Édipo busca os
67
assassinos de Laio, temendo que eles se tornem seus assassinos, e
encontra a si mesmo (SZONDI, 2004:94).
Na tentativa de elucidar o assassinato de Laio, Édipo descobre que é réu de
sua própria investigação. Antes, porém, da descoberta, ele amaldiçoa a si mesmo:
“O criminoso ignoto, seja ele um só/ ou acumpliciado, peço agora aos deuses/ que
viva na desgraça e miseravelmente!” (SÓFOCLES, 2004:29). Édipo deixa um mundo
ilusório de felicidade para um abismo de desgraça, devendo, portanto, sofrer o seu
infortúnio. Desse modo, em virtude da falta de alternativas, o herói trágico caminha
sempre em direção à própria destruição. A partir do momento em que comete uma
falta, o equilíbrio e a harmonia são destruídos e a lógica do mundo rompida.
Em O processo, não há um personagem trágico tal como na tragédia, mas a
tragicidade da existência perpassa a narrativa. Josef K. luta contra o destino cruel
que ronda a sua vida. Ele procura respostas e ajuda até o final. Neste momento, ele
percebe que já não há mais chance de sobrevivência e se resigna.
O aspecto opressivo do mundo de Kafka resulta da obscuridade dos
acontecimentos relatados, que se assemelham a um pesadelo. O pesadelo não se
deve apenas aos acontecimentos terríveis, como a detenção, a falta de solução, o
espancamento e o assassinato, mas também à ausência de momentos não
marcados pela tensão. Josef K. está sempre numa situação de opressão. Nenhum
personagem ou ação é envolvido por uma atmosfera mais amena. Até a catedral,
que deveria ser um lugar de tranquilidade, parece envolta por um clima obscuro e
opressor. Quando Josef K. a visita para se encontrar com um amigo italiano do
banco, o dia está muito chuvoso e escuro. A atmosfera confusa, que ronda o
protagonista, é também traduzida nas condições climáticas. A narrativa está sempre
68
envolvida num clima sombrio – a ausência de luz –, apontando para o
aprisionamento de K. diante de um processo sem fundamento.
Todas as tentativas de se entender o processo de Josef K. entram em choque
com a primeira frase do romance, que afirma: “Alguém certamente havia caluniado
Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum”. Essa frase instaura
todo o questionamento que a narrativa vai desenvolver: injustiça, mentira, burocracia
e corrupção.
Podemos observar que a frase inicial do romance não é apresentada como
uma opinião subjetiva do protagonista, mas como uma informação objetiva. Ela se
diferencia da opinião subjetiva expressa por Josef K.: “[...] o caso também não pode
ter tanta importância. Tiro essa conclusão do fato de ser acusado e não conseguir
descobrir a mínima culpa da qual me pudessem acusar” (P,17) Em outro momento,
ele diz ao pintor Titorelli: “sou completamente inocente” (ibid., p.148). No entanto, a
ideia da calúnia não é levada adiante. A detenção de Josef K. parece uma espécie
de ameaça, pois ele continua exercendo o seu ofício. O tribunal responsável pelo
julgamento apresenta um procedimento inexplicável e fora do alcance do acusado.
O próprio acusado e o advogado não têm acesso à ata de acusação. Desse modo,
Josef K. se depara com a impossibilidade de defender-se, já que desconhece a
acusação. O leitor tem a sensação de que a lei, que discutiremos em outro
momento, não existe. Contudo, ela existe. Há uma poderosa organização legal que
dispõe do poder de vida e de morte sobre as pessoas, conforme denunciado por
Josef K.:
[...] por trás da detenção e do inquérito de hoje, se encontra uma grande
organização. Uma organização que mobiliza não só guardas corrompíveis,
inspetores e juízes de instrução pueris, no melhor dos casos simplórios,
mas que, além disso, de qualquer modo, sustenta uma magistratura de grau
69
elevado e superior, com o seu séquito inumerável e inevitável de contínuos,
escriturários, gendarmes e outros auxiliares, talvez até de carrascos, não
recuo diante dessa palavra. E que sentido tem essa organização, meus
senhores? Consiste em prender pessoas inocentes e mover contra elas
processos absurdos e na maioria das vezes infrutíferos, como no meu caso
[grifo nosso] (P,49).
Como podemos perceber, Josef K. luta contra essa “grande organização”
solitariamente. Contudo, ele tem consciência de que não é a única vítima dessa
“justiça”, pois ela atinge várias pessoas. Visitando os cartórios do tribunal, K.
encontra outros acusados que, apesar de mal vestidos, pertenciam às classes
superiores.
Assim,
o
caráter
injusto
do
tribunal
humilha
os
acusados,
independentemente da classe social, e move contra eles processos infrutíferos. A
referência ao carrasco é significativa, pois Josef K. parece ter consciência do
fatalismo do processo e do final reservado para ele. Na véspera do seu trigésimo
primeiro aniversário, dois senhores chegam à casa dele. Josef K. pergunta: “Então
os senhores é que me foram destinados?” (ibid., p.223). O personagem, muito bem
vestido, parecia estar à espreita de alguém.
A primeira reação de Josef K. contra a sua detenção é protestar, denunciar e
mostrar seu desprezo pelas instâncias do tribunal. Todos os personagens aos quais
ele pede auxílio aconselham a submissão e a confissão. Mas como confessar algo
desconhecido? A resistência de Josef K. é aniquilada nas páginas finais ao resignarse perante os carrascos. Ele parece resignado com seu destino e cansado de lutar
em vão. Talvez ele tenha percebido a sua pequenez diante da imensa organização
que mobiliza muitas pessoas. K. ainda consegue dizer no final: “era como se a
vergonha devesse sobreviver a ele” (ibid., p.228). A vergonha de ter morrido “como
um cão”, humilhado e subjugado por um tribunal desconhecido. O sentimento de
indignação e desprezo que consome Josef K. durante boa parte da narrativa vai aos
70
poucos se transformando em um sentimento de impotência, gerado pela acusação
infundada. Josef K. reflete antes de morrer:
a única coisa que posso fazer agora é conservar até o fim um discernimento
tranquilo. Eu sempre quis abarcar o mundo com as pernas, e além do mais
com um objetivo reprovável. Isso não estava certo. Devo então demonstrar
que nem sequer o processo de um ano me serviu de lição? Devo acabar
como um homem obtuso? (P,225).
O monólogo interior do personagem sugere o sentimento de culpa de que se
deveria viver de outro modo “não abarcando o mundo com as pernas”. Esse
sentimento é reforçado pela constatação “isso não estava certo”, apesar de não
haver nenhuma informação literal na obra de que Josef K. se considere culpado. A
sua inocência é reforçada durante o encontro com o sacerdote. Josef K. diz: “Mas eu
não sou culpado [...] É um equívoco” (ibid., p.211). Na ocasião, ele indaga se o
processo tem algo a ver com os assuntos humanos: “como é que um ser humano
pode ser culpado? Aqui somos todos seres humanos, tanto uns como outros” (ibid.,
p.211). O protagonista reconhece seus inevitáveis erros e deficiências enquanto ser
humano. Ele não resiste às artimanhas incompreensíveis do tribunal. A submissão
gera um sentimento de vergonha, como se verifica no último fragmento do romance.
Josef K. se resigna ao preferir “a segurança da solução que o curso natural das
coisas tinha de trazer” (ibid., p.13). Percebe-se, portanto, que o sistema é tão terrível
que K. acaba criando uma censura interior e justificando a acusação. Por isso, K.
interroga o sacerdote se a acusação se referia aos assuntos humanos,
reconhecendo os seus defeitos. A superestrutura jurídico-burocrática forma uma
grande teia na qual os indivíduos são enredados como presa.
O romance não começa num dia qualquer, mas no dia em que Josef K.
completava trinta anos de idade. A morte acontece na véspera do trigésimo primeiro
71
aniversário. O tempo, como vimos, atravessado por uma névoa de sombra, tem algo
de inumano e perturbador. A falta de sentido é significativa e atinge a consciência de
Josef K. A consciência de um mundo sem sentido suscita a impressão de sonho e
pesadelo. As imagens decorrentes desse processo não são gratuitas, mas se
relacionam com toda a atmosfera que perpassa a obra.
A duração de tempo entre a acusação e a morte de Josef K. é de um ano. O
romance começa na primavera e termina no inverno. A vida do personagem parece
acompanhar o ciclo da natureza. No entanto, embora a primavera esteja relacionada
à época de renascimento e florescimento, é nesse momento que começa a “via
crucis” que conduzirá o personagem à morte. Sua morte acontece à noite, em pleno
inverno – símbolo de escuridão e frio.
Há, portanto, na narrativa, um labirinto sem saída e o acesso ao mistério é
negado. As portas, como já observamos, aparecem quase obsessivamente. No
entanto, mesmo abertas, vedam o acesso à “lei”. Josef K. é assassinado com uma
faca de açougueiro de lâmina dupla que é enterrada em seu coração e virada duas
vezes. Três anos antes de começar O processo, Kafka anota em seu diário: “Hoje
bem cedo pela primeira vez desde há muito tempo, de novo a alegria de imaginar
uma faca a rodar o meu coração”34 (D,89). A faca é um instrumento utilizado nos
sacrifícios. O seu sentido é associado às ideias de execução e de vingança, além de
sacrifício. A faca utilizada na execução de K. possui lâminas duplas, cujo efeito é
avassalador. Os carrascos a viram duas vezes, como se quisessem evitar qualquer
chance de sobrevivência. A faca a rodar o coração de Kafka parece supor a
existência de algo que agita ou importuna o escritor, a ponto de tirá-lo da
passividade.
34
Anotação de 2 de novembro de 1911.
72
Ao longo de nossa exposição, abordamos algumas “imagens” que povoam a
narrativa kafkiana, como as janelas, as portas, os corredores, o despertar, o labirinto
e a escuridão. Ao sair da catedral, a escuridão cercava Josef K. por todos os lados a
ponto de ele exclamar: “Mas eu não consigo me orientar sozinho no escuro” (P,222).
A escuridão aparece como uma completa desorientação do personagem, acentuada,
sobretudo, pelo labirinto de corredores e portas. Ele, de fato, não consegue se
orientar sozinho e, por isso, busca a ajuda do advogado e do pintor. Contudo, o
auxílio a que recorre se revela um contrassenso, pois ao invés de orientar o
protagonista o confunde ainda mais.
Os indivíduos são arrastados por estruturas de poder das quais não
descobrem a lógica e, portanto, não conseguem articular qualquer mecanismo de
resistência.
2.3. O ESTRANHO E O NATURAL
Após o estudo sobre o mundo fragmentado e sombrio de Josef K., cabe
refletir sobre o aparecimento de personagens e situações estranhas ao longo da
narrativa. Como analisamos anteriormente, o absurdo na obra kafkiana é carregado
de sentidos que dialogam com a atmosfera de sombras e o homem desestabilizado
diante de um “superpoder” que controla a sua vida e transforma todos os esforços
numa iniciativa inútil.
É necessário, portanto, definirmos o que é estranho e natural em O processo.
Não estamos dizendo que a narrativa kafkiana se insere no maravilhoso e no
fantástico, mas que apresenta acontecimentos que ora podem ser explicados pela
razão, ora escapam ao razoável.
73
Todorov (2008:31) define o fantástico como “a hesitação experimentada por
um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente
sobrenatural”. É a ruptura de uma ordem estabelecida. A hesitação do leitor é, para
o escritor, a primeira condição para o fantástico. Caso o leitor perceba que as leis da
realidade permanecem intactas e que os fenômenos descritos podem ser
explicados, entramos no estranho. Para o autor, no estranho:
[...] relatam-se acontecimentos que podem perfeitamente ser explicados
pelas leis da razão, mas que são, de uma maneira ou de outra, incríveis,
extraordinários, chocantes, singulares, inquietantes, insólitos e que, por esta
razão, provocam na personagem e no leitor reação semelhante àquela que
os textos fantásticos nos tornaram familiar (ibid., p.53).
No maravilhoso, novas leis da natureza devem ser admitidas para a
explicação dos fenômenos. Todorov analisa A metamorfose, de Kafka, como uma
narrativa do sobrenatural. Para o autor, o sobrenatural aparece logo na primeira
frase do texto: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos,
encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso” (KAFKA,
1997:7). Aos poucos, o personagem aceita sua situação como inabitual, mas
possível. Segundo o escritor, A metamorfose se distingue das histórias fantásticas
tradicionais, pois o acontecimento estranho não aparece após indicações indiretas,
mas logo no início. Para ele,
A narrativa fantástica partia de uma situação perfeitamente natural para
alcançar o sobrenatural, “A Metamorfose” parte do acontecimento
sobrenatural para dar-lhe, no curso da narrativa, uma aparência cada vez
mais natural; e o final da história é o mais distante possível do sobrenatural
(TODOROV, 2008:179).
O mundo, em A metamorfose, é completamente bizarro e anormal. As
situações são tão sobrenaturais que não provocam mais hesitação no leitor,
74
segundo Todorov (2008:181). Diferentemente, O processo não é uma narrativa nem
fantástica e nem sobrenatural. A obra apresenta fatos estranhos, no sentido de
estarem fora da ordem tradicional, que podem ser, no entanto, explicados pelas leis
da razão, conforme definido por Todorov. Mas, para os personagens, os
acontecimentos parecem ser completamente normais.
Estudando o mundo kafkiano, Anders (2007:15) faz uma interessante
observação:
A fisionomia do mundo kafkiano aparece desloucada. Mas Kafka deslouca a
aparência aparentemente normal do nosso mundo louco, para tornar visível
sua loucura. Manipula, contudo, essa aparência louca como algo muito
normal e, com isso, descreve até mesmo o fato louco de que o mundo louco
seja considerado normal [grifo do autor].
Através do jogo de palavras entre verrücken (deslocar) e verrückt, particípio
do verbo que, como adjetivo, significa louco, Anders descreve a concepção kafkiana
de apresentar situações deformadas para introduzir o seu objeto principal: o homem.
O espantoso é, portanto, a própria realidade. Ela aparece contaminada pela
máquina administrativa que desumaniza e oprime os seres humanos.
São inúmeras as situações de O processo que se descortinam no horizonte
dessa questão desloucada35. No início da narrativa, já nos deparamos com a
atmosfera explicitada por Anders. Josef K. é despertado por dois guardas vestidos
com uma roupa preta justa e estranha. Kafka transforma o fato estranho, ou seja,
esquisito – a detenção sem motivo aparente – em natural para o protagonista, por
mais absurdo que pareça ao leitor os acontecimentos. O ponto de partida é uma
rotina que se diferencia da ordem, que sai do “normal”.
35
Cf. ANDERS, 2007, p.15.
75
A primeira inquirição é ainda mais absurda. Ela é feita por um “inspetor” no
quarto da senhorita Bürstner, com três funcionários do banco que tinham a missão
de “ajudar”. Um casal de idosos e um homem observavam tudo pela janela do prédio
em frente. Constata-se, portanto, que esta audiência foge da normalidade. O mais
espantoso é saber que Josef K. está detido, mas poderá exercer suas funções
normalmente. A atmosfera de mistério e estranheza envolve o leitor. No início, Josef
K. pensa que sua detenção se trata de uma brincadeira dos colegas do banco, mas
logo percebe que era verdade (P,10).
As audiências acontecem aos domingos, em lugares estranhos. Os cartórios
ficam no sótão de prédios velhos e os acusados desconhecem a acusação, pois “os
documentos do tribunal, sobretudo o auto de acusação, permaneciam inacessíveis
ao acusado e à defesa” (ibid., p.116-117). São, portanto, muitos os elementos
esquisitos e inusitados, que, em conjunto, aludem a uma atmosfera fantasmagórica,
aterrorizadora e sombria.
Josef K., ao acordar, tem a sensação de que tudo não passa de um pesadelo,
um sonho mau e angustiante que atormenta e gera a sensação de impotência. Ao
transitar entre um cômodo e outro, o protagonista percebe pessoas que não
estavam na cena anterior, como os três funcionários do banco, evidenciando a
atmosfera fantasmagórica. Nos sonhos, as cenas aparecem nebulosas e
desconexas e mostram a dificuldade de uma interpretação precisa. Nesse mundo,
até o acordar revela-se como algo tenebroso, como acontece também com Gregor
Samsa, em A metamorfose, que é transformado num inseto, e K., de O castelo, ao
ser despertado do seu sono num albergue. É quando Josef K. acorda que o
pesadelo começa. Como já foi dito, a atmosfera sombria relaciona-se com o mundo
onírico, revelando a impenetrabilidade do mundo dos personagens.
76
A apresentação de Josef K. no tribunal remete ao absurdo, no sentido dos
acontecimentos ocorridos serem contrários ao bom senso, pois ferem as regras da
lógica. No ambiente estava uma multidão que se comportava fora dos padrões
estabelecidos para uma sala de audiência. No meio do discurso de Josef K., um
homem mantém relações sexuais com uma lavadeira em pleno tribunal. O
protagonista pensa que a assembleia expulsaria o casal, mas “ninguém se mexeu e
ninguém deixou K. passar. Pelo contrário, impediram-no [...]” (P,50). Portanto, o
estranho em O processo está relacionado ao mundo dos acontecimentos reais do
cotidiano, de onde irrompe um fato inusitado. Mas os acontecimentos ocorrem
dentro de um mundo conhecido, que permite aos personagens identificá-los como
algo natural.
Os fatos estranhos e grotescos, mencionados anteriormente, funcionam como
uma espécie de ironia diante da opressão e da corrupção do tribunal. Franz Kafka
utiliza fatos absurdos para demonstrar o assombro que o homem experimenta ao se
sentir “um nada” diante de um poder sem limites. Para representar esse absurdo,
Kafka dá vida a um jogo de contrastes entre o natural e o estranho, o absurdo e o
lógico. Josef K. vive, portanto, situações impensáveis dentro de uma realidade
comum, que desafiam a nossa forma habitual de compreensão.
O romance é permeado por uma atmosfera de pesadelo. Há rostos que
observam pelas janelas; figuras desconexas que aparecem nas salas e quartos;
olhos que espiam por fechaduras; advogados que provavelmente trabalham
secretamente para os acusadores do réu; quartos de tortura, entre outros. Todas
essas cenas mostram o caráter estranho da experiência vivida por Josef K.
A função da senhorita Bürstner no romance é misteriosa. Embora se diga que
“não há qualquer relação entre ela e o julgamento de K.”, o narrador menciona em
77
outro momento que a relação de K. com a senhorita Bürstner “parecia oscilar de
acordo com o processo” (P,126). A presença dela parece prenúncio de algo ruim.
Quando Josef K. é levado para a pedreira pelos dois carrascos “emergiu diante
deles, na praça, por uma pequena escada vindo de uma rua situada em nível mais
baixo, a senhorita Bürstner” (ibid., p.225). Os três a seguem, não porque K. quisesse
alcançá-la ou vê-la, mas “para não esquecer a advertência que ela significava para
ele” (ibid.). A senhorita Bürstner aparece como a advertência de que algo ruim pode
acontecer, como uma “lição”. É difícil, portanto, deduzir da obra a “lição” ou a
suposta culpa de Josef K. Ele sente uma forte atração pela senhorita Bürstner e
tenta conseguir apoio dela no início do processo. K. é advertido pelo sacerdote ao
buscar apoio de mulheres como a lavadeira, Leni e a senhorita Bürstner. Kafka
atribui a Josef K. uma metáfora animal, quando ele se atira sobre a senhorita
Bürstner, beijando-a “como um animal sedento que passa a língua sobre a fonte de
água finalmente encontrada” (ibid., p.35). Um desejo carnal, um desejo de domínio.
Como podemos verificar, as situações estranhas e espantosas apresentadas
ao longo da narrativa mostram o mundo desloucado de Josef K., que o condena a
morrer “como um cão”, subjugado por forças opressoras incontroláveis. O
espantoso, conforme afirma Anders (2007:22), é despojado de espanto. Os
personagens são mergulhados em sucessivas situações absurdas das quais não
conseguem escapar. Essas situações traduzem a realidade abstrusa que ronda
Josef K. e impedem qualquer forma de salvação. O mundo desloucado, explicitado
por Anders, também é o panorama da novela Na colônia penal, que apresentaremos
no próximo capítulo. Nela, o funcionamento de uma máquina de tortura é narrado
com muita naturalidade por seu maior adepto, o oficial. A máquina é um dispositivo
elaborado para executar transgressores e fazê-los pagar por supostos delitos com o
78
máximo de dor e tormento. A execução é uma festa, um espetáculo com o objetivo
de infundir o medo e o respeito para com a autoridade que exerce o poder. A
realidade horrenda é tida como algo plausível e aceitável.
79
3. NA COLÔNIA PENAL E OS LABIRINTOS DA DOR
3.1. A NARRATIVA DO HORROR
A novela Na colônia penal, de Franz Kafka, parece uma narrativa do horror.
Antes de um estudo detalhado, faremos um breve roteiro dessa obra, que nos
remete às várias formas de terror extremado do século XX, como o Holocausto.
A novela, narrada em terceira pessoa, tem quatro personagens principais: o
viajante (Reisende) – explorador (Forschungsreisende), na tradução de Modesto
Carone –, o oficial, o condenado e o soldado. Além destes, há ainda dois
personagens que são apenas mencionados: o antigo e o novo comandante. O antigo
comandante é o inventor e construtor da máquina de tortura e execução,
assemelhando-se a um monarca absoluto. Na definição do explorador, ele era
“soldado, juiz, construtor, químico e desenhista” (NCP,36) e seu principal discípulo é
o oficial. As sentenças judiciais eram escritas e desenhadas à mão pelo comandante
morto e cabiam numa pequena bolsa de couro, guardada no peito pelo oficial. O
novo comandante, detentor de ideias mais avançadas, não se vale dos seus
poderes para eliminar seus inimigos. Ele aproveita a visita do viajante, promovido a
especialista, para se livrar dos discípulos do seu antecessor e da máquina arcaica
por ele deixada. A máquina de tortura foi montada num “pequeno vale, profundo e
arenoso, cercado de encostas” por todos os lados (ibid., p.29).
O condenado e o soldado são descritos como duas figuras grosseiras e
primitivas. Este segura o condenado com uma pesada corrente, de onde partem as
correntes menores que o prendem pelo pescoço, cotovelos e pulsos. O condenado é
80
descrito com um “ar estúpido, boca larga, cabelo e rosto em desalinho”, de uma
“sujeição canina” (NCP,29).
O explorador é convidado pelo novo comandante a assistir à execução de um
soldado. Enquanto o explorador anda de um lado para outro, demonstrando falta de
interesse pelo aparelho de tortura, o oficial providencia os últimos preparativos. O
oficial supervisiona a máquina com grande zelo, por ser adepto do aparelho. A
seguir, o oficial explica ao explorador o funcionamento da máquina de tortura e de
execução. Sua descrição minuciosa ocupa mais da metade da narrativa. A conversa
entre o oficial e o explorador acontece em francês.
O aparelho é comporto por três partes: cama, desenhador e rastelo. O
mandamento que o condenado infringiu é escrito no seu corpo com o rastelo, de
modo que a escrita fique clarividente e o próprio corpo possa decifrar a culpa
desconhecida. O aparelho não mata de imediato. O suplício dura doze horas.
O oficial diz ao explorador que o soldado condenado não conhecia a sentença
e não teve oportunidade de se defender. A sua culpa foi ter dormido durante o
serviço, não cumprindo o dever de se levantar a cada hora e bater continência
diante da porta do capitão. O capitão pegou o chicote de montaria e vergastou-o no
rosto. O soldado se levantou, agarrou o superior pelas pernas, sacudiu-o e disse:
“atire fora o chicote ou eu o engulo vivo” (ibid., p.38).
Na máquina, o condenado é colocado pelo oficial. Mas uma correia gasta
acaba arrebentando. O oficial resolve consertar, pois o novo comandante não
substitui as peças antigas. Após o conserto, o processo de execução recomeça. No
entanto, quando o oficial enfia um “tampão de feltro” na boca do condenado, este,
num acesso irresistível de náusea, vomita. Novamente o processo é interrompido e o
soldado começa a limpar a máquina. O oficial fica irritado e confessa ao explorador
81
que era o único defensor da máquina, herança do antigo comandante, e conta, com
nostalgia, que antigamente a execução parecia uma festa, pois muitas pessoas se
alinhavam em volta da máquina para assisti-la. O comandante levava suas mulheres
e deixava até as crianças presenciarem o ato da execução. Emocionado, o oficial
pensa ter visto no olhar vago do explorador o mesmo sentimento e lhe propõe,
então, uma aliança. O explorador tenta contestar o peso de sua influência e não
quer tomar uma posição. No entanto, pressionado pelo oficial, o explorador se
declara adversário da máquina, da tortura e da execução. Ao posicionar-se contra, o
explorador desencadeia a frustração do oficial operador, que via nele a possibilidade
de conseguir o apoio do novo comandante.
O oficial, percebendo que não convencera o explorador, liberta o condenado.
A seguir, ele procura uma nova folha na carteira de couro que contém as sentenças
do antigo comandante. Escolhe uma e apresenta ao explorador. Contudo, o
explorador não consegue decifrar. O oficial, então, soletra a sentença “Seja justo”.
Em seguida, sobe no aparelho, troca a sentença antiga pela nova, despe-se, dobra
com cuidado suas roupas, deita-se e pede ao soldado para ser amarrado36. A
máquina, antes silenciosa, começa a funcionar ruidosamente. O soldado e o excondenado olham com muita excitação. O explorador tenta expulsá-los, mas não
consegue. De repente, escuta-se um ruído esquisito e a máquina começa a se
desintegrar.
O explorador tenta intervir fazendo a máquina parar, pois já não era mais uma
tortura, como pretendia o oficial, mas assassinato. O viajante procura retirar o oficial,
mas nesse momento vê quase contra a sua vontade o rosto do cadáver: “Estava
36
O ato do oficial de retirar as roupas e dobrá-las antes de se colocar na máquina lembra o final de O
processo. Os guardas retiram as roupas de Josef K. e as dobram cuidadosamente antes de matá-lo
(P,226-227).
82
como tinha sido em vida; não se descobria nele nenhum sinal da prometida
redenção” (NCP,67).
Após a morte do oficial, o viajante resolve voltar para a colônia, ou seja, a
cidade. Ao chegar numa das casas da colônia, é informado de que o antigo
comandante estava enterrado ali, pois o clero negou para ele um lugar no cemitério.
O explorador, ao observar a casa, sentiu “a força dos velhos tempos” (ibid., p.68).
O explorador se dirige ao barco que o levará até o navio a vapor e é seguido
pelo soldado e o condenado que queriam embarcar juntamente com ele. Todavia, o
explorador se recusa a levá-los consigo, ameaçando-os.
3.2. AS RELAÇÕES DE PODER
Desvendar a obra Na colônia penal é penetrar no universo de questões como
a perda do direito de expressão, a ausência de liberdade, a rigidez dos sistemas,
além da desumanidade. A cada releitura, o leitor vai se modificando e fazendo novas
descobertas. Cada um lê com as marcas de seu tempo e de sua cultura e, por isso,
novos sentidos vão se agregando e constituindo um novo texto. Uma das
interpretações que podemos fazer do conto kafkiano está relacionada com os
mecanismos de poder. As interrogações são muitas e sugerem a incongruência
entre a Lei e as suas funções, na medida em que os condenados não têm o direito à
defesa e desconhecem a acusação, assim como em O processo.
As leis têm como objetivo manter a ordem em uma determinada comunidade.
Feitas pelos homens, elas devem contemplar a todos. No conto kafkiano, um
soldado é condenado e desconhece a sentença. Mas, ao contrário de Josef K., o
seu delito é divulgado para o explorador: o soldado deverá morrer sob tortura porque
83
adormecera em serviço e agredira seu superior. A sua falta é transformada em crime
de morte. Nas duas obras literárias, a arbitrariedade está em se condenar e executar
alguém sem direito à defesa. Não existem respostas para as inúmeras perguntas
suscitadas ao longo da narrativa. Os personagens são considerados culpados
apesar de não sabermos ao certo as regras da Lei.
Percorrendo os labirintos da Lei da colônia penal, percebemos que a única
coisa acertada para os condenados é se conformar com os desígnios dos
superiores. Franz Kafka escolheu o mecanismo judicial para suas reflexões, mas sua
crítica não se resume a esse universo. A questão da lei, que desenvolve ao longo de
sua obra, apresenta uma multiplicidade de interpretações.
O título da narrativa já é uma advertência. Uma colônia é mantida sob
domínio, inclusive econômico, por um determinado Estado. A colônia kafkiana,
situada num “pequeno vale, profundo e arenoso, cercado de encostas nuas por
todos os lados”, é o espaço encarregado da execução da sentença numa máquina
de tortura (NCP,29). Como é ressaltado na novela, os procedimentos adotados para
cumprir as sentenças judiciais estão ultrapassados e o novo comandante pretende
adotar novos sistemas.
Nesse processo, a presença do explorador – um estrangeiro – é importante
para pôr em dúvida as sentenças determinadas pelos mecanismos judiciais e a
legitimidade da Lei. O explorador estrangeiro representa o olhar de fora, isento de
qualquer influência. O oficial, por sua vez, como um dedicado adepto, queixa-se do
descaso do atual comandante para com a máquina. Esta não recebe a devida
manutenção, segundo o oficial e, por esta razão, o espetáculo antes oferecido não
acontece mais. Com as suas reclamações, o oficial busca o apoio do estrangeiro
84
para dar prosseguimento ao método de punição do antigo comandante, considerado
ultrapassado pelas autoridades da época.
A colônia torna visível o atraso da sua concepção de justiça. Sob a ótica do
explorador estrangeiro, na colônia perduram uma forma de poder questionável e a
desumanidade de todo o processo penal. Contudo, a narrativa não deixa clara a
forma mais avançada de justiça pretendida pelo novo comandante.
Relacionando o conto kafkiano com o nosso tempo, percebemos que o
processo penal apenas mudou a sua fisionomia, mas ele ainda continua desumano:
cadeias lotadas, uma lei que favorece os mais ricos, um sistema penal que não
educa, mas desumaniza.
A prisão, que deveria ser instrumento de “reeducação”, é um fracasso, pois
não “recupera” o “desviado”. No entanto, tal constatação não motivou seu abandono,
mas é o fio condutor de projetos de aperfeiçoamento que, embora reformados,
continuam desumanizando. Os criminosos, assim como os subversivos, os pobres e
os avessos à disciplina, são vistos como um grande mal. A prisão funciona como um
instrumento de controle e poder. Longe de transformar os criminosos em pessoas
honestas, a prisão fabrica novos criminosos, conforme ressalta Foucault, em
Microfísica do poder (2008:131-132).
Na colônia penal kafkiana, há uma relação entre “sofrimento” e “poder”. As
agulhas da máquina escrevem a sentença no corpo dos que forem condenados de
modo que a escrita fique clarividente e o próprio corpo possa decifrar a culpa
desconhecida. O condenado não lê com os olhos, mas com as feridas. Enquanto
pessoas sem direito, nenhuma delas merece ser informada ou ter notícia do delito.
Elas estão condenadas a viver experiências, mas não têm o direito de decidir sobre
elas.
85
O antigo comandante, inventor da máquina de tortura, é, ao mesmo tempo,
desenhista-projetista, construtor, químico, soldado e juiz. Seu domínio é amplo.
Assim como ele, juiz e carrasco são uma e a mesma pessoa. Como foi mencionado
no capítulo anterior, os homens são identificados a partir de suas funções. O
conceito de “profissão” como uma atividade ou ocupação especializada é tão
importante que traz à lembrança a ideia de vocação. Os nomes não têm importância.
O que importa são os lugares e as posições que eles ocupam. A ideia de vocação se
contrapõe à visão capitalista de que todos somos engrenagens de uma máquina.
Quando uma peça não funciona adequadamente gera prejuízo para a sociedade.
A narrativa faz referências ao sol impiedoso que esgota os personagens e
parece querer derreter qualquer marca arcaica. Ele é tão impiedoso quanto a
sentença de morte imposta pelo oficial, espécie de guardião da máquina. O oficial
transpira muito e apresenta dois delicados lencinhos de mulher enfiados na gola do
uniforme (NCP,30). Os lenços representam uma ironia, em virtude do seu significado
angelical, contrário às concepções de tortura do oficial. Seu uniforme parece
impróprio para o clima do local, assim como a máquina, já ultrapassada. Os
delicados lenços de mulher foram ofertados ao condenado antes de sua execução,
mas pegos pelo oficial para proteger do suor a gola das vestes militares. Há,
portanto, a nosso ver, uma incongruência entre o clima tropical e o uniforme oficial, e
entre a máquina arcaica e as novas ideias do atual comandante.
Os contrastes e as incongruências são demarcados pelo “aqui” (colônia) e
pelo “lá” (cidade); o passado (antigo comandante) e o presente (novo comandante).
A violência das sociedades antigas não teve o seu fim definitivo. As estruturas
hierárquicas e os mecanismos punitivos não foram alterados. As punições se
tornaram apenas mais sutis e mais veladas. Nas sociedades contemporâneas,
86
utiliza-se o controle absoluto sobre a liberdade do indivíduo como estratégia de
punição. Esse processo é visto como mais “humano”. No entanto, na prática, as
cadeias lotadas evidenciam uma realidade que foge ao que poderia ser considerado
condições dignas.
Por causa do calor intenso, o viajante sente dificuldades em concatenar os
pensamentos e prestar atenção à detalhada descrição do oficial sobre a máquina de
tortura. Desse modo, há uma relação entre o calor sufocante e o sentimento de
completo torpor.
Completamente entorpecido e fascinado pela máquina, o oficial rememora o
passado da colônia:
Como captávamos todos a expressão de transfiguração no rosto
martirizado, como banhávamos as nossas faces no brilho dessa justiça
finalmente alcançada e que logo se desvanecia! Que tempos aqueles, meu
camarada! (NCP,50).
Páginas anteriores, o oficial menciona que após a sexta hora de tortura, o
condenado começa a ler a sentença a partir dos ferimentos. Com isso, o
entendimento ilumina o seu rosto, conforme ressalta o oficial (ibid., p.44). Como se
pode observar, a transfiguração no rosto do condenado o afasta do mundo dos
homens. Ironicamente, essa experiência de iluminação, de entendimento, não se
realiza com o oficial, assassinado enquanto a máquina se despedaçava. No
momento da tortura, o explorador vê contra a sua vontade “o rosto do cadáver.
Estava como tinha sido em vida; não se descobria nele nenhum sinal da prometida
redenção; o que todos os outros haviam encontrado na máquina, o oficial não
encontrou [...]” (ibid., p.67-68). Na novela, é estabelecida uma equivalência entre o
mais fraco da estrutura social – o condenado – e o verme, que pode ser martirizado
87
em nome de uma suposta justiça. Desse modo, conforme afirma Ferraz (2004:68), “a
inferioridade social e a fraqueza moral caracterizam então o aquém do homem, o
‘pré-homem’ que deve ser oferecido em sacrifício para possibilitar uma ascese da
alma do europeu”. Por isso, o brilho na face do oficial ao presenciar a cena de
tortura.
No momento em que o oficial se coloca no aparelho de tortura, este começa a
mover-se por si, tornando-se independente do seu criador. A criação escapa ao
criador. A consequência dessa transformação é a transferência das funções ativas
dos homens para os objetos, que começaram a regular a nossa vida cotidiana. O
operador da máquina transforma-se num egoísta brutal, sem qualquer preocupação
com a natureza humana. No entanto, ele mesmo vira um objeto da máquina, pois ela
começa a funcionar alheia à sua vontade, com suas próprias leis e finalidades.
Vemos, portanto, a antropomorfização da máquina e a mecanização do homem. O
que devia ser objeto da sua afirmação acaba sendo veículo de sua alienação, da
perda de si mesmo. A máquina criada para torturar e matar expõe o valor dos seres
humanos na sociedade: objetos do sistema administrativo. Os personagens,
mergulhados num cotidiano caótico, são peças de uma engrenagem social complexa
e conflitiva, da qual não podemos visualizar contornos precisos. A atitude do oficial
de se colocar na máquina de tortura mostra que o sistema é uma espécie de
Saturno37 que mutila e destrói os próprios criadores.
Numa carta de 11 de outubro de 1916 para Kurt Wolff, Kafka afirma sobre Na
colônia penal: “como esclarecimento desta última narrativa acrescento apenas que
37
Saturno, que foi assimilado ao Cronos grego, destronou seu pai Urano, mutilando-o e reinou sobre
o mundo junto com sua irmã-esposa Reia. Como o oráculo havia dito que seria destronado por um de
seus filhos, Saturno os devorava assim que nasciam. No entanto, Reia, para salvar Zeus, deu ao
marido uma pedra enrolada em um pano no lugar do recém-nascido. Zeus, depois de adulto, declarou
guerra ao pai, destronando-o e obrigando-o a vomitar seus irmãos e irmãs mais velhos (JULIEN,
2005:VIII).
88
não só ela é penosa, mas, ao contrário, que o nosso tempo em geral e o meu em
particular o foi e é, e o meu é até mesmo há mais tempo penoso que o de todos”38. A
obra, ao interpretar os indícios do curso do tempo na vida humana, é penosa assim
como o tempo.
A lei está relacionada a vários conceitos morais de culpa, de consciência, de
dever e também de coação. Uma vez que os valores instituídos são infringidos
dentro de uma comunidade, o infrator deve “pagar” pelos seus atos. Nessa relação,
a “igualdade” entre os homens se revela como uma utopia, na medida em que há
uma diferença entre aqueles que detêm o poder e os que por ele estão subjugados.
Nessa obra, a autoridade aparece em sua feição mais alienada, como algo
mecânico que sujeita, domina e destrói todos os que estão subordinados a ela. A
obra foi escrita em outubro de 1914, três meses após desencadear-se a Primeira
Guerra Mundial. Esta guerra seria para Kafka “um maquinismo desumano e
mortífero, uma espécie de engrenagem cega e reificada, que escapa ao controle de
todos”, como ressalta Löwy (2005:90). Kafka associou o autoritarismo mais arcaico e
brutal a uma tecnologia refinada e moderna. Os homens não se reconhecem na sua
criação mais “alienada” e “estranhada”39.
38
Colaboração da professora e tradutora Susana Kampff Lages nesta tradução. “Zur Erklärung dieser
letzen Erzählung füge ich nur hinzu, daß nicht nur sie peinlich ist, daß vielmehr unsere allgemeine und
meine besondere Zeit gleichfalls sehr peinlich war und ist und meine besondere sogar noch länger
peinlich als die allgemeine” (B,150).
39
Estranhada no sentido marxista do homem não se reconhecer em suas criações.
89
3.3. DO HORROR AO HORROR: O SOFRIMENTO-ESPETÁCULO
É difícil ler Na colônia penal após 1945 sem pensar no Holocausto e em
outras formas de terror do século XX, como o franquismo na Espanha, o salazarismo
em Portugal e o stalinismo. Vários pensadores, entre eles Theodor Adorno e George
Steiner, têm explicitado o tom profético da obra de Kafka, pois ela mostra a íntima
fusão entre o autoritarismo extremado e o processo de aperfeiçoamento da
tecnologia. Recentemente, o crítico Enzo Traverso (1997:53) fez uma penetrante
observação sobre Na colônia penal. Segundo o escritor, a obra de Kafka parece
remeter aos “massacres anonymes du XX e siècle”. Em seguida, afirma:
La ‘herse’ imaginée par Kafka, qui gravait sur la peau de sa victime sa
sentence de mort, renvoie de façon impressionnante au tatouage des
Häftlinge à Auschwitz, ce numéro indélébile qui faisait sentir, selon Primo
40
Levi, ‘sa condamnation écrite dans sa chair’ [grifo do autor] (ibid.).
Para Traverso (ibid.), a colônia penal de Kafka apresenta características
modernas que remetem a Auschwitz, e arcaicas, que lembram a época da guilhotina.
A novela de Kafka é quase como “un apologue sur la généalogie de la terreur du
XX e siècle”41.
Na narrativa kafkiana, o homem decifra a sentença com os seus ferimentos.
Nietzsche, em Genealogia da moral (1887), já mencionava a ligação existente entre
dor e aprendizado, escrita e memória, ressaltando a violência desse processo:
“Como fazer no bicho homem uma memória? Como gravar algo indelével
nessa inteligência voltada para o instante [...]”... Esse antiquíssimo
40
“O ‘arado’ imaginado por Kafka, que gravava sobre a pele da vítima sua sentença de morte, remete
de maneira impressionante à tatuagem dos Häftlinge [detentos] em Auschwitz, esse número indelével
que fazia sentir ‘a condenação escrita na própria carne’, segundo Primo Levi”.
41
“um apólogo sobre a genealogia do terror do século XX”.
90
problema, pode-se imaginar, não foi resolvido exatamente com meios e
respostas suaves; talvez nada exista de mais terrível e inquietante na préhistória do homem do que a sua mnemotécnica. “Grava-se algo a fogo, para
que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na
memória” – eis um axioma da mais antiga (e infelizmente mais duradoura)
psicologia da terra (NIETZSCHE, 2007:50).
Para Nietzsche (ibid.), as experiências marcantes ficam retidas na memória.
Haveria uma relação estreita entre dano e dor, surgida na relação contratual entre
credor e devedor, e que remete às formas básicas de comércio, como a compra, a
venda e a troca. O pensador lembra os inúmeros tipos de castigo ao longo dos
séculos, como o apedrejamento, o dilaceramento ou pisoteamento por cavalos, a
fervura do criminoso (séculos XIV e XV), entre outros, que fizeram com que as
pessoas adquirissem uma memória através dos meios mais terríveis. Nietzsche
analisou o papel de alguns desses elementos no processo de formação da
consciência de culpa. O conceito moral de culpa teria se originado do conceito
material de dívida42 de uma pessoa em relação a outra, que por sua vez remete às
relações contratuais de compra, venda, troca, comércio etc. O castigo surgiu para
que o homem pudesse fazer a distinção entre “intencional”, “negligente”, “casual”,
“responsável” e seus opostos. Assim, “o criminoso merece castigo porque podia ter
agido de outro modo” (ibid., p.53).
À luz dessas questões, percebemos que os conceitos expostos por Nietzsche
estão relacionados ao entrelaçamento das ideias de “culpa e sofrimento”, na relação
pessoal entre comprador e vendedor, credor e devedor. Além disso, apresentam
uma estreita relação com o aspecto religioso, na medida em que os homens sempre
se confrontaram com o castigo divino. Essas questões ressaltadas por Nietzsche
42
Em alemão, utiliza-se a palavra Schuld como “culpa” e “dívida”. Nas notas explicativas de
Genealogia da moral (2007:155), o tradutor Paulo César de Souza lembra a modificação introduzida
na oração do “Pai-Nosso” pela Igreja Católica: “perdoai nossas dívidas, assim como nós perdoamos
aos nossos devedores” deu lugar a “perdoai nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos
tem ofendido”.
91
são indícios de uma vontade de poder que se assenhoreou de algo tido como mais
fraco.
A relação entre “culpa e sofrimento” ganha destaque Na colônia penal. O
processo de escrita da máquina é violento e cruel, uma forma de infligir
definitivamente no corpo do condenado toda humilhação e dor:
43
O rastelo começa a escrever; quando o primeiro esboço de inscrição nas
costas está pronto, a camada de algodão rola, fazendo o corpo virar de lado
lentamente, a fim de dar mais espaço para o rastelo. [...] Assim ele vai
escrevendo cada vez mais fundo durante as doze horas. [...] o homem
simplesmente começa a decifrar a escrita [“Honra o teu superior”], faz bico
com a boca como se estivesse escutando. O senhor viu como é fácil decifrar
a escrita com os olhos; mas o nosso homem a decifra com os seus
ferimentos (NCP,43-44).
O processo de execução da condenação por meio da máquina beira o
absurdo. Nesse processo doloroso de escrita na própria pele, encontramos o poder
da palavra, da escrita. A escrita no corpo (“Honra o teu superior”) feita pelo aparelho
é a tentativa de fazer o condenado lembrar o motivo de sua condenação. A escrita
aparece como forma de sentença e cumprimento da lei, a obediência cega aos
superiores. A frieza envolvida na apresentação da máquina pelo oficial nos remete à
alienação do oficial diante do horror da cena.
Foucault, em Vigiar e punir, analisa o suplício como uma das formas de
punição existente na prática judiciária no período anterior ao surgimento dos
modernos Estados de direito. O suplício tinha a função de prolongar o sofrimento do
condenado, pois a morte não era suficiente para que a punição fosse concretizada.
Era necessário que o condenado sentisse na pele a culpa e que a sociedade
percebesse a efetivação da justiça. Esta é, portanto, a perspectiva da punição na
43
O oficial, na narrativa, menciona que o nome combina, pois “as agulhas estão dispostas como as
grades de um rastelo” (NCP,33).
92
novela kafkiana. O corpo aparece como o instrumento utilizado para se fazer justiça.
Nesse processo, o espetáculo cerimonial com a presença do povo é importante para
ratificar o suplício das vítimas e o poder que pune. O executor não é apenas aquele
que aplica a lei, mas que demonstra ter a força.
A pena para ser um suplício, segundo Foucault (2009:35-36), deve obedecer
a três critérios: produzir sofrimento, ser a morte o final de uma gradação de
sofrimentos e levar à completa agonia. Percebe-se que estes são os princípios
básicos pretendidos pelo oficial com a máquina de tortura.
A novela de Kafka revela a impotência do ser humano diante de um mundo
sem piedade. As atitudes de alguns personagens diante da máquina de tortura
evidenciam a incapacidade de refletir sobre os próprios atos. A primeira delas é de
uma “crueza extremada” encarnada pelo antigo comandante – idealizador da
máquina – e pelo oficial. Em seguida, a do novo comandante, que deseja abolir o
aparelho de tortura, mas o mantém funcionando de forma discreta. Há a distribuição,
pela esposa do comandante e outras damas, de confeitos aos condenados à morte,
antes da execução. A terceira é a do explorador viajante, revoltado com os métodos
de execução da colônia, mas que não faz nada para impedir que o sistema continue
em funcionamento. Desse modo, a sociedade torna os homens indiferentes aos
sofrimentos alheios.
O castigo assume um caráter festivo. O suplício da máquina kafkiana é
apresentado como um espetáculo disputado: “era impossível atender a todos os
pedidos para ficar olhando de perto”, conforme afirma o oficial (NCP,50). Em virtude
da disputa, o comandante determina que “sobretudo as crianças deviam ser levadas
em consideração”. Com essa determinação, o oficial, graças à sua profissão, podia
ver o “espetáculo” de perto, agachado e “com duas crianças pequenas no colo, uma
93
à esquerda e outra à direita” (NCP,50). O castigo é também, como diz Nietzsche
(2007:69), uma criação da memória para quem sofre (a “correção”) e para aqueles
que o testemunham. Ele tem o objetivo de despertar no condenado o sentimento de
culpa, o remorso44. Na colônia penal, os que julgavam e puniam pareciam acreditar
que estavam lidando com um “causador de danos”, com um “irresponsável
fragmento do destino”45. Nesse sentido, constata-se que os prisioneiros da colônia
penal eram vistos como “violadores” das ordens e normas estabelecidas por uma
estrutura de poder que se julga sabedora e guardiã do que seria o certo e, portanto,
a Lei. O sistema torna todos cúmplices quando assistem aos suplícios como um
espetáculo.
O soldado foi condenado em virtude de ter violado as normas de disciplina, ou
seja, se levantar a cada hora e bater continência diante da porta do capitão
(NCP,38). A disciplina ao longo dos séculos XVII e XVIII, conforme Foucault
(2009:133), torna-se instrumento de dominação. Esse tipo de dominação se
diferencia da domesticalidade e da vassalidade, pois não visa à sujeição apenas,
mas à formação de um indivíduo mais obediente e útil. A disciplina fabrica, segundo
o escritor, “corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’” (ibid.). O soldado da
colônia penal não se submete aos desígnios disciplinares e, por isso, deve pagar
com o sofrimento.
Na obra Vida e época de Michael K, que estudaremos no próximo capítulo,
vemos a passagem dos suplícios públicos, marcantes nas obras de Kafka, para o
castigo enclausurado. O corpo, alvo da máquina, em Na colônia penal, não é mais
torturado por instrumentos cortantes, mas confinado em estruturas disciplinares,
44
O tradutor de Genealogia da moral (2007:157), Paulo César de Souza, lembra que “remorso”, em
alemão, Gewissensbiβ, significa literalmente “mordida na consciência” (Biβ – mordida; Gewissen –
consciência).
45
Cf. NIETZSCHE. Genealogia da moral, 2007, op. cit., p.71.
94
como os campos de trabalho, que visam à transformação dos “criminosos” em
indivíduos aptos a executar tarefas quase mecanicamente e indispostos à
contestação.
A colônia penal kafkiana, com a morte do oficial e, consequentemente, das
ideias do antigo comandante, não se livrou das práticas de castigo. Nas obras que
veremos a seguir, consolida-se uma nova estrutura de punição: a prisão, um espaço
delimitado, onde os menores movimentos são controlados. A prisão não é o único
mecanismo de controle. Com a tecnologia, criaram-se senhas, rastreamento,
computadores de bolso, celulares e câmeras, como as de Benjamim, na narrativa de
Chico Buarque. A sociedade disciplinar cede espaço para a sociedade de controle.
95
4. MICHAEL K: O HOMEM DOS LABIRINTOS SUBTERRÂNEOS
4.1. A HISTÓRIA DE UM JARDINEIRO SEM LAR
O romance Vida e época de Michael K, narrado em terceira pessoa na
primeira e terceira partes, e em primeira pessoa (do ponto de vista do narradorpersonagem), na segunda parte, conta a história de Michael K, um homem simplório,
negro, esquálido e de lábio leporino, que vive em meio à guerra civil. O romance tem
cinco personagens importantes: Michael K, a mãe Ana K, a enfermeira Felicity, o
responsável pelo campo de reabilitação Noel e o oficial médico que é o narrador.
Durante a obra, o protagonista é nomeado como: Michael K, K, Michael e Michaels.
No início, o narrador conta a história do nascimento do personagem. A mãe
tinha vergonha de Michael K e o mantinha afastado das outras crianças. Ela o
levava para o trabalho e, ele, “anos após anos, [...] ficou sentado em cima de um
cobertor vendo a mãe limpar o chão dos outros, aprendendo a ficar quieto”
(VEMK,10). Michael foi tirado da escola por causa da deformação e “porque não era
rápido de cabeça” e levado para o orfanato Huis Norenius. Aos quinze anos, saiu do
orfanato e passou a fazer parte da Divisão de Parques e Jardins do serviço
municipal da Cidade do Cabo, como jardineiro, grau três. Três anos depois, deixou o
emprego e, após um breve período desempregado, foi trabalhar como atendente
noturno nos lavatórios públicos. Sua mãe trabalhava, há oito anos, como empregada
doméstica de um fabricante de meias aposentado e sua mulher. Mas em virtude da
idade, seu salário foi reduzido pela metade e os patrões contrataram uma moça mais
jovem.
96
Por causa da sua fisionomia, K não tem amigas mulheres e vive sozinho. Ele
mora com a mãe num quartinho debaixo da escada de um prédio, destinado ao
equipamento de ar-condicionado. Na porta há uma placa com “uma caveira e dois
ossos cruzados, pintados em vermelho, e embaixo a legenda PERIGO – DANGER –
GEVAAR – INGOZI” (VEMK,13). Não há luz elétrica e nem ventilação.
Ana K sofre de um inchaço nas pernas, nos braços e na barriga. Por isso, é
hospitalizada. Passa cinco dias deitada no corredor de um hospital, no meio de
várias vítimas de esfaqueamento, tiros e surras, ignorada pelas enfermeiras que não
conseguem atender a todos.
Em meio à violência na Cidade do Cabo, Ana K pede ao filho que a leve para
uma fazenda em Prince Albert. Ela sonha em escapar do caos que domina a cidade.
Casas, lojas e apartamentos são saqueados e muitas pessoas morrem nos
confrontos com a polícia no país ainda dominado pelo apartheid.
Sem os documentos que o regime totalitário exige para autorizá-lo a sair da
cidade, Michael K improvisa um carrinho de mão com assento, instala a sua mãe no
aparato e sai puxando-a por estradas secundárias, a fim de evitar os bloqueios
policiais. Durante o trajeto, Michael K e Ana K são parados por policiais e marginais.
O estado de saúde da sua mãe piora devido às precárias condições do transporte e
do clima. Michael leva a mãe a um hospital. Ana K morre e o seu corpo é cremado
sem a autorização do filho. Mesmo assim, Michael K resolve levar as cinzas da mãe
até a fazenda.
Durante a viagem, Michael K é designado pelo comboio policial para trabalhar
nos trilhos e desobstruir a passagem do trem. Até meia-noite, ele e vários homens
trabalham como sonâmbulos. Embarcados no vagão, dormem “empilhados uns
sobre os outros nos bancos ou estendidos no chão nu” (ibid., p.53). Após o trabalho
97
forçado nos trilhos, K é solto para que retorne a sua vida interrompida. Ele passa a
noite na casa de um estranho. Na manhã seguinte, “seu coração estava cheio,
queria agradecer, mas as palavras certas não saíram” (VEMK,60).
Após a longa caminhada, Michael K encontra uma fazenda similar à descrita
pela mãe. Lá, passa a viver precariamente, abatendo ovelhas, retirando água do
açude, plantando abóboras e comendo larvas e pássaros. Um dia, chega um homem
se dizendo neto do proprietário da fazenda (Visagie), desertor de guerra, que tenta
transformar Michael K num servo pessoal. Mas Michael foge e passa a viver nas
montanhas, comendo raízes, larvas e bulbos. Tempos depois, é encontrado por
funcionários do governo, que o levam para um campo de refugiados. Lá, os policiais
escrevem no seu boletim: “Michael Visagie – Sexo masculino – Cútis escura – 40 –
Sem residência fixa – Desempregado, acusado de sair de seu distrito legal sem
autorização, de não ter posse de documento de identificação, de infringir o toque de
recolher, de bebedeira e desordem” (ibid., p.84). Michael K é obrigado a trabalhar
em estradas e rodovias fazendo reparos.
Ao testemunhar a violência dos policiais com as pessoas do campo após um
incêndio num prédio, Michael K foge, volta à fazenda, já abandonada, e tenta viver
novamente da terra, plantando abóboras e melões. O protagonista resolve viver num
buraco. K trabalha na terra de noite e descansa de dia. Novamente é encontrado por
funcionários do governo que o tomam por ajudante de conspiradores. Ele é levado
para um centro de reabilitação, pois sua saúde é crítica, já que só se alimentava às
vezes, e de insetos.
Michael K é internado no centro de reabilitação com sinais de subnutrição,
rachaduras na pele, feridas nas mãos e nos pés, gengivas sangrando e com menos
de quarenta quilos. Embora pareça um velho, ele diz ter apenas trinta e dois anos. O
98
protagonista, então, é tratado por Noel, pela enfermeira Felicity e pelo oficial médico
(o narrador). Apesar de K recusar a alimentação, o oficial médico nega-se a deixá-lo
morrer, dando-lhe uma atenção especial. Michael K consegue fugir do hospital e
volta ao lugar onde tudo começou, a Cidade do Cabo. Na cidade ainda devastada
pela guerra, ele conhece algumas pessoas e tem, provavelmente, sua primeira
experiência sexual, com uma prostituta do grupo. A narrativa termina com o
protagonista pensando em ir para um lugar onde, novamente, pudesse viver da
terra.
4.2. O ABISMO INTRANSPONÍVEL ENTRE O EU E O MUNDO
Como o próprio título do romance diz, Vida e época de Michael K aborda não
apenas a história do personagem Michael K, mas também a época em que ele vive.
A expressão “a vida” sugere geralmente que a vida terminou, enquanto que “vida”
não implica esse sentido. O tempo em suas diversas acepções é, portanto, um
elemento importante nessa obra romanesca. Logo no início do texto de Coetzee, é
narrado o dia do nascimento de Michael K:
A primeira coisa que a parteira notou ao ajudar Michael K a sair de dentro
da mãe para dentro do mundo foi que ele tinha lábio leporino. [...] Mas
desde o começo Anna K não gostou da boca que não fechava e da carne
viva e rosada exposta para ela. Estremeceu ao pensar no que havia
crescido dentro dela aqueles meses todos. [...] Por causa da deformação, e
porque não era rápido de cabeça, Michael foi tirado da escola [...] (VEMK, 910).
Michael K já nasce sob o estigma da diferença e da impotência: pobre, com
má-formação e com capacidade mental reduzida. Com essas características, a
narrativa parece indicar que só resta a Michael K viver à deriva pelo mundo. A
99
metáfora do lábio fendido é uma espécie de determinismo biológico da quase
incomunicabilidade de K, já que esta anomalia, em casos mais graves, é um
obstáculo do fluxo da fala. Ao narrar a trajetória de Michael K, de dentro do
aconchego materno para o mundo, Coetzee resgata a história de todo um povo
sofrido durante o regime totalitário da África do Sul.
A rotina do personagem é marcada pela violência. A cidade sitiada está sob o
signo da precariedade e do desamparo ao tornar explícitas as barbáries cometidas
em nome da colonização, principalmente a segregação dos negros. É determinante
a influência dos problemas políticos e raciais da África do Sul do apartheid na
realidade de Michael K. Embora o apartheid não seja nomeado, toda a população é
descrita como se estivesse perdida na guerra civil.
Michael K, jardineiro sem lar, perambula pelas estradas tentando voltar à
fazenda onde a mãe moribunda passara a infância. Ele tinha a esperança de
escapar da violência, “dos ônibus lotados, das filas de comida, dos balconistas
arrogantes [...] das sirenes nas noites, do toque de recolher [...]” (VEMK,14-15). O
passado surge como uma recompensa para a precariedade do mundo em que vive.
A fazenda se transforma num Éden perdido que poderá suplantar as sequelas
deixadas pela guerra. O campo se abre para Michael como um céu. A busca desses
dois valores – liberdade e segurança – é frustrada, pois o personagem é preso
várias vezes e submetido a trabalhos forçados.
Dentro dessa realidade inóspita, a solidariedade não existe. Ao longo da
narrativa são raríssimos os momentos em que esse sentimento é colocado em
prática. No meio da precariedade, Michael percebe a sua condição de gauche, de
marginalizado. Os visíveis indícios desse tempo histórico – frio e estéril – se revelam
na realidade brutal de Michael K. Ele é um membro “silencioso” dessa paisagem
100
sombria que domina o destino da África do Sul. Michael K vive numa prisão, onde os
seus direitos desde sempre estiveram abolidos. Os campos para onde Michael é
levado se assemelham aos campos de concentração nazistas, no entanto, ao
contrário destes, os seres humanos não são exterminados, mas submetidos a
trabalhos forçados e tratados como animais, como veremos mais adiante. Apesar
disso, K é completamente inabilitável ao mundo do apartheid. No final da narrativa, o
exército é descrito descalço, acentuando a decadência de um sistema que durante
anos dividiu o país entre brancos e negros (VEMK,154).
Somando-se ao regime de segregação, as regras do capitalismo também são
reveladas. Quando Anna K começou a ficar doente, os patrões cortaram um terço do
seu salário e contrataram uma mulher mais moça. As pessoas perdem a utilidade,
como se fossem mercadorias cuja validade estivesse vencida. Perdem o viço, a
atração e o caráter de necessário. Como mercadorias, os seres humanos são úteis
enquanto dispõem de beleza, de juventude, de força e de disposição. Michael K
revela uma boa percepção dessa realidade injusta quando afirma:
Minha mãe trabalhou a vida inteira [...] Esfregava o chão dos outros, fazia
comida para eles, lavava o pai deles. Lavava a roupa suja. Lavava a
banheira depois que eles usavam. Ficava de joelhos e lavava a privada.
Mas quando estava velha e doente, se esqueceram dela. Deixaram
encostada num canto onde ninguém via. Quando morreu, jogaram ela no
fogo. Entregaram para mim uma caixa velha com cinzas e me disseram:
Aqui está sua mãe, leve embora, ela não serve para nós (ibid., p.158-159).
Anna K é submetida a uma metamorfose que a reduz a um objeto, a mera
executora de papéis. A força humana de trabalho é vendida em troca de um salário,
tornando-se uma mercadoria como as outras. Adoentada, Anna K “vivia com medo
de que os Buhrmann [os patrões] cessassem com a caridade” [grifo nosso] (ibid.,
p.13). O sentimento de sujeição aos critérios utilitários do mercado leva Anna K a
101
acreditar que até o seu trabalho é uma beneficência dos empregadores. Os
trabalhadores são vistos em relação à quantidade de trabalho que podem executar.
O tempo de trabalho ocupa a maior parte do tempo de vida dos indivíduos
enredados nessa estrutura. No entanto, eles precisam se submeter a essa realidade
se quiserem sobreviver. Os homens passam a não viver a própria vida e a
desempenharem meras funções.
Em A condição humana, Arendt faz um estudo de três atividades que
integram a “vida activa”: labor (labor), trabalho (work) e ação (action), que ajudam a
compreender a organização do trabalho na sociedade moderna. Segundo a filósofa
(2004:94), o labor é uma atividade realizada pela necessidade biológica. “Tudo o
que o labor produz destina-se a alimentar quase imediatamente o processo da vida
humana, e este consumo, regenerando o processo vital, produz – ou antes, reproduz
– nova ‘força de trabalho’ de que o corpo necessita para seu posterior sustento”
(ibid., p.111). Para os gregos, “laborar significava ser escravizado pela necessidade,
escravidão esta inerente às condições da vida humana. Pelo fato de serem sujeitos
às necessidades da vida, os homens só podiam conquistar a liberdade subjugando
outros que eles, à força, submetiam à necessidade” (ibid., p.94). Desse modo, o fato
de alguém realizar as tarefas voltadas para a manutenção e as necessidades da
vida justificaria a existência da escravidão, na visão dos gregos.
O trabalho, ao contrário do labor, consiste na atividade do homo faber de
produzir objetos duráveis. As mãos simbolizam o elemento central do trabalho, pois
estão relacionadas às ideias de construção e de criatividade. A ação, por sua vez,
não está relacionada à sobrevivência biológica ou à produção técnica. A ação se
concretiza na interação entre os indivíduos.
102
Em virtude da incorporação da noção de produtividade ao trabalho humano, a
fim de formar excedentes para a geração de riquezas, o trabalho passou a ser
executado à maneira do labor. “Os produtos do trabalho – objetos destinados ao uso
– passaram a ser consumidos como bens de consumo” (ARENDT, 2004:242).
Na narrativa de Coetzee, as atividades realizadas por Anna K e Michael K –
empregada doméstica e jardineiro, respectivamente, – são movidas pelas
necessidades imediatas da vida. Tudo o que buscam é sobreviver em um mundo
hostil. Essa atitude os aproxima da condição animal: nascer, crescer, alimentar-se,
reproduzir-se e morrer. Essa é a forma como vive grande parte da população da
África do Sul em meio ao apartheid. Para essas pessoas, a vida e o mundo se
resumem ao labor. Viver é uma interminável repetição até que a trajetória termine.
Por outro lado, Arendt (ibid., p.118-119) diz que o labor dá significado à vida:
‘A benção ou alegria’ do labor é o modo humano de sentir a pura satisfação
de se estar vivo que temos em comum com todas as criaturas viventes; e
chega a ser o único modo pelo qual também os homens podem permanecer
no ciclo prescrito pela natureza, dele participando prazeirosamente,
labutando e repousando, laborando e consumindo, com a mesma
regularidade feliz e intencional com que o dia segue a noite e a morte segue
a vida. A recompensa das fadigas e penas está na fertilidade da natureza,
na tranquila certeza de que aquele que cumpriu sua parte de ‘fadigas e
penas’ permanecerá como parte da natureza no futuro de seus filhos e nos
filhos de seus filhos.
É a satisfação de estar vivo e usufruir a natureza que alimenta os dias de
Michael K na fazenda. Ao reduzir o seu projeto de vida à mera subsistência e isolarse do convívio com as outras pessoas, Michael K abre mão da comunicação e da
ação, colocando em risco a própria condição humana. Com isso, a sua vida “está
literalmente morta para o mundo; deixa de ser uma vida humana, uma vez que já
não é vivida entre os homens” (ibid., p.189). Segundo Arendt (ibid.), “é com palavras
e atos que nos inserimos no mundo humano; e esta inserção é como um segundo
103
nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato original e singular do nosso
aparecimento físico original”.
Desse modo, Anna K e Michael K vivem na tentativa de resistir às
adversidades. Eles são, portanto, produtos do sistema. Eles habitam um quartinho
emprestado pelos patrões, debaixo de uma escada, com uma placa de perigo na
porta. As condições são precárias. Vivendo embaixo da escada, os personagens são
reduzidos à condição de objetos de uso.
Anna K e Michael K, excluídos e marcados como refugo, fazem parte de uma
população desprotegida pela lei – produtos secundários de uma forma de produção,
um “exército industrial de reserva”. A chancela do “perigo” ronda a cabeça desses
seres não integrados ao sistema produtivo e, portanto, representantes da ameaça à
ordem social.
As placas têm a função de sinalizar, de advertir, de mostrar a direção ou
simplesmente chamar a atenção. No romance, a “placa do perigo” estabelece uma
relação de sentido com a realidade narrativa ao mostrar que Michael K e Anna K,
assim como o inseto Gregor Samsa, de Kafka, não se ajustam e não podem ser
ajustados ao sistema. São nódoas em meio à paisagem, seres inválidos. A placa
dialoga com a condição precária dos personagens. Nas palavras de Anna K – “me
sinto uma rã debaixo de uma pedra morando aqui” (VEMK,16) – percebe-se a
redução dos personagens à animalidade. O poder corrosivo permeia as relações
sociais e subjetivas da realidade de Michael. Esta questão fica evidente nas várias
metáforas de parasitismo usadas pelo autor para descrever as relações entre os
personagens e o mundo, como veremos mais adiante.
104
Michael K não se deixa “enquadrar pela sociedade”, apesar da vida passada
em prisões. Ele vive “fora do alcance do calendário e do relógio” (VEMK,134). Sobre
a sua história, ele esclarece:
Eu contaria a história de uma vida passada em prisões, onde eu estava dia
após dia, ano após ano com a testa apertada no arame, olhando ao longe,
sonhando com experiências que nunca ia viver e onde os guardas me
xingavam e chutavam meu traseiro e me mandavam esfregar o chão (ibid.,
p.208).
Michael K, condenado a uma vida inútil, demonstra com sua história de vida
que a resistência não implica violência. Os campos para onde ele é levado destinamse não apenas a degradar os seres humanos, mas a transformá-los numa simples
coisa. O sofrimento converte homens em animais que não se comunicam e não se
queixam. Do ponto de vista da sociedade dominante, K é absolutamente supérfluo.
Arendt (2006b:496) associa os campos de concentração às três concepções
ocidentais básicas de uma vida após a morte: O Limbo, O Purgatório e o Inferno. Ao
Limbo destinam-se os elementos indesejáveis, como os refugiados, os marginais e
os desempregados, que devem ser afastados da sociedade. O Purgatório é
representado pelos campos onde o abandono alia-se ao trabalho forçado. O Inferno
é representado por aqueles campos aperfeiçoados pelos nazistas que causavam o
maior tormento possível. Podemos dizer que Michael K transitou pelas três esferas.
Viveu entre dois “campos”: o campo como fazenda e o campo como lugar para onde
os pobres eram levados. Este último visava, entre outras coisas, a aniquilar o ser
humano.
O primeiro passo para o aniquilamento do indivíduo é a anulação da condição
cívica do homem. Michael K foi excluído da proteção da lei e passou a ser um
marginalizado. O segundo passo é matar a pessoa moral do homem. Isto acontece
105
quando lhe é negada uma vida digna. Michael é tratado como inútil e como um
cadáver-vivo. Nada, nem a morte lhe pertencia e ele não pertencia a ninguém. O
terceiro passo é a identidade do indivíduo. Essa parte da pessoa é a mais difícil de
destruir. O personagem de Coetzee era transportado em vagões como gado.
Embora K não soubesse o seu lugar no mundo e tivesse sua identidade
quadruplicada – Michael K, Michael, K e Michaels –, ele termina a narrativa com o
mesmo sonho e com os mesmos valores: cuidar da terra. A sua singularidade, fruto
da natureza, aqueles que detêm o poder não conseguem usurpar. Daí o narrador
concluir perplexo que K havia conseguido “se instalar dentro de um sistema sem
passar a fazer parte dele” (VEMK,192).
A identidade do personagem oscila ao longo da obra: Michael K, Michael, K e
Michaels. Michael K e K remetem aos personagens de Kafka. Já Michael alude ao
homem sem sobrenome e sem cidadania. Michaels, no plural, aponta para uma
coletividade46. Com a inicial ou no plural, a narrativa mostra um personagem
desenraizado no tempo e no espaço. Michael tem o sentido que vai além da simples
percepção do narrador. Ele é tão singular que extrapola os limites da narrativa. Na
primeira e terceira partes, o narrador é onisciente e descreve os personagens a
partir de sua interioridade. Na segunda parte, temos um narrador-personagem. Ele
descreve os personagens, principalmente Michael K, e com ele se identifica, a ponto
de nele se desdobrar.
O narrador desdobra-se em dois “eus” para contar a história de Michael: um
“eu” que expõe (na primeira e na terceira partes) e um “eu” que investiga (na
segunda parte). Na segunda parte, o personagem é denominado Michaels. O
narrador passa a contar a história em primeira pessoa. Neste momento, ficamos
46
Cf. HELENA, Lucia. “Ruínas do moderno na ficção do pós-moderno: a ficção da crise e o
pensamento trágico”. In: Via Atlântica, nº 9. São Paulo: USP, 2006, p.140-141.
106
sabendo que o narrador é um oficial médico que cuida de Michael K. Assim diz o
narrador ao receber Michael K no centro de reabilitação:
Há um novo paciente na sala, um velhinho que desmaiou durante o
treinamento físico [...] foi encontrado sozinho no meio do nada no Karoo [...].
Perguntei aos guardas que o trouxeram para cá por que obrigavam alguém
nas condições dele a fazer ginástica [...]. O prisioneiro não reclamou,
responderam [...]. Vocês não enxergam a diferença entre um homem magro
e uma caveira?, perguntei (VEMK, 151-152).
Nestas condições, fraco e envelhecido, o personagem Michael K, aos trinta e
dois anos, deu entrada no campo de reabilitação. O personagem se impõe ao
narrador. Este se recusa a acreditar que Michael estivesse cuidando de uma
fazenda abandonada e alimentando a população da guerrilha local, conforme
mencionado pela polícia. É difícil para o narrador acreditar que alguém tão
inexpressivo pudesse ser um conspirador contra o governo, da política local:
“Eles erraram”, disse [o narrador]. “Devem ter confundido esse com algum
outro Michaels. Este Michaels é um bobo. Este Michaels não sabe como
riscar um fósforo. Se este Michaels estava cuidando de uma bela plantação,
por que estava morrendo de fome?” [...] Ele diz que o nome dele é Michael,
não Michaels (ibid., p.153).
Michael revela uma face oculta e corajosa, de uma grandeza que intriga o
narrador. Enquanto rasteja humildemente, ganha uma dimensão que inverte as
posições. Ele passa a ser especial para o narrador, ocupando um lugar de honra.
Michael interroga o motivo dos médicos se preocuparem tanto com ele. O narrador
responde: “[...] ele está certo: eu presto mesmo muita atenção nele. Quem é ele,
afinal?” (ibid., p.159). O narrador fica impressionado com o comportamento de K,
alheio à violência do mundo, a ponto de pedir para o responsável pelo campo de
reabilitação, Noel, inventar alguma coisa para o relatório e mandar o paciente
107
embora (VEMK,164). O narrador chega à seguinte conclusão: “ele [Michael K] não é
deste mundo. Vive num mundo todo dele” (ibid., p.165). Em virtude de Michael ser
um prodígio, há uma disputa sobre o real sentido do protagonista. Como se explica a
resistência de Michael? Através do seu jeito singular, Michael personifica com
profundidade os lineamentos universais e significativos de sua época.
A realidade de K é hostil: ele é um negro numa época de exacerbado racismo
e dominação branca no continente africano, no entanto, é incapaz de um ato de
rancor ou violência. O narrador acaba descobrindo a si mesmo, graças ao que
Michael K suscita. Assim diz o narrador: “você nunca pediu nada, e assim mesmo
virou um albatroz pendurado no meu pescoço. Seus braços ossudos estão em volta
da minha cabeça, e ando curvado com o seu peso” (ibid., p.169). O personagem se
expande e o narrador não consegue abarcar a sua singularidade. Michael K passou
a ser motivo de repúdio e admiração. Ao mesmo tempo em que Michael é repudiado
pela sociedade, também provoca espanto com o seu jeito de ser.
Indefinível, Michael K sensibiliza até o narrador. Este diz para Michael K: “não
pedi para você vir aqui. Estava tudo bem comigo antes de você aparecer. Eu era
feliz, feliz como dá para ser num lugar como este. Portanto, eu também pergunto:
por que eu?” (ibid., p.173). Desta forma, o narrador interroga o motivo pelo qual
havia sido o escolhido. A partir do momento em que Michael entrou no campo de
reabilitação, o narrador-personagem passa a viver um turbilhão de emoções que
desalinham completamente a sua vida.
O narrador, numa carta ao seu personagem, define o mundo cruel em que
viviam. Ele menciona que o erro de Michael foi ter se amarrado à mãe e vivido em
função dela. O lugar ideal para K seria um “canto tranquilo de um jardim obscuro em
um subúrbio sossegado” (ibid., p.174). A mãe de Michael é, para o narrador, a
108
personificação da morte, pois durante o tempo em que estava viva, o filho foi
sufocado com o seu “peso” e depois de morta ainda continuava interferindo na vida
de K. A narrativa contrapõe a mãe-biológica à mãe-terra. Michael K, ao interrogar o
porquê de ter sido trazido ao mundo, “recebera sua resposta: tinha vindo ao mundo
para cuidar da mãe” (VEMK,13). O personagem não desiste da missão de cuidar da
mãe e, depois desta morta, de levar suas cinzas para a fazenda. Percebe-se,
portanto, que “cuidar da mãe” assume um duplo sentido na história, relacionando-se
com a mãe-biológica e a mãe-terra.
Michael K era, na visão do narrador, “uma criatura acima do alcance das leis
das nações” (ibid., p.175). A experiência da guerra e a segregação racial incidem
sobre uma personalidade que, como já foi dito, parece impermeável à história. Na
insignificância com que se apresenta, Michael destaca-se como um ser dissonante
da realidade em que vive. Em carta, o narrador diz sobre Michael K:
[...] uma alma abençoadamente intocada por doutrinas, intocada pela
história, uma alma que bate as asas dentro desse rígido sarcófago,
murmurando por trás dessa máscara de palhaço [...] uma criatura que
sobrou de uma era anterior (ibid., p.176).
Nessa carta, o narrador coloca Michael K como uma peça de museu, em
virtude de sua grandiosidade. Um personagem que conseguiu viver e sobreviver no
“caldeirão da história”, como se estivesse “flutuando pelo tempo”. O narrador quer
fugir da realidade ou igualar-se a Michael K, como podemos perceber no trecho a
seguir:
Talvez nós dois [o narrador-personagem e Noel] devêssemos arrancar uma
folha do livro de Michaels e viajar para um lugar mais tranquilo do país, [...]
e montar casa lá, dois cavalheiros desertores de meios modestos e hábitos
discretos. Como chegar até onde Michaels chegou sem ser apanhado é a
maior dificuldade. Talvez um bom começo fosse nos livrarmos de nossas
109
fardas, sujar as unhas de terra e andar um pouco mais perto do chão;
embora eu duvide que jamais possamos parecer tão comuns quanto
Michaels [...] (VEMK,186). [...] Na noite em que Michaels escapou, eu devia
ter ido junto (ibid., p.187).
A partir da convivência com Michael K, o narrador começa a questionar o seu
modo de vida. Os sentimentos experimentados pelo narrador-personagem
demonstram o quanto a sua vida e até o seu discurso foram influenciados pela
inadequação de Michael à sociedade. A angústia do narrador não é fruto da época,
mas advém da concepção enganosa que tinha sobre a vida e sobre Michael K. Em
seu discurso, o narrador declara o desejo de ser uma espécie de “bicho” – “sujar as
unhas de terra e andar um pouco mais perto do chão” –, pois talvez só na
simplicidade conseguiria sobreviver ao caos. O narrador escolhe viver como seres
humanos, como Michael, discriminados e considerados “anormais”, mostrando a sua
preocupação com a sobrevivência em tempos como aqueles. Esse anseio de ir à
natureza é a fuga de uma realidade opressora, pois a natureza significa liberdade, o
único possível no apartheid.
Michael K corporifica os problemas enfrentados pela população negra da
África do Sul. O romance ilustra as consequências do apartheid e mostra o estado
de urgência que se instaura no país a partir de 1985. Numa conversa entre Noel e o
narrador, este menciona ter esquecido as causas da guerra:
Além disso, falei, pode me lembrar por que estamos fazendo essa guerra?
Uma vez me disseram, mas faz tempo e parece que esqueci.
Estamos fazendo esta guerra, disse Noel, para as minorias terem algo a
dizer sobre seus destinos (ibid., p.183).
A razão da perplexidade do oficial médico parece remeter ao fato de que as
exigências da própria guerra ultrapassam os motivos que a provocaram. A guerra se
desenrolou durante tantos anos que já não fazia mais sentido para os personagens.
110
O cenário apresentado no romance expõe a política da minoria branca, que rege o
destino da África do Sul. Além disso, desvela a incoerência da ausência de direitos
sociais e políticos comuns em nível nacional.
Michael K é definido pelos lábios leporinos, a limitação da linguagem e a cor
negra. As autoridades, assim como os médicos do campo de reabilitação, sentem
dificuldades em extrair a história de Michael. No boletim de ocorrências, o policial até
atribui a debilidade e a incoerência de K à intoxicação por álcool (VEMK,84). A
linguagem articulada é, entre outras coisas, o que diferencia os humanos dos
animais irracionais. Ao longo da narrativa, o personagem se recusa a explicar a sua
origem ou os acontecimentos que o cercam. Ele diz: “eu era mudo e burro no
começo, vou ficar mudo e burro até o final” (ibid., p.209). A linguagem é o que
estabelece a relação com o mundo e com os outros, com a vida social e política.
Deste modo, a comunicação de K com o mundo é precária. A principal característica
do personagem não é a sua rudeza, no sentido de rústico e não de mal-educado ou
sórdido, mas a falta de relações sociais. A ausência de qualquer relacionamento
significativo entre Michael e os outros personagens – com exceção de sua mãe –
transmite a sensação de que estamos diante de um ser que escapa do
comportamento tido como humano.
Logo no início da obra, o narrador conta que Michael K passou parte da sua
infância “sentado em cima de um cobertor vendo a mãe limpar o chão dos outros,
aprendendo a ficar quieto” [grifo nosso] (ibid., p.10). Percebe-se, portanto, que o
silêncio, ou seja, o “ficar quieto” vai percorrer a história de vida do protagonista. A
linguagem de Michael é considerada, para as pessoas ao seu redor, lacunosa; e o
seu imaginário dá-se em retalhos de sonhos e em desejos de viver num mundo
melhor, sem toque de recolher e sem violência.
111
As imagens finais de Michael K – sonhando em voltar ao campo e procurar
um carrinho de mão abandonado – parecem remeter ao início da narrativa. Nele,
Michael pretendia ir para o campo com a sua mãe. No final, desejava ir com um
guia.
A narrativa apresenta, mesmo que de forma sutil, a noção de futuro, apesar
de toda a adversidade. O objetivo de Michael não é contribuir para a perpetuação da
espécie. Para ele, “um homem tem de viver de modo a não deixar sinal da sua vida”
(VEMK,116). Em virtude das condições difíceis seria impossível assegurar aos seus
filhos uma vida digna: “que sorte eu não ter filhos [...] Ia fracassar nos meus deveres,
seria o pior dos pais” (ibid., p.122). Michael percebe que seus filhos seriam como
ele, subjugados pelo sistema social opressor em que vive. Por isso, ele entende que
o melhor era não perpetuar essa linhagem de seres marginalizados. Michael se diz
“jardineiro” (ibid., p.209). Sua responsabilidade consistia em conservar as sementes
para o futuro, mantendo certos valores que lhe permitiriam viver uma época melhor.
Forster (2008:73) menciona que os principais fatos da vida humana são cinco:
“nascimento, alimentação, sono, amor e morte”. Na obra de Coetzee, esses fatos
são abordados, mas fogem um pouco do padrão convencional. Michael nasce sob o
estigma da anormalidade (lábios leporinos), sua alimentação é precária – raízes e
insetos –, dorme pouco e às vezes se mantém em vigília. Desses aspectos, o amor
é o mais controverso. O personagem não se casa e também não tem filhos. O seu
amor se resume ao ato de cultivar a terra, de cuidar das sementes para elas não se
extinguirem. Quanto à morte, Michael chega perto, mas não sucumbe. Ele inicia a
sua história de vida com o sonho de levar a mãe para o campo – que o
acompanhará ao longo da obra – e termina com o mesmo desejo, mas agora com o
fantasma da mãe. O campo é, para Michael, o porto seguro. O lugar ideal para se
112
viver em paz e harmonia com a natureza. O sonho é também um dos fatos
importantes na vida do personagem.
No tempo de Michael, a morte como desfecho seria o mais óbvio. No entanto,
Coetzee faz o sonho finalizar a sua obra. O sonho surge em contraponto com a
morte, pois é o que alimenta e faz o personagem viver. Michael preenche todo o livro
que leva seu nome e, parafraseando Forster (2008:80), ergue-se como uma árvore
no parque, de modo que podemos avistá-lo sob todos os ângulos. Aqui o sonho é
introduzido como a possibilidade de uma vida diferente.
4.3. ENTRE O HUMANO E O NÃO-HUMANO
Lendo a narrativa Vida e época de Michael K, nota-se que ela se inscreve
numa época sombria da história da África do Sul. Um momento em que
predominaram a política segregacionista do apartheid, as lutas de libertação e as
marcas que uma guerra deixa como herança. Nessa obra, o personagem Michael K
e seus duplos se destacam na atmosfera de opressão e medo, como mencionamos
anteriormente. A singeleza do personagem fica evidente por manter-se incólume à
violência do mundo que o cerca. A esse respeito, Attwell (1993:89) diz que o
personagem de Coetzee “milagrosamente sobrevive ao trauma de uma África do Sul
em estado de guerra civil sem ser tocado por ela”47. Durante a sua trajetória
permeada pelas consequências de um regime autoritário, evidenciam-se as
comparações com os animais irracionais, ou seja, Michael K e os habitantes dos
campos de trabalhos forçados e de reabilitação são tratados como “bichos”.
47
“[...] Michael K, a novel about a subject who, miraculously, lives through the trauma of South Africa
in a state of civil war without being touched by it […]”.
113
O protagonista é associado à terra, ao animal, ao vegetal e ao inanimado.
Nas palavras de Michael: “que pena, numa época como esta, um homem ter de
estar pronto a viver como bicho” (VEMK,116). A comparação do homem ao “bicho”
sugere a anulação completa do indivíduo, como se ele fosse um animal qualquer.
Em outro momento da narrativa, o personagem menciona a dimensão exata da sua
condição: “num vasto país, em cuja face centenas de milhares de pessoas seguiam
diariamente suas peregrinações de baratas, fugindo da guerra, por que ele deveria
se alarmar se um refugiado ou outro se escondia em uma casa de fazenda num
trecho desolado do país?” [grifo nosso] (ibid., p.123). A comparação feita por Michael
dos humanos às baratas é significativa. A barata é um inseto considerado
repugnante e inútil. A expressão “peregrinações de baratas” pressupõe o caminhar
sem rumo, única atitude que resta aos refugiados de guerra.
Michael K passa boa parte do romance vivendo num buraco, como uma
toupeira, dormindo de dia e cuidando de sua horta à noite. Ele parece ocupar um
espaço entre o humano e o não-humano, um “não ser”. É como se o personagem
tivesse cometido um crime a ponto de ser colocado fora da jurisdição humana e
divina. O personagem é maltratado por guardas durante a sua caminhada, como se
a sua vida fosse um delito.
Após a morte da mãe, Michael K, num campo de trabalho, na verdade, de
controle dos pobres para que eles não violem a ordem estabelecida, pensa a
respeito de si mesmo: “sou que nem uma formiga que não sabe onde está seu
formigueiro” (ibid., p.99). A formiga representa uma grande relação com a
organização da sociedade, com a atividade industriosa e o servidor infatigável.
Michael K., sentindo-se um estrangeiro e longe do seu “formigueiro”, está
entrincheirado em sua existência. Já numa fazenda, lembra do pesadelo de sua
114
infância num orfanato: “eu venho de uma linhagem de crianças sem fim”
(VEMK,136). Estas crianças, geradas pelo sistema social opressor não começaram
e nem terminarão com Michael K. A infância apresenta-se como uma etapa
angustiante na vida do protagonista: Michael não conheceu o pai e sua mãe, muito
pobre, tinha vergonha dele.
Coetzee traça um retrato da condição humana e expõe personagens à deriva,
no limite da existência, que não sabem qual é o seu lugar no mundo. Na obra
literária, segundo Bakhtin (2003:195), cruzam-se “forças sociais vivas, avaliações
sociais vivas penetram cada elemento da sua forma”. Essas forças do mundo póscolonial, que mostrou a maneira mais eficaz de se construir uma economia industrial
baseada na empresa privada, através do trabalho árduo, da noção de dever, da
satisfação imediata e, não na resistência dos indivíduos, penetram na narrativa do
sul-africano.
Só na fazenda Michael consegue ter iniciativa criadora, pois está livre das
opressivas leis do apartheid. O fruto do trabalho o faz sentir-se feliz. Ao contrário de
Robinson Crusoé, cuja ilha proporcionou a “absoluta liberdade em relação às
restrições sociais”, sem laços de família e autoridades civis para interferirem em
seus objetivos individuais, Michael K vive isoladamente apenas para fugir do mundo
hostil (WATT, 2007:78). Michael K plantava apenas “para as sementes não se
extinguirem” e não para ter uma colheita farta (VEMK,131). Ian Watt, num estudo
sobre a obra de Defoe, mostra os benefícios que a solidão trouxe para Crusoé na
ilha:
[...] Crusoé é o feliz herdeiro dos esforços de outros incontáveis indivíduos;
sua solidão é a medida e o preço dessa felicidade, pois envolve a morte de
todos os outros proprietários em potencial; e o naufrágio, longe de ser uma
peripécia trágica, é o deus ex machina que permite a Defoe apresentar o
115
trabalho solitário não como uma alternativa para uma sentença de morte,
mas como uma solução para as perplexidades da realidade socioeconômica
(WATT, 2007:79).
A solidão de Michael não dá frutos socioeconômicos. No romance, viver
isoladamente é uma alternativa para uma vida condenada à prisão e aos trabalhos
forçados. O isolamento humano tende a levar “à animalidade apática e ao
desequilíbrio mental”, de acordo com Watt (ibid., p.80). Contudo, Robinson Crusoé
transforma o abandono na ilha em triunfo.
A solidão se torna “o prelúdio da
realização mais plena das potencialidades de cada indivíduo” (ibid.). Já Michael K
desce ao nível dos animais e aos poucos deixa de comer, a ponto de não haver
nada além de ossos e músculos em seu corpo. “Sua roupa, já rasgada, ficava
pendurada, sem forma” (VEMK,119).
Como já dissemos, a solidão de Michael é a busca pela liberdade e a fuga do
apartheid. A solidão de Robinson é a liberdade em relação às restrições sociais, o
triunfo. Ele procura progredir a cada dia. Prepara acomodações e o lugar para
armazenar alimentos e objetos. No início, Crusoé faz uma moradia passageira,
depois se preocupa em organizar melhor aquele espaço, o local de armazenagem e
também com a sua defesa. Watt (1997:161), mencionando comentários de
Coleridge, diz que Crusoé tem por objetivo satisfazer as suas necessidades comuns
e não vê razão em armazenar mais do que poderia usar. No entanto, ele está
conectado às coisas materiais, é trabalhador, metódico e avalia os resultados do seu
trabalho. Já Michael não vê a terra como algo capaz de lhe dar lucros. Planta pelo
simples prazer de cultivar a terra. Michael nutre pela terra um sentimento de amor,
de liberdade e a sensação de ser útil, de ser importante.
Quando resolve plantar e viver no buraco ou toca, Michael se isola totalmente
do mundo dos homens e passa a viver exclusivamente da natureza e na natureza. É
116
como se voltasse ao estado natural de Rousseau, e só assim experimenta um
momento de prazer e felicidade ao longo de todo o romance.
Sobre a sua condição, Michael K avisa: “eu não estou na guerra” (VEMK,
161). “Sou mais uma minhoca, pensou. Que também é uma espécie de jardineiro.
Ou uma toupeira, também jardineira, que não conta histórias porque vive em
silêncio. Mas uma toupeira ou uma minhoca num chão de cimento?” (ibid., p.209).
Nesse sentido, Michael K reconhece a dureza da sociedade à qual pertence, que o
obriga a ser um jardineiro num chão de cimento, ou seja, num mundo estéril, em que
só há lugar para a opressão e a morte. Toupeira ou minhoca no cimento é a redução
do indivíduo à total inutilidade. Ambos os animais escavam a terra, fazendo
caminhos subterrâneos. Mas para isto o solo não pode ser de cimento. Além disso,
ser jardineiro num chão de cimento equivale à repetição de ações inúteis: um castigo
desumano, como o de Sísifo empurrando eternamente a pedra acima para ela rolar
rocha abaixo. Não há coisa mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperanças.
Em Sísifo, a força vira impotência, a humanização resulta em desumanização.
A referência à natureza animal reforça o isolamento de Michael K, que passa
um bom tempo vivendo num buraco. Mas é somente nesse buraco que ele consegue
se encontrar consigo mesmo, com seu real valor, e realizar-se plantando, longe da
opressão do apartheid. A obra apresenta um sistema injusto e opressor que
evidencia a necessidade de repensarmos toda uma sociedade, cuja maioria dos
seus habitantes perambula pelos corredores asfixiantes da burocracia e do descaso.
O labirinto-toca do personagem de Coetzee é, paradoxalmente, a saída, a
possibilidade de escapar da guerra, como já foi exposto. No recolhimento com que
se defende, há algo de particular que insinua uma brecha pela qual penetra um
pouco de luz, esperança.
117
Michael K, sob a máscara de debilitado mentalmente, demonstra saber mais
do que deveria. Embora, não tenha noção de todas as possíveis definições morais
de sua personalidade, ele aparenta ter consciência das coisas a sua volta. Nas
palavras do narrador-personagem, Michael é “uma pedrinha dura, mas consciente
de seu entorno, voltada para si mesma e para a sua vida interior” (VEMK,158).
Ao lermos a obra de Coetzee, inicialmente, temos a percepção de que de fato
Michael K é “idiota”, de capacidade mental reduzida e sem autoconsciência. No
entanto, notamos que o personagem escapa a essa definição:
Para que você acha que serve esta guerra? K perguntou. Para tirar dinheiro
dos outros? [K indaga um soldado que lhe roubava o dinheiro da mãe] (ibid.,
p.47).
Agora cheguei aqui, pensou. Ou pelo menos cheguei em algum lugar (ibid.,
p.64).
Ele acha que sou mesmo um idiota, pensou K. Acha que sou um idiota que
dorme no chão feito animal e vive de passarinhos e lagartos, e nem sabe
que existe uma coisa chamada dinheiro (ibid., p.75).
Bom, eu não estou em guerra com ninguém. Decretei a minha paz (ibid.,
p.78).
Que pena, numa época como esta, um homem ter de estar pronto a viver
como bicho (ibid., p.99).
Minha mãe trabalhou a vida inteira, disse [...] Mas quando estava velha e
doente, se esqueceram dela (ibid., p.159).
Descobriu que ficava excitado de dizer, negligente, a verdade, a verdade
sobre mim. “Sou jardineiro”, repetia, alto [grifo do autor] (ibid., p.209).
Se na superfície da narrativa percebe-se uma aparente imagem de
debilidade, esta é suplantada por inúmeros exemplos que demonstram a
consciência de K. Nos trechos citados anteriormente e em vários outros,
percebemos que Michael K tem consciência de quem era e do mundo em que vivia.
Ele se recusa a fazer parte da guerra e decreta a paz. Michael, por trás da aparência
simplória, percebe o caos labiríntico em que vive. Desse modo, nota-se que Michael
118
não é tão “idiota” como parece. Michael se mantém alheio a tudo que o cerca, ou
seja, não se importa com as coisas ditas pelo narrador oficial médico, vivendo num
mundo todo dele com suas próprias leis. “Manter-se alheio”, na obra de Coetzee,
não tem o sentido de “desatento ou alienado”, mas de “estrangeiro”, ou seja, que
não faz parte daquele lugar ou daquelas coisas.
A toca de Michael nos remete ao conto A construção (1923), de Franz Kafka.
Nesse conto, o narrador em primeira pessoa constrói para si uma toca com túneis
interligados, alimentos armazenados e tranquilidade de fortaleza. No entanto,
existem inimigos ocultos. Um deles parece tê-lo seguido, a ponto do personagem
escutá-lo nas paredes e achar que está condenado. Às vezes acorda assustado
acreditando que a construção é falha e começa a trabalhar na tentativa de corrigi-la.
Em alguns momentos, o personagem se perde no próprio labirinto construído e julga
ser necessário fazer novas edificações para se proteger. Desse modo, ele
empreende uma luta constante de construção e reconstrução.
O personagem se enterra, portanto, num buraco e vive, no subsolo, a ilusão
de estar protegido. No entanto, ele percebe que não tem um lar que o proteja do
inimigo. Michael K, assim como o personagem de A construção, cava um buraco e
se “enterra”, vivendo a ilusão momentânea de um abrigo. Essa situação oferece a
imagem de um personagem que empreende uma luta entre as suas concepções de
jardineiro e a guerra que o circunda. Deste modo, o eu esbarra numa barreira
instransponível com o mundo.
O personagem de Coetzee é preso por funcionários do governo e levado para
um “campo de reassentamento”, repleto de barracas de madeira e ferro que
abrigavam os reclusos (VEMK,87). Ao interrogar um dos reclusos sobre o motivo das
pessoas serem levadas para aquele lugar, Michael recebe a seguinte resposta:
119
“Isto aqui não é prisão”, disse o homem. “Não ouviu o policial dizer que não
é prisão? Aqui é Jakkalsdrif. É um campo. Não sabe o que é um campo?
Campo é para gente sem emprego. É para todo mundo que vai de fazenda
em fazenda mendigando serviço porque não tem o que comer, não tem um
teto para se abrigar. Eles juntam toda gente assim num campo, para não
terem de mendigar mais [...]” (VEMK,92).
A prisão na narrativa, com o nome de “campo de reassentamento”, é uma
forma de tornar os indivíduos dóceis e úteis, através do controle total sobre seus
corpos. A sociedade do apartheid é um imenso campo de concentração. As pessoas
à margem da sociedade são vistas como violadores da ordem estabelecida e,
portanto, devem se manter isoladas do resto da sociedade. A prisão marca um
momento importante na história da justiça penal, pois é vista como mais “humana”.
O objetivo é fazer o condenado “pagar sua dívida” com a sociedade que foi lesada.
No entanto, longe de qualquer “humanidade”, vemos que a prisão ao invés de
reabilitar, desumaniza. Para Foucault (2009:219):
[...] a prisão não foi primeiro uma privação de liberdade a que se teria dado
em seguida uma função técnica de correção; ela foi desde o início uma
“detenção legal” encarregada de um suplemento corretivo, ou ainda uma
empresa de modificação dos indivíduos que a privação de liberdade permite
fazer funcionar no sistema legal. Em suma, o encarceramento penal, desde
o início do século XIX, recobriu ao mesmo tempo a privação de liberdade e
a transformação técnica dos indivíduos.
A passagem dos suplícios à imposição de penas em prisões fortificadas por
arquiteturas bem elaboradas é, para o filósofo, a “passagem de uma arte de punir a
outra” (ibid., p.243). Independente da forma de punição, a privação da liberdade e o
isolamento do indivíduo garantem que se possa exercer sobre ele um poder que não
seja abalado por nenhuma influência.
120
Verifica-se que a falta de liberdade e o isolamento do indivíduo também vão
reaparecer em Benjamim, de Chico Buarque. Na obra de Coetzee, a prisão adquire
o nome de “campo de reassentamento”. Em Benjamim, com o clima sombrio da
ditadura civil-militar, a prisão se configura de uma forma mais velada. Personagens
são presos e assassinados sem direito à defesa. Além da prisão em seu aspecto
físico, ela também se configura no interior dos indivíduos, como veremos no próximo
capítulo.
121
5. BENJAMIM E OS LABIRINTOS FANTASMAIS48
5.1. A NARRATIVA DE UM TEMPO PERDIDO
O romance Benjamim (1995), de Chico Buarque, narrado em terceira pessoa,
apresenta dois momentos históricos: a década de 60 (passado glorioso de
Benjamim, o protagonista) e a década de 90 (seu presente decadente). Benjamim é
a história de um ex-modelo fotográfico envelhecido, que vive com a sensação
constante de estar sendo filmado, como se o mundo fosse um grande espetáculo.
Antes das reflexões sobre a obra, apresentaremos um resumo com os fatos mais
importantes.
O romance se inicia com o personagem diante de um pelotão de fuzilamento.
Como num filme, antes de morrer, sua vida passa diante de seus olhos, cujo centro
foi o amor da juventude, nos anos 60, Castana Beatriz. Castana era uma moça de
classe média alta que namorava Benjamim contra a vontade do pai. Depois de
abandoná-lo e fugir com o amante Douglas Ribajó, que a engravidou, foi
assassinada misteriosamente, na casa onde vivia. Mais tarde, revela-se que eles
viviam clandestinamente, pois militavam numa organização contrária ao governo.
Quase trinta anos depois, Benjamim vive com o dinheiro que conseguiu
acumular na época de modelo fotográfico. Enfrentando a ruína física e profissional, o
protagonista mora num prédio degradado, outrora muito valorizado, cercado de
mendigos e com as janelas que se abrem para a Pedra do Elefante – uma antiga
beleza natural, mas descaracterizada pelo aumento da miséria.
48
A expressão “labirintos fantasmais” faz referência a algo aterrorizador e sombrio e também ilusório.
Ilusório em relação ao fato de Benjamim não conseguir se desvencilhar dos inúmeros papéis do seu
passado glorioso. Aterrorizador e sombrio numa referência ao clima político e social da época.
122
Benjamim vive com a sensação constante de estar sendo filmado.
Adolescente, o personagem adquiriu uma câmera invisível e fez-se filmar durante
toda a juventude e, quando decidiu abolir a “ridícula coisa”, era tarde, pois a “câmera
criara autonomia” (BE,7).
Um dia, Benjamim vê Ariela Masé, uma jovem corretora de uma agência
imobiliária, e impressiona-se com ela. Ao ver uma foto de Castana Beatriz, ele
começa a relacionar as duas moças, a ponto de passar uma semana procurando
Ariela. Nessa procura, Benjamim vai à galeria de onde a vira sair e visita cada
dentista, descrevendo a boca de Ariela. Contudo, não consegue obter informações a
respeito.
Ariela é “companheira” de Jeovan, um ex-policial paralítico. Apesar disso, a
jovem mantém vários relacionamentos amorosos com outros personagens, como
Zorza e Aliandro. Jeovan é muito amigo do doutor Cantagalo, que além de chefe é
apaixonado por Ariela. Ariela faz questão de contar os seus relacionamentos
amorosos para Jeovan e sente prazer nisso. A mando de Jeovan, o chefe de Ariela
pede para a moça levar os seus pretendentes para apartamentos vazios
provavelmente para serem executados. “Para os amigos de Jeovan, homem que se
deitasse com Ariela era bandido” (ibid., p.153). Todas as vezes que o chefe estende
um porta-chaves de plástico “ensebado” parece que alguma coisa ruim vai
acontecer. É o caso de Zorza.
Ariela leva o seu amante Zorza até um apartamento. Em lugar das chaves
com esparadrapos, escolhe um porta-chaves de plástico, em que se lê “Rua
Corcunda, 39”. Ariela liga a televisão e aumenta o volume. No filme, há a discussão
entre um casal e a explosão de um carro. Ela começa a chorar e rompe o
relacionamento. Sai do prédio e vê “dois carros colados nos parachoques do carro
123
japonês de Zorza, mais um táxi preto de viés na entrada da rua” (BE,65). Tem-se a
impressão de que Zorza foi assassinado.
Um outro personagem importante é Aliandro Esgarate, um ex-ladrão e agora
candidato político. Seu comício parece um espetáculo, com direito à banda e
dançarinas louras de minissaias. O personagem modificou o nome ao consultar uma
numeróloga. Agora é Alyandro Sgaratti e utiliza-se do slogan “o companheiro
xifópago do cidadão”. Quando mais jovem, costumava praticar atos ilícitos com o
primo. Um dia, o primo o levou até uma rua escura e ele descobriu que sua mãe era
prostituta. Antes pensava que ela era enfermeira.
Benjamim é reconhecido na rua e acompanha alguns adolescentes até uma
gincana realizada numa concessionária de veículos. Na concessionária, famílias
admiram carros e motos “expostos como bijuterias gigantes”. A gincana é um show
de aberrações. Benjamim é apresentado na gincana como artista, mas ninguém o
conhece. O locutor da gincana o anuncia, mas ao invés de bater palmas, “o público
vira-se de costas para o palco e produz um ‘oh’: acaba de entrar no pavilhão uma
girafa” (ibid., p.43). As pessoas querem ser fotografadas ao lado da girafa.
Benjamim Zambraia gravou um comercial de dez segundos para a campanha
de Aliandro, como se fosse o professor e cientista social Diógenes Halofonte. Mas
como Benjamim não desempenhou bem o papel, foi preterido por outra pessoa.
Benjamim aplicou em ouro o capital acumulado como modelo fotográfico.
“Estipulou que morreria aos oitenta e repartiu o lingote de vida restante em lâminas
mensais, correspondentes ao que consumiria com luz e gás, condomínio,
alimentação, um chope, um cinema, suas necessidades”. A conjuntura econômicofinanceira e os vários exageros o levou a reduzir paulatinamente a sua expectativa
de vida, “hoje estimada em setenta e quatro anos e quebrados” (ibid. p.77).
124
Benjamim gasta seis meses de subsistência em uma semana. Aluga uma casa
noturna com direito a drinques e show exclusivo de um artista importante na
tentativa de agradar Ariela. Com a ousadia, restam apenas dezoito anos de vida em
dinheiro.
Benjamim vê um gato preto atravessando a rua e julga tê-lo visto anos atrás.
Começa a relembrar o passado. O protagonista recorda que ao voltar da casa do
doutor Campoceleste, um camburão estava parado diante do seu edifício. Oito
guardas armados prendem um casal de vizinhos. Um dia, Benjamim pensa ter visto
Castana Beatriz e começa a segui-la. Vê Castana correr com as sandálias na mão
em direção a uma casa verde-musgo. Benjamim é abordado por um homem que
pede para ver os seus documentos. A seguir, o homem pede ao motorista de táxi
Barretinho, a quem chama Zilé, que leve Benjamim para casa. Pelo canto dos olhos,
Benjamim vê alguns homens indo para a casa verde-musgo. Fecha a janela com
medo de ouvir os disparos. Em casa, fita o telefone por um longo tempo, “sabendo,
como sabe hoje, que ele não tocaria; nem precisava tocar porque, à força de ser
fitado, o aparelho já trazia embutida a trágica notícia” (BE,139).
Um dia, Ariela recebe na imobiliária o porta-chaves de plástico e, receosa do
que pudesse acontece, vai até o comitê de Aliandro para contar a sua história com
Jeovan e pedir-lhe proteção. Em virtude do descaso do candidato político, Ariela se
recorda de Benjamim e vai até o apartamento dele. Benjamim abre a porta e Ariela
não o reconhece: “quem entreabre a porta é um senhor curvo, a camisa para fora da
calça surrada, os cabelos brancos em desordem e a barba por fazer há uns sete
dias” (ibid., p.158). Ariela vê a pedra pela janela. “Há o cheiro da Pedra em
Benjamim, que à saída do quarto fita Ariela, empedernido” (ibid.). Ariela foge.
Benjamim vai atrás dela e entra no táxi com ela. Ariela observa os pés descalços de
125
Benjamim. Pega o porta-chaves de plástico e tem a fisionomia agoniada. Benjamim
já esperava que Ariela se chocasse com a visão da pedra, do mesmo modo que
Castana Beatriz quando foi visitá-lo pela primeira vez. Ele tem a sensação de já ter
visto o taxista antes. É levado ao sobrado verde-musgo. O taxista vai embora sem
cobrar pela corrida. Benjamim entra na casa e vê doze homens enfileirados. “‘Fogo!’,
grita um, e a fuzilaria produz um único estrondo [...] e naquele instante Benjamim
assistiu ao que já esperava” (BE,162).
5.2. TEMPO DAS SOMBRAS, TEMPO DA PEDRA
Pai, afasta de mim esse cálice/ De vinho tinto de sangue/ [...] Como beber
dessa bebida amarga/ Tragar a dor, engolir a labuta/ Mesmo calada a boca,
resta o peito/ [...] Como é difícil acordar calado/ Se na calada da noite eu me
dano/ Quero lançar um grito desumano/ Que é uma maneira de ser
escutado/ Esse silêncio todo me atordoa [...] Essa palavra presa na
garganta/ [...] Mesmo calado o peito resta a cuca/ [...] Quero perder de vez
tua cabeça [...] Me embriagar até que alguém me esqueça (HOLANDA e
49
GIL, Cálice, 1973) .
Tragar a dor, engolir a labuta, calada a boca, silêncio que atordoa... – todas
essas expressões convergem para o delineamento de uma realidade sombria tecida
de “tanta mentira,/ tanta força bruta”. Cálice, que forma o parônimo com “cale-se”, é
uma canção sobre o silêncio imposto, assumido à revelia. Trata-se de um silêncio
progressivo: na primeira estrofe, “mesmo calada a boca resta o peito”; na terceira
estrofe, “mesmo calado o peito resta a cuca”; na última, no entanto, não resta mais
nada, “quero perder de vez tua cabeça [...] Me embriagar até que alguém me
49
A música, de Chico Buarque e Gilberto Gil, foi composta para o show Phono 73, que a gravadora
Phonogran (ex Philips, e depois Polygram) organizou no Palácio das Convenções do Anhembi, em
São Paulo, em maio de 1973. Como a censura havia proibido a letra, os autores resolveram cantar
apenas a melodia, pontuando-a com a palavra “cálice”. Todavia, a gravadora resolveu cortar o som
dos microfones para evitar que a música fosse apresentada, mesmo sem a letra. O público viu
concretizado
dramaticamente
o
“cale-se”.
Cf.
Homepage
de
Chico
Buarque:
<www.chicobuarque.com.br> (Acesso em: 17 jan. 2010) e MENESES, A. B. Desenho mágico, 2002,
p.91, op. cit.
126
esqueça”. Resta, portanto, apenas o silêncio. Na visão de Adélia Meneses
(2002:91), a boca (a comunicação), o peito (o sentimento) e a cuca/cabeça (o
raciocínio, o pensar) são as três dimensões humanas atingidas pela censura.
Há um diálogo entre o silêncio de Cálice e o romance Benjamim. As imagens
de Cálice se projetam num outro contexto, amplo e significativo: o tempo da pedra
de Benjamim Zambraia. Há na narrativa de Chico Buarque, predominantemente,
dois tipos de silêncio: o silêncio provocado pela morte e o silêncio provocado pelas
vozes sufocadas. Logo nas primeiras linhas, Benjamim está diante de um pelotão de
fuzilamento e, no momento do estrondo das armas, a sua vida projeta-se como um
filme. Ele é condenado pela circularidade da própria narrativa. Com uma estrutura
circular, o final do romance remete ao início, como uma espécie de “roda-viva”. Ao
ter a existência projetada como um filme do início ao fim, no momento do tiro,
Benjamim ainda deseja “rever-se aqui e acolá” e aprender “a penetrar em espaços
que não conhecera” (BE,6). Contudo, já não há mais tempo para a reconstrução do
passado.
O silêncio da morte e o silêncio provocado pela ditadura marcham lado a lado.
O romance aborda dois momentos: a década de 60 (passado de Benjamim
Zambraia, tempos áureos de sua carreira de modelo-fotográfico) e a década de 90
(presente de Benjamim, agora decadente, envelhecido). Esse ângulo sociopolítico
não é muito visível numa primeira leitura, mas de forma atenta, constatam-se
expressões e nuances contextuais que caracterizam a realidade do personagem.
São inúmeros os fatos que traduzem a atmosfera da ditadura civil-militar brasileira.
Inicialmente, Benjamim tem a sensação constante de estar sendo filmado, com isso
vai perdendo a naturalidade. Na adolescência passou a se imaginar com uma
câmera invisível através da qual filmava as outras pessoas. Podemos depreender
127
alguns sentidos da câmera que ora dialogam com o mundo mercantilizado do
protagonista ora dialogam com a atmosfera sombria da ditadura civil-militar.
O primeiro deles diz respeito ao fato de o personagem ser um modelo
fotográfico, acostumado com o mundo do espetáculo. Para Benjamim, o mundo é
um castelo de imagens, uma representação teatral, dentro da qual ele se encontra
preso, sem possibilidades de fuga, de saída. No entanto, o protagonista já não vive
mais os tempos de glória, pois agora está envelhecido. Nessa realidade, há a
transformação dos homens em objetos de comercialização e de coisas em objetos
de valor. O personagem convive com a catástrofe pessoal e social, com a
decadência profissional, num mundo onde tudo tem um prazo de validade. O
comercial de cigarro que o protagonista havia feito saíra de cena para dar lugar a
jovens que personificavam o ideal de beleza da época. Decaído, Benjamim vive num
paraíso perdido, à mercê do acaso. Numa gincana de inauguração, famílias admiram
carros e motos, expostos como “bijuterias gigantes” (BE,39). Num mundo onde se
fotografar ao lado de artista virou moda, Benjamim, decaído, “perdeu em fotogenia” e
ninguém mais lhe dá valor (ibid., p.36). Ao ser anunciado no evento, “o público virase de costas” e prefere olhar para uma girafa (ibid., p.43). Benjamim personifica o
conceito de “vendabilidade” pela conversão dos seres humanos em mercadorias.
O segundo sentido que podemos perceber na atitude de Benjamim, ao
adquirir a câmera invisível, diz respeito à paixão pelo amor de juventude, cujas
lembranças ou aparições o levarão à decadência e, finalmente, ao silêncio, à morte.
A história de vida do personagem se estrutura em torno de um anseio – a
perseguição do grande amor Castana Beatriz e a projeção dela em Ariela Masé.
Além deste anseio, a narrativa se constrói em torno da perda dos tempos áureos e
da tentativa desesperada de Benjamim em repetir esses momentos gloriosos. Mas o
128
protagonista, outrora muito requisitado, o preferido, perdeu esse estatuto. Ele passa
por uma metamorfose que o reduz a uma coisa, a objeto comercializado. A presença
da dominação nas relações sociais promove a redução do trabalhador ao nível de
uma peça de máquina. O homem, visto como um número a mais, longe do caráter
empreendedor, revela a ótica das cruéis desigualdades do mundo do capital. O
homem aparece como escravo de um sistema, de uma máquina invisível, engolfado
pela consciência de solidão e a falta de alternativas.
A narrativa, portanto, constrói-se em torno de um anseio, da perda da
juventude e do impulso à repetição dos tempos gloriosos. Benjamim procura
recuperar o paraíso perdido, a juventude e a vitalidade. A ruína do protagonista
acontece quando ele relaciona a antiga paixão Castana Beatriz à jovem Ariela Masé.
Ao projetar em Ariela a figura de Castana, Benjamim passa a viver um mito e isto o
levará à destruição. O mito se efetiva quando a realidade concreta é inalcançável,
surgindo como uma solução. Obcecado por um passado que não pode mais voltar,
ele não consegue discernir as artimanhas do mundo em que vive.
Enfrentando a decadência física e profissional, isolado e destituído do
aconchego humano, Benjamim é arrastado para o amor por uma força vital e
revivescente, que se constitui para ele em um meio de salvação. Este amor
avassalador se revela como uma pulsão de vida, uma energia capaz de fazê-lo
sonhar com os tempos áureos, vividos e perdidos. Ele projeta o passado real
(Castana Beatriz) num falso presente (Ariela Masé). Contudo, Ariela é apenas o
simulacro de uma imagem rediviva, projetada em terreno infértil, que só se sustenta
no irreal. O mito, a distorção da realidade é, portanto, o elemento mediador que leva
o personagem a sua própria ruína. Ao reviver o amor por Castana em Ariela,
Benjamim tenta recuperar os sonhos interrompidos pela sua decadência física. No
129
momento em que ele não consegue mais ver Castana em Ariela, rasga as próprias
fotografias: “Benjamim Zambraia de perfil, Benjamim Zambraia de calção, Benjamim
Zambraia com quatrocentas mulheres, o curriculum vitae do modelo Benjamim
Zambraia” (BE,110-111). Abrir as pastas com inúmeras fotografias de modelo é,
para Benjamim, “ressuscitar” Castana e o seu passado glorioso que morreu junto
com a amada. Rasgar as imagens é a tentativa de se livrar delas. O amor é a força
vital e também a ruína do personagem, que se entrega ao sentimento não
correspondido. Apesar de revivescente, o amor o escraviza.
A perseguição da grande paixão Castana leva o personagem a sonhar com a
repetição dos tempos da juventude. Com isso, Benjamim acaba repetindo os lugares
que frequentava com a amada, e morre na mesma casa onde ela morou e morreu.
Ele perdeu a vida na busca dessa utopia, personificada no amor da juventude. O
personagem não consegue decifrar a verdadeira identidade das pessoas com as
quais convive e também perceber as nuances do cotidiano. O não entendimento do
que se passou transforma a vida de Benjamim em um grande sertão, árido e
empedernido pelos problemas da sua existência.
Morador de um prédio cuja janela se abre para a Pedra do Elefante,
Benjamim adquire as características dela. A sombra e o cheiro da pedra estão por
toda a casa e no próprio personagem. No final da narrativa, ao ser visitado por Ariela
Masé, Benjamim tem “o rosto empedernido” e seu cheiro é de pedra. O homem se
reduz, dolorosamente, ao inumano. Benjamim sedimenta dentro de si a presença de
Castana e o passado. Além de possuir as “feições” da pedra, tem um guarda-roupa
repleto de lembranças e pastas separadas por ano com inúmeras fotografias. Ele
não consegue se desvencilhar das diversas representações do passado glorioso.
130
A câmera invisível que persegue o protagonista é também uma metáfora que
expressa a condição atormentada de um indivíduo acostumado com constantes
exposições e martirizado por um passado que não pode mais voltar. No auge da
fama, a suspeita da vigilância não incomoda Benjamim. O mundo dos holofotes é o
combustível que alimenta o personagem. Engolfado e ludibriado por essa exposição,
ele não percebe que a necessidade de estar no centro das atenções o consome. No
entanto, a câmera ganha autonomia e o protagonista não consegue mais se
desvencilhar dela. Por isso, a sensação constante de estar sendo vigiado, conforme
se verifica no trecho a seguir:
[Benjamim] Fez-se filmar durante toda a juventude, e só com o advento do
primeiro cabelo branco decidiu abolir a ridícula coisa. Era tarde: a câmera
criara autonomia, deu de encarapitar-se em qualquer parte para flagrar
episódios medíocres, e Benjamim já teve ganas de erguer a camisa e cobrir
o rosto no meio da rua, ou de investir contra o cinegrafista, à maneira dos
bandidos e dos artistas principais. Hoje ele é um homem amadurecido e usa
a indiferença como tática para desencorajar as filmagens. Mas quando entra
enfim no Bar-Restaurante Vasconcelos, ainda o incomoda a suspeita de
uma câmera [...] (BE,7-8).
Por outro lado, a câmera invisível que persegue Benjamim se relaciona a
outro sentido: o de dispositivo de vigilância, constante na realidade do protagonista.
A política misteriosa perpassa todo o livro e teve implicações diretas na vida de
Benjamim, sem que ele percebesse. A divisão da vida do protagonista em duas
épocas – anos 60 (tempos áureos de modelo) e anos 90 (decadência) – pode ser
considerada um referencial: a personificação dos tempos de luta e o conformismo da
sociedade atual. Por outro lado, mostra um personagem incapaz de reagir à
repressão da ditadura civil-militar, silenciado diante dela, enquanto usufruía os
benefícios de uma vida regada a flashes. Benjamim é retrato da sociedade
mercantilizada.
131
A defasagem entre o seu modo estático de representação – de modelofotográfico – e o mundo dinâmico da televisão, das filmagens, que impera na
atualidade se revela na sua dificuldade em adentrar o mundo da televisão. Ao fazer
um comercial de cigarro e uma propaganda para a candidatura política de Alyandro,
Benjamim não representou bem os papéis e foi substituído. Ele representa, portanto,
a decadência ao não conseguir acompanhar o dinamismo da sociedade.
Ao rever a sua vida, Benjamim resume o que fizera em dois anos: “cinema,
chope, cinema, cama, chope, cinema, caldo de carne, cama”, em seguida, completa:
“só?” (BE,101-102). O protagonista resume, nessa fórmula, a ruína humilhante de
um personagem diante da própria história.
Benjamim guarda o dinheiro recebido no auge da carreira e calcula,
aproximadamente, o que gastaria numa existência sem exageros. Acredita que as
economias durarão até o fim de sua vida, que ele dividiu em um número razoável de
anos. No entanto, para impressionar Ariela, ele faz uso de uma grande quantia, a
ponto de reduzir o tempo de vida estimado. O tempo-dinheiro é o que sustenta o
tempo de vida de Benjamim. A má administração das economias transforma o seu
tempo-dinheiro em ameaça de morte.
O tempo-dinheiro de Benjamim transforma-o numa engrenagem, ou seja,
numa peça dentro da previsibilidade da sua existência. O encontro (com Ariela), que
poderia ser uma abertura para novas possibilidades, é o que abrevia a existência de
Benjamim. O projeto de vida traçado pelo protagonista não prevê novas aventuras e,
por isso, é desfeito. As economias perdem o seu único objetivo, pois são usadas
sorrateiramente com as extravagâncias de Benjamim. O projeto, portanto, é
derrotado pelo inusitado, ou seja, pelo surgimento de Ariela, que ao invés de trazer
novas conquistas, leva Benjamim à morte. O que deveria ser um grande momento
132
na vida de Benjamim – o aparecimento de Ariela – transforma-se numa existência
atormentada e sombria.
Em Benjamim, encontramos uma época caracterizada por uma atmosfera
sombria e labiríntica que influencia a vida dos personagens. No mundo de
Benjamim, os indivíduos são reduzidos a mercadorias com prazo de validade. O
protagonista tem sua função – de modelo – paralisada pela ação do tempo.
Envelhecido e transtornado pela suposta morte da amada, Benjamim cede espaço
para a lamentação, a busca de um tempo perdido.
A verdadeira busca de Benjamim é pela felicidade. No entanto, num universo
vazio e degradado pelas questões mercadológicas e pelo tempo histórico sombrio, o
protagonista perde o sentido da vida. Antes, Benjamim movia-se num mundo de
objetivos claros: a exposição na mídia. Agora, a perda da juventude desmascara a
falsidade da realidade em que vivia. A perda da juventude, relacionada ao tempo
mercadológico e ao tempo histórico sombrio, leva o protagonista à destruição.
Benjamim busca na memória de sua vida resquícios do passado que o façam
reviver.
5.3. O JOGO DE DUPLOS E AS REPRESENTAÇÕES FANTASMAIS
De muito gorda a porca já não anda/ De muito usada a faca já não corta/
50
Como é difícil, pai, abrir a porta (HOLANDA e GIL, Cálice, 1973) .
Outrora um modelo fotográfico, Benjamim já não consegue mais abrir portas.
Aqui, “abrir a porta”, não é apenas a tentativa de romper o silêncio, a voz
estrangulada, fruto da realidade histórica, mas também a tentativa de romper
50
Cf. Homepage de Chico Buarque: <www.chicobuarque.com.br>. Acesso em: 17 jan. de 2010.
133
barreiras. Ambos os sentidos se relacionam: romper o silêncio também é romper
barreiras. Decadente, o protagonista já não serve mais aos ideais de beleza. Sua
imagem já não surte mais efeito. O tempo de pedra, ou seja, o tempo sombrio e
empedernido pelas dificuldades encontradas na carreira artística, traduz o estado de
Benjamim, incapaz de discernir o presente do passado que o alimenta e o consome.
O protagonista está condenado ao vazio da existência, ao silêncio. O que o
caracteriza não é o imobilismo – que o manteria jovem, imune à ação do tempo –
mas a corrosão do próprio tempo na sua fisicalidade e dos valores de mercado que
já são diferentes daqueles predominantes no tempo do Benjamim jovem.
A narração, de forma objetiva, articula-se em torno das lembranças,
expressas através das memórias de Benjamim. No brevíssimo tempo entre as armas
projetadas e o estrondo dos disparos, o protagonista revive num relâmpago a sua
vida. Para uma vida de espetáculo, nada mais natural do que as lembranças
mostradas num telão de cinema.
A objetividade de Benjamim surge da postura do narrador face ao mundo: ele
apenas conta a história e nada problematiza. O narrador não pensa sobre o mundo,
apenas se limita a narrá-lo. A reflexão e os sentidos que porventura podem ser
depreendidos ficam a cargo do leitor.
Todo romance, como diz Bakhtin (1993:371), “é um sistema dialógico de
imagens das linguagens, de estilos, de concepções concretas e inseparáveis da
língua”. O romance dialoga com a sua contemporaneidade e é marcado pela
perspectiva crítica do mundo em que vive. Benjamim expressa a realidade dos
personagens e leva os leitores à reflexão sobre a palavra escrita e os problemas da
existência humana.
134
O romance mostra as lembranças do protagonista, contadas por um narrador
em terceira pessoa. Utilizando técnicas cinematográficas, apresenta o mundo como
um espaço de representação onde os personagens encenam múltiplos papéis. Eles
nem sempre são o que aparentam ser. O narrador parece um cameraman, tentando
montar a vida dos personagens como se estivesse exibindo um filme: “[...] e naquele
instante Benjamim assistiu ao que já esperava: sua existência projetou-se do início
ao fim, tal qual um filme, na venda dos olhos” (BE,5). A narrativa simula
procedimentos cinematográficos como no trecho em que Benjamim pega uma foto
de Castana e, de repente, o rosto da amada envelhece sete anos e sobrepõe-se a
imagem de Ariela (ibid., p.24). Trata-se, portanto, de uma técnica cinematográfica de
transformação instantânea por substituição. Essa incorporação das técnicas
cinematográficas alude aos novos tempos, com a mídia e o cinema51. A narrativa
focaliza os personagens e as situações em detalhes:
Se uma câmera focalizasse Benjamim na hora do almoço, captaria um
homem longilíneo, um pouco curvado, com vestígios de atletismo, de
cabelos brancos, mas bastos, prejudicado por uma barba de sete dias,
camisa para fora da calça surrada aparentando desleixo e não penúria,
estacionado em frente ao Bar-Restaurante Vasconcelos, tremulando os
joelhos como se esperasse alguém (ibid., p.6).
Através da descrição pormenorizada do narrador, o leitor consegue perceber
a faixa etária (“cabelos brancos” e “um pouco curvado”) e o estado psicológico
(“barba de sete dias”, “camisa para fora da calça” e os joelhos tremulando) de
Benjamim. A descrição tece a personalidade, as características físicas e a situação
vivenciada pelo personagem.
51
O romance Benjamim ganhou versão para o cinema, assinado por Mônica Gardenberg, em 2003.
135
Na obra de Chico Buarque, narração e descrição se interrelacionam. A
descrição é usada para enriquecer as situações e os personagens. Cada
personagem é uma visão de mundo, o que torna a obra um grande mosaico: temos
o ex-modelo fotográfico (Benjamim), a corretora de imóveis (Ariela Masé), o expolicial (Jeovan), o ex-ladrão de automóveis, agora candidato político (Aliandro
Esgarate/Alyandro Sgaratti), o dono de imobiliária (Dr. Cantagalo), o dono de
agência publicitária (G. Gambôlo), o pai de Castana (Dr. Campoceleste), o motorista
de táxi (Barretinho/Zilé), o vendedor de automóveis (Zorza), entre outros.
Os personagens são descritos conforme a função que exercem na sociedade.
Quase todos são da classe média como vendedores, funcionários, modelos,
professores; ou da pequena burguesia, como dono de imobiliária e agência de
publicidade. Os operários e as empregadas domésticas circulam pelos ônibus
lotados e por ruas povoadas por mendigos. Portanto, são profissões típicas da
sociedade e descritas conforme as características apresentadas no cotidiano.
Assimilar a visão do homem e da realidade é um grande problema para o
romancista. Não basta apenas discorrer sobre essa realidade, mas apresentá-la na
própria estrutura da obra de forma que a ela se transforme em experiência vivida.
Segundo Lukács (1968a:167), “a aptidão dos personagens artísticos a
expressar a sua própria concepção do mundo constitui um elemento importante e
necessário da reprodução artística da realidade”. Na obra de Chico Buarque, cada
personagem é descrito e representado segundo a sua concepção de mundo. À
experiência pessoal de Benjamim vão se juntando outros particulares.
Benjamim convive com dois dilemas: a obsessão pelo amor de juventude e os
fantasmas identitários. Apesar de possuir um único nome, o protagonista se perde
nas inúmeras máscaras e identificações que toma para si. Ao rever uma pasta de
136
fotografias, percebe “uma multidão de Benjamins Zambraias”: “vêem-se agora um
ex-governador à frente da sua biblioteca, um ex-campeão com o rosto emoldurado
na raquete, um ex-menino-prodígio de óculos quadrados, um velho escritor com a
mão no queixo [...]” (BE,23). Estes são, portanto, papéis protagonizados por
Benjamim ao longo da carreira. No entanto, ele já não consegue se desvencilhar
deles. O ex-modelo fotográfico veste-se e despe-se, ao longo da narrativa, das
máscaras que usa. As imagens guardadas na memória se mostram mais fortes que
a vida. Num mar de imagens, ele tenta se encontrar, mas quanto mais avança, mais
se perde. Assim, sua identidade é sempre erguida sobre ilusões e fantasias.
Embora o romance apresente diferentes planos como a memória, a
imaginação, a fantasia e a realidade, todos são bem delineados. O leitor consegue
perceber o que é real na narrativa e o que é deformação provocada pela visão
sombria dos personagens. Através da interpolação entre os diversos planos, visível
aos olhos do leitor, surge um mundo cruel, alheio à vontade dos personagens.
O protagonista almejava representar o modelo-fotográfico de antigamente,
tentando refazer o figurino dos tempos de glória: “comparou-se à sua foto no pôster
de dois anos atrás, e lembra-se de ter sorrido, de ter se julgado um tanto mais jovem
no espelho” (ibid., p.33). Benjamim se apresenta como uma cópia dele mesmo na
juventude. Ao ser reconhecido na rua por adolescentes que participam de uma
gincana, estes não têm certeza sobre a sua identidade e seu trabalho artístico. O
anonimato atual do personagem se revela em paradoxo com a sua antiga carreira de
modelo-fotográfico que, no presente, é apenas um rastro de um brilho extinto. Deste
modo, o Benjamim atual parece uma sombra do que foi no passado. Ao olhar as
fotos de juventude: “Benjamim põe-se a admirar Benjamim Zambraia aos vinte e
137
cinco anos. Põe-se a invejá-lo tão intimamente, e com tanta propriedade, que não
tarda em usurpar-lhe a namorada” (BE,24). Trata-se da imitação de si mesmo.
Benjamim congrega em si duas pessoas (o modelo Benjamim e o Benjamim
decadente). A obsessão pelo passado se traduz em suas roupas antiquadas. Ao
convidar G. Gâmbolo para um drinque, o protagonista reflete sobre a sua aparência:
“com paletó de lã, calça de veludo e foulard de seda, seria mais razoável sentar-se
debaixo do ventilador” (ibid., p.33). As roupas antigas e calorentas não se
apresentam em conformidade com o clima tropical, evidenciando a completa
inadequação do personagem em relação ao mundo.
A imagem de Ariela também é contraditória. O narrador, em terceira pessoa,
registra os acontecimentos como uma espécie de testemunha e mostra a
complexidade e a ambiguidade que integram o ser humano. No início, achamos que
Ariela é uma prostituta em serviço, no entanto, trabalha numa agência imobiliária e
leva os compradores até os apartamentos a serem negociados. Ariela, mesmo tendo
um namorado possessivo e ciumento, Jeovan, relaciona-se sexualmente com outros
homens. Apesar de ter os passos controlados, mantém as suas aventuras e sente
prazer em contá-las ao companheiro inválido. Ao narrar as histórias de assédio,
Ariela incrementa-as com fantasias pelo simples prazer de ver a reação de Jeovan.
Privados de se relacionarem fisicamente, Jeovan e Ariela passam a fazê-lo através
de um jogo de sedução verbal, perverso e transgressor. A atitude de Ariela provoca
o desejo, o ciúme e a culpa em Jeovan, o que o faz tramar as mortes dos vários
homens que ousam relacionar-se com a sua mulher.
Benjamim vive a partir das fantasias, da crença de ainda poder desempenhar
a sua função de modelo. Ariela, por sua vez, também vive de sonhos. A fantasia
incrementada nas suas aventuras é a tentativa de amenizar uma existência de
138
pobreza emocional, social e econômica. Ariela é, na verdade, um retrato do seu
tempo: desejosa de uma vida fácil, sem dificuldades. Ao contrário de Benjamim,
cujas roupas são inadequadas, as de Ariela ganham novos sentidos conforme o
horário do dia, como podemos perceber no seguinte exemplo:
É pelos clarões do céu que Ariela se dá conta de que já é noite: o itinerário
fortuito depositou-a no centro da cidade. Numa bifurcação, opta pela rua
mais iluminada, sem saber que vai enfrentar, de pernas nuas, uma
sequência de casas de shows eróticos. Bêbados, turistas, pais de família,
corretores de automóveis, porteiros de inferninho fazem-lhe propostas; a
roupa escolhida para um dia de sol tornou-se noturnamente adequada,
como se ela vestisse aquela mesma saia às avessas (BE,66).
A indumentária de Ariela não a protege das situações incômodas, mas a
ajuda a adaptar-se. As roupas mostram uma ambiguidade. Por isso, o leitor tem a
sensação de que a personagem é uma prostituta em serviço. Ariela é, de alguma
forma, alguém que se prostitui. As roupas de Benjamim, ao contrário, servem para
mostrar a inadequação do personagem às circunstâncias e aos espaços.
A duplicidade também está presente no personagem Aliandro. Antes, como
Aliandro Esgarate, era marginal, ignorante e feio. Agora, como Alyandro Sgaratti, é
empresário, candidato político, poderoso e atraente. Como nos versos de Chico
Buarque, Homenagem ao malandro (1977-1978): “agora já não é normal/ o que dá
de malandro regular, profissional/ malandro com aparato de malandro oficial/
malandro candidato a malandro federal/ malandro com retrato na coluna social/
malandro com contrato, com gravata e capital/ que nunca se dá mal”52.
Aliandro/Alyandro encarna bem a figura do malandro composto por Chico. O
personagem que engana o povo aparece como um homem respeitável. O autor
ironiza quando menciona que o personagem é “o companheiro xifópago do cidadão”
52
Cf. Homepage de Chico Buarque: <www.chicobuarque.com.br>. Acesso em: 17 jan. de 2010.
139
(BE,71). Ao invés de promover o desenvolvimento social, Alyandro está preocupado
com a ascensão econômica e o prestígio que ganhará com o cargo político. Desse
modo, a palavra “xifópago” aparece como um contrassenso, pois o personagem está
mais preocupado com o seu progresso do que com os problemas sociais. Alyandro
encarna um político que não se revela como de fato é, apresentando discursos
muitas vezes escritos por outras pessoas. Em sua maioria, os discursos não
alcançam a população menos favorecida, destituída do saber acadêmico. O
personagem é uma amostragem do poder do capital, ainda que fruto de meios
ilícitos.
O comício do candidato político é um show, com direito a dançarinas e
cantores. Na sua campanha, alguns personagens são fictícios, como o professor e
cientista social Diógenes Halofonte, encenado por Benjamim. No entanto, ele não
desempenhou bem o papel e foi descartado. Verifica-se um jogo de duplos: os
indivíduos põem a máscara do outro segundo as conveniências sociais, políticas,
econômicas, etc.
Benjamim aparece como um ser duplicado – o Benjamim dos tempos áureos
e o Benjamim decadente; Ariela é corretora de imóveis, mas parece uma prostituta,
Aliandro/Alyandro pratica atos ilícitos e é pastor e candidato político, Dr. Cantagalo,
além de dono da imobiliária, mantém ligações com a polícia; Barretinho/Zilé é
motorista de táxi e trabalha para a polícia; Zorza é pai de família e amante de Ariela;
Castana Beatriz é modelo e militante política; Douglas é professor e militante
político. Embora as identidades dos personagens, em sua maioria, não se
relacionem com os acontecimentos políticos, elas insinuam o clima de opressão dos
anos 60 e 70. Há, portanto, a presença de dois momentos históricos: o presente
(anos 90) e o passado (anos 60 e 70). No presente dos personagens (década de
140
90), as novas condições da vida sociopolítica afloram: a presença de mendigos nas
ruas, a decadência da estrutura urbana, a decomposição de edifícios, os ônibus
malcuidados, a violência urbana, a trajetória do bandido a político, etc. O espaço
romanesco aparece, portanto, dominado pela barbárie. Nota-se o aumento
considerável do contingente populacional em situação de pobreza extrema que
perambula pelas cidades.
O protagonista também se duplica na pedra. Ele imagina que “a Pedra esteja
habitada de alto a baixo tal qual um edifício de apartamentos, com síndico e tudo,
defronte de um paredão de cimento. E imagina que para os moradores da Pedra
seja ele, Benjamim, solitário e nu, o velho maluco da caverna” (BE,111). A pedra
serve como um espelho do protagonista, através do qual ele vê a si mesmo: um
homem misterioso, solitário e nu, ou seja, despido de tudo. A pedra sedimenta o luto
interminável do protagonista assim como a casa verde-musgo, onde morrerá fuzilado
como Castana.
A relação de Benjamim com a própria imagem destoa da de Ariela. Benjamim,
apesar de preso a um passado glorioso, não parece muito à vontade com o mundo
dos flashes, das câmeras. Ariela, no entanto, destaca-se num mundo de
representação. Ao fazer um teste de modelo, a convite de G. Gâmbolo, Ariela mostra
toda a sua fotogenia. “Provou uma túnica de seda furta-cor e ficou triste, conforme
as instruções do fotógrafo, depois por conta própria mordeu o lábio inferior, com um
olhar sugestivo” (ibid., p.125-126). O mundo da representação relaciona-se com a
profissão de Ariela. A personagem tenta fazer com que os clientes adquiram os
imóveis e também costuma levar seus supostos “agressores” (que a assediavam
sexualmente) para serem mortos nos estabelecimentos a mando de Jeovan.
Portanto, a representação é o que move a vida de Ariela.
141
A longa exposição ao mundo dos flashes parece ter tirado a vitalidade de
Benjamim. Ele parece um fantasma, que arrasta o seu passado. Nas páginas finais,
Ariela assusta-se com a imagem de Benjamim ao visitá-lo em seu apartamento. A
sua condição fantasmagórica se revela na maneira como foi conduzido para a morte,
como um “meio defunto”. Castana morre em virtude de suas ligações com
organizações contrárias ao governo. Já Benjamim morre supostamente como um
“assediador” de Ariela.
A memória, ou seja, o passado de Benjamim, apresenta-se como uma
espécie de labirinto. A alternativa para o personagem isolado é o “nós”, a comunhão.
Quando esta última desaparece, o que resta é o sentimento de que o sonhador não
consegue ser mais real do que os seus sonhos. Benjamim convive com um “nós
ilusório” que aparece como uma espécie de salvação. Ele ainda acredita ter amigos
e, por isso, marca encontros. Todavia, os encontros se transformam numa grande
espera.
O romance mostra a vitória do mundo mercadológico e da consciência
arruinada e a derrota de Benjamim, que é incapaz de acompanhar as mudanças do
tempo.
142
6. DOS SENHORES K., AS VÍTIMAS, AO SENHOR ZAMBRAIA: REALIDADES
LABIRÍNTICAS
6.1. DA CONCEPÇÃO DE MUNDO À ESCRITA: A CONSTRUÇÃO DA
REPRESENTAÇÃO E DA LINGUAGEM
Lendo as narrativas que constituem o corpus desta pesquisa, percebemos um
diálogo entre o estado de anomia civil atravessado pela África do Sul em Vida e
época de Michael K e o mundo de pesadelo de O processo, Na colônia penal e
Benjamim. Todos têm em comum uma atmosfera de sombras. O ambiente de medo
e solidão, caracterizado nas duas ditaduras – a do apartheid e a brasileira, retomada
através da referência ao passado de Benjamim – e o tempo sombrio de Kafka
incidem sobre a vida dos personagens. Mergulhados no “caldeirão da história”53, os
personagens trazem para a cena a complexidade das relações entre o homem e as
estruturas sociais, políticas e econômicas.
A onomástica tem papel importante nas referidas obras. A inicial K. (com o
ponto final indicando abreviatura) parece uma referência à maioria dos personagens
kafkianos e expressa a despersonalização, o anonimato. O K do personagem de
Coetzee, ao contrário, não é exposto com o ponto indicativo de abreviatura e sugere
a ausência de uma linhagem familiar, o anonimato e também aponta para uma
coletividade. O anonimato em Michael K mostra-se como salvação num mundo em
guerra. Os personagens de Na colônia penal são anônimos e designados apenas
pela função que exercem. Já na obra de Chico Buarque, Benjamim cultua o
reconhecimento e não almeja o anonimato, que seria uma ruína para uma vida
53
COETZEE, J. M. Vida e época de Michael K, p.176.
143
acostumada com o mundo dos flashes. No entanto, Benjamim, relegado ao
esquecimento, tem algo de anônimo. Assim diz o narrador: “[...] as pessoas mais
sérias sem dúvida desconfiavam de um cidadão assim onipresente, que ostentava
saúde, fortuna, simpatia, e não tinha nome. O próprio Benjamim sentia-se ludibriado
por aquela glória crescente, que tornava a cada dia mais profundo o seu anonimato”
(BE,36). Nesta obra, vemos a completa anulação do indivíduo, submetido às
imposições da mídia e do mercado. Há a redução do ser à imagem. Num momento
na narrativa, o personagem tenta se livrar de uma coleção de fotografias, de
imagens. O sentimento de opressão aliado à total dependência do mundo dos
holofotes remete à artificialidade dos gestos e atitudes de Benjamim ao longo da
vida.
A problemática do nome indicia uma realidade angustiante, massificada, sem
afeto; uma sociedade cuja individualidade foi reduzida à solidão e ao alheamento
social. O ser humano sente-se estranho, incapaz de compreender e de se adaptar
aos absurdos da estrutura social. Os personagens de Kafka, Coetzee e Chico
Buarque estão presos num labirinto, numa engrenagem burocrática e desumana,
que os obriga a viverem como Gregor Samsa, de A metamorfose, “debaixo do
canapé”, escondido.
Apesar de envoltos numa atmosfera crepuscular, os personagens se
diferenciam na maneira como agem ou não em relação a esse tempo sombrio. Josef
K. percorre labirintos na tentativa de encontrar respostas para uma acusação
misteriosa. Tempo e espaço se deformam. Kafka não adota uma estrutura narrativa
tradicional, expressando o absurdo do mundo. A narrativa não apresenta um
encadeamento lógico e causal, estando em conformidade com o mundo labiríntico
apresentado.
144
Já mencionamos em outro momento a maneira como o absurdo e o estranho
se apresentam de forma natural na narrativa. No meio de uma atmosfera
aparentemente familiar, produz-se um acontecimento que não pode ser explicado
pelas leis do contexto. O aparecimento de personagens num determinado ambiente
até então não focalizados e o absurdo da cena do espancamento dos guardas são
exemplos dessa atmosfera, em O processo. Essa atmosfera também se verifica em
Na colônia penal. A existência do aparelho destinado a torturar e punir beira o
absurdo. No entanto, os mecanismos de tortura são narrados com muita
naturalidade. A importância do sistema de tortura é tão grande que ocupa mais da
metade da narrativa. A vida social e política gira em torno do aparelho punitivo.
Assim como em O processo, há um clima fantasmagórico a rondar a consciência dos
personagens.
O protagonista Benjamim, mergulhado no passado, não consegue entender o
seu tempo e a sua história. Ele não busca respostas para o seu fracasso profissional
e existencial, mas deseja continuar desempenhando a sua função. Assim como na
narrativa kafkiana, os fatos estranhos e o fantasmagórico rondam o protagonista. O
“estranho” se manifesta em virtude dos acontecimentos políticos. Personagens de
épocas anteriores aparecem como o motorista de táxi e agente da polícia
Barretinho/Zilé. O assassinato de Benjamim na mesma casa de Castana também
gera uma sensação de estranheza no leitor. A ascensão de um bandido a candidato
político liga-se ao próprio tema da ação, ou seja, ao fato do mundo se apresentar
caótico e incoerente.
Benjamim tematiza, no plano coletivo, a violência – os assassinatos – e, no
plano individual, a angústia e a solidão. Ao problematizar esse mundo degradado, a
narrativa traz para a cena o falso sentimento de integração simulado pelos meios de
145
comunicação. A fama propiciada pela constante exposição produz a falsa ilusão de
que todos ao redor são amigos. Benjamim conviveu de perto com os dois lados da
fama: excesso de exposição e ostracismo. Como um grande modelo fotográfico, no
passado, ele recebia muitos convites para eventos e propagandas e seu círculo
social era extenso. Agora, decadente, ninguém lhe dá mais valor. Podemos notar
esta realidade decadente do personagem quando ele marca um encontro com o
dono de uma agência publicitária, mas este não comparece.
Michael K, ao contrário dos personagens descritos, conseguiu sobreviver,
“flutuando pelo tempo” (VEMK,176). A resistência do personagem de Coetzee
revela-se um paradoxo, conforme mencionado pelo oficial médico, o narrador:
Com o passar do tempo, porém, comecei devagar a perceber a
originalidade da sua resistência. Você não era um herói e não fingia ser,
nem um herói da fome. Na verdade, você não resistia absolutamente.
Quando mandavam pular, você pulava. Quando mandavam pular de novo,
você pulava de novo. Quando mandavam pular uma terceira vez, porém,
você não reagia, só despencava no chão [...]” (ibid., p.189).
Na acepção do narrador, as atitudes de Michael eram destituídas de qualquer
heroísmo. Sua resistência revela um paradoxo, pois ele obedecia às ordens dos
superiores ao invés de rebelar-se. A originalidade da sua forma de resistência se
deve à ausência de agressividade, ódio ou rancor.
O absurdo de um sistema social injusto acompanha toda a obra de Coetzee.
A barbárie é descrita minuciosamente, com toques de recolher, restrições a viagens,
campos de trabalhos forçados, posse ilegal de imóveis, escoltas armadas, comboios
civis, criminalidade, saques, corrupção, etc. O caos transforma a sociedade numa
imensa massa de prisioneiros.
146
O narrador ressalta que, num contexto de guerra, o fim esperado para
personagens como Michael – pobre, negro e inexpressivo – é a morte:
Faça alguma coisa de importante, cara, senão vai passar pela vida sem
ninguém notar. Vai ser um dígito a mais numa coluna de dígitos no fim da
guerra, quando eles fizerem a grande conta para calcular a diferença, mais
nada. Quer ser só mais um dos que se acabaram, quer? [grifo nosso]
(VEMK,163).
Um número a mais numa estatística é o desenlace das vítimas da guerra que,
tratadas como gado, são destituídas da condição de humanos e reduzidas a uma
massa sem rosto. São os fora da lei, ninguém.
Vê-se, pois, que as narrativas de Kafka, Coetzee e Chico Buarque
apresentam sujeitos que se integram e desintegram, metamorfoseando-se no
processo histórico. Cada personagem representa os conflitos ou a ausência de
relações com a sociedade. A sociedade descrita é a dos sujeitos isolados,
acossados pela burocracia e alienados pelo capital, como foi exposto ao longo do
nosso trabalho. A burocratização das práticas sociais e a despersonalização
parecem ser vividas pelos personagens como o domínio de um tempo de sombras,
regido por forças incontroláveis que comandam os destinos humanos e decidem
sobre a sua vida ou a sua morte. É por isso que Josef K., Michael K, Benjamim e o
condenado anônimo da colônia penal buscam desesperadamente saídas, buracos,
tocas e corredores onde possam se proteger ou tentar encontrar alternativas para
uma vida digna de compaixão.
A maneira como cada autor usa a linguagem para construir os universos
apresentados nas narrativas merece uma atenção especial. Nas duas obras de
Kafka, O processo e Na colônia penal, o narrador faz com que os personagens se
tornem tão estranhos quanto o mundo em que vivem. Na visão de Rosenfeld
147
(1994:54), “nunca sabemos exatamente o que ocorre na intimidade profunda dele
[do personagem kafkiano]. Vemo-lo preso, sempre, ao momento que passa,
totalmente dedicado à sua tarefa de buscar soluções para o seu desespero”. A
linguagem é realista, dura e seca, e produz a sensação de sufocamento e de
aprisionamento. A forma narrativa não é absurda, mas o mundo representado, com
suas leis misteriosas e inacessíveis.
A narrativa do funcionamento da máquina de tortura se assemelha a um
manual de instrução. Cada detalhe da máquina é descrito com precisão e
objetividade. A violência do sistema jurídico é muito mais brutal do que em O
processo. O discurso do oficial tem uma tonalidade religiosa, ou seja, o personagem
fala como um fiel adepto do que ele considera “um aparelho singular” (NCP,29). O
próprio título da novela sugere que a colônia tem um sistema fundado na repressão
e na punição dos colonizados. A descrição da máquina pelo oficial mostra que o
homem é apenas um objeto sobre o qual o aparelho escreve a sua “obra-prima”, sua
inscrição sangrenta: “a escrita [...] só cobre o corpo numa faixa estreita; o resto é
destinado aos ornamentos” (ibid., p.43).
O romance Vida e época de Michael K, diferentemente das obras de Kafka,
apesar do tempo de guerra, não apresenta uma linguagem dura e seca. Como já foi
mostrado, a obra apresenta dois pontos de vistas, alternando a narração em terceira
pessoa (primeira e terceira partes) e a narração em primeira pessoa (segunda parte)
do ponto de vista do oficial médico. A linguagem contrasta com a atmosfera de
aprisionamento. Na segunda parte, o oficial médico escreve uma carta que traduz a
sua compaixão diante de paciente tão singular quanto Michael. Assim diz o narrador
em carta a Michael K:
148
A resposta é: porque quero saber a sua história. Quero saber como foi que
você especificamente se juntou a uma guerra, uma guerra onde não tem
lugar para você. [...] Você é igual a um bicho-pau, Michaels, cuja única
defesa contra um universo de predadores é a sua forma estranha. Você é
como um bicho-pau que pousou, sabe Deus como, no meio de um grande
pátio de concreto (VEMK,173-174).
A carta mostra que num tempo de sombras Michael consegue manter-se de
alguma forma imune ao comportamento esperado para a situação na qual se
encontra. A comparação de Michael com o bicho-pau é significativa. O bicho-pau é
um animal que consegue se camuflar na vegetação, tornando-se imperceptível.
Assim como ele, o personagem de Coetzee tenta se “esconder” do mundo em que
vive. No entanto, o protagonista destoa do ambiente de desigualdade e segregação
racial, parecendo um estrangeiro em sua terra natal. Nesse momento, ele é
chamado pelo narrador de Michaels, como se a ele se juntassem milhares de outros
seres humanos que também enfrentam os mesmos problemas.
Em Benjamim, o narrador em terceira pessoa se caracteriza pela postura fria.
Em várias situações, um personagem espera certo desenlace, mas vê sua previsão
contrariada no desenrolar dos acontecimentos. Após o assassinato de Castana,
Benjamim encontra uma prima da amada, mas ao invés de palavras de conforto,
recebe uma cusparada nos olhos. Ao visitar o pai de Castana, no leito de morte,
espera que o mesmo lhe peça para tomar conta da amada, mas é repreendido e
advertido de que os seus passos eram vigiados pela polícia. O candidato político
Alyandro tenta passar a imagem de um respeitável homem público, “o companheiro
xifópago do cidadão”, portanto, uma espécie de irmão gêmeo do povo. Contudo,
Alyandro/Aliandro é ao mesmo tempo bandido e pastor; marginal e empresário;
asqueroso e atraente. Assim como nas obras kafkianas, a linguagem é dura e seca e
traduz o mundo mercadológico e sombrio de Benjamim.
149
As obras de Kafka, Coetzee e Chico Buarque apresentam situações-limite
que são frutos de momentos históricos críticos. As narrativas problematizam várias
questões como o Estado, o indivíduo e a família, promovendo uma reflexão profunda
acerca do momento social. Ao estudarmos os três escritores, entramos em contato
com um tempo de crise. As obras exprimem um grito de angústia face às forças
opressoras contra as quais o indivíduo se vê impotente.
6.2. NOS LABIRINTOS DA LEI
O labirinto remete a um espaço de perigo constante, imbricado de caminhos
que se confundem e podem levar o indivíduo à total perdição. Estar num labirinto é
se deparar com o desconhecido, o medo e a insegurança.
Nas narrativas estudadas, principalmente as de Kafka, a realidade aparece
como um ambiente escuro, claustrofóbico e labiríntico. Os personagens se
encontram sempre em dúvida diante dos impasses que enfrentam e não conseguem
transpor as barreiras impostas por um mundo opressor.
Todos os caminhos percorridos pelos “Senhores K.” e Benjamim espelham
esse espaço obscuro e sombrio que os conduz ao desespero e à morte. O único que
não sucumbe é Michael K. No entanto, ele vivencia ao longo da narrativa situações
extremas que quase o levam à morte.
Em O processo e Na colônia penal, a lei e o poder são privilégios de alguns
homens apenas. Perguntas como: Onde está o poder? A quem pertence? Que lei é
esta? Quais são seus efeitos? – saltam à vista dos leitores. A questão do poder é
traduzida na imposição ou adoção de práticas como “abaixar a cabeça” e “aceitar a
tudo sem resistir”. Todavia, o poder não é manifestado apenas em instituições, mas
150
em personagens, como o pai, o gerente, o advogado, o policial, o inspetor, o
carrasco, a governanta, etc.
A obra kafkiana faz o leitor refletir sobre o mundo burocratizado. Nas duas
obras O processo e Na colônia penal, a questão da lei traz a temática da justiça e da
opressão. A lei que visa manter a ordem numa comunidade e deveria abranger a
todos de forma igualitária, revela outras facetas no texto de Kafka, na qual se
apresenta como algo obscuro, opressor e inacessível.
A parábola “Diante da lei”, em O processo, revela o caráter opressor da lei.
Franz Kafka, advogado por formação e imposição paterna, conviveu com o mundo
da jurisdição bem de perto. Muitos críticos ao longo dos anos vêm tentando
interpretar a parábola, demonstrando a dificuldade de tal empreitada. A dificuldade
se deve à maneira como a lei é representada por Kafka: misteriosa e labiríntica.
Em O processo, a justiça moral se mescla com a “justiça dos sótãos”, invisível
e camuflada por forças ocultas, mostrando uma sociedade onde a burocracia e a
corrupção oprimem os homens. Esse poder dirige tudo e submete os homens aos
seus desígnios.
Alguns personagens de O processo, como foi dito, corporificam o poder e a
influência das autoridades do tribunal. O tio Albert traz o peso da família de Josef K.
e a necessidade da aceitação passiva da situação vigente. O comerciante Block,
enredado nos labirintos judiciários, parece revelar o futuro de Josef K. A figura de
Titorelli, o pintor, mostra-se ambígua, passível de inúmeras interpretações. Não
sabemos ao certo o verdadeiro perfil do pintor. Apesar de artista, símbolo tradicional
de liberdade, Titorelli está a serviço de uma justiça decadente e imoral. O trecho
abaixo, proferido pelo pintor, desvela a corrupção da justiça:
151
Na lei – de qualquer modo não a li – consta, naturalmente, por um lado, que
o inocente é absolvido, mas por outro ali não consta que os juízes podem
ser influenciados. Ora, a minha experiência é justamente o contrário. Não
sei de nenhuma absolvição real, mas sem dúvida de muitas formas de
influência (P,153).
Titorelli mostra que a companhia constante da burocracia é a corrupção,
utilizada por indivíduos com o objetivo de ludibriar as leis e exercer influência sobre a
sociedade. A absolvição real é descartada pelo pintor, pois ela exige que o tribunal
reconheça os seus erros e duvide das suas próprias regras. Assim, a comprovação
de inocência se revela como um caminho tortuoso, restando ao acusado a
resignação.
Além das contradições expostas na figura do pintor, o sacerdote apresenta
uma dupla face, já que é também o capelão do presídio. É através dele que Josef K.
toma conhecimento da parábola “Diante da lei”. A conversa final entre o camponês e
o porteiro revela o conflito entre a autoridade hierárquica e o homem do campo:
“O que é que você ainda quer saber?”, pergunta o porteiro. “Você é
insaciável”. “Todos aspiram à lei”, diz o homem. “Como se explica que, em
tantos anos, ninguém além de mim pediu para entrar?” O porteiro percebe
que o homem já está no fim, e para ainda alcançar sua audição em declínio,
ele berra: “Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava
destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a” (ibid., p.215).
Kafka apresenta nesta parábola críticas que faz ao longo de O processo,
como a corrupção das autoridades e o caráter opressor da lei. O camponês se perde
em um sistema burocratizado. Ele não deveria, como Josef K., ter aceitado as
barreiras e sim tentado entrar com suas próprias forças. O camponês se distancia do
seu alvo (a lei) ao se deter no primeiro obstáculo banal (o porteiro), esquecendo-se
dos outros porteiros. É paradoxal o fato de o camponês só conseguir enxergar o
152
“brilho inextinguível” da lei quando já estava quase cego. A lei é apresentada como
uma instância opressora à qual indivíduos se sujeitam por receio.
Há também uma contradição na parábola. A lei aparece com uma face dupla:
ao mesmo tempo em que exerce uma atração, impede o acesso de quem é atraído
por ela. A figura do porteiro também é significativa, pois ele representa uma espécie
de onipresença aos olhos do homem do campo.
Em Sobre a questão das leis, Kafka faz considerações acerca das leis e o seu
efeito sobre o ser humano. Ele estabelece uma relação entre a lei e a nobreza.
Assim diz o escritor: “Nossas leis não são universalmente conhecidas, são segredo
do pequeno grupo de nobres que nos domina. Estamos convencidos de que essas
velhas leis são observadas com exatidão, mas é extremamente penoso ser
governado segundo leis que não se conhecem” (in NE,123). Ser dominado por leis
ocultas é o grande dilema dos personagens kafkianos.
O camponês da parábola, ao deparar com o primeiro obstáculo (o porteiro),
acomoda-se e aceita o veredicto de que não havia chegado o momento de entrar.
Mas qual será o sentido dessa parábola em O processo? A parábola tem a função
de transmitir um ensinamento. Não é por acaso o fato de ela ter sido contada por um
sacerdote. Numa comparação com a situação narrada em O processo, vemos
semelhanças entre Josef K. e o camponês. Assim como este, Josef K. também não
conseguiu ter acesso à lei.
Josef K. e o sacerdote travam uma grande discussão sobre os sentidos da
parábola. Para K., o porteiro enganou o camponês, pois só lhe disse que a entrada
estava destinada a ele quando já não podia mais entrar. O primeiro debate entre os
dois se dá sobre o fato de o porteiro ter cumprido ou não o seu dever. Mas, afinal,
153
qual é o dever do porteiro? Impedir a entrada de estranhos? Segundo K., o
camponês não era um estranho, pois a entrada estava destinada a ele.
O sacerdote apresenta duas explicações para a parábola. Na primeira, o
porteiro cumpriu o seu dever, não se deixou subornar, embora tenha recebido um
presente do camponês, e nem se exasperou ao longo da empreitada de impedir a
entrada. Na segunda interpretação, o porteiro é que foi enganado, já que
desconhece o aspecto e o significado da lei, além de estar também subordinado ao
camponês. O porteiro, para o sacerdote, está preso a uma obrigação e o camponês
é efetivamente livre, apenas o acesso à lei está proibido.
O sacerdote menciona que o porteiro não deve ser julgado, pois é “um
servidor da lei, ou seja, pertencente à lei e, portanto, fora do alcance do julgamento
humano” (P,220). Em seguida, acrescenta: “duvidar da sua dignidade seria o mesmo
que duvidar da lei” (ibid., p.221). Pode-se dizer, então, que para o sacerdote a culpa
é natural e a lei é inquestionável. A lei existe para corrigir uma falta e a autoridade
garante a sua aplicação. Com a parábola, o sacerdote mostra a Josef K. a maneira
como o homem deve agir diante da lei. E conforme exposto pelo sacerdote, a lei não
deve ser questionada. Os guardas são os primeiros a avisar K. da inutilidade de lutar
contra o poder do tribunal.
No início, Josef K. se julga superior aos guardas e ao tribunal e menospreza a
estrutura do processo, mas paulatinamente constata que a sua superioridade era
apenas ilusória. Willen, um dos guardas, diz para ele: “esqueceu-se de que, não
importa o que formos, diante do senhor somos no mínimo homens livres, e essa
superioridade não é pequena” (ibid., p.13). Diante dessa afirmação, o protagonista
não teve reação. O guarda usa o argumento da liberdade como exemplo de
superioridade, mas o que o torna superior é o fato de pertencer e obedecer
154
cegamente às instâncias jurídicas. No entanto, K. se julga superior na qualidade de
pensar e acredita que deve questionar a arbitrariedade do tribunal. Sem as chaves
que lhe permitiriam revelar a completa ilogicidade da Lei que regia a sociedade em
que vive, K. tenta encontrar apoio no advogado e no pintor. Contudo, eles também
fazem parte dessa realidade opressora, que se estende por todos os cantos da
sociedade.
K. acredita viver num Estado de direito e, portanto, a lei não poderia se
contrapor aos direitos e deveres da sociedade (P,10). Por isso, ele faz um longo
discurso no tribunal contra a sua detenção e a corrupção. Ao invés de aplausos, fezse um grande silêncio na assembleia. A multidão no tribunal formava um único grupo
que dispunha do poder de julgar, conforme constatado por K.:
Que rostos ao redor dele! Olhinhos miúdos, negros, espreitavam de um lado
para outro, as bochechas caídas, como se fossem bêbadas; as barbas
compridas eram rígidas e ralas e, se alguém as agarrasse, a impressão
seria de que elas formavam garras, e não a de que se estivesse segurando
barbas. Sob as barbas, porém – e essa foi a verdadeira descoberta que K.
fez –, brilhavam nas golas dos casacos insígnias de tamanho e cor diversos.
Até onde era possível ver, todos tinham essas insígnias. Todos formavam
um único grupo – os supostos partidos da direita e da esquerda – e quando,
de repente, K. se virou, viu as mesmas insígnias na gola do juiz de instrução
[...] [grifo nosso] (ibid., p.50-51).
O protagonista se fragiliza quando percebe que todos na assembleia fazem
parte da realidade incompreensível e opressora em que vive. O tribunal não
representa o Estado de direito ao qual se agarra. O sentimento de angústia cresce
na medida em que busca a chave de compreensão daquele mundo.
A ausência de uma lei compreensível tem também importante papel em Na
colônia penal. Assim como em O processo, encontramos personagens desnorteados
diante de um mundo com regras obscuras. Na novela, no entanto, a arbitrariedade
155
das instâncias jurídicas se manifesta na violência física. O suplício em ambas as
obras tem a duração de doze meses.
A máquina de tortura, personificação da lei e da justiça, aparece inadequada
à nova mentalidade da época. O oficial, conjeturando o que o viajante/explorador
dirá ao novo comandante, afirma:
[...] o senhor dirá talvez: “No meu país o procedimento judicial é diferente”,
ou “No meu país o acusado é interrogado antes da sentença”, ou “No meu
país o condenado tem ciência da condenação”, ou “No meu país existem
outras punições que não a pena de morte”, ou “No meu país só houve
torturas na Idade Média” (NCP,52-53).
Com as suas suposições, o oficial demonstra ter percepção de outras
estratégias de punição e via no viajante/explorador a possibilidade de ganhar um
aliado. A atitude passiva deste diante do aparelho de tortura merece atenção. No
momento
da
interrupção
do
funcionamento
da
máquina
de
tortura,
o
viajante/explorador começa a se perguntar se deve ou não intervir. No entanto, o
viajante não esboça nenhuma reação. Ele não se pronuncia contra a barbárie, mas
também não pactua com as ideias do oficial e do antigo comandante. Como
estrangeiro, ele se isenta de qualquer obrigação moral para com a colônia, calandose por respeito ou medo dos costumes daquele lugar. Ele também não usa da
compaixão para intervir, já que o outro lhe é completamente indiferente. O
viajante/explorador vira cúmplice daquele sistema de tortura ao calar-se diante dele
e esperar que o novo comandante tome atitudes para cessar aquela barbárie.
As sentenças instituídas pelo antigo comandante não remetem a um código
de leis, mas a algumas sentenças escritas ou desenhadas por ele, guardadas pelo
oficial numa pequena carteira de couro. Percebe-se, portanto, que as sentenças não
estavam à disposição da população, mas eram do conhecimento apenas das
156
autoridades da colônia. É interessante o fato do viajante/explorador não conseguir
ler as sentenças apresentadas pelo oficial:
– Leia – disse.
– Não consigo – disse o explorador. – Já falei que não consigo ler essas
folhas.
– Olhe com atenção – disse o oficial e se pôs ao lado do explorador para ler
com ele.
Mas quando isso também não deu resultado, o oficial seguiu as linhas com
o dedo mínimo, a uma altura bem distante do papel, como se não pudesse
de forma alguma tocar a folha, para desse modo facilitar a leitura ao
explorador. [...] O oficial começou então a soletrar a inscrição e depois a leu
no conjunto. [...] O explorador se inclinava tanto sobre o papel que o oficial o
colocou mais à distância com medo do contato; o explorador na verdade
não disse mais nada, mas era evidente que continuava não conseguindo ler
(NCP,61).
O viajante/explorador se resigna diante do fato de não ter conseguido ler a
sentença “Seja justo” apresentada pelo oficial. Nota-se no texto que o viajante se
esforça: chega mais perto se inclinando sobre o papel, mas a atitude é inútil. Para o
oficial, as folhas com as sentenças escritas ou desenhadas pelo antigo comandante
são como uma relíquia e não devem ser tocadas. Segundo Gagnebin (2006:139), a
não decifração das sentenças, sendo o viajante um homem experiente e culto, nos
faz pensar se elas não seriam apenas frutos da imaginação do oficial em sua sede
por justiça. Qualquer infração, no caso do condenado, a rebeldia ao superior, devia
ser punida com o máximo de rigor e sofrimento. Só assim, para o oficial, a justiça era
feita.
É significativo o fato do condenado e do soldado serem descritos por Kafka
como duas figuras grosseiras e primitivas, mais animalescas que humanas: “[...] o
condenado parecia de uma sujeição tão canina que a impressão que dava era a de
que se poderia deixá-lo vaguear livremente pelas encostas sendo preciso apenas
que se assobiasse no começo da execução para que ele viesse” (NCP,29-30). A
157
condição animalesca do condenado e do soldado é reforçada pela sujeição aos
desígnios do oficial. O oficial também adquire feições animalescas ao dar os últimos
ajustes no aparelho de tortura: “[...] ora rastejando sob a máquina assentada fundo
na terra, ora subindo uma escada para examinar as partes de cima”54 [grifo nosso]
(NCP,30). Em sua partida, o viajante/explorador ameaça o soldado e o condenado
que queriam embarcar com ele, numa tentativa de impedir que esses “homensanimais” dessem o salto para fora da colônia.
Importa-nos refletir também sobre a questão da lei e do poder nas obras de
Coetzee e Chico Buarque. Embora as instâncias jurídicas não sejam apresentadas
de forma inalcançável, tal como na obra kafkiana, há um clima opressor a rondar a
realidade inóspita dos personagens.
Em Coetzee, Michael não consegue os documentos que o regime totalitário
exigia para autorizá-lo a sair da cidade e é obrigado a driblar os bloqueios policiais a
fim de chegar à fazenda tão sonhada. Ao ser preso pelo exército, submete-se às
atividades físicas que seu corpo é incapaz de suportar. O controle sobre as pessoas
é aterrorizador. Em carta a Michael, o narrador diz: “As leis são feitas de ferro [...].
Você pode emagrecer quanto quiser que elas não relaxam. Não existe lugar para
almas universais, a não ser talvez na Antártica ou em alto-mar” (VEMK,175-176). As
leis são severas e, portanto, não há escapatória.
Michael, deslizando pelos tentáculos da história, consegue resistir ao
encarceramento. Na visão do personagem, todos os seres humanos à margem do
sistema representavam uma ameaça à ordem social:
54
“[...] bald unter den tief in die Erde eingebauten Apparat kroch, bald auf eine Leiter stieg, um die
oberen Teile zu untersuchen” (IDS,7).
158
Eles prendiam os simplórios antes de todo mundo. Agora eles abriram
campos para filhos de pais que fugiram, campos para gente que esperneia
e espuma pela boca, campos para gente de cabeça grande e gente de
cabeça pequena, campos para gente sem meios conhecidos de sustento,
campos para pessoas expulsas da terra, campos para gente que encontram
morando nos canos de água de chuva, campos para meninas de rua,
campos para gente que não sabe somar dois e dois, campos para gente
que esquece os documentos em casa, campos para gente que vive nas
montanhas e explode pontes de noite. Talvez a verdade seja que basta
estar fora dos campos, fora de todos os campos ao mesmo tempo. Talvez
isso já seja uma conquista, por enquanto. [...] Eu escapei dos campos;
talvez, se eu ficar na minha, escape da caridade também (VEMK,209).
Os campos são, ao mesmo tempo, locais de observação dos indivíduos
punidos e mecanismos de vigilância. O isolamento dos sujeitos à margem do
sistema garante que se possa exercer sobre eles um poder absoluto. Por isso, nesse
labirinto de opressão, “estar fora dos campos” era uma grande conquista para
Michael.
Nota-se, portanto, que em Vida e época de Michael K, assim como nas obras
de Kafka, há uma grande organização que decide sobre a vida dos homens,
controlando todos os seus passos. O personagem de Coetzee vive num mundo em
ruínas, condenado à violência e à morte, por um tribunal também não visível. Toda
uma atmosfera de opressão incide sobre ele. Josef K. e Michael K são seres
permanentemente expostos, vulneráveis e indefesos. Ambos vivem numa situação
de busca. O primeiro busca respostas para o seu dilema; o segundo, um lugar
melhor no mundo. Não há um processo contra Michael K, mas o personagem está
condenado a um destino implacável e é vítima de uma exclusão que
progressivamente se acirra, a ponto dele não ter nem ao menos o direito sobre a
própria vida.
Em Benjamim, o controle sobre os indivíduos acontece de duas maneiras:
através da profissão do personagem que o expõe constantemente ao mundo dos
159
holofotes; e também do clima político sombrio. O clima da ditadura civil-militar paira
sobre o mundo do protagonista e instaura uma atmosfera de opressão e mistério.
Ao visitar o pai de Castana, Benjamim é advertido de que seus passos
estariam sendo vigiados. As autoridades acreditavam que ele os levaria ao
esconderijo de Castana e seu namorado. “O doutor Campoceleste manifestava
profunda apreensão pela filha; malgrado o desgosto que ela lhe causava, rezava
sem cessar para que escapasse à investida de oficiais inescrupulosos” (BE,133).
Todavia, ao contrário de Josef K., que procura desvendar o mistério por traz de sua
detenção, Benjamim, enredado no labirinto da antiga paixão, não percebe a
realidade que o circunda e mina a sua vida. Desse modo, ao vigiar a amada,
Benjamim leva os agentes da repressão ao esconderijo de Castana.
Nas obras selecionadas, a violência se manifesta de diferentes formas. Em
Benjamim, a violência aparece como fantasmas a rondar o protagonista: pessoas
são assassinadas, vigiadas e presas. Ao chegar no edifício onde mora, Benjamim vê
um camburão e oito guardas armados prendendo um casal de vizinhos “com cara de
estudantes” (ibid., p.135). A seguir, o narrador relata: “[...] e Benjamim ainda tem
presente o tamanho do conforto que então sentiu” (ibid.). O protagonista parece
sentir uma espécie de alívio, pois imaginara que os policiais estivessem atrás dele, a
fim de localizar Castana. Depois que a polícia se foi, Benjamim “experimentou um
sentimento de indignação, mas há sentimentos que não podem chegar atrasados” e
só tornou a sair do apartamento após um mês (ibid.). O personagem se sente
amedrontado e, ao se deparar com a cena da detenção do casal de estudantes,
cogita refugiar-se entre as palmeiras.
Em O processo, a violência é representada através da detenção arbitrária e
de um processo penal que não admite a defesa do acusado. O saber era privilégio
160
absoluto da acusação. Na novela Na colônia penal, a violência se manifesta na
desumanização do processo de punição, através da máquina de tortura e também
na ausência de defesa por parte do acusado. O desnorteamento do acusado acaba
se transformando numa espécie de suplício.
Nas narrativas selecionadas, o Estado se apresenta como uma entidade que
tem o poder absoluto sobre a vida da população. A ausência de defesa aparece em
todas as obras. Na obra de Chico Buarque, personagens vivem nas trevas da
clandestinidade, como Castana e seu namorado e o casal de estudantes. Eles
vivem, portanto, numa prisão involuntária, desligados de relações fora do círculo da
militância, como é o caso de Castana. Nessa época conturbada da ditadura no
Brasil, as torturas sobre os corpos continuaram existindo como nas épocas mais
remotas, longe dos olhos da sociedade.
Em Na colônia penal, o condenado é impedido fisicamente e intelectualmente
de qualquer reação. Fisicamente, por estar preso numa máquina de tortura.
Intelectualmente, por desconhecer as provas da acusação. Em O processo, a
dificuldade de ação acontece por causa dos limites impostos pelos mecanismos
burocráticos. O desconhecimento das razões do processo por Josef K. impede a sua
defesa. Em Benjamim, também não há possibilidade de escapatória por parte dos
estudantes presos e de Castana. O protagonista fica indignado com a detenção dos
estudantes apenas após o ocorrido, demonstrando a sua incapacidade de ação. O
passado – os tempos de glória e a paixão avassaladora – impede Benjamim de
compreender verdadeiramente o clima político do seu país. O personagem se
silenciou diante da ditadura e este fato o faz seguir Castana, apesar dos conselhos
do doutor Campoceleste. O mundo da política para Benjamim é representado como
algo misterioso e distante ao qual não tem acesso. O assassinato de Castana
161
pareceu-lhe mais uma fatalidade do destino. Dessa forma, o protagonista se torna
uma vítima da sociedade violenta e opressora que, pela omissão e silêncio, ajudara
a criar. Os acontecimentos políticos dos seus anos de glória (década de 60) não são
lembrados por ele, fixado nas lembranças de Castana.
Enredado por uma vida de exposição, Benjamim entra num labirinto cuja
saída é a morte. A morte é o desfecho da história de vida de Josef K., do oficial da
colônia penal e de Benjamim. Apenas Michael K não sucumbe. O desfecho trágico
aparece como alternativa para uma vida de solidão. Josef K., embora peça ajuda de
estranhos como o pintor, a enfermeira, a lavadeira e o advogado, está
completamente só. As orientações recebidas, ao invés de clarearem as dúvidas
sobre o processo, obscureceram-no mais ainda. Já o oficial não consegue adeptos
para o sistema punitivo da colônia e decreta a própria morte.
Coetzee, trabalhando com uma outra realidade histórico-social (o apartheid),
apresenta o poder inconteste do Estado e a opressão que exerce sobre os seres
humanos indefesos e desamparados. Sujeito a condições hostis, impostas
historicamente, Michael K é um indivíduo indefeso e acuado diante das autoridades
que usam e abusam do poder. O Estado aparece envolto por uma névoa que produz
na população a impressão de que ele é um poder inacessível e misterioso. Quando
a máscara de intocabilidade não surte efeito e algum Michael K aparece, o braço da
repressão tenta reprimir e oprimir.
Nas palavras do narrador de Vida e época de Michael K, a vida do
protagonista “foi um erro do começo ao fim”. A seguir, ele acrescenta: “É uma coisa
cruel de dizer, mas vou dizer: ele é o tipo de sujeito que nunca devia ter nascido num
mundo destes. Teria sido melhor se tivesse sido sufocado pela mãe quando ela viu o
que ele era, e jogado na lata de lixo” (VEMK,180). Para o narrador, a sociedade não
162
tem lugar para personagens como Michael K, alheio à guerra e incapaz de um ato
de violência. É preciso lutar, agir e resistir, segundo o narrador. No entanto, como já
foi mencionado, a postura de Michael em relação à sociedade pode ser considerada
também uma resistência. Ele não é dominado por sentimentos negativos num
contexto de total opressão. Josef K. tenta resistir, mas no final, percebe que estava
sozinho diante de forças que não controla: “Onde estava o juiz que ele nunca tinha
visto? Onde estava o alto tribunal ao qual ele nunca havia chegado?” (P,228). As
perguntas são muitas. Diante de um presente assombroso, viver parece um grande
delito nas obras de Kafka, Coetzee e Chico Buarque.
6.3. SONHOS INTERROMPIDOS OU O PARAÍSO PERDIDO?
A narrativa de Coetzee, cujo título Vida e época de Michael K nos leva
inicialmente a um programa biográfico, inicia-se com a cena de nascimento do
protagonista. Nascer, antes de qualquer coisa, pressupõe o desabrochar de um
novo tempo, de uma esperança. No entanto, esse novo tempo é frustrado pelas
condições históricas: violência, toques de recolher, preconceitos, etc. É contada não
uma vida, mas o definhar de um personagem em busca de tão sonhada liberdade.
Michael K sonha em voltar para uma fazenda em Prince Albert, onde nascera
a sua mãe. Seu objetivo principal é escapar da violência e “voltar para um campo
onde, se fosse morrer, poderia ao menos morrer debaixo de um céu azul”
(VEMK,15). Ele só consegue alcançar a tão sonhada paz quando se isola do
convívio humano e passa a viver como um “bicho”.
A obra de Coetzee traduz um mal social de segregação, que obriga os
personagens à auto-reclusão. Michael K é vítima da guerra. Ele vive num país em
163
face de transição e reorganização. Apesar da realidade caótica, Michael K se agarra
ao ideal de liberdade. É este ideal que consegue mantê-lo vivo. Ele é relacionado à
pedra pelo narrador. Segundo o narrador, Michael K:
[...] é como uma pedra, um seixo que, depois de jazer em algum lugar
cuidando de suas coisas desde o começo dos tempos, é de repente
apanhado e passado ao acaso de mão em mão. Uma pedrinha dura, mas
consciente de seu entorno, voltada para si mesma e para sua vida interior.
Ele passa por essas instituições, campos, hospitais e Deus sabe mais o
quê, como uma pedra. Através do intestino da guerra. Uma criatura não
nascida, xucra. [grifo nosso] (VEMK,158).
A relação com a pedra diz respeito ao fato de Michael K não se deixar
corromper pelas mazelas do mundo. Ele é, na visão do narrador, uma “criatura não
nascida”, abortada ou morta nas entranhas. Desde o nascimento, o personagem é
discriminado pela mãe – que sentia vergonha do filho – e pela sociedade, que o
repudiava em virtude de sua condição financeira e sua raça. Ele passa por diversas
instituições e hospitais “como uma pedra”, solidificado pelos inúmeros obstáculos
encontrados ao longo da vida. Sua “solidez” não está relacionada ao insensível ou
desumano, mas ao fato de manter-se firme e inabalável às maldades humanas.
Benjamim, diferentemente de Michael K, trilha um outro caminho. Ele não
procura se libertar do mundo mercadológico em que vive, mas busca a redenção. O
vínculo estabelecido com a Pedra do Elefante – uma enorme rocha avistada pela
janela do apartamento – retrata a impotência de Benjamim diante do curso do
tempo. Aqui, os sentidos da pedra diferem dos da obra de Coetzee. Benjamim tinha
a sensação de penetrar no “tempo da pedra”:
Benjamim estava certo de que, por mais que vivesse, jamais detectaria a
mínima transformação na Pedra, pois no relógio das pedras a longevidade
humana não conta um segundo. Mas de quando em quando ele tinha a
sensação de penetrar na dimensão temporal da pedra (BE,53).
164
Há um paradoxo no vínculo entre Benjamim e a pedra. O tempo não passa
para a pedra. Para Benjamim, é justamente a passagem do tempo que o leva à
decadência. Em alguns momentos, ele “penetra na dimensão temporal da pedra”, ou
seja, nas lembranças solidificadas da época de modelo fotográfico e da antiga
namorada Castana Beatriz. Sua vida é alimentada por essa paixão antiga. Numa
concepção simbólica, a pedra remete à dureza e à morte. Todos esses símbolos se
relacionam com a história de vida do protagonista, cuja incapacidade de se adaptar
à realidade que o circunda o leva à morte.
É importante pensarmos também na figura do elefante. O animal é a imagem
viva do peso, da lentidão e da falta de jeito. Mas também é símbolo da estabilidade,
da força e da longevidade. Benjamim nutria pela Pedra do Elefante total empatia, a
ponto de conhecer “cada poro, cicatriz e verruga” da rocha (BE,53). O personagem
sabia que “a iria encarar diariamente até o fim da vida” (ibid.). Ele carrega o peso de
um passado glorioso e um relacionamento afetivo frustrante e não consegue ter a
força necessária para encarar e entender a passagem do tempo. O futuro não se
mostra muito promissor:
No momento Benjamim tem a clara noção de que seu futuro está amarrado.
Insone há várias noites, vê nascer o sol pela sombra do edifício na Pedra, e
sente um aperto na garganta. Seu futuro enrola-se como corda na cravelha
da guitarra, que um guitarrista neurótico torcesse em demasia, estirando,
esgarçando e arrebentando a corda no extremo oposto [grifo nosso] (ibid.,
p.54).
No extremo oposto está o passado de Benjamim com a imagem de Castana
que “chicoteia a esmo” (ibid.). A falta de solução para os seus problemas no
presente transforma o futuro num redemoinho.
165
Benjamim traz o peso de um tempo sombrio que acaba por minar a sua voz,
os seus projetos. O nascer do sol é visto através da sombra do edifício. A sensação
é de um “aperto na garganta”. É significativo o fato de um espetáculo da natureza,
símbolo de renovação e de recomeço, ser apreciado através das sombras.
Benjamim parece estar preso numa caverna, sem possibilidade de libertação.
O “nó na garganta” e a sensação de sufocamento parecem fazer parte da
trajetória de Benjamim. Num outro momento, após ter levado Ariela ao restaurante,
ele festeja a sua alegria, com direito a banho de chafariz e distribuição de suas
roupas da época de modelo aos mendigos. Ao chegar ao apartamento, compartilha
a euforia com a pedra: “Abre as três janelas, grita ‘boa noite, Pedra!’ e engasga,
assaltado por um sentimento físico de euforia, não muito diferente de uma angústia
na garganta” [grifo nosso] (BE,90). A “angústia na garganta” parece acompanhar
Benjamim.
O peso do passado esmaga e minimiza as possibilidades do tempo presente.
Segundo o narrador, “Benjamim Zambraia tem do passado uma impressão tão
nítida, que a atual paisagem mais lhe parece uma reminiscência” (ibid., p.134).
Desse modo, Benjamim não desperta do sonho que é o seu passado ao lado de
Castanha. Ele almeja viver um dia ao lado da amada.
O sentido de futuro nas quatro obras se apresenta difuso. Os protagonistas
vivem em sociedades que agonizam diante da intolerância, da burocracia e da
ausência de alternativas.
O “nó na garganta” também acompanha o personagem Josef K. Ao visitar o
cartório, fica sufocado com o ar pesado e irrespirável do lugar. Na casa do pintor
Titorelli também experimenta a mesma sensação. Esta sensação de sufocamento
acentua o sentimento de completa perdição de K. diante do processo.
166
Ao contrário de Michael K, que tem a sua história de vida contada desde o
nascimento, e de Benjamim, cujo passado conhecemos, sabemos pouco ou nada da
biografia de Josef K. Benjamim teve os seus sonhos ceifados com a sua morte.
Michael K, apesar da catástrofe a sua volta, busca a liberdade. Mas não sabemos
quais os planos ou os projetos de Josef K. O motivo de ter chegado à detenção. Os
possíveis “porquês” são inúmeros. De fato, a narrativa é atravessada pelas
interrogações. O único objetivo de K. é descobrir a acusação que paira sobre si.
Na novela Na colônia penal, o oficial responsável pela máquina de tortura
sonha com a época em que a execução era um grande espetáculo, um momento
festivo para a sociedade. A ênfase dada à máquina de tortura é tão grande, que ela
ganha destaque na narrativa e o soldado condenado vira um mero coadjuvante.
Como podemos perceber, os sonhos sempre alimentam a consciência dos
indivíduos. Um bom exemplo é Michael K que sonha durante toda a narrativa com
uma vida amena no campo. Este sonho é o combustível que o faz viver e resistir até
à falta de comida. Benjamim sonha com a vida ao lado de Castana e a volta aos
tempos áureos. Todavia, os seus sonhos se convertem numa grande utopia, sem
possibilidades de concretização. Ele vive como num paraíso perdido. Já Josef K.
vive em busca de um único objetivo: se livrar da acusação. No entanto, diante de
uma lei inacessível e inalcançável só resta a resignação: “como um cão” (P,228).
Josef K. empreende uma tortuosa trajetória na tentativa de entender e intervir
na realidade opressora. Sua morte, assim como a de Benjamim, acontece longe dos
olhos da sociedade. A tortura psicológica praticada contra o personagem kafkiano se
assemelha à tecnologia da máquina de tortura da colônia penal, que tinha como
objetivo prolongar ao máximo o sofrimento humano.
167
A realidade, como um labirinto, aparece como um emaranhado de caminhos
obscuros e perigosos. Sair do labirinto é uma tarefa quase impossível. Michael K foi
o único que conseguiu se libertar de uma prisão “física”, como o hospital de
reabilitação e o “campo de reassentamento”, e viver longe da guerra que o
circundava.
“Universo labiríntico”, “labirintos da dor”, “labirintos subterrâneos” e “labirintos
fantasmais” são expressões que traduzem a realidade de Josef K., da colônia penal,
de Michael K e de Benjamim, respectivamente.
Verifica-se ao longo do trabalho, que as obras apresentam personagens que
convivem com o desenvolvimento da tecnologia e dos instrumentos de opressão e
manipulação das estruturas político-econômicas. O mundo assume os contornos de
um labirinto, com um emaranhado de veredas, que ao invés de levarem a uma
saída, aprisionam.
A realidade nas quatro obras literárias se caracteriza pela burocracia que
impede o conhecimento das estruturas de poder, a violência das instâncias jurídicas
e o completo aturdimento dos indivíduos diante de forças opressoras. Nas
narrativas, a violência do sistema jurídico é explícita. Os homens são transformados
em simples objetos. Há a passagem dos suplícios públicos, expresso em Na colônia
penal, para o castigo prisional, em Vida e época de Michael K. A população
marginalizada é colocada em grandes campos de concentração e, em caso de
morte, os homens são “enterrados na estepe em túmulos sem identificação”
(VEMK,185). Em Benjamim, personagens que representam uma ameaça para a
estrutura política e social são assassinados, como Castana, o amante Douglas e
vizinhos do protagonista. Benjamim, alheio à realidade social e política em virtude de
sua obsessão por Castana, não consegue recuperar o paraíso perdido e encontra a
168
morte. Os órgãos de repressão, que eliminavam os oposicionistas durante a ditadura
civil-militar, são substituídos por grupos de extermínio que visavam liquidar inimigos.
Benjamim morre nessas circunstâncias, como suposto amante de Ariela. Portanto,
os “Senhores K.”, Benjamim e os condenados da colônia penal são triturados pela
engrenagem social. Desprovidos de bússola, eles acabam se perdendo.
Desse modo, independente da temática desenvolvida por cada autor, há um
sentimento comum aos protagonistas. Todos se sentem inadaptados ao mundo que
os rodeiam, humilhados como máquinas sem vontade própria.
Apesar de escritas em épocas e contextos diversos, podemos dizer,
guardadas as devidas proporções, que há uma aproximação intelectual entre as
obras. Aproximação em virtude de cada autor abordar as angústias e misérias do ser
humano ao se confrontarem com seu tempo. Hoje, no início do século XXI, é
importante refletirmos sobre a presença das desigualdades entre os homens, das
dicotomias preconceituosas criadas entre ricos e pobres, brancos e negros, periferia
e centro, a fim de evitarmos horrores como o Holocausto e o apartheid, entre outros.
Nesse caminho, a obra literária se manifesta como uma ferramenta poderosa capaz
de mostrar as “salas desconhecidas” e os “corredores asfixiantes” do nosso mundo.
169
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao final dessa etapa, admitimos que estudar a literatura de Franz Kafka,
Coetzee e Chico Buarque mostrou-se um empreendimento nada fácil. A leitura das
obras selecionadas foi uma grande experiência. Aprendemos com esses autores que
a obra literária exerce um poder muito grande sobre a vida, na medida em que
problematiza o mundo e resiste ao tempo. A obra literária desperta, mobiliza, oferece
referências, encadeia contextos... Aspectos da nossa vida cotidiana materializam-se
na escrita. A obra de Kafka é do início do século XX e as de Coetzee e Chico
Buarque, do final do mesmo século. Mas é também uma reflexão sobre toda a ação
humana, independente do tempo histórico. As obras literárias atravessam as rígidas
muralhas do tempo. Cenas cotidianas e banais emparelham-se a acontecimentos
atemporais. O pensador russo Bakhtin (2003:362) diz que as obras dissolvem as
fronteiras do tempo, vivem no “grande tempo”. Cada leitor a partir das suas vivências
e da sua cultura constrói sentidos diferentes para as obras.
Como mencionamos no início do nosso trabalho, todo século deixa sua marca
na literatura que ele cria. O século XX, época de publicação das obras selecionadas,
foi marcado por guerras, rebeliões, atentados terroristas, além de inúmeras
catástrofes naturais. Esses abalos sociais, políticos, econômicos e científicos
produziram uma literatura marcada por essas tensões, seja na superfície, seja em
sua profundidade. Dessa forma, este trabalho buscou construir sentidos para os
discursos, as tensões, apresentados pelos autores.
Como comparar obras do início do século XX com obras do final do mesmo
século? Apesar de plurais as maneiras como cada autor pensou o seu mundo, é
possível refletir sobre o que existe de comum. O nosso trabalho tentou fazer um
170
estudo sobre a realidade labiríntica que envolve os personagens das obras
selecionadas. Esta interpretação confere ao nosso trabalho o caráter de apenas um
exercício de leitura que não tem a pretensão de ser a chave de compreensão das
obras, visto que elas não são sistemas fechados, mas discursos que se agregam a
outros, dialogando e construindo novos sentidos. É como se “as obras superassem o
que foram na época da sua criação”, diz Bakhtin (2003:363).
Lendo as obras, somos tentados a ver o mundo a partir da ótica dos
indivíduos humilhados e indefesos, submetidos a relações sociais injustas e
perversas. Essa condição hostil é imposta pela realidade sombria que rege o destino
dos personagens. A leitura das duas obras de Kafka nos leva inicialmente a imaginar
os horrores dos campos de extermínio, principalmente a novela Na colônia penal. É
por este motivo que muitos críticos têm ressaltado o tom profético das obras
kafkianas. Esta concepção nos remete ao conceito apresentado pelo pensador russo
Bakhtin (ibid., p.362) sobre o “grande tempo” das obras literárias. Para ele, “as
grandes obras da literatura são preparadas por século; na época de sua criação
colhem-se apenas os frutos maduros do longo e complexo processo de
amadurecimento” (ibid.). Não podemos também reduzir as obras apenas ao
momento de sua criação. Do mesmo modo, não podemos “estudar a literatura
isolada de toda a cultura de uma época” (ibid.).
Pois bem, além desse suposto “tom profético”, notamos uma linha tênue entre
a criação literária de Kafka e os escritos de cunho pessoal, como as cartas e os
diários. A coabitação com a família, o difícil relacionamento com o pai e o trabalho
estafante foram um tormento para Kafka. No entanto, não se deve submeter a obra
do autor a sua vida pessoal. Mas como mostramos no nosso trabalho, talvez aí
171
resida a inspiração para a criação de um personagem como Josef K., emparedado
por um poder arbitrário, indefeso diante de uma acusação misteriosa.
A instauração de uma máquina de tortura em Na colônia penal e a atitude dos
superiores de Josef K. nos alerta para a incapacidade de reflexão sobre os próprios
atos. Personagens cumprem ordens sem saber qual o seu verdadeiro sentido e de
onde são dadas. Otto Adolf Eichmann, um dos responsáveis pela deportação de
milhões de judeus para os campos de extermínio nazistas, é um dos modelos mais
famosos dessa incapacidade de pensar e julgar, pois ele se acreditava um mero
“cumpridor de ordens”. Enviar os judeus para a morte significava cumprir da melhor
maneira possível as ordens que lhe eram designadas. Por trás dessa questão está a
dura constatação de que não se tratava de um caso de sanidade mental. E quanto a
sua consciência, Eichmann ficava com a consciência pesada apenas quando não
fazia aquilo que lhe ordenavam55. Eichmann, assim como os guardas de O processo
e o oficial de Na colônia penal, representam uma nulidade pronta para obedecer
qualquer voz imperativa. São, portanto, instrumentos de um poder tirânico que se
julga detentor dos direitos sobre a vida e a morte de outrem.
Como analisamos no nosso trabalho, essa realidade labiríntica não se resume
à literatura de Kafka. Em Vida e época de Michael K, a África se transforma num
cenário de imensidão e silêncio, abandono e desesperança. Coetzee, nascido na
África do Sul, conviveu de perto com o caldeirão efervescente do apartheid. Embora
a obra não mencione o termo apartheid, este contexto social se materializa nas
diversas vivências do personagem Michael K: toques de recolher, saques pela
cidade, passes para ir e vir, trabalhos forçados e grandes campos de concentração.
Esta realidade labiríntica dialoga com as narrativas kafkianas. Há um clima
55
Cf. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal. Tradução
de José Rubens Siqueira. 6. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2006a.
172
aterrorizador a rondar os personagens. Estes, no abismo social e existencial,
aparecem como uma massa de prisioneiros. As metáforas animalescas utilizadas
por Coetzee para caracterizar Michael K, conforme mostramos no trabalho, dão a
dimensão exata do lugar e da condição dessas pessoas na sociedade. O confronto
com este ponto de vista nos ajuda a compreender que a realidade precisa ser
diferente. Nesse sentido, a literatura é uma arma poderosa, pois ela é um campo
fecundo de sentidos, ou seja, discursos, ideias, problematizações...
Na obra de Chico Buarque Benjamim, a ditadura civil-militar aparece como um
cenário misterioso e sombrio. Nela podemos vislumbrar relações entre a políciajustiça kafkiana e a polícia-política brasileira que visava aniquilar todos aqueles que
por ventura caíssem em suas garras. Este momento conturbado da história brasileira
foi abordado sutilmente pelo autor através de expressões como: “investida de oficiais
inescrupulosos”, “casal foragido da lei” e “encontros clandestinos”. O tratamento
dado à política mostra os problemas enfrentados por vários artistas e intelectuais
dos anos 60 e 70 que não podiam dizer abertamente as suas opiniões, tolhidos pelo
sistema opressor que se valia de atos institucionais para instaurar o terror. Os
sentidos da realidade apresentada por Chico Buarque são construídos por cada
leitor. O escritor não vive isolado, carrega a vivência pessoal de uma geração que
enfrentou o combate à ditadura civil-militar.
Dessa forma, tentamos mostrar no nosso trabalho, que os personagens das
quatro obras em destaque parecem ter caído dentro do grande caldeirão da história.
A realidade apresentada por Kafka no início do século XX se atualiza nos outros
escritores. Nas narrativas percebemos que questões como a miséria, a
desigualdade, a burocratização e a opressão sempre existiram na história da
humanidade. A literatura demonstra a sua capacidade de construir críticas e
173
discursos sobre assuntos considerados “verdades” pela sociedade. Assim, as
reflexões apresentadas neste trabalho não se esgotam, mas estarão sempre abertas
ao diálogo.
174
8. INDICAÇÃO BIBLIOGRÁFICA
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– 2011.
183 f.
Orientador: Paulo Azevedo Bezerra.
Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de
Letras, 2011.
Bibliografia: f. 174-183.
1. Literatura comparada. 2. Poder. 3. Lei. 4. Diálogo. 5. Tempo na
literatura. I. Bezerra, Paulo Azevedo. II. Universidade Federal
Fluminense. Instituto de Letras. III. Título.
CDD 809
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tese - ilma rebello_.. - Universidade Federal Fluminense