UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
GEOPOÉTICA DA CENA MANGUE: UMA ANÁLISE DO CONCEITO DE LUGAR
NAS LETRAS DA BANDA CHICO SCIENCE E NAÇÃO ZUMBI
LUCAS DANIEL MEDRADO DE MOURA
ORIENTADOR: PROF. DR. DANTE FLÁVIO DA COSTA REIS JÚNIOR
Brasília - DF
2014
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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
GEOPOÉTICA DA CENA MANGUE: UMA ANÁLISE DO CONCEITO DE LUGAR
NAS LETRAS DA BANDA CHICO SCIENCE E NAÇÃO ZUMBI
LUCAS DANIEL MEDRADO DE MOURA
Monografia apresentada ao Departamento de
Geografia (GEA) do Instituto de Ciências
Humanas (IH) da Universidade de Brasília (UnB)
como requisito parcial para obtenção dos graus
referentes ao Bacharelado e à Licenciatura em
Geografia.
Orientador: Prof. Dr. Dante Flávio da Costa Reis
Júnior.
Brasília - DF
2014
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TERMO DE APROVAÇÃO
LUCAS DANIEL MEDRADO DE MOURA
GEOPOÉTICA DA CENA MANGUE: UMA ANÁLISE DO CONCEITO DE LUGAR
NAS LETRAS DA BANDA CHICO SCIENCE E NAÇÃO ZUMBI
Monografia aprovada, como requisito parcial para a obtenção do grau referente à Licenciatura
no curso de graduação em Geografia do Instituto de Ciências Humanas (IH), da Universidade
de Brasília (UnB), pela seguinte banca examinadora:
Orientador:
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Dante Flávio da Costa Reis Júnior
Departamento de Geografia, Universidade de Brasília
Membro interno:
_______________________________________________________________
Prof. Dra. Glória Maria Vargas
Departamento de Geografia, Universidade de Brasília
Membro interno:
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Valdir Adilson Steinke
Departamento de Geografia, Universidade de Brasília
Brasília - DF
2014
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DEDICATÓRIA
À Deus, por ter me abençoado tanto; aos meus
pais Lúcia e Francisco, meus maiores exemplos
de amor, educação e fé; aos meus irmãos,
Wesley, Diego, Danilo e Renan Smith, que
sempre
me
apoiaram;
à
minha
madrinha
Alessandra, por ter sido minha segunda mãe; aos
meu verdadeiros amigos que a vida me
apresentou na Igreja, escola, Ceub, UNB e
Portugal; ao meu orientador pela fantástica ajuda
e a minha namorada e futura esposa Camilla, pelo
apoio e amor inigualáveis.
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AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus, por ter cuidado de mim e me dado inteligência e sabedoria
para escolher a profissão de Geógrafo;
Aos meus pais por me apoiarem desde o início, sempre acreditarem no meu potencial e aos
meus irmãos por toda amizade, companheirismo e carinho com o irmão mais novo;
Aos amigos que sempre me apoiaram Gabriel, Bruno Mocotó, Ademar, Erick, Bruno Biroska,
Cássio, Taynã Gonçalves;
Aos mestres Tony Margoli e Francisco Chagas Barradas por injetarem em mim a visão de
mundo necessária a um geógrafo; ao irmão Renan Smith, pela amizade, companheirismo, fé e
tantos momentos eternos compartilhados. Depois de alguns anos, você continua me
inspirando através do seu exemplo de pessoa e profissional, sem você a estrada seria muito
mais difícil;
Ao Prof. Dr. Dante Reis, pela orientação magnífica e sempre disposta, obrigado por acreditar
no meu trabalho;
Aos meus amigos, que conheci na trajetória acadêmica e que sempre me incentivaram, me
mostrando que é possível fazer amigos num ambiente tão diverso, Gustavo, Natália,
Andressa, João Bosco, Allan Canuto, Gabriel Araújo, Lucas Lima, Cristino Jack, George
Gonçalves e Gabriel Kuch;
A professora Ana Francisca do departamento de Geografia da Universidade do Minho em
Portugal e a professora Lúcia Helena Gratão, pela ajuda e por compartilharem seus
conhecimentos e materiais acadêmicos comigo.
A minha namorada por ter sido tão companheira, compreensiva e motivadora, sem você essa
monografia teria sido muito mais difícil. Muito obrigado pelo seu amor, amizade e por sonhar
um futuro junto a mim.
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Eu venho do sul e do norte, do oeste e do leste, de todo lugar. Estradas da vida eu
percorro levando socorro a quem precisar. Assunto de paz é meu forte, eu cruzo montanhas e
vou aprender. O mundo não me satisfaz, o que eu quero é a paz, o que eu quero é viver. No
peito eu levo uma cruz, no meu coração, o que disse Jesus.
Padre Zezinho, Nova Geração
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RESUMO
O presente trabalho tem como intuito observar que a Cena Cultural Mangue, que ocorreu em
Recife nos anos 1990, possui uma Geopoética própria. Este estudo geopoético ocorreu através
da análise do conceito de Lugar, numa perspectiva humanista, que permeia as canções da
principal banda da Cena Mangue - Chico Science e Nação Zumbi. Através da identificação e
análise do conceito de Lugar, imerso nas canções da banda, buscou-se demonstrar que as
experiências, relações topofílicas, o espaço vivido e simbolismos construídos pelo letrista
Chico Science na cidade de Recife, foram essenciais para a criação da Cena Mangue e de sua
Geopoética.
Palavras-chave: Geopoética, Mangue, Lugar, Topofilia, Espaço Vivido, Experiências,
Simbolismos, Chico Science.
7
ÍNDICE
ÍNDICE............................................................................................................................. viii
1. INTRODUÇÃO...........................................................................................................10
1.1 Objeto da pesquisa..................................................................................................11
1.2 Justificativa ............................................................................................................11
1.3 Objetivos ................................................................................................................11
1.4 Hipóteses ...............................................................................................................12
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ............................................................................13
2.1 Escola Ambiental................................................................................................... 13
2.2 Escola Regional......................................................................................................15
2.3 Geografia Teorético-Quantitativa...........................................................................18
2.4 Geografia Crítica....................................................................................................20
2.5 Geografia Humanista .............................................................................................22
2.6 Geopoética..............................................................................................................29
3. O CONCEITO HUMANISTA DE LUGAR.............................................................38
3.1 O
conceito
de
Lugar
na
obra
de
Yi-Fu
Tuan
–
Topofilia
e
Topofobia................................................................................................................38
3.2 Edward Relph – O Lugar como Fenômeno de Experiência Vivida ......................41
3.3 Eduardo Marandola Jr. – O Lugar no mundo contemporâneo..............................42
3.4 O
conceito
de
Lugar
aplicado
em
obras
brasileiras
da
Geografia
Humanista...............................................................................................................44
4. A CENA MANGUE....................................................................................................48
8
4.1 Recife a quarta pior cidade do mundo!...................................................................48
4.2 Chico Science e o início da Cena Mangue.............................................................50
4.3 O Manifesto Mangue – Caranguejos com Cérebro................................................52
4.4 O Movimento Manguebeat – A Cena Mangue.......................................................55
4.5 Simbolismos e Josué de Castro..............................................................................57
4.6 O auge da Cena Mangue e a perda de um líder......................................................60
5. ANÁLISES, RESULTADOS E DISCUSSÃO..........................................................64
5.1 Por que analisar a relação entre Música e Lugar? .................................................64
5.2 Por que analisar as letras de canções? ...................................................................65
5.3 Análise Geopoética do conceito de Lugar nas letras da banda Chico Science e
Nação Zumbi..........................................................................................................66
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................81
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................83
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1. INTRODUÇÃO
O Brasil é um país culturalmente muito rico e diverso, sua música variada é conhecida e
respeitada em várias partes do mundo, fato que se deve principalmente à criatividade de seus
artistas que, em vários casos, não impõem barreiras para realizar experimentos e fusões
musicais com ritmos e referências diversas. O estado de Pernambuco possui uma tradição
cultural muito forte e rica, berço de vários ritmos como o frevo, coco, maracatu, ciranda e
outros. O pernambucano Francisco de Assis França, vulgo Chico Science, foi um desses
artistas que conseguiu mesclar ritmos e referências da cultura tradicional pernambucana com
elementos da cena pop mundial; além disso, Chico Science buscou através de uma miscelânea
cultural sem precedentes, injetar ânimo na população de Recife do início dos anos 1990 (a
cidade passava por uma estagnação cultural e forte decadência socioeconômica) e mostrar que
é preciso inovar o nosso cotidiano para melhorar o Lugar que vivemos.
Quando a Cena Mangue surge no início dos anos 1990, o Brasil pára diante da figura de
Chico Science e percebe que aquele pernambucano com “chapéu torto e óculos enfeitado”
trazia consigo referências regionais/mundiais tão diversas e nunca antes vistas. Chico em suas
músicas, falava de um Recife (e até mesmo de um Brasil) que era pobre economicamente,
mas com uma cultura muito rica, seus simbolismos rapidamente dominaram o estado de
Pernambuco. No auge de sua carreira, ninguém conseguiu entender por que ele morreu tão
jovem; Recife perdeu um líder, o mundo perdeu um artista brilhante.
A Geografia Humanista trata de alguns temas que vem ao encontro da Cena Mangue, como
por exemplo, a abordagem da subjetividade das relações do ser no mundo e até como
manifestações artísticas interferem no mundo vivido e concepção de Lugar de determinada
população. Nessa perspectiva destacamos o surgimento da Geopoética e suas análises em
obras de cunho artístico.
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1.1 OBJETO DA PESQUISA
O presente trabalho surgiu através da seguinte problematização: O conceito de Lugar,
abordado pela Geografia Humanista, contribui para a definição de uma Geopoética da Cena
Mangue através da análise das letras da banda Chico Science e Nação Zumbi?
1.2 JUSTIFICATIVA
Como a Geopoética é uma área de estudo, dentro da Geografia Humanista, que está em
crescimento e preza principalmente pela abordagem de obras literárias, identificar e analisar
obras musicais através da Geopoética abre um novo caminho nessa área de estudo, pois as
letras das canções também revelam características da poética dos lugares.
A importância desse estudo se dá também pelo fato de mostrar à Geografia uma possibilidade
de estudo e análise da riqueza cultural e simbólica de várias Cenas Culturais que aconteceram
e acontecem no mundo.
1.3 OBJETIVOS
Este trabalho teve como objetivo principal:
 Identificar como o conceito de Lugar, abordado pela Geografia Humanista, contribui
para a definição de uma Geopoética da Cena Mangue, através da análise das letras da
banda Chico Science e Nação Zumbi.
Com relação aos objetivos específicos, foram estes:
 Apresentar as características gerais da Geografia Humanista e da Geopoética;
 Identificar os principais elementos que permeiam o conceito de Lugar numa
abordagem da Geografia Humanista, incluindo o conceito de Topofilia;
 Explicar como ocorreu o surgimento da Cena Mangue ;
 Interpretar os simbolismos criados por Chico Science em suas canções através de suas
experiências e vivências
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1.4 HIPÓTESES
Para a construção deste trabalho, buscamos comprovar duas hipóteses
 O conteúdo das letras musicais de Chico Science e Nação Zumbi veiculam
imaginários perceptivos de Lugar.
 As linguagens musicais se ajustam como exemplo potencial de estudos de Geopoética.
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2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
A Desde a sistematização da Geografia como Ciência e disciplina acadêmica no século XIX,
vários conceitos-chave surgiram, tiveram destaque e foram criticados/ofuscados por um novo
conceito. Os motivos dessa ascensão e queda conceitual são explicados pelo contexto
histórico da corrente do pensamento geográfico dominante, pela ampla produção científicoacadêmica e posteriores críticas recebidas. Destacam-se aqui os seguintes conceitos:
paisagem, região, espaço, território e lugar; e será feita uma análise de cada um deles à luz das
correntes geográficas.
2.1 Escola Ambiental – A importância de Ratzel para a Geografia
Para entendermos a Escola Ambiental devemos analisar que a Geografia foi institucionalizada
como ciência na Alemanha (ainda Prússia) do século XIX graças a importantes cientistas
como Humboldt, Ritter e Ratzel; e o contexto histórico alemão estava marcado pela ascensão
do capitalismo, a eclosão de sua fase imperialista e seus consequentes processos de expansão
territorial advindos dessa fase.
A Escola Ambiental propunha um estudo dos grupos humanos e sua relação com os elementos
do meio em que eles estavam inseridos, mas Moraes (2005, p. 20) destaca que a Escola
Ambiental, apoiada pela ecologia, representou “... um determinismo atenuado, sem visão
fatalista e absoluta. A natureza não é vista mais como determinação, mas como suporte da
vida humana.”. O alemão Friedrich Ratzel (1844-1904) foi o formulador das bases da Escola
Ambiental. Estudioso das obras de Humboldt e Ritter, Ratzel foi influenciado pelo
pensamento darwinista que, segundo Claval (2006, p. 74), procurava estabelecer
[...] leis gerais que regiam a influência do meio sobre os grupos humanos,
dedicando-se ao estudo das relações que se desenvolvem entre as sociedades e o
ambiente em que vivem. Ratzel vai buscar a idéia de que o movimento é uma das
características centrais do mundo vivo, em especial do homem. Essa idéia leva-o a
interessar-se pelos fenômenos de circulação que as sociedades desenvolvem de um
ponto da Terra a outro.
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Ratzel foi autor da obra Anthropogeographie (1882); considerada marco inicial da Geografia
Humana, essa obra definiu que o objeto da ciência geográfica seria o estudo da influência que
as condições naturais poderiam exercer sobre a humanidade. Moraes (2005, p. 18) afirma que
só podemos compreender as proposições de Ratzel
[...] em função da época e da sociedade que as engendram. A Geografia de Ratzel foi
um instrumento poderoso de legitimação dos desígnios expansionistas do Estado
alemão recém-constituído. L. Febvre chegou a denominá-la de “manual de
imperialismo”.
Na proposta de análise dos principais temas e conceitos geográficos ao longo das escolas
geográficas, podemos destacar que a principal contribuição de Ratzel para a Geografia deveuse ao fato dele analisar o espaço como base essencial para a vida humana destacando que o
seu controle e domínio são de fundamental relevância. Ratzel em sua obra
Anthropogeographie desenvolveu dois importantes conceitos para a Geografia: território e
espaço vital. O território em Ratzel estava ligado à apropriação e utilização de parte do espaço
por um grupo de pessoas, representando assim as condições de trabalho e premissa para
existência de uma sociedade. Moraes (2005) descreve que Ratzel tinha a visão de que a maior
prova de decadência para uma sociedade seria a perda de seu território e quando a sociedade
se organiza para defender o território, transforma-se em Estado. Já a ascensão de uma
sociedade, para Ratzel, passaria pelo aumento e conquista de novos territórios; é nesse
momento que Ratzel cria o conceito de espaço vital como teoria que justificava e legitimava o
expansionismo imperialista alemão. A teoria do espaço vital formulada por Ratzel propunha
que o território seria o “... equilíbrio entre a população ali residente e os recursos disponíveis
para as suas necessidades, definindo e relacionando, deste modo, as possibilidades de
progresso e as demandas territoriais” (CORRÊA, 1987. p. 11), ou seja, segundo Ratzel o
expansionismo é algo natural, inevitável e para que uma nação se desenvolvesse seria
necessário que ela possuísse um território rico o bastante para atender às necessidades de sua
população, mesmo que para isso essa nação tivesse que dominar territórios de outras nações.
Podemos afirmar segundo Corrêa (1987) que a teoria do espaço vital foi uma transformação
do conceito de território em espaço vital, criada para justificar o desenvolvimento, poder,
domínio e expansão da Alemanha.
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A escola ambiental, segundo Corrêa (1987. p. 23), também se preocupou em estudar o
conceito de região, mas como “Região Natural”, que foi abordada como
[...] uma parte da superfície da Terra, dimensionada segundo escalas territoriais
diversificadas, e caracterizadas pela uniformidade resultante da combinação ou
integração em área dos elementos da natureza: o clima, a vegetação, o relevo, a
geologia e outros adicionais que diferenciariam ainda mais cada uma destas partes.
Em outras palavras, uma região natural é um ecossistema onde seus elementos
acham-se integrados e são integrantes.
Dos pensadores da escola ambiental, Ratzel foi um grande contribuinte por realizar em seus
estudos uma abordagem geográfica-ambiental influente para outros geógrafos como Ellen
Semple e Elsworth Huntington, que fizeram uma interpretação simplista de sua obra e
[...] radicalizaram suas colocações, constituindo o que se denomina “escola
determinista” de Geografia, ou “determinismo geográfico”. Os autores dessa
corrente partiram da definição ratzeliana do objeto da reflexão geográfica, e
simplificaram-na. Orientaram seus estudos por máximas, como “as condições
naturais determinam a História”, ou “o homem é um produto do meio” –
empobrecendo bastante as formulações de Ratzel, que falava de influências. Na
verdade, todo o trabalho destes autores se constituía da busca de evidências
empíricas, para teorias formuladas a priori. (MORAES, 2005, p. 20).
2.2 Escola Regional – A crítica feita por Vidal de la Blache
A Escola Regional surge na França já no final do século XIX num momento histórico de
conflitos territoriais entre França e Alemanha, vale destacar que as rivalidades entre as duas
potências aumentaram quando a França perdeu a região da Alsácia – Lorena para a Alemanha
(Guerra Franco-Prussiana, 1870-1871) e suscitou assim uma política de promoção da
Geografia por parte do governo francês. Além das divergências diplomáticas entre Alemanha
e França, do ponto de vista filosófico a Escola Regional surge como reação à Escola
Ambiental e teria três principais incumbências:
1- Desmascarar o expansionismo germânico – criticando o conceito de espaço vital
– sem, no entanto, inviabilizar intelectualmente o colonialismo francês;
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2- Abolir qualquer forma de determinação, da natureza ou não, adotando a idéia de
que a ação humana é marcada pela contingência;
3- Enfatizar a fixidez das obras do homem, criadas através de um longo processo de
transformação da natureza; assim os elementos mais estáveis, solidamente
implantados na paisagem, são ressaltados, não se privilegiando os mais recentes,
resultantes de transformações que podem colocar em risco a estabilidade e o
equilíbrio, alcançados anteriormente. Daí a ênfase no estudo dos sítios
predominantemente rurais. (CORRÊA, 1987. p. 12).
Observamos que o discurso da Escola Regional era oposto ao da Escola Ambiental, criticando
o conceito de espaço vital e sendo contrário ao determinismo ambiental (distorcido por alguns
discípulos de Ratzel). O principal difusor dos ideais da Escola Regional foi o geógrafo francês
Vidal de la Blache (1845-1918) que após estudar várias obras da Escola Ambiental propôs
que a natureza fosse analisada como fonte de possibilidades para que o homem a
transformasse segundo suas necessidades. Vidal faz uma nova abordagem do conceito de
gênero de vida que agora “trata-se não mais de uma consequência inevitável da natureza,
mas de um acervo de técnicas, hábitos, usos e costumes, que lhe permitiram utilizar os
recursos naturais disponíveis” (CLAVAL, apud CORRÊA, 1987, p.13).
Destacamos aqui dois conceitos que merecem uma atenção especial: Paisagem e Região. A
Paisagem em francês paysage (paisagem) vem de pays (pequena região homogênea) e nessa
escola do pensamento geográfico começa a ser citada como uma criação humana, que é fruto
de um processo evolutivo temporal, em que a paisagem natural é transformada em paisagem
cultural, mas esse conceito é limitado por enfatizar principalmente o aspecto de unicidade da
paisagem (fenômenos que ocorrem apenas uma vez) e por sua apreensão ser apenas pelo
empirismo e indução.
A Escola Alemã considerava a região apenas em sua forma natural (região natural), mas na
escola regional a região torna-se o objeto de estudo da Geografia, e passa a ser considerada
como “Região Geográfica”, marcada por relações humanas e naturais que possibilitam ao
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homem criar através de práticas culturais uma paisagem e um gênero de vida que conferem à
região um caráter de unicidade.
Vidal de la Blache propõe que o papel do geógrafo diante da região é evidenciar as unicidades
de cada uma e as inter-relações entre os fenômenos físicos e humanos ali presentes. Segundo
Corrêa (1987, p. 29) para Vidal de la Blache “O que importa é que na região haja uma
combinação específica da diversidade, uma paisagem que acabe conferindo singularidade
àquela região”. Diferentemente de Ratzel, Vidal de la Blache não possuía como principal
meta a delimitação de um território para uma nação, mas como diz Claval (2006, p. 92), Vidal
e a escola regional procuraram
“...compreender como a unicidade podia
surgir da
diversidade de meios naturais e do povoamento original.” Observamos que para Vidal a
região possui um caráter empírico e de tentativa de análise entre elementos naturais e
humanos da paisagem e segundo Claval (2006, p. 93), a visão de la Blache propunha que
“...para compreender uma organização regional, é necessário perceber como cada distrito
participa nas unidades”.
A escola regional consolidou-se na primeira década do século XX e vale destacar também a
contribuição do geógrafo Jean Brunhes (1869-1930) que realizou uma abordagem interessante
em sua obra “La géographie humaine” de 1910. Claval (2006, p. 94) nos apresenta a visão de
Brunhes que destacava que a geografia devia estar atenta à análise da paisagem e das formas
de ocupação do solo.
Com a I Guerra Mundial, a escola regional passa por uma fase de declínio, mas
[...] as grandes monografias regionais e as produções da Géographie universelle,
concebida por Vidal e agora conduzida por Gallois, provam que ela permanece de
qualidade. O seu campo alarga-se nas áreas da análise urbana, rural, dos fenômenos
políticos e da vida econômica. (CLAVAL, 2006, p. 95, grifo do autor).
O conceito de região (geográfica) recebeu várias críticas por parte dos geógrafos do século
XX, principalmente Lacoste e Claval. O geógrafo Yves Lacoste sustenta sua crítica no fato de
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que o conceito de região estava estabelecido como algo pronto e concluído, e que a proposta
de região em Vidal de la Blache “...impõe um único modo de se pensar a divisão da
superfície da Terra, esquecendo a diferencialidade espacial de cada elemento, e o fato de que
outros segmentos do espaço podem ser mais úteis” (Corrêa, 1987, p. 31). Já o geógrafo Paul
Claval fundamentava sua crítica à escola regional
[...] por não haver um critério sistemático para se identificar regiões, os resultados
obtidos indicam a sua diversidade, às vezes constituindo uma realidade natural, mas
na maioria dos casos condicionada histórica e economicamente. Era difícil teorizar
sobre o assunto, especialmente porque não se admitia a aplicação dos procedimentos
de utilização geral. (CORRÊA, 1987, p. 31).
Diante dessas e outras críticas, observou-se o surgimento de estudos específicos de caráter
regional.
2.3 Geografia Teorético-Quantitativa
Em meados da década de 1950 o mundo estava num momento histórico nunca dantes visto:
pós II Guerra Mundial, recuperação econômica do continente europeu, nova divisão social e
territorial do trabalho; essas e várias transformações sociais e econômicas inviabilizaram os
paradigmas propostos pela Geografia Tradicional no fim do século XIX, pois as técnicas
criadas pela Geografia Tradicional foram elaboradas para explicar situações menos
complicadas que aquelas presentes nos anos 1950. Logo, com a intensa urbanização, por
exemplo, os geógrafos tradicionais não conseguiram explicar a complexa organização do
espaço, organização essa que viria a se tornar o objeto de estudo dessa nova corrente do
pensamento geográfico. No âmbito da ciência geográfica, a década de 1950 foi marcada por
uma crise de conhecimentos geográficos que não estavam atendendo as reais necessidades
daquele momento histórico-social, político-econômico.
Todos esses motivos fomentaram um movimento de renovação da ciência geográfica, que
buscou novas técnicas para que se fizesse uma análise geográfica atual e abrangente do
Espaço Geográfico. A principal crítica desenvolvida pela escola teorético-quantitativista é a
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chamada falta de cientificidade da Geografia Tradicional. Para os “novos geógrafos” essa
cientificidade seria alcançada através de uma abordagem sistêmica do espaço, baseada no
positivismo lógico e instrumentalizada por modelos matemáticos e estatísticos que seriam
utilizados para realizar a análise da realidade espacial.
Em relação à temática conceitual, para Corrêa (2000), paisagem, lugar e território são
conceitos que não tiveram ampla discussão e estudos dentro da escola teorético-quantitativa
da ciência geográfica. Já o conceito de Região, na Geografia Teorético-Quantitativa, foi
tratado “como um conjunto de lugares onde as diferenças internas entre esses lugares são
menores que as existentes entre eles e qualquer elemento de outro conjunto de lugares”
CORRÊA (1987, p. 32).
O grande destaque conceitual desta “Nova Geografia” foi o Espaço, que apareceu pela
primeira vez como conceito-chave da ciência geográfica. O espaço foi considerado como
“planície isotrópica” e isso se explica pela preocupação principal desta escola (propor
modelos de otimização), pois a planície isotrópica é
[...] uma construção teórica que resume uma concepção de espaço derivada de um
paradigma racionalista e hipotético-dedutivo. Admite-se como ponto de partida uma
superfície uniforme tanto no que se refere à geomorfologia como ao clima e à
cobertura vegetal, assim como a ocupação humana: há uma uniforme densidade
demográfica, de renda e de padrão cultural que se caracteriza pela adoção de uma
racionalidade econômica fundada na minimização dos custos e maximização dos
lucros ou da satisfação. A circulação nesta planície é possível em todas as direções.
(CORRÊA 2000, p. 21).
Segundo Corrêa (2000), observamos assim que na planície isotrópica a variável mais
importante é a distância, pois ela determina a diferenciação espacial, seja através do uso da
terra e seu preço, densidades demográficas ou hierarquia de lugares, revelando assim uma
visão de espaço bastante vinculada à economia; é o que David Harvey chama de espaço
relativo. Este espaço relativo é explicado através das
[...] relações entre objetos, relações estas que implicam em custos – dinheiro, tempo,
energia – para se vencer a fricção imposta pela distância. É no espaço relativo que se
obtêm rendas diferenciais (de localização) e que desempenham papel fundamental
na determinação do uso da terra. (CORRÊA 2000, p. 22).
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As posteriores críticas feitas a essa visão de espaço concentram-se no fato dos geógrafos
teoréticos, além de abordarem o espaço de maneira estatística e economicista, dando à
“distância” um destaque exagerado, colocaram em segundo plano as preocupações referentes
às contradições e problemas sociais (guerras e crises, por exemplo) que estavam eclodindo no
fim da década de 1960.
2.4 Geografia Crítica
Vimos que a Geografia Tradicional e seus conceitos não conseguiam explicar situações
contemporâneas ao mundo da metade do século XX; já a Geografia Teorético-Quantitativa
em sua abordagem sistêmica e estatística, não se interessava em dar respostas aos vários
problemas sociais e políticos surgidos no início da década de 1970. Nasce então uma escola
geográfica duplamente crítica: crítica aos modelos e conceitos geográficos propostos tanto
pela Geografia Tradicional quanto pela Geografia Teorético-Quantitativa. Essa corrente do
pensamento geográfico, chamada Geografia Crítica, foi fundada por geógrafos que, em sua
maioria, procuraram realizar uma revolução científica apoiada no marxismo e no ideário do
materialismo histórico e dialético, criticando escolas precedentes e segundo Gomes (1996)
propondo um conhecimento geográfico verdadeiro. Os geógrafos críticos estavam
preocupados em realizar um
[...] saber a serviço de uma transformação social, e não mais de um saber visando
manter estruturas sociais. As categorias de análise utilizadas eram igualmente
formais e abstratas, à diferença de que partiam de situações históricas concretas, e
não de premissas e pressupostos ideais. Enfim, tal corrente acredita estar fundada
sobre o conhecimento da essência dos fatos, e não das suas aparências. (GOMES,
1996, p. 280).
Para Gomes (1996, p. 284) “... o marxismo no fim dos anos 1960 e durante a década de 1970,
exerceu forte influência sobre as ciências sociais” e um reflexo disso foi que boa parte de
geógrafos críticos buscou nas teorias de Marx a grande chance de renovação da ciência
geográfica e a possibilidade de transformação da sociedade. Os geógrafos críticos se
propuseram inicialmente a superar “... a descrição de padrões espaciais, procurando-se ver
as relações dialéticas entre formas espaciais e os processos históricos que modelam os
grupos sociais” (CORRÊA, 1987, p. 21).
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Diante desse contexto histórico e suas influências, destacamos dois principais conceitos
abordados pela geografia crítica: Região e Espaço. A região não podia mais ser caracterizada
levando em conta apenas fatos empíricos; com o novo momento histórico e econômico, houve
a necessidade de o conceito ser repensado de acordo com essa realidade. Corrêa (1987) afirma
que a região é o resultado da
[...] lei do desenvolvimento desigual e combinado, caracterizada pela sua inserção na
divisão nacional e internacional do trabalho e pela associação de relações de
produção distintas. Estes dois aspectos vão traduzir-se tanto em uma paisagem como
em uma problemática, ambas específicas de cada região, problemática que tem como
pano de fundo a natureza específica dos embates que se estabelecem entre as elites
regionais e o capital externo à região e dos conflitos entre as diferentes classes que
compõem a região. Os conflitos oriundos dos embates entre interesses internos, bem
como entre interesses internos e externos, podem gerar uma desintegração da região,
que se exprimirá na sua paisagem. (CORRÊA 1987, p. 45).
Graças ao conceito de desenvolvimento desigual e combinado a região, antes declarada como
conceito-obstáculo segundo alguns geógrafos, readquiriu sua importância dentro da
Geografia.
O conceito alvo de ampla discussão e estudos dentro da corrente crítica da Geografia foi o
Espaço. Para o marxismo, Gomes (1996) nos lembra que o espaço era considerado um
produto social explicados pelos aspectos fundamentais da sociedade (relações de produção e
as forças produtivas). O espaço e suas relações dialéticas são abordados pela geografia crítica
como espaço social. A geografia crítica apelou
[...] para o conceito de espaço social, afim de traduzir aí a idéia de dinâmica social
inscrita em um espaço que é ao, ao mesmo tempo, reprodutor de desigualdades e a
condição de sua superação, o reflexo de uma ordem e um dos meios possíveis para
transformar esta mesma ordem; enfim, o espaço faz parte da dialética social que o
funda. (GOMES, 1996, p. 297).
A obra do filósofo Henri Lefébvre (1901-1991) influenciou grandes geógrafos críticos como
Milton Santos e David Harvey. Para Lefébvre “o espaço é concebido como locus da
reprodução das relações sociais de produção, isto é, reprodução da sociedade.”
(LEFÉBVRE apud CORRÊA, 2000, p. 25). A partir dessa linha de pensamento, Corrêa
(2000) relata que Milton Santos baseia-se na concepção de espaço social e afirma que não é
21
possível realizar uma formação sócio-econômica sem que se recorra ao espaço. Para Milton
Santos uma sociedade só se torna concreta através de seu espaço. O grande representante da
geografia crítica brasileira foi Milton Santos, que em seus estudos sobre a temática do espaço
afirmava que
[...] o espaço por suas características e por seu funcionamento, pelo que ele oferece a
alguns e recusa a outros, pela seleção de localização feita entre as atividades e entre
os homens, é o resultado de uma práxis coletiva que reproduz as relações sociais,
[...] o espaço evolui pelo movimento da sociedade total. (SANTOS, 1978, p. 171).
Com relação ao conceito de lugar, podemos dizer que este não foi muito abordado na
Geografia Crítica, mas Vestena (2009) destaca que na obra de Milton Santos A natureza do
espaço (1996), Santos escreve sobre a “força do lugar”, que seria um espaço produzido pela
vivência das pessoas e pela lógica dos processos que constituem a globalização. Santos
explica que
Cada lugar é, à sua maneira, o mundo. [...] Mas, também, cada lugar,
irrecusavelmente imerso numa comunhão com o mundo, torna-se exponencialmente
diferente dos demais. A uma maior globalidade, corresponde uma maior
individualidade. É a esse fenômeno que G. Benko (1990, p. 65) denomina
"glocalidade", chamando a atenção para as dificuldades do seu tratamento teórico.
Para apreender essa nova realidade do lugar, não basta adotar um tratamento
localista, já que o mundo se encontra em toda parte.
Podemos concluir que a abordagem crítica de lugar feita por Milton Santos relaciona apenas
as influências que a globalização exerce nas vivências que os indivíduos estabelecem nos
lugares. Vale ressaltar que o Milton Santos de “A natureza do espaço” já não é aquele de
1978, da obra “Por uma geografia nova”; M. Santos, aparentemente, passa a flertar com o
Humanismo e a Fenomenologia.
2.5 Geografia Humanista
Também na década 1970, despontou na ciência geográfica uma nova escola: a Geografia
Humanista (também chamada de Geografia Humanística ou Geografia Fenomenológica). Essa
escola foi fortemente influenciada pelo humanismo e fenomenologia. Gomes (1996, p. 313)
22
nos relata que o humanismo na geografia buscou no passado “... um exemplo e um
apadrinhamento, que servem de ponte entre o passado clássico e estas novas tendências. A
obra de Eric Dardel, o Homem e a Terra, redescoberta no início dos anos oitenta, assumiu
em parte este papel”. O autor Eric Dardel (1900-1968) propõe em “O Homem e a Terra”, uma
nova visão da Geografia que
[...] não tem por finalidade descrever a Terra, mas mostrar como o homem nela
inscreve a sua existência (inventa, para o exprimir, o termo geograficidade) e lhe dá
um sentido, modelando territórios a que atribui valores. A geografia sai do domínio
das ciências exatas. Deixa de ser ciência social, no sentido habitual do termo. É uma
meditação sobre o destino dos indivíduos e dos grupos. (CLAVAL, 2006, p. 116).
A importância de Dardel para a Geografia Humanista (e para este trabalho) é indiscutível. Sua
maneira inédita de análise do espaço geográfico foi influenciada em parte pela
Fenomenologia de Heidegger. Gomes (1996, p. 314) relata que tal influência reside no fato de
que Eric Dardel foi o primeiro tradutor de O Ser e o Tempo para o francês. E. Dardel inspirou
grandes geógrafos humanistas, tais como Edward Relph e Yi-Fu Tuan.
Com relação ao aporte teórico humanista utilizado pela geografia, segundo David Ley,
Professor da University of British Columbia, podemos observar que a influência do
Humanismo na Geografia, mesmo sendo uma
[…] association of some of its major contributers, such as Yi-Fu Tuan, with the
Berkeley tradition, humanistic work did not initially set out to reform cultural
geography. Rather, in a classic opposition between thesis and antithesis, it
represented a reaction against the quantitative juggernaut of spatial analysis as it
gathered speed in the 1960’s. (LEY, 1981 p. 250).
Já Marandola Jr. (2005, p. 10) destaca que mesmo a geografia humanista sendo influenciada
pela “corrente Humanista juntamente com a Geografia Cultural, ambas marcadamente
fenomenológicas, estas mantêm relações com outras abordagens, como a teoria crítica, por
exemplo”. O mesmo autor destaca ainda que o sentido do Humanismo em Geografia é o de
“complexificar ao máximo a aproximação com a realidade e a experiência humana, sem
reducionismos ou negação total de valores ou orientações teórico-metodológicas, buscando o
homem e a sua liberdade” (idem, p. 15).
23
Com relação às influências fenomenológicas nessa nova escola geográfica,podemos dizer que
a geografia humanista
[...] está assentada na subjetividade, na intuição, nos sentimentos, na experiência, no
simbolismo e na contingência, privilegiando o singular e não o particular ou o
universal e, ao invés da explicação, tem na compreensão a base de inteligibilidade
do mundo real. (CORRÊA, 2000, p. 30).
Essa valorização da subjetividade e da percepção fenomenológica é fruto da contribuição,
dentre outras, de três grandes autores: Edmund Husserl (1859-1938), Martin Heidegger (18891976) e Maurice Merleau-Ponty (1945 -1994). Husserl (1954, p. 8) propõe que a ciência
natural “is, to be sure, not purely rational insofar as it has need of outer experience,
sensibility; but everything in it that is rational it owes to pure reason and its setting of norms;
only through them can there be rationalised experience”. Heidegger em sua obra Ser e Tempo
(1927), conceitua a ciência fenomenológica a partir do significado da palavra fenomenologia
que
[...] exprime uma máxima que se pode formular na expressão: “às coisas em si
mesmas!” – por oposição às construções soltas no ar, às descobertas acidentais, à
admissão
de
conceitos
só
aparentemente
verificados,
por
oposição
às
pseudoquestões que se apresentam, muitas vezes como “problemas”, ao longo de
muitas gerações. [...] Fenomenologia seria, portanto, a ciência dos fenômenos.
(HEIDEGGER, 2005, p. 57)
Merleau-Ponty, em sua obra A Filosofia da Existência (1959), considera o corpo e o mundo
exterior como elementos importantes para a compreensão da nossa existência, pois quando
agimos, é o nosso corpo que está em contato com o mundo sensorial. O corpo é considerado
por Merleau-Ponty antes de tudo um objeto, como qualquer outro, mas não apenas isso, pois o
ser humano possui um espírito e sensibilidade para captar as coisas sensíveis do mundo,
através de sua corporeidade.
Além desses grandes autores, Gomes (1996, p. 327) nos informa que Relph destacou dois
motivos pelos quais a fenomenologia seria um método crucial para o novo modelo de
Geografia a ser desenvolvido: o primeiro é a adoção das práticas culturais na análise
geográfica e o segundo ponto é que para Relph a verdadeira fonte do conhecimento seria uma
24
“explicação centrada sobre as experiências vividas cotidianamente, e contextualizadas a
partir dos instrumentos culturais que lhes são relativos”.
Toda essa influência humanista e fenomenológica é refletida na base conceitual da Geografia
Humanista, destacamos aqui os conceitos de: paisagem, espaço e lugar (este último conceito
será abordado de maneira mais detalhada em outro capítulo). Na geografia humanista a
paisagem readquire seu valor conceitual, o espaço é tido para muitos autores como espaço
vivido e o lugar é o conceito-chave dessa nova escola. Antes de iniciar a análise dos três
principais conceitos da Geografia Humanista, vale destacar que nessa escola
[...] a paisagem, a região e os lugares, a despeito de suas características físicas,
apreendidas imediatamente, são, de fato, estruturados por uma rede simbólica
complexa. Esta rede é composta de valores, de representações, de imagens espaciais
vividas e, para ser percebida, demanda um trabalho de interpretação aprofundado. A
chave fundamental desta interpretação é o comportamento e a linguagem que, juntos
estruturam o código de expressão deste universo simbólico. A análise deste código
não pode ter pretensões universais, válidas para todos os casos, pois cada unidade
manifesta, de uma maneira diferente, estas forças simbólicas, que são a fonte
primária da análise. (GOMES, 1996, p. 322).
Para analisar a “Paisagem” utilizaremos, primeiramente, a visão de Dardel sobre o conceito,
que em sua obra O Homem e a Terra (1952), faz uma abordagem da paisagem que foge das
antigas descrições físicas da superfície terrestre. Para Dardel, mais que uma mera descrição e
ajuntamento de elementos
[...] a paisagem é um conjunto, uma convergência, um momento vivido, uma ligação
interna, uma “impressão”, que une todos os elementos. [...] A paisagem se unifica
em torno de uma tonalidade afetiva dominante, perfeitamente válida ainda que
refratária a toda redução puramente científica. Ela coloca em questão a totalidade do
ser humano, suas ligações existenciais com a Terra, ou, se preferirmos, sua
geograficidade original: a Terra como lugar, base e meio de sua realização. Presença
atraente ou estranha, e, no entanto, lúcida. Limpidez de uma relação que afeta a
carne o sangue. (DARDEL, 2011, p. 30-31, grifo do autor).
Percebemos que a rica visão de Dardel sobre a paisagem possui uma clara influência da
fenomenologia, percebida em sua visão afetiva e que relaciona as experiências humanas com
25
a Terra. Dardel (2011, p. 31) também destaca que a paisagem não é um elemento estagnado
ou uma “linha fixa, mas um movimento, um impulso. [...] a paisagem não é, em sua essência,
feita para se olhar, mas a inserção do homem no mundo, lugar de um combate pela vida,
manifestação de seu ser social”. A paisagem, então, é composta pelos elementos que estão
presentes em determinada realidade geográfica, um exemplo de elementos negativos que
caracterizam uma paisagem é apresentado por Dardel através da obra de Josué de Castro
“Geografia da Fome” (1946) em que Dardel, citando Castro (1946), apresenta o caso da
[...] região brasileira do “Nordeste açucareiro”, onde as carências alimentares
causam uma mortalidade verdadeiramente assustadora, passando de 300%. [...] Uma
verdade emerge da paisagem, contudo não como teoria geográfica ou mesmo como
valor estético, mas como expressão fiel da existência [...] (DARDEL, 2011, p. 32).
Identificamos que a partir da Geografia Humanista há uma retomada do conceito de paisagem
e que não se pode falar de paisagem a não ser a partir de um viés da percepção, fruto da
influência fenomenológica. Outros geógrafos humanistas (e até críticos, como é o caso de
Milton Santos) analisaram a paisagem de maneira bastante interessante, como por exemplo,
Relph (1987, p. 12), que define a paisagem a partir do “contexto visual da experiência
cotidiana”. Ou ainda o célebre Tuan (1979, p. 89) tratando a paisagem como uma “uma
imagem integrada, construída pela mente e pelos sentidos”.
Com relação ao estudo da paisagem por autores nacionais vale destacar que Milton Santos
propõe um conceito de paisagem muito importante (mesmo não sendo um expoente da
Geografia Humanista) e que possui elementos fenomenológicos. Para Santos (1988, p. 61) a
paisagem é “tudo aquilo que nós vemos, o que nossa visão alcança, é a paisagem. Esta pode
ser definida como o domínio do visível, aquilo que a vista abarca. Não é formada apenas de
volumes, mas também de cores, movimentos, odores, sons e etc.”.
O conceito de espaço é tratado pela maioria dos geógrafos humanistas como Espaço Vivido. A
análise do espaço vivido é fortemente influenciada pela fenomenologia, e Relph apud Holzer
(2012 p. 296) define de maneira simples o espaço vivido como uma “estrutura oculta do
espaço como aparece para nós em nossas experiências concretas do mundo como membros
de um grupo cultural”. A geógrafa irlandesa Anne Buttimer, grande nome da Geografia
Humanista, sugere que cada indivíduo é o foco de seu próprio mundo e propõe que a pesquisa
26
fenomenológica deva promover uma ciência com mais sensibilidade e permeada pelo espaço
vivido (lived space), em que cada pessoa
[…] is surrounded by concentric “layers” of lived space, from room to home,
neighborhood, city, region, and nation. In addition, there may be “privileged
places”, qualitatively different from all others, such as a man's birthplace, or the
scenes of his first love, or certain places in the first foreign city he visited in youth.
(BUTTIMER 1976, p. 283).
Para Holzer (apud Corrêa, 2000, p. 32) o espaço vivido é “uma experiência contínua
egocêntrica e social, um espaço de movimento e um espaço-tempo vivido que se refere ao
afetivo, ao mágico, ao imaginário”. De acordo com os geógrafos humanistas, podemos
observar que o espaço vivido é apreendido pela percepção (individual e coletiva), pelas
experiências, pelo imaginário (imaginário que é tratado recorrendo-se a Bachelard, em sua
obra A Poética do Espaço, de 1957) e permeado de simbolismos e afetividade que são
manifestadas
[...] tanto no que diz respeito ao gostar dos lugares como à movimentação espacial.
Lugares e áreas longínquas tornam-se próximos em função da afetividade por eles,
como se exemplifica com os lugares sagrados, objetivamente distantes. Nas
sociedades primitivas o espaço vivido é afetivamente valorizado em razão de
crenças que conferem especificidades a cada parte do espaço. (CORRÊA, 2000, p.
33).
O conceito de espaço vivido tem uma grande importância na realização deste trabalho, pois
vimos que as letras do grupo Chico Science e Nação Zumbi só conseguem retratar a
realidade da cidade de Recife, pois o principal letrista da banda – Chico Science – possuía
uma sensibilidade muito grande para perceber, sentir e imaginar os elementos e simbolismos
do espaço vivido, por ele concebido (cidade de Recife e o próprio Brasil) e posteriormente
transformá-los em arte através de suas músicas permeadas desses mesmos simbolismos.
Por muito tempo na história da Geografia o conceito de lugar foi associado ao conceito de
Região, mas a partir da década de 1970 com a influência fenomenológica e humanista, o
Lugar na Geografia Humanista é tido como conceito-chave, ou seja, foi alvo (e ainda o é) de
vários estudos, análises e teorias. O grande trunfo da Geografia Humanista foi estudar o Lugar
27
a partir do aporte teórico adquirido da experiência fenomenológica e realizar assim uma
profunda e rica análise do conceito. Autores como Tuan, Relph e Buttimer adotaram como
subsídios para análise do Lugar, elementos como: afetividade, corporeidade, experiência,
percepção e outros elementos que em grande maioria são frutos da fenomenologia.
O geógrafo sino-americano Yi-Fu Tuan (1930) e o canadense Edward Relph (1944) foram os
grandes pioneiros que estudaram intensamente o Lugar e o elevaram a conceito-chave da
Geografia Humanista. Para Tuan o lugar é construído por nossas experiências e captado por
nossos sentidos, os lugares não são apenas meras localidades espaciais; o lugar também é
[…] a center of meaning constructed by experience. Place is known not only through
the eyes and mind but also through the more passive and direct modes of experience,
which resist objectification. To know a place fully means both to understand it in an
abstract way and to know it as one person knows another. At a high theoretical level,
places are points in a spatial system. (TUAN, 1975, p. 151).
Tuan e Relph foram influenciados pela fenomenologia e influentes para geógrafos humanistas
posteriores como o brasileiro Werther Holzer, que através da influência do geógrafo sinoamericano, explica que
Tuan afirma que todos os lugares são pequenos mundos, articulados pelas redes
intangíveis das relações humanas. Já em 1975 Tuan afirma que o lugar é um centro
de significados geográficos, que se relaciona com o constructo abstrato que
denominamos “espaço”. O lugar, afirma o autor, é constituído a partir da experiência
que temos do mundo. (HOLZER, 2012, p. 297).
Partindo desse primeiro conceito de Lugar, já observamos elementos cruciais da análise feita
pela Geografia Humanista como o simbolismo e a experiência, mas Corrêa (2000, p. 31) nos
lembra e afirma que para Tuan o lugar também possui um “espírito, uma personalidade,
havendo um sentido de lugar que se manifesta pela apreciação visual ou estética e pelos
sentidos a partir de uma longa vivência”; revelando assim que a corporeidade e vivência
também são importantes elementos que compõem o Lugar. Como já mencionado, nos
deteremos a uma abordagem mais específica e profunda sobre o conceito de lugar na
Geografia Humanista em outro capítulo.
28
Para finalizar, destacaremos o importante fato de que na Geografia Humanista houve uma
aproximação entre a geografia e a arte. Gomes (1996) descreve de maneira muito clara sobre
a importância do papel da arte na escola humanista do pensamento geográfico, e propõe para
que se chegue a uma interpretação coerente das culturas, que o geógrafo
[...] deve ser capaz de reunir o maior número de elementos possíveis que tratam dos
valores, das significações e das associações construídas por um grupo social. A arte
é, em geral, considerada como o meio mais livre e mais espontâneo deste tipo de
manifestação. Aquilo que a ciência não chega a reconhecer, devido aos limites
impostos pelo método, a arte o consegue por um meio não-racional. Assim, da
mesma maneira que os românticos, que consideravam a poesia e literatura como o
berço da expressão dos valores humanos, os humanistas consideram a arte como o
elemento de mediação entre a vida e o universo das representações. (GOMES, 1996,
p. 314).
Percebemos que na Geografia Humanista, a arte foi alvo de análise acadêmica e utilizada
como o elo entre a ciência geográfica e o mundo tal como ele é: composto por diferentes
lugares, paisagens e espaços vividos. Ainda sobre a arte Gomes (1996, p. 325) ressalta que a
arte na Geografia Humanista é exaltada por
[...] utilizar um vocabulário inconsciente para fazer transitar sensações reais e
vividas sob a aparência de irrealidades. A valorização da arte pelos geógrafos
humanistas explica-se exatamente por esta dimensão do conhecimento espontâneo,
inconsciente e não-racional.
Um exemplo de utilização das artes nas análises geográficas humanistas é o surgimento da
Geopoética.
2.6 Geopoética
Como vimos, na Geografia Humanista, a arte foi introduzida como um elemento de análise
geográfica do espaço que possibilita compreender o mundo real de maneira subjetiva através
das experiências, realidades e diferentes vivências do artista, que são irradiadas em grande
parte de suas obras. Essa subjetividade presente na análise geográfica humanista advém da
fenomenologia e reflete diretamente no surgimento e desenvolvimento de um novo ramo da
Geografia: a Geopoética. Antes de descrevê-la, precisamos compreender a influência crucial
29
de dois importantes autores para o nascimento da Geopoética: o filósofo Gaston Bachelard e o
geógrafo Eric Dardel, ambos franceses.
Gaston Bachelard (1884-1962) foi um filósofo francês adepto da Fenomenologia; sua obra A
Poética do Espaço, de 1957, é um marco importantíssimo para os estudos em Geopoética.
Bachelard nesta obra, procura compreender o ser humano em sua relação afetiva com os
espaços do seu cotidiano, e realiza uma análise da poética da casa, retratando cada parte dela
(porão, sótão, gavetas, cofres, armários), propondo assim uma nova visão de mundo através
de relações afetivas e simbólicas ali vividas.
A poética do Espaço aborda a profunda a relação que o ente tem com sua casa e o que ela
representa para toda sua vida. Essa análise é feita através de uma perspectiva fenomenológica
que trata, de maneira muito poética, sobre como os significados que as experiências
vivenciadas no lar são ao mesmo tempo físicos e imagéticas. Para Bachelard a casa, na
história do ser humano
[...] afasta contingências, multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela, o
homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu
e das tempestades da vida. Ela é corpo e alma. É o primeiro mundo do ser humano.
Antes de ser “atirado ao mundo”, como o professam os metafísicos apressados, o
homem é colocado no berço da casa. E sempre, em nossos devaneios, a casa é um
grande berço. Uma metafísica concreta não pode deixar de lado esse fato, esse
simples fato, na medida em que esse fato é um valor, um grande valor ao qual
voltamos em nossos devaneios. O ser é imediatamente um valor. A vida começa
bem; começa fechada, protegida, agasalhada no seio da casa. (BACHELARD, 1978,
p. 201).
Observamos, segundo o autor, uma íntima relação de pertencimento e afetividade do homem
com a casa; além disso, Bachelard expressa certa “corporeidade da casa” como se a casa fosse
uma extensão do corpo humano, pois é na casa que temos as nossas primeiras experiências e
contato com o mundo. Seguindo no campo da afetividade, Bachelard é o primeiro autor a falar
de Topofilia e Topoanálise. Fruto de uma relação simbiótica entre espaço vivido, lugar e
afetividade, a topofilia ganhou maior destaque ao ser citada por Yi Fu-Tuan em obra
homônima (com relação às suas características, a topofilia será analisada com a devida
30
atenção em outro capítulo, juntamente com o conceito humanista de lugar.); já a Topoanálise
é caracterizada como
[...] o estudo psicológico sistemático dos lugares físicos de nossa vida íntima. No
teatro do passado que é a nossa memória, o cenário mantém os personagens em seu
papel dominante. Às vezes acreditamos conhecer-nos no tempo, ao passo que se
conhece apenas uma série de fixações nos espaços da estabilidade do ser, de um ser
que não quer passar no tempo, que no próprio passado, quando vai em busca do
tempo perdido, quer “suspender” o vôo do tempo. Em seus mil alvéolos, o espaço
retém o tempo comprimido. O espaço serve para isso. [...] Nessas condições, a
topoanálise tem a marca de uma topofilia. (BACHELARD, 1978, p. 202).
Um grande trunfo de Bachelard foi perceber como se dá a afetividade que o poeta possui com
seu espaço vivido, revelando que o
[...] poeta vai mais ao fundo, descobrindo com o espaço poético um espaço que não
nos encerra numa afetividade. Qualquer que seja a afetividade que dê cor a um
espaço, seja ela triste ou pesada, desde que seja expressa, poeticamente expressa, a
tristeza se tempera, o peso se alivia. O espaço poético, uma vez expresso, toma
valores de expansão. Pertence à fenomenologia
[...] O espaço aparece então ao
poeta como sujeito do verbo desenvolver-se, do verbo crescer. (BACHELARD
1978, p. 328).
Cabe destacar aqui a visão da Licenciada em Geografia Dircélia Maria Soares de Oliveira
(2011) que realizou uma análise do espaço poético na obra de Bachelard, revelando que
Numa perspectiva topofílica, os espaços analisados são a casa, o porão, o sótão, a
cabana, a gaveta, o cofre, o armário, o ninho, a concha, o canto, que revelam uma
fenomenologia do homem e sua relação com o mundo por meio da poesia que há
dentro do homem e à sua volta. Poesia profunda no sentido de relação metafísica e
psicológica. Poesia que pode e deve ser participada pelos seres humanos atentos,
sensíveis, imaginativos e abertos ao devaneio. (OLIVEIRA, 2011, p. 76).
Ao relacionar em sua obra a poesia, espaço vivido, imaginação, afetividade e outros
elementos humanistas-fenomenológicos, Bachelard torna-se não apenas um aporte teórico na
construção e desenvolvimento da Geopoética, mas um pilar importantíssimo no surgimento
deste novo ramo da Geografia Humanista.
A contribuição do geógrafo Eric Dardel (1899-1967), para a Geopoética reside,
principalmente, em sua obra O Homem e a Terra, de 1952. Dardel foi o pioneiro em analisar a
31
Geografia baseado na fenomenologia (Dardel foi bastante influenciado por Martin Heidegger
e Soren Kierkegaard), em que a “geo-grafia” representa uma grafia de símbolos e signos a
serem decifrados, e que “o conhecimento geográfico tem por objeto esclarecer esses signos,
isso que a Terra revela ao homem sobre sua condição humana e seu destino” (DARDEL,
2011, p. 2). Com toda essa base fenomenológica e geográfica, Dardel cria o conceito de
Geograficidade, que é um ponto-chave para compreendermos o mundo por meio da
Geopoética. Segundo Dardel a geograficidade é
[...] uma vontade intrépida de correr o mundo, de franquear os mares, de explorar os
continentes. Conhecer o desconhecido, atingir o inacessível, a inquietude geográfica
precede e sustenta a ciência objetiva. Amor ao solo natal, ou busca por novos
ambientes, uma relação concreta liga o homem à Terra, uma geograficidade
(géographicité) do homem como modo de sua existência e de seu destino. É dessa
primeira surpresa do homem frente à Terra e à intenção inicial da reflexão
geográfica sobre essa “descoberta” que se trata aqui, questionando a geografia na
perspectiva do próprio geógrafo ou, mais simplesmente, do homem interessado no
mundo circundante. (DARDEL, 2011, p. 1- 2, grifo do autor).
O geógrafo brasileiro W. Holzer (2001, p. 118) discute a geografia fenomenológica de Eric
Dardel e destaca que a geograficidade proposta por Dardel refere-se a uma relação concreta
do ser-no-mundo e “desse modo, quando nos referimos à geografia enquanto ciência
essencial, não seria a espacialidade o nosso objeto de estudo, mas a geograficidade”. Outro
grande nome da geografia humanista brasileira, Eduardo Marandola Jr., complementa que
para Dardel, a geograficidade
[...] significa o laço primordial de cumplicidade que, em diferentes escalas,
estabelecemos com nossa própria espacialidade, constituindo laços de diferentes
naturezas que permitem ao homem ser. É a característica geográfica própria da
existência, e por isso é inalienável de qualquer manifestação artística [...]
(MARANDOLA JR., 2010, p. 10).
Como já vimos, Dardel foi fundamental para o desenvolvimento da geografia humanista e
consequentemente para a Geopoética, por abordar a paisagem geográfica sob um viés
fenomenológico (propondo a apreensão da paisagem e do espaço vivido pelos sentidos) e por
adotar a geograficidade como uma nova forma de entender a relação do homem no mundo.
32
Se a geografia oferece à imaginação e à sensibilidade, até em seus vôos mais livres,
o socorro de suas evocações terrestres, carregadas de valores terrestres, marinhos ou
atmosféricos, também, sempre espontaneamente, a experiência geográfica, tão
profunda e tão simples, convida o homem a dar à realidade geográfica um tipo de
animação e de fisionomia em que ele revê sua experiência humana, interior ou
social. (DARDEL, 2011, p. 6).
Podemos concluir que em “O homem e a Terra” observamos no discurso de Dardel, uma
forma geopoética de descrição da paisagem, recheada de poesia, percepção, imaginação,
simbolismos e signos, por exemplo.
A água não é somente o espelho com o qual a Terra se estende ao céu, às árvores, às
montanhas. Ela mistura as imagens que se levantam das profundezas e aquelas que
se referem ao céu ou à costa. A intimidade da substância líquida suaviza o dourado
frio do reflexo, e cria um mundo de formas moventes que parecem viver sob o olhar.
(DARDEL, 2011, p. 37).
A busca por uma conceituação da Geopoética não é um trabalho simples, porém buscaremos
aqui relacionar algumas características comuns dessa nova abordagem geográfica e para isso
citaremos alguns autores que se dedicam ao estudo da Geopoética, entre eles, “o Pai da
Geopoética” Kenneth White, poeta e escritor, nascido em 1936, em Glasgow, na Escócia.
White é o criador do termo Geopoetics, que em 1979 começa a ser usado por dois motivos
On the one hand, it was becoming more and more obvious that the earth (the
biosphere) was in danger and that ways, both deep and efficient, would have to be
worked out in order to protect it. On the other hand, I had always been of the
persuasion that the richest poetics came from contact with the earth, from a plunge
into biospheric space, from an attempt to read the lines of the world. 1
White cria em 1989 o The International Institute of Geopoetics, com objetivo de fomentar e
disseminar a pesquisa em geopoética. No texto inaugural do Instituto, o autor nos mostra
algumas preocupações e elementos que a geopoética aborda, nos lembrando que a geopoética
“is not one more contribution to the cultural variety show, nor is it a literary school, nor is it
concerned with poetry considered as an art of intimacy. It is a major movement involving the
1
WHITE, Kenneth : What is Geopoetics? Inaugural Text : 1989 - Disponível
www.geopoetics.org.uk/welcome/what-is-geopoetics >. Acesso em: 27 out. 2014.)
em:<https://
33
very foundations of human life on earth.”2. Podemos observar uma preocupação do autor em
não delimitar ou restringir a atuação e abordagens em geopoética, como escreve White: “In
the fundamental geopoetic field come together poets and thinkers of all times and of all
countries. […]but geopoetics is not the exclusive domain of poets and thinkers”3. O autor
termina o texto inaugural esclarecendo que a Geopoética
[…] provides not only a place, and this is proving more and more necessary, where
poetry, thought and science can come together, in a climate of reciprocal inspiration,
but a place where all kinds of specific disciplines can converge, once they are ready
to leave over-restricted frameworks and enter into global (cosmological,
cosmopoetic) space. One question is paramount: how is it with life on earth, how is
it with the world? A whole network can come into being, a network of energy,
desire, competence and intelligence.4
A partir da visão de White, percebemos alguns elementos iniciais que são tratados no estudo
da geopoética, o principal é: a manifestação poética da relação do indivíduo com o espaço
vivido. Podemos observar elementos fenomenológicos no discurso de White. Para sustentar
essa ideia e compreendermos melhor a geopoética proposta por White, convém
mencionarmos outro artigo do autor: Elements of geopoetics (1992), em que White cita
Bachelard e Heiddeger, como no trecho abaixo:
It might be said that for Heidegger, ancient Greek is a pre-text that permits him to
get closer to a primal world-text, but his obsessive archaeology (his etymologising),
and his obsession of a “poem of being'” irritates more mobile minds, such as that of
Gaston Bachelard: “Metaphysics”, he writes in The Poetics of Space, “has nothing to
gain from pouring its thought into fossile linguistic moulds”. [...] If Heidegger’s
studies concerning the poem of being can appear obsessional and logomachic,
Bachelard’s anthological commentaries can seem altogether too facile. To find a
satisfying poetry and poetics, it looks as if we might go beyond the purist radicality
of the one and the poetical complacency of the other. (WHITE, 1992, p. 171).
White (1992) descreve de maneira detalhada como iniciou sua jornada geopoética a partir da
associação entre a poesia e elementos geográficos, observados pelo autor em obras literárias;
é importante salientar que o autor já observa a criação de uma nova abordagem geográfica,
como nota-se no trecho abaixo:
2
ibidem
Ibidem
4
Ibidem
3
34
Around the end of 1978,1 began talking about “geopoetics”. It seemed a good word
for what, vaguely enough at the beginning, I felt I was “into” and “after”. It has
something to do with geography, certainly -maybe a new type of geography. That I'd
felt when, in the Ardeche, I’d read Henri Pourrat’s Vent de Mars (The Wind of
March) which contains this fine page on geography: “Geography, as we now see it,
draws itself up to its full height in the sun, with the wind blowing though its hair, a
little farther forward than geology and history. It is geology and history, it's even a
kind of novel, but in a more serious way. It is the great investigation of man in
action, action allied to the Creation, from the grain of wheat to the amazing nebula”.
It had / geography behind it, as well as cosmology and philosophy such as I've
outlined in the previous pages. But while the concept was growing in my mind, like
a coral reef, I was also looking for actual writing. Working at it mainly in my own
writing, but also searching for hints, directions, maybe at times corroborations in
other writers scattered over space and time. Of that quotation from Henri Pourrat, I
said it was a fine page. So it is. It's in the right space, if I may say - but it's all too
metaphorical, anthropocentric, humanist, theological. I wanted something else.
(WHITE, 1992, p. 172-173, grifo do autor).
Ao longo do artigo, White vai elencando vários autores que possuem em suas obras elementos
geopoéticos belíssimos, além de analisar suas viagens pelo mundo sob uma ótica geopoética
revelando assim que a percepção do espaço vivido é fundamental numa perspectiva
geopoética.
A geopoética proposta por White começou a repercutir na academia a partir da década de
1980, sobretudo, com o movimento de renovação da Geografia Cultural (prova disso é a
fundação do já mencionado The International Institute of Geopoetics em 1989). Podemos
dizer que na década de 1990 vários geógrafos começaram a produzir artigos e análises
geopoéticas (alguns já o faziam mesmo sem perceber), em sua esmagadora maioria, sobre
obras literárias. No Brasil, os estudos e análises em geopoética estão começando a ganhar voz
e vez na academia, sobretudo por dois importantes nomes: a Profa. Dra. Lúcia Helena Batista
Gratão e o Prof Dr. Eduardo Marandola Jr.. Não por acaso, esses dois grandes nomes da
geopoética brasileira organizaram o livro “Geografia e Literatura – Ensaios sobre
geograficidade, poética e imaginação”, de 2010. No capítulo que abre o livro, Gratão e
Marandola Jr. justificam os motivos pelos quais o estudo da literatura em Geografia se faz
35
necessário, relacionando a importância do humanismo e a percepção, herdados da
fenomenologia, em obras literárias.
Na busca por elementos de geopoética explorados por autores brasileiros, encontramos as
concepções de geopoética das autoras Lúcia Helena Gratão e Salete Kozel. Gratão faz uma
leitura de geopoética à luz de Gaston Bachelard, ou seja, pela via da fenomenologia da
imaginação poética. Para a autora a geopoética é
[...] esse vínculo afetivo ou relacionamento primordial Homem e Terra como base
de existência; relação seminal. Geopoética, porque é uma geografia do interior; que
brota de dentro do ser; o lado humano de criação, de arte, do sentimento além do
pensamento; das demarcações da liberdade; do ser; inserção do homem no mundo.
Uma geografia concebida pelos caminhos fenomenológicos. Uma geografia que alia
o rigor da ciência à observação pessoal e poética. (GRATÃO, 2006, p. 179).
A Profa. Dra. da Universidade Federal do Paraná, Salete Kozel, destaca em seus estudos as
relações que os seres humanos estabelecem com o mundo através de sua cultura, sentimentos
e valores. Kozel nos propõe uma rica análise em geopoética, revelada por sua influência
humanista-fenomenológica. Para a autora, a geopoética não se restringe apenas às análises
literárias, pois
Refletir o mundo pela geopoética propõe o resgate da sua inteireza por meio de
linguagens, expressas de formas diferenciadas e sensíveis como as artes visuais, a
música, odores, expressão oral e escrita em combinação e sintonia [...] Em
geopoética a poesia, o pensamento e a ciência podem convergir em reciprocidade
para romper com as fragilidades inerentes à fragmentação e dualidade do
conhecimento vislumbrando o “todo”; a “inteireza” do ser humano no mundo
buscando refletir sobre a vida na terra e o papel do ser humano nesse contexto.
(KOZEL; TEIXEIRA, 2012, p. 66).
Através da visão dos autores clássicos (Dardel, Bachelard e Kenneth White) e dessas duas
grandes autoras nacionais, ousamos concluir que a Geopoética é um subsetor da Geografia
Humanista, que se dedica a avaliar o espaço geográfico a partir de expressões artísticas como
a literatura, poesia e música.
Um ponto-chave deste trabalho é o fato de que os estudos e análises em geopoética se
debruçaram até agora maciçamente sobre a literatura, como o comprova o livro “Geografia e
36
Literatura – Ensaios sobre geograficidade, poética e imaginação” (2010), que é composto
por capítulos em que os autores analisam a geopoética contida em obras literárias.
A ousada proposta desta Monografia difere-se da maioria dos trabalhos, por buscar analisar a
geopoética na perspectiva da expressão artística da música; e, mais precisamente, por realizar
um estudo geopoético focado nas letras do grupo Chico Science e Nação Zumbi – em que
procuramos identificar como o conceito humanista de “lugar” está imerso nas letras da banda.
37
3. O CONCEITO HUMANISTA DE LUGAR
Vimos ao longo das correntes do pensamento geográfico que vários conceitos foram
abordados, de diferentes formas e em diferentes momentos históricos. O conceito de Lugar é
um deles, pois antes era tido apenas como sinônimo de localidade em determinado espaço.
Com o surgimento da Geografia Humanista houve uma recuperação, com ajuda do aporte da
filosofia fenomenológica, dos conceitos de Paisagem e Lugar (este último, tornando-se
conceito-chave da Geografia Humanista), que foram abordados sob uma ótica humanista e
subjetiva nunca antes observada na abordagem geográfica. Elementos como “corporeidade”,
“afetividade”, “espaço vivido”, “experiências sensoriais” e “imagéticas”, passam a fazer parte
da análise geográfica, incluindo análises sobre o conceito de Lugar.
Analisaremos neste capítulo como o conceito de Lugar foi estudado e proposto na Geografia
Humanista, bem como suas principais características. Para realizar esta análise, discutiremos
as obras de autores que podem ser considerados “clássicos” da Geografia Humanista, textos
de seus principais comentadores, e como o conceito humanista de Lugar está aplicado na
bibliografia humanista da Geografia, buscando assim realizar uma abordagem abrangente
sobre a proposição do conceito de Lugar nesta corrente do pensamento geográfico.
Na primeira parte, comentaremos a obra de dois autores clássicos (Yi-Fu Tuan e Edward
Relph) e textos de três principais comentadores brasileiros (Lívia de Oliveira, Werther Holzer
e Eduardo Marandola Jr.). Na segunda parte, analisaremos como o conceito de Lugar está
dissolvido em duas obras da Geografia Humanista Brasileira.
3.1 O conceito de Lugar na obra de Yi-Fu Tuan – Topofilia e Topofobia
Iniciamos no capítulo anterior, uma breve abordagem sobre a análise que Yi-Fu Tuan (1930- )
realiza sobre o conceito de Lugar, em que propõe que este é construído a partir das
experiências que cada indivíduo tem do (no) mundo, e que essa experiência passa por relações
de simbolismo, corporeidade e afetividade dos indivíduos com os lugares. Em sua obra
Espaço e Lugar: A Perspectiva da Experiência (1977), Tuan afirma que a intimidade que
temos com determinado espaço por meio da experiência, torna-o um lugar; não é um processo
38
de grande complexidade, pois o espaço que vivemos cotidianamente é o nosso lugar. O
professor e pesquisador Werther Holzer destaca que Tuan
[...] caracterizava o lugar a partir da experiência. O lugar era avaliado como lar, em
suas diversas escalas: o próprio lar, a vizinhança, a cidade, a região (a qual atribuía
características semelhantes à da vizinhança), e ao estado-nação. Discutia também o
papel da arte, da educação e da política na formação da experiência que toma os
lugares visíveis. (HOLZER, 2003, p. 121).
Lívia de Oliveira (1948-) é uma grande estudiosa do trabalho de Tuan. Traduziu o livro
Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente (originalmente de
1974) para o português em 1980; e, no ano de 1983, a obra Espaço e Lugar (originalmente de
1977). Com embasamento em Tuan propõe que além de conhecermos o nosso lugar,
[...] cada um tem seu lugar. Assim sendo, onde vivemos, nossa residência, nosso
bairro inteiro, se tornam um lugar para nós. A própria pátria, vista como nosso lar,
afetivamente se torna um lugar. [...] o espaço é mais abstrato e o lugar mais
concreto. A valorização do lugar provém de sua concretude; embora seja passível de
ser engendrado ou conduzido de um lado para o outro, é um objeto no qual se pode
habitar e desenvolver sentimentos e emoções. Tal realidade concreta é atingida por
meio de todos os nossos sentidos, com todas as nossas experiências, tanto mediante
a imaginação quanto simbolicamente. (OLIVEIRA, 2012, p. 11-12).
Percebemos que a autora apreende fielmente o discurso de Tuan sobre o Lugar em suas
dimensões afetivas e simbólicas. Lívia de Oliveira (2012, p. 12) discorre que “conhecer um
lugar é desenvolver um sentimento topofílico ou topofóbico. Não importa se é um local
natural ou construído, a pessoa se liga ao lugar quando este adquire um significado mais
profundo”. A partir deste trecho, uma compreensão sobre o Lugar em Tuan pode ser feita: ela
se daria a partir dos conceitos de Topofilia e Topofobia. Tuan em sua principal obra,
Topofilia..., nos apresenta o conceito deste neologismo
A palavra “topofilia” [...] pode ser definida em sentido amplo, incluindo todos os
laços afetivos dos seres humanos com o meio ambiente material. Estes diferem
profundamente em intensidade, sutileza e modo de expressão. A resposta ao meio
39
ambiente pode ser basicamente estética: em seguida, pode variar do efêmero prazer
que se tem de uma vista, até a sensação de beleza, igualmente fugaz, mas muito mais
intensa, que é subitamente revelada. A resposta pode ser tátil: o deleite ao sentir o ar,
água, terra. Mais permanentes e mais difíceis de expressar, são os sentimentos que
temos para com um lugar, por ser o lar, o locus de reminiscências e o meio de se
ganhar a vida.
A topofilia não é a emoção humana mais forte. Quando é irresistível, podemos estar
certos de que o lugar ou meio ambiente é o veículo de acontecimentos
emocionalmente fortes ou é percebido como um símbolo. (TUAN, 2012, p. 135-136,
grifo do autor).
Entendemos em Tuan que o termo Topofilia associa afetividade e lugar, relação simbiótica de
mútua existência entre a construção do lugar enquanto fruto de experiências e vivências. Tuan
extrapola as fronteiras do meio ambiente natural e relata que o primeiro lugar que
experimentamos e vivemos é o corpo dos nossos pais. As relações topofílicas são, então,
construídas e vividas por nós durante toda a vida: desde o primeiro contato com os pais até a
fase idosa – principalmente por meio de lembranças agradáveis e saudosistas. O lugar íntimo
é responsável pelos sentimentos topofílicos. Para Tuan
Os lugares íntimos são tantos quantos as ocasiões em que as pessoas
verdadeiramente estabelecem contato. Como são estes lugares? São transitórios e
pessoais. Podem ficar gravados no mais profundo da memória e, cada vez que são
lembrados, produzem intensa satisfação, mas não são guardados como instantâneos
no álbum de família nem percebidos como símbolos comuns: ladeira, cadeira, cama,
sala-de-estar, que permitem explicações detalhadas. Não se podem desenhar nem
planejar deliberadamente, com a mínima garantia de êxito, as condições de troca
genuína de intimidade. (TUAN, 1983, p. 156).
Outro termo que merece ser abordado (mesmo que de forma superficial) é a Topofobia. É um
conceito oposto a Topofilia, e vem retratar aqueles sentimentos e experiências negativas em
relação a determinado lugar; não há uma desconstrução do lugar, mas diz respeito a vivências
desagradáveis experimentadas em algum lugar. Em sua obra Paisagens do medo Tuan (2005,
p. 7) nos mostra vários exemplos de relações topofóbicas e que se pararmos para refletir quais
são as origens do nosso medo
40
[...] certamente inúmeras imagens acudirão à nossa mente: medo do escuro e a
sensação de abandono quando criança; ansiedade em lugares desconhecidos ou em
reuniões sociais; pavor dos mortos e do sobrenatural; medo das doenças, guerras e
catástrofes naturais; desconforto ao ver hospitais e prisões; medo de assaltantes em
ruas desertas e em certos bairros [...]
Percebemos que Tuan estudou a fundo a temática do Lugar e sua contribuição para a ciência
geográfica é indiscutível. Devemos ressaltar que o estudo do Lugar proposto por Tuan através
das relações de topofilia e topofobia é um importante subsídio para que se alcance uma (das
várias possíveis) compreensão do Lugar na ótica da Geografia Humanista.
3.2 Edward Relph – O Lugar como Fenômeno de Experiência Vivida
Edward Relph (1944- ) é um expoente da Geografia Humanista e seus estudos sobre o
conceito de Lugar contribuíram para colocar o conceito como o mais abordado em análises de
Geografia Humanista. Em sua famosa obra, Place and placelessness, publicada em 1976,
Relph destaca que o Lugar é entendido como um fenômeno apreendido através de
experiências vividas, Relph sugere que a essência e a identidade do lugar são as chaves para a
compreensão da construção dos lugares. O geógrafo brasileiro Werther Holzer comentou que
em Relph
[...] a essência do lugar é a de ser o centro das ações e das intenções, onde são
experimentados os eventos mais significativos de nossa existência. [...] Lugares são
os contextos ou panos de fundo para a intencionalidade definir objetos ou eventos,
ou seja, eles podem ser objetos da intenção em seu sentido primordial [...], pois toda
consciência não é meramente consciência de algo, mas de algo em seu lugar, e [...]
esses lugares são definidos geralmente em termos dos objetos e de seus significados.
Como objetos, no seu verdadeiro sentido, lugares são essencialmente focos de
intenção, que têm usualmente uma localização fixa e traços que persistem em uma
forma identificável. (RELPH apud HOLZER, 1999, p. 72).
41
Assim, percebemos que a análise de Lugar proposta por Relph parte das relações de
experiência num espaço vivido dotado de intencionalidade. Para Relph (1976) os lugares
possuem várias identidades, sendo que a identidade refere-se ao espírito, ao sentido, ao gênio
desse lugar, ela provém das intenções e experiências que resultam da familiaridade. As
identidades “[...] não podem ser entendidas simplesmente em termos de padrões físicos e de
traços observáveis, nem só como produtos de atitudes, mas como uma condição indissociável
destes.” (RELPH apud HOLZER, 1999, p. 72).
Em seu artigo Reflexões sobre a emergência, aspectos e essência de Lugar – traduzido por
Marandola Jr. (2012, p. 22) –, Relph discorre que o Lugar não é apenas “aquilo que possui
raízes, conhecer e ser conhecido no bairro; não é apenas a distinção e apreciação de
fragmentos de Geografia”. Podemos concluir, segundo o próprio autor, que o Lugar é
construído através da nossa existência; não é estático, mas é fruto das experiências vividas
pelos seres humanos. Relph descreve que o Lugar possui vários aspectos, mas destaca que o
mais importante é abordar o Lugar de forma crítica, pois “é igualmente importante
compreender que é por meio de lugares que indivíduos e sociedades se relacionam com o
mundo, e que essa relação tem potencial para ser ao mesmo tempo profundamente
responsável e transformadora”. (RELPH, 2012, p. 27).
3.3 Eduardo Marandola Jr. – O Lugar no mundo contemporâneo
O pesquisador Eduardo Marandola Jr. é um atual e ativo representante brasileiro da Geografia
Humanista. Organizador dos livros Qual o Espaço do Lugar (2012) e Geografia e Literatura
(2010), possui trabalhos em diferentes áreas da Geografia Humanista. Em seu artigo Lugar
enquanto circunstancialidade (2012), o autor nos apresenta uma abordagem sobre como o
conceito de Lugar está inserido no mundo contemporâneo. Primeiramente, para Marandola Jr.
não devemos analisar o Lugar como um conceito abstrato e científico, pois
[...] o lugar se refere à mundanidade de nosso cotidiano, e por isso ele é fundamental
quando pensamos o ser-no-mundo e a existência. Entendido em sua dimensão
ontológica, supera os diferentes contextos históricos, transformando-se à medida que
se mantém em dia com cada temporalidade. Referindo-se à própria forma de ser-eestar-no-mundo, lugar é inalienável e, portanto, permanece como fundante das
42
transformações socioespaciais. Longe de ser estático, ele é dinâmico, pois
corresponde à própria essência do ser, que é igualmente viva. (MARANDOLA JR.,
2012, p. 230).
Podemos perceber que para o autor, o conceito de Lugar parte da nossa vivência
experimentada e aplicada ao nosso cotidiano social, e é através do Lugar que nos inserimos no
mundo tal como ele é. Para fortalecer seu argumento, Marandola Jr. baseia-se em Martin
Heidegger (1889-1976), e em Antony Giddens (1938-), que faz uma diferenciação entre local
e lugar.
Local é entendido como uma região física que limita a ação (em contraposição ao
global), onde a proximidade se impõe e mecanismos de poder possuem processos e
gêneses claramente identificadas, permitindo a concentração da ação. Já lugar está
associado a um âmbito mais visceral de relação simbólica entre as pessoas, a cultura
e os grupos sociais, na esteira dos próprios geógrafos humanistas, como Tuan e
Relph [...] (MARANDOLA JR., 2012, p. 238).
Ao longo do artigo, Marandola Jr. nos mostra que o lugar continua a operar como centro
cognitivo, afetivo e lógico do nosso mundo vivido, para ele a constituição do lugar e do eu
[...] são indissociáveis, pois têm os mesmos processos constitutivos, operando nos
dois
pólos:
eu-lugar.
Ambos
compõem
a
centralidade
egocêntrica
da
circunstancialidade do ser-no-mundo, e por isso as análises sobre as transformações
na experiência contemporânea se referem também ao lugar. Essse lugar pode ser um
conjunto, pode ser uma cidade, pode ser um quarto. (MARANDOLA JR., 2012, p.
244).
O autor termina o artigo enaltecendo a importância de estudar o conceito de Lugar sob uma
perspectiva contemporânea, ressaltando que o Lugar, mesmo possuindo vários sentidos e
espaços, ainda é um conceito que nos ajuda a enfrentar os desafios cotidianos, pois é no Lugar
que somos atingidos pelos problemas, ao mesmo tempo em que podemos buscar forças para
superá-los. Marandola destaca que o Lugar é
43
[...] forte, necessário, imprescindível para pensar uma experiência mais autônoma e
menos autômata no mundo contemporâneo. Se circunstancialidade é de fato uma
abertura para se compreender o sentido de lugar, então é nesta situação atual, nesta
possibilidade, que o lugar deve ser entendido: no centro do mundo circundante da
cotidianidade, enquanto fundamento espacial da existência. (MARANDOLA JR.,
2012, p. 244, grifo do autor).
3.4 O conceito de Lugar aplicado em obras brasileiras da Geografia Humanista
Abordaremos aqui, como o conceito de Lugar está diluído em dois textos da Geografia
Humanista brasileira, são eles: O Triunfo do Lugar sobre o Espaço e Corporeidade e Lugar,
ambos são capítulos e estão incluídos no livro Qual o Espaço do Lugar? (2012).
No primeiro texto, de autoria de João Baptista Ferreira de Mello, já no início é revelado que o
capítulo percorrerá caminhos que passarão pelo cotidiano, arte, lazer, religiosidade e
afetividade, numa busca pelo conceito de Lugar, destacando que “as rotas, a casa, o bairro,
bem como seus componentes mais diversos, como as pedras do caminho, integram a
expressão e a alma dos lugares. Estes, quando efêmeros, podem igualmente se perpetuar no
íntimo das pessoas.” (MELLO, 2012, p. 40).
Na primeira parte deste capítulo, o autor nos revela que de acordo com nossas experiências, os
Lugares podem ser transitórios ou eternos; e, diante disso, nos apresenta como o Palco (arena
de realizações artísticas) pode configurar-se como um Lugar, ao destacar que
O artista sente-se à vontade no palco, ancoradouro e arena de labor, pleno de
virtualidade, um lugar interiorizado em seu ser, não importando sua dimensão – seja
um micropalco ou um gigantesco tablado – ou a localização geográfica. O palco
como lugar, reveste-se de uma transitoriedade inerente à sua própria natureza.
Dissipada a sua função de entretenimento, cultura e reflexão, e despovoado de
assistência, torna-se um espaço desolado, esquecido em sua descartabilidade ou
contendo um lugar imorredouro, carregado de lembranças, regozijo e contemplação.
Alçado à categoria de lugar, o palco – transitório ou eterno – necessita do artista e da
plateia à primeira vista, o artista é o centro das atenções. No entanto, sem a plateia, o
palco não se constitui em lugar [...] (MELLO, 2012, p. 43-44).
44
Percebemos que o Lugar não existe por si só, isolado, pois é fruto de relações construídas,
experimentadas e vividas. O autor nos mostra que sem a integração entre palco, artista e
plateia, o palco se resumiria a uma mera espacialidade.
Ao longo do capítulo o autor vai exaltando a importância e constituição do Lugar e faz um
importante atento ao destacar que “O lugar, erigido no íntimo do indivíduo e dos grupos
sociais, independentemente da conectividade, não pode ser medido em milhas, tempo de
viagem ou custo, mas em termo de importância, como centro de significação” (MELLO,
2012, p. 55). Com isso, o autor nos apresenta a temática dos lugares de turismo e viagens, que
são analisados como momentos, permeados de laços topofílicos, de fuga da rotina de trabalho,
onde atletas, por exemplo, ao viverem essas experiências, percebem o lugar como “uma arena
de liberdade, portadora de diversas formas de escapismo” (p. 57). A imaginação também faz
parte da construção do Lugar, pois ela é
[...] um veículo de liberdade e condutora de escapadas temporárias, em meio à
desatenção, ou sonhadoras, como voar ou ancorar em portos seguros. Quando
rodeado de problemas ou em instantes felizes, o indivíduo espairece, caminhando
por outros mundos, com o próprio corpo, ou por intermédio de novelas, livros,
filmes, canções, jogos etc. Na realidade, o pensamento não obedece a fronteiras.
Consequentemente, as distâncias não são obstáculos. Assim, do seu lugar vivido, o
ser humano tem a capacidade de transitar em lapsos de segundo e de viver
simultaneamente em vários mundos/lugares. (MELLO, 2012, p. 58).
A memória possui um importante papel na construção do Lugar, pois através da memória
eternizamos os lugares que fizeram (e fazem) parte da nossa história. Sejam memórias
individuais ou coletivas, ambas nos ajudam a reconstruir e reviver vários lugares que são
nossos.
O outro texto é Corporeidade e Lugar, do autor Eguimar Felício Chaveiro. Esse capítulo é
relevante neste capítulo por abordar de maneira mais profunda, a relação entre Corpo e Lugar.
Numa primeira tentativa de definição, o autor propõe que o corpo
[...] é a propriedade pela qual o sujeito pode fundar sua extrema singularidade,
registrar na carne a sua história na linha de contato e de intersecção com a história
45
do mundo e dos lugares, mote para experimentar a si mesmo, peça de sentido para
colher a propriedade das coisas e para afetá-las com a percepção e com a ação,
recursos de estranhamento no tempo e de realização temporal no encontro com o
outro, figura de interferência, de gozo – e de descoberta. (CHAVEIRO, 2012, p.
250).
Podemos inferir que através do nosso corpo, experimentamos, agimos e vivemos nossas vidas
ao longo de vários lugares. O autor explica que “os lugares são arenas vitais para – e pelaação das corporeidades, por onde o mundo torna factível, encarnado, real e possível”
(CHAVEIRO, 2012, p. 251). Percebemos uma intrínseca relação entre corpo e lugar, e já não
podemos pensar na existência do corpo sem um lugar, pois a nossa humanidade é vivida e
exercida através da corporeidade, que nos torna um imenso acervo de histórias íntimas ligadas
às histórias sociais. O autor analisa que o nosso corpo pode ser chamado de Guardador de
Lugares, através dos
[...] contatos com o mundo pela via da alimentação, da moradia, do trabalho, das
ligações simbólicas com a educação e com o afeto dos pais, do desenvolvimento da
sexualidade, das experiências de contato, dos perigos causados pelas brincadeiras e
do lazer, dos sentimentos interditados ou os expressos e repulsados [...]
(CHAVEIRO, 2012, p. 253).
O autor encerra o capítulo nos mostrando que somente através da percepção nós apreendemos
os lugares e o damos sentido. Um fato que devemos destacar é que: corpo e lugar possuem
relações permeadas de subjetividades que não estão
[...] isentas de controle ou conflitos, tais como os lugares por onde se caminhou na
vida de acordo com as trajetórias históricas de um indivíduo ou de um grupo;
lugares simbólicos como as catedrais, teatros, cinemas etc. Os lugares aqui não são
concebidos, mas vividos pela experiência do corpo. (CHAVEIRO, 2012, p. 268).
Para concluir, podemos perceber que em obras geográficas de cunho humanista, o conceito de
Lugar está dissolvido em simbolismos, afetividades, corporeidade e relações subjetivas. O
Lugar passou de mera localidade para um conceito-chave, carregado de significados que
revelam como o ser humano exerce (através do corpo) a sua humanidade na sociedade.
46
Trabalhar com o conceito de Lugar é revisitar nossas memórias, voltar na infância, lembrar de
momentos felizes, reviver alguns medos, tentar sentir novamente sensações que foram
experimentadas pelo nosso corpo em diferentes momentos da nossa vida. Estudar o Lugar nos
possibilita compreender nossa sociedade, seus problemas, nossa realidade e nossos próprios
atos.
47
4. A CENA MANGUE
Nesta Monografia, entendemos que diversas letras do grupo musical Chico Science & Nação
Zumbi, foram frutos das relações corpóreas, afetivas e simbólicas que os integrantes viveram
e construíram num determinado Lugar (no caso, a cidade de Recife/PE), e num determinado
momento histórico (últimas décadas do século XX). Para compreendermos a temática das
letras do grupo musical, seus simbolismos e significados, temos antes que analisar como
ocorreu o surgimento da Cena Cultural Mangue, quais eram suas principais características, as
contribuições literárias, e em qual contexto histórico, econômico, social e cultural os jovens
de Recife estavam inseridos quando eclodiu o surgimento do Manguebeat; tudo isso buscando
entender qual era o Lugar vivido e retratado por Chico Science em suas canções.
4.1 Recife a quarta pior cidade do mundo!
A cidade de Recife, capital do estado de Pernambuco, foi fundada no século XVI pelos
portugueses e começou a se desenvolver a partir da monocultura da cana de açúcar ainda no
sistema de capitanias hereditárias. Sua urbanização ocorreu sobre grandes áreas de manguezal
onde várias partes da cidade eram ligadas por pontes. Enquanto o preço internacional do
açúcar se mantinha alto, a cidade de Recife garantia seu status econômico, mas a partir das
primeiras décadas do século XX, observou-se a queda internacional do preço do açúcar e
consequentemente a decadência econômica e social da chamada “Capital do Nordeste”. Com
o golpe militar de 1964 essa decadência econômica aumentou e refletiu diretamente nos
investimentos na área de cultura, que além de ocorrer uma diminuição eram restritos a
práticas folclóricas e regionais como o Movimento Armorial, que surgiu em 1970, com
Ariano Suassuna, e propunha
[...] uma retomada, no âmbito erudito, de elementos artístico-culturais (musicais,
visuais, orais, plásticos e simbólicos) mantidos quase inertes no sertão árido do
Nordeste, ao sabor da história, provenientes da Península Ibérica, com as influências
cristãs e mouras, e das culturas indígenas. [...] A proposta geral dos armoriais era a
de produzir uma arte brasileira fundamentada nas raízes culturais populares e
sertanejas que fizesse frente ao constante apelo de compositores e artistas às
influências estrangeiras tidas como obstáculos à construção de uma identidade para
a arte nacional. (VARGAS, 2007, p. 38).
48
Houve uma relação explícita observada entre a arte nacionalista proposta pelos armoriais e as
políticas culturais do regime militar, ambas buscando a preservação cultural brasileira de
estrangeirismos.
Na década de 1980 crescia em Recife (e também na cidade vizinha de Olinda) o número de
jovens músicos que tocavam música popular urbana (alguns, inclusive, misturavam
influências regionais e contemporâneas em sua sonoridade) e buscavam alcançar algum
espaço para divulgação e apresentação, mas esbarravam na posição do governo
pernambucano, que manteve o apoio intenso às práticas culturais folclóricas e regionais.
Diante dessa realidade, no fim da década de 1980 houve um grande aumento no número de
jovens insatisfeitos não só com a cultura de Pernambuco, mas com a situação socioeconômica
da cidade de Recife, que, de acordo com pesquisa do Institut Population Crisis Commitee, de
Washington (conforme publicado em 26 de novembro de 1990, no Jornal do Commercio, de
Pernambuco), foi considerada a quarta pior cidade do mundo para se viver na década de 1980,
apresentando a maior taxa de desemprego do país naquele ano, e mais da metade de sua
população vivendo em favelas pelos mangues recifenses.
Percebemos o caos que era Recife no fim da década de 1980 através do depoimento de um
dos mentores da Cena Mangue, Renato Lins.
Eu acho que, para entender o Mangue, é preciso entender o que era o Recife nos
anos oitenta. Porque ao contrário do Rio, de Brasília e de São Paulo, que são cidades
grandes, aqui, aquela movimentação do rock brasileiro não frutificou. Então,
(Recife) passou os anos oitenta inteiros mergulhados na pasmaceira. Não acontecia
nada na cidade. Mas não acontecia nada no sentido de não haver nenhuma festa
legal, pelo menos na opinião da gente. Raramente uma banda de rock aparecia na
cidade. E isso era reflexo de uma estagnação cultural muito profunda e que, claro,
incomodava muito a gente. E a maior parte das pesso1as que se envolveram com o
Manguebeat, no início, eram pessoas que não tinham grana pra sair da cidade, pra
migrar pra outra cidade. Ou não tinham grana pra migrar ou não era tão interessante
migrar pra São Paulo. Ou porque eram preguiçosos, sei lá. Por vários motivos, todo
mundo ficou aqui no Recife. Então quando chegou no final dos anos oitenta, início
49
dos anos noventa, realmente era uma situação bastante sufocante. (MATOS, 2008, p.
20, grifo do autor).
Fred Zero Quatro, jornalista, líder da banda Mundo Livre S/A e um dos principais
idealizadores da Cena Mangue ao lado de Chico Science, era totalmente contrário à falta de
oportunidades que os novos artistas recifenses enfrentavam devido ao monopólio cultural que
ocorria em Recife. Fred explica que
[...] há no Recife uma hegemonia de certa estética regionalista, folclórica,
tradicionalista, que é totalmente sufocante. Os órgãos públicos, os canais que
poderiam fomentar um certo renascimento cultural, uma vez que a economia estava
totalmente destruída, estavam e estão todos mergulhados no regionalismo oficial,
que tem um braço acadêmico e erudito, o Movimento Armorial, e uma vertente mais
folclórica, que eu costumo chamar de macumba para turista. A política cultural
dominante em Recife sempre foi essa, de folclorizar, de estagnar ou então de cercar
pelo erudito, como faz o Movimento Armorial. Ele se julga o proprietário da cultura
popular regional. (MATOS, 2008, p. 60).
Observamos que no fim da década de 1980 a situação em Recife não era nada boa, tanto
economicamente quanto culturalmente, pois vários artistas surgiam e continuavam sem apoio
e locais para divulgar sua arte, uma revolução era necessária, alguém devia iniciar uma
mudança da “monocultura Armorial”.
4.2 Chico Science e o início da Cena Mangue
Francisco de Assis França (1966-1997) nasceu em Olinda numa família de classe média
baixa. Seu pai chegou a ser vereador de Olinda e sua mãe era dona de casa. Ganhou de um
amigo o apelido de Chico Science e utilizou o pseudônimo como nome artístico. Passou sua
infância e boa parte da adolescência catando caranguejos nos mangues próximos a sua casa e
com o dinheiro ia aos bailes funks e comprava discos de Black music. Foi nessa época que
Chico Science começou a se envolver com música: dançando com os amigos em grupos de
break dance e mais tarde formando duas bandas com os amigos de vários anos – Orla Orbe
(durou pouco tempo) e Loustal, já na cidade de Recife. A banda Loustal era formada por
Chico Science e alguns amigos de vários anos (que futuramente viriam a compor a Nação
50
Zumbi), o som da banda era experimental e bem próximo ao rock, mas os membros da banda
eram influenciados por distintos gêneros musicais: música negra americana – funk e soul
music, rap, rock e
[...] havia também os ritmos tradicionais das festas populares que ocorriam em
Olinda e Recife: desde garotos, os rapazes ouviam maracatus, cocos, cirandas,
caboclinho, cavalo-marinho e muitas outras músicas, danças e folguedos pelas ruas.
Alguns apenas olhavam de longe; outros eram levados pelos pais. Todos, no entanto,
carregavam, de um jeito ou de outro, as informações das músicas locais. (VARGAS,
2007, p. 107).
No fim dos anos 1980, quando Chico trabalhou na Emprel (Empresa Municipal de
Processamento Eletrônico, da Prefeitura de Recife) conheceu Gilmar, conhecido por Gilmar
Bola Oito, que tocava percussão num bloco de samba-reggae de nome Lamento Negro. Chico
Science ao conhecer o bloco Lamento Negro, ficou maravilhado com a intensidade e
qualidade do som das percussões e propôs que sua banda, Loustal, fizesse um ensaio com
Lamento Negro. De início a ideia foi rejeitada por ambas as bandas, mas Chico persistiu com
a ideia de junção da música contemporânea com a música regional, propondo ao Lamento
Negro que ao invés do samba-reggae, eles tocassem o maracatu – ritmo musical
pernambucano com influências africanas –, pois assim haveria uma combinação sonora que se
encaixaria com o rap, funk e rock. Os próprios membros das duas bandas relatam a bagunça
que marcou o início da junção entre sonoridades, mas aos poucos, foram aceitando a proposta
e se entrosando musicalmente. Dessa fusão musical surgiu a banda Chico Science e Nação
Zumbi.
O ciclo de amigos de Chico Science era bem variado e teve fundamental importância no início
da Cena Manguebeat. Um primeiro grupo de amigos formados por Renato Lins, Xico Sá, H.D
Mabuse, Hélder Aragão e Fred Zero Quatro (vocalista da banda Mundo Livre S/A) foi um
importante núcleo de criação das ideias do Manguebeat; foi através de Mabuse que Chico
Science conheceu Fred Zero Quatro e os outros membros do grupo citado acima. Essa
amizade aumentou o núcleo inicial do Manguebeat, pois Chico apresentou seus amigos de
banda aos novos amigos (estamos na transição dos anos 1980 para 1990). Esses jovens eram
de classe média baixa e tinham em comum o gosto pela música pop mundial diversa,
tecnologia, jornalismo e também estavam insatisfeitos com a cena cultural recifense do início
51
da década de 1990. Fred e Chico se tornaram muito amigos, principalmente por partilharem a
mesma insatisfação: possuir uma banda em Recife e não ter nenhum apoio para divulgação e
locais para apresentação. Da insatisfação surge a movimentação.
O objetivo estético parecia ser o principal motor desses jovens interessados em
música pop, paralelo às ações políticas de abrir espaços de divulgação, de
incrementar a cena musical de uma cidade musicalmente rica, mas em completo
estado de estagnação cultural. (VARGAS, 2007, p. 111).
4.3 O Manifesto Mangue – Caranguejos com Cérebro
O principal marco oficial do início da Cena Mangue foi a elaboração de um release5 chamado
Caranguejos com Cérebro, escrito por Fred Zero Quatro em 1992 para um jornal local e
chamado pela imprensa de O Primeiro Manifesto Mangue. Esse release é curto e direto,
dividido em três partes. O argumento central do texto é relacionar a riqueza e diversidade do
ecossistema mangue à riqueza e diversidade da cultura recifense.
Caranguejos com Cérebro – Fred Zero Quatro
Mangue - O conceito
Estuário. Parte terminal de um rio ou lagoa. Porção de rio com água salobra. Em
suas margens se encontram os manguezais, comunidades de planos tropicais ou
subtropicais inundadas pelos movimentos dos mares. Pela troca de matéria
orgânica entre a água doce e a água salgada, os mangues estão entre os
ecossistemas mais produtivos do mundo. Estima-se que duas mil espécies de
microorganismos e animais vertebrados e invertebrados estejam associadas à
vegetação do mangue. Os estuários fornecem áreas de desova e criação para dois
terços da produção anual de pescados do mundo inteiro. Pelo menos oitenta
espécies comercialmente importantes dependem dos alagadiços costeiros. Não é por
acaso que os mangues são considerados um elo básico da cadeia alimentar
marinha. Apesar das muriçocas, mosquitos e mutucas, inimigos das donas-de-casa,
para os cientistas os mangues são tidos como os símbolos de fertilidade, diversidade
e riqueza. Chico Science, vestido de lanceiro - figura típica do folclore
pernambucano. Ao lanceiro, cabe zelar pelo bem-estar da rainha do maracatu.
5
Release se trata de um texto distribuído à imprensa em linguagem jornalística que deve ser objetivo e
sintético. Fonte: < www.estudiodecomunicacao.com.br> Acesso em 04 nov 2014.
52
Manguetown - A cidade
A planície costeira onde a cidade do Recife foi fundada é cortada por seis rios. Após
a expulsão dos holandeses, no século XVII, a (ex) cidade “maurícia” passou a
crescer desordenadamente às custas do aterramento indiscriminado e da destruição
dos seus manguezais.
Em contrapartida, o desvario irresistível de uma cínica noção de “progresso”, que
elevou a cidade ao posto de “metrópole” do Nordeste, não tardou a revelar sua
fragilidade.
Bastaram pequenas mudanças nos “ventos” da história para que os primeiros sinais
de esclerose econômica se manifestassem no início dos anos 60. Nos últimos trinta
anos, a síndrome da estagnação, aliada à permanência do mito da “metrópole”, só
tem levado ao agravamento acelerado do quadro de miséria e caos urbano.
O Recife detém hoje o maior índice de desemprego do país. Mais da metade dos
seus habitantes moram em favelas e alagados. Segundo um Instituto de estudos
populares de Washington, é hoje a quarta pior cidade do mundo para se viver.
Mangue - a cena
Emergência! Um choque rápido, ou o Recife morre de infarto! Não é preciso ser
médico pra saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é
obstruir suas veias. O modo mais rápido também, de enfartar e esvaziar a alma de
uma cidade como o Recife é matar os seus rios e aterrar os seus estuários. O que
fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como
devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta
injetar um pouco da energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas
veias do Recife.
Em meados de 91, começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade um
núcleo de pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo é engendrar um “circuito
energético”, capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial
de circulação de conceitos pop. Imagem símbolo, uma antena parabólica enfiada na
lama.
Hoje, os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em hip-hop,
colapso da modernidade, Caos, ataques de predadores marítimos (principalmente
tubarões), moda, Jackson do Pandeiro, Josué de Castro, rádio, sexo não-virtual,
sabotagem, música de rua, conflitos étnicos, midiotia, Malcom Maclaren, Os
53
Simpsons e todos os avanços da química aplicados no terreno da alteração e
expansão da consciência.” (VARGAS, 2007, p. 65)
Na primeira parte do release, o autor apresenta o conceito do ecossistema mangue, abordando
a fertilidade, riqueza e importância para fauna e flora, destacando que o mangue é um dos
ecossistemas mais ricos do mundo. Vale destacar que a cidade de Recife foi construída sobre
áreas de manguezais e que a população de baixa renda vivia (e ainda vive) nessas áreas.
A segunda parte, intitulada “Recife a Manguetown”, aborda de maneira histórica a situação
socioeconômica de Recife, desde o período colonial e sua urbanização baseada no
aterramento dos mangues, provocando uma “cínica noção de progresso”, até o apogeu da
precariedade: maior índice de desemprego do país; mais da metade da população vivendo em
favelas e considerada a quarta pior cidade do mundo para se viver.
Na terceira parte, Fred expõe ao leitor uma solução para vencer essa situação de profunda
depressão socioeconômica e cultural: “Basta injetar um pouco de energia na lama”. O autor
também apresenta a Cena Mangue, seus objetivos, características e simbolismos.
A proposta de vincular “as boas vibrações dos mangues” com a “a rede
conhecimentos pop” significava juntar a riqueza cultural de Recife e de Pernambuco
com as informações globalizadas, sobretudo as musicais, que perpassavam os canais
de comunicação de massa e construíam o que se define como cultura pop. Daí a
consequência de criar uma das principais imagens da cena: “uma antena parabólica
enfiada na lama”, tradução visual da conexão entre tradicional e moderno, regional e
globalizado, que teve tantas edições e resultados. (VARGAS, 2007, p. 68, grifo do
autor).
Percebemos que a estrutura do release conseguiu reunir as principais ambições da Cena
Mangue: através de uma relação híbrida entre a riqueza da cultura regional pernambucana e as
novas e modernas tendências da cultura pop mundial, injetar ânimo na cultura de Recife e sair
de uma situação de estagnação e marasmo cultural.
54
4.4 O Movimento Manguebeat – A Cena Mangue
É importante destacar que após o lançamento do release, a mídia recifense e nacional passou a
prestar atenção na movimentação cultural dos jovens de Recife e por causa do formato desse
release diante da mídia, as músicas e idéias do Mangue assumiram um caráter de
“Movimento”, chamado de MANGUEBIT, música do grupo Mundo livre S/A que foi
utilizada para dar nome a essa nova cena musical de recife, mas parte da mídia entendeu que o
nome do movimento era MANGUEBEAT (A BATIDA DO MANGUE) e passou a se referir
assim à cena Mangue: Movimento Manguebeat.
Neste trabalho utilizamos o termo “Cena Cultural” e não Movimento (vários autores citados
aqui, utilizam o termo Movimento) para nos referirmos à Cena Mangue, pois os próprios
artistas idealizadores do Mangue enxergavam a criação de uma “Cena Cultural” na cidade de
Recife e não o surgimento de um Movimento Cultural. Consideravam que o nome
“Movimento” dava uma ideia de algo pensado meticulosamente, fato que não ocorreu, como
podemos perceber no relato abaixo:
A noção de cena retira o sentido teleológico contido na palavra movimento que
envolve uma espécie de caminho único, homogêneo, a ser seguido por todos que
compartilham o ideário, como balizas de atuação estética. Esse desprendimento
também corrobora o fato de não existir uma batida ou ritmo específico do Mangue.
Os grupos e suas propostas de trabalho têm muitas diferenças entre si. (VARGAS,
2007, p. 87).
Os primeiros artistas que começaram a efetivar e produzir segundo a proposta da Cena
Mangue foram Chico Science e Fred Zero Quatro, líderes das duas principais bandas
consideradas o pelotão de frente do Mangue: Chico Science e Nação Zumbi e Mundo Livre
S/A. Suas letras já estavam banhadas num discurso cheio de simbolismos poéticos que remetia
à Cena Mangue. Após o lançamento do release Caranguejos com Cérebro, as duas bandas
foram ganhando visibilidade em Pernambuco e no Brasil. O início dessa ascensão ocorreu em
1993 quando as duas bandas fizeram uma turnê por São Paulo, com condições bem precárias,
mas com uma reverberação muito positiva; além disso, o ano de 1993 é marcado pela
vitoriosa realização do primeiro festival “Abril pro Rock”, onde várias bandas de Recife se
55
apresentaram e a Cena Mangue foi ganhando mais adeptos. Um fato que marcou a história do
Mangue foi quando a Sony Music contratou a banda Chico Science e Nação Zumbi para
gravar um disco, em 1994, e o selo “Banguela Records” contratou a banda Mundo Livre S/A,
no mesmo ano. Assim o Mangue finalmente começaria a ecoar pelo mundo.
A banda Chico Science e Nação Zumbi gravou o disco intitulado “Da Lama ao Caos”
(lançado em 1994) pela Sony Music. Devemos destacar que Chico Science e Nação Zumbi foi
a principal e mais bem sucedida banda de toda Cena Mangue. Com esse trabalho a banda
realizou uma turnê pelo Brasil todo, Estados Unidos e até Europa. O Mangue estava ganhando
força, voz e vez na mídia brasileira. Com a consolidação da Cena no cenário recifense,
devemos destacar que a Cena Mangue não foi pensada apenas na renovação musical da
cidade, pois
O Mangue foi um processo de produção e divulgação de novas criações em música
pop – com ecos no cinema, moda, artes plásticas, dança e literatura – ao mesmo
tempo em que recuperou as tradições musicais de Pernambuco. Esse movimento se
pautou tanto na busca desses ritmos e seus produtores populares, como também na
construção de formas de divulgação dos trabalhos de jovens músicos e dos artistas
tradicionais. (VARGAS, 2007, p. 17).
Um dos principais objetivos do mangue era mesclar de forma inteligente a cultura urbana
recifense, música pop, tecnologia eletrônico-digital com a cultura local pernambucana,
buscando assim “envenenar” (termo utilizado pelos mangueboys como sinônimo de renovar)
os ritmos tradicionais (coco, ciranda, maracatu, embolada) através do contato com a música
pop mundial contemporânea, destacando que
[...] isso não significou tratar os ritmos regionais como se fossem guardiões da
ancestralidade e da essência da cultura local. Não havia a intenção de fossilizar essas
músicas, mas que elas pudessem se relacionar com a cultura contemporânea seja
pela mistura com os gêneros da música pop, seja pelo apoio à divulgação desses
artistas tradicionais pelas cooperativas e por meio de festivais criados em Recife.
Optaram, assim, por outro tipo de relação com a tradição musical pernambucana.
(VARGAS, 2007, p. 17, grifo do autor).
56
No ano de 1995, a cidade de Recife – agora chamada pelos mangueboys de Manguetown –
estava numa efervescência cultural nunca antes vista. Os mangueboys conseguiram seu
objetivo! O Mangue além de tornar-se uma das principais cenas culturais brasileiros do século
XX,
[...] foi responsável por uma revolução em sua terra de origem. Pela primeira vez
desde a década de 60, os pernambucanos mostraram uma auto-estima comparável à
dos baianos. O Recife entrou em estado de ebulição cultural. Paralelamente à
música, ressurgiu o interesse em cineastas e na literatura locais. Até algo que nunca
havia sido o forte da cidade, a moda, revelou estilistas que começam a ser
conhecidos nacionalmente [...] (TELES, 2000 p. 304).
Diante de toda essa agitação cultural recifense, turnês nacionais e internacionais, entrevistas
em veículos de comunicação com circulação nacional, a banda Chico Science e Nação Zumbi
lança no ano de 1996 seu segundo álbum – Afrociberdelia . Chico Science explica o título:
“Afrociberdelia, de África, o ponto de fusão do maracatu, da cibernética, da psicodelia.
Afrociberdelia é um comportamento, é um estado de espírito, é uma ficção, é a continuação
de Da Lama ao Caos” (TELES, 2000, p. 312). O álbum foi um sucesso, composições repletas
de simbolismos da Cena Mangue, ilustravam as letras do grupo, além disso, a sonoridade da
banda evoluiu de forma significativa, chamando a atenção de mais gente do Brasil e do
mundo.
4.5 Simbolismos e Josué de Castro
Não podemos prosseguir falando sobre a Cena Mangue sem abordar os seus simbolismos e o
fundamental papel de Josué de Castro nesse âmbito. Destacamos aqui as duas principais
imagens que simbolizaram a Cena: a antena parabólica fincada na lama e os HomensCaranguejos.
Quando o release Caranguejos com Cérebro foi lançado em 1992, Fred Zero Quatro propõe
que a imagem símbolo da Cena Mangue seria uma parabólica fincada na lama. O significado
deste interessante simbolismo reside na preocupação que os criadores do Mangue tinham em
57
receber informações da cultura pop mundial e (tão importante quanto receber) emitir para o
mundo um novo conceito de música pop, influenciada pela música regional de Recife (por
isso a antena está fincada na lama dos manguezais de Recife) em contato com a música pop
produzida mundialmente.
A proposta de vincular “as boas vibrações dos mangues” com “a rede de conceitos
pop” significava juntar a riqueza cultural de Recife e de Pernambuco com as
informações globalizadas, sobretudo as musicais, que perpassavam os canais da
comunicação de massa e construíram o que se define como cultura pop. Daí a
conseqüência de criar uma das principais imagens da cena: “uma antena parabólica
enfiada na lama”, tradução visual da conexão entre tradicional e moderno, regional e
globalizado, que teve tantas edições e resultados na arte e na cultura musical
brasileira.
Esta imagem também estruturava a relação entre natureza e cultura, tão cara à cena
recifense, pelo contato entre o mangue metaforizado e uma variada gama de formas
culturais corporificadas na tecnologia contemporânea (o sampler e a internet, por
exemplo) e nas formas mais antigas e regionais de canto, instrumentos, ritmos,
imagens etc. (VARGAS, 2007, p. 68, grifo do autor).
Tão importante quanto a parabólica enfiada na lama, foi a metáfora dos Homens-Caraguejo,
herdada do romance homônimo, escrito pelo médico e geógrafo pernambucano Josué de
Castro (1908-1973), no ano de 1967. Esse simbolismo foi amplamente utilizado por boa parte
dos mangueboys, principalmente por Chico Science, que abordou essa temática em seu
discurso e nas letras de suas canções.
O único romance de Josué de Castro narra a história de uma comunidade que vivia na
precariedade dos mangues recifenses e via a situação piorar mais a cada dia. Castro narra em
sua obra que a situação dos moradores do mangue se assemelha ao ciclo de vida dos
caranguejos. Para o autor os habitantes dos mangues são homens-caranguejos
Seres anfíbios – habitantes da terra e da água, meio homens e meio bichos.
Alimentados na infância com caldo de caranguejo: este leite de lama. Seres humanos
que se faziam assim irmãos de leite dos caranguejos. Que aprendiam a engatinhar e a
andar com os caranguejos da lama e que depois de terem bebido na infância este
58
leite de lama, de se terem enlambuzado com o caldo grosso da lama dos mangues e
de se terem impregnado do seu cheiro de terra podre e de maresia, nunca mais se
podiam libertar desta crosta de lama que os tornava tão parecidos com os
caranguejos, seus irmãos, com as suas duras carapaças também enlambuzadas de
lama. (CASTRO, 1967, p. 12).
Josué de Castro conseguiu descrever de maneira bem detalhada a população do mangue e suas
semelhanças com o ciclo de vida dos caranguejos, pois viveu sua infância nos mangues
recifenses em contato direto com essa realidade. Castro relata:
Cedo me dei conta deste estranho mimetismo: os homens se assemelhando, em tudo,
aos caranguejos, arrastando-se, agachando-se como os caranguejos para poderem
sobreviver. Parados como os caranguejos na beira d’água ou caminhando para trás
como caminham os caranguejos.
É por isso, que os habitantes dos mangues, depois de terem um dia saltado para
dentro da vida, nesta lama pegajosa dos mangues, dificilmente conseguiram sair do
ciclo do caranguejo, a não ser saltando para a morte e, assim, se afundando para
sempre dentro da lama. (CASTRO, 1967, p. 13).
Observamos que para Josué de Castro a imagem do homem-caranguejo representa a exclusão
social, o homem que se arrasta na lama para sobreviver, mas a cada dia que passa ele se
afunda mais e provavelmente nem com a morte ele conseguirá sair dessa situação, pois ao
morrer seu corpo se afundará novamente na lama.
A partir da leitura de Josué de Castro, Chico Science fica fascinado pela relação que o autor
faz entre os homens e os caranguejos, e leva essa relação para suas canções e para a proposta
Mangue. Na Cena Mangue, a relação entre homem e caranguejo é usada para retratar o
homem oprimido pelo sistema, homem esse, que cava na lama para retirar dela, os nutrientes
necessários para renovar a sua situação. O homem caranguejo da Cena Mangue está com sua
antena parabólica fincada na lama, atento às questões que o cercam buscando assim sair dessa
situação. Para a Doutora em Sociologia Paula Tesser, Chico Science teve um grande mérito
em sua nova análise dos homens caranguejos, pois ele
59
[...] reconstruiu um Recife onde os caranguejos saem da lama para se integrarem
socialmente através de uma nova cultura A idéia da lama como meio sujo mas
regenerador que encontramos na obra do geógrafo Josué de Castro, por exemplo, vai
servir como uma analogia entre a relação de Recife, cidade decadente e as suas
novas impulsões criadoras. A lama será a grande metáfora empregada por Chico
Science, ela é a matéria fértil para a criação, representando um instrumento de
renovação. (TESSER, 2007, p. 74).
Salientamos a riqueza simbólica da Cena Mangue e a importância de Josué de Castro para a
consolidação deste simbolismo. Chico Science, ao ter contato com a obra de Josué, cria uma
ponte intelectual entre a situação de Recife descrita por Josué de Castro na primeira metade
do século XX e a situação de Recife no início da década de 1990. Através desse “novo
homem-caranguejo” Chico Science busca injetar ânimo na cidade e na população, mostrando
em suas letras que o homem precisa sair da lama e enfrentar as situações de opressão, miséria
e caos.
4.6 O auge da Cena Mangue e a perda de um líder
O ano é 1996, a turnê do álbum Afrociberdelia da banda Chico Science e Nação Zumbi chega
a Europa numa série de shows com Os Paralamas do Sucesso, enquanto isso a cidade de
Recife apresentava um momento cultural nunca antes visto, graças à Cena Mangue. Várias
bandas surgiam e se apresentavam em diversos locais da cidade, outros artistas também
exibiam suas manifestações artísticas – literatura, dança, cinema, artes plásticas6. O auge do
ano de 1996 na cidade de Recife foi a terceira edição do festival Abril pro Rock, contando
com mais de vinte bandas de Pernambuco e o encerramento do festival num show épico da
banda Chico Science e Nação Zumbi. Sem sombra de dúvidas o ano de 1996 foi o auge da
Cena Mangue em Recife, com fortes reflexos em Pernambuco, no Brasil e no Mundo.
6
Na literatura houve o romance Balada para uma Serpente de Paulo Costa; na dança, houve o espetáculo
Zambo do Grupo Experimental em 1998; no cinema houve a produção do premiado filme Baile Perfumado
dirigido por Lírio Ferreira e trilha sonora de Chico Science e Nação Zumbi; nas artes plásticas houveram as
esculturas de Evêncio Vasconcelos, as Mangue Buildings. (VARGAS, 2007, p.61)
60
Em boa parte do Brasil, a festa mais importante do ano para o povo é o Carnaval. Em
Pernambuco não é diferente, principalmente nas cidades vizinhas de Olinda e Recife. Em 2 de
fevereiro de 1997, às vésperas do Carnaval, um acidente fatal marcou para sempre a história
cultural pernambucana e brasileira: Chico Science ia de Recife para Olinda quando perdeu o
controle do carro, bateu num poste e perdeu a vida. Encerrava-se ali uma carreira meteórica e
curta do mangueboy de apenas 33 anos. O choque foi inevitável, pois a Cena Mangue perdeu
o seu maior líder. Várias homenagens foram feitas e Fred Zero Quatro, grande parceiro de
Chico, decide lançar um segundo release (também chamado de “Segundo Manifesto”) com a
intenção de homenagear Chico Science e injetar ânimo nos artistas de Recife, e
principalmente nos membros da banda Nação Zumbi, que perderam mais que um líder, um
grande amigo.
Quanto vale uma vida – por Fred Zero Quatro com a colaboração de Renato L.
I - LONGA VIDA AO GROOVE!
Os alquimistas estão chorando. A indignação ruidosa de Lúcio Maia com a
ferocidade carniceira da imprensa nos faz lembrar que nem tudo tem que ser movido
a cinismo e oportunismo no – cada vez mais – cínico e vulgar circuito pop.
Antes de mais nada, salve Lúcio, Jorge, Dengue, Gilmar, Toca, Gira e Pupilo. Salve
Paulo André e longa vida ao Nação Zumbi, com seu groove imbatível, mix
epidêmico e urgente de química e magia que cedo ou tarde vai varrer o mundo! A
primeira vez que vimos Chico juntando a Loustal com o Lamento Negro (o embrião
do que seria a Nação Zumbi, ainda no início de 91), comentamos arrepiados, eu e
Renato L.: “não importa que estejamos no fim do mundo e sem dinheiro no bolso;
não tem errada, não há nada no mundo que possa deter esse som!” Na nossa ficha,
constava a produção de vários programas de Rock na cidade, onde nos esforçávamos
para mostrar sons novos e interessantes de todos os cantos do mundo. E não havia
dúvida de que naquele momento estávamos diante de algo absurdamente novo e
irresistível. Começamos imediatamente a viajar num conceito capaz de colocar o
Recife no mapa. É claro que houve momentos nos últimos anos em que chegamos a
pensar que talvez tivéssemos ajudado a criar uma espécie de monstro incontrolável.
Mas hoje sabemos que agimos bem, não poderíamos agir de outro modo.
- E agora, mangueboys?
II- BUSCANDO RESPOSTAS
61
“Something is happening here, but you don´t know what it is. Do you, Mr Jones?”
Essa frase de Bob Dylan me vem à mente sempre que eu penso no tom de alguns
comentários publicados nos maiores jornais do país a respeito da morte de Chico.
Talvez com intenção de pintar o fato com as cores mais chocantes, expurgando,
assim, a dor e a revolta da perda, as matérias acabavam invariavelmente emitindo
um tom derrotista ou até desolador.
III- UMA VISITA MUITO ESPECIAL
Lembro-me muito bem do nervosismo que tomou conta da cidade quando, em 93
(logo após o primeiro Abril Pro Rock), a diretoria da Sony anunciou que mandaria
um representante ao Recife para contratar Chico Science... Fun! Fun! Zoeira Total!
Diversão a qualquer custo, e a mais barulhenta possível! Esse havia sido o nosso
lema quando, dois anos antes, sentindo o descompasso – o fundo do poço, o infarto
iminente –, resolvêramos tentar de tudo para detonar adrenalina no coração
deprimido da cidade. Depois de vários shows e eventos muito bem sucedidos, e do
manifesto “Caranguejos com Cérebro” (que transformou, de uma hora para outra
centenas de arruaceiros inocentes em “mangueboys” militantes), parecia que a
cidade realmente começava a despertar do coma profundo em que esteve
mergulhada desde o início da guerra dos 80.
Daí em diante, pode-se dizer que teve início um efetivo “renascimento” recifense.
Todo mundo gritou mãos à obra! e partiu para o ataque. As ruas viraram passarelas
de estilistas independentes; bandas pipocaram em cada esquina; palcos foram
improvisados em todos os bares; fitas demo e clipes novos eram lançados toda
semana, e assim por diante, gerando uma verdadeira cooperativa multimídia
autônoma e explosiva, que não parava de crescer e mobilizar toda a cidade. De
headbangers a mauricinhos, de punks a líderes comunitários, de surfistas a
professores acadêmicos, ninguém ficou de fora. Para se ter uma idéia, a frase
“computadores fazem arte, artistas fazem dinheiro” (Mundo Livre SA) virou tema
de redação de vestibular de uma faculdade local.
IV - MANGUETOWN, 5 ANOS DEPOIS
O renascimento segue de vento em popa. A noite mais concorrida do último Abril
Pro Rock foi a que reuniu três bandas locais. Mais de cinco mil pessoas pagaram
ingresso e enfrentaram uma chuva intensa para aplaudir e cantar junto com Mundo
Livre SA, Mestre Ambrósio e Chico Science e Nação Zumbi. O festival “Viva a
Música”, realizado em setembro passado, reuniu mais de 50 novas bandas. O disco
de estréia da campeã, Dona Margarida Pereira e os Fulanos, está em fase de
gravação. O programa Mangue Beat (Caetés FM 99.1) ocupa há 2 anos os primeiros
62
lugares de audiência, tocando fitas demo e lançamentos locais, além de novidades de
todos os cantos do planeta. O “Manguetronic”, um programa de rádio idealizado
especialmente para a Internet, vem se firmando como um dos sites mais acessados
do Universo on Line. Os últimos cds do Chico Science e Nação Zumbi e do Mundo
Livre SA e a estréia do Mestre Ambrósio figuraram na lista dos dez melhores do ano
da revista Showbizz. Estão em fase de finalização os aguardados álbuns de estréia
das bandas Eddie e Devotos do Ódio. O Abril pro Rock 97 entrou pela primeira vez
no calendário de eventos oficiais do Estado, ganhando assim uma ampla divulgação
nacional e uma infra-estrutura mais organizada. A estréia em longa-metragem dos
cineastas pernambucanos Lírio Ferreira e Paulo Caldas – o filme “O Baile
Perfumado, cuja trilha é assinada por Chico Science, Siba (do Mestre Ambrósio) e
Zero Quatro – ganhou vários prêmios, entre eles o de melhor filme, no último
Festival de Cinema de Brasília. O estilista Eduardo Ferreira já recebeu vários
prêmios nas últimas edições do Phytoervas Fashion. O Mundo Livre S.A. acaba de
fazer 4 shows e um clipe no México, devendo participar de vários festivais europeus
no segundo semestre [...]
Quem acompanhou no Recife as últimas homenagens a Chico, sentiu a força de um
compromisso coletivo. Hoje cada recifense tem no olhar um pouco de guerrilheiro
da Frente Pop de Libertação. E o recado que queremos enviar para o mundo não é
muito diferente daquele que nos mandam as comunidades indígenas de Chiapas –
que têm no subcomandante Marcos o seu porta-voz. VIVA SANDINO! VIVA
ZAPATA! VIVA ZUMBI! A utopia continua... (VARGAS, 2007, p. 72-78).
Devemos destacar a importância da Cena Mangue para o Recife, Nordeste, Brasil e para o
mundo. Musicalmente, a Cena misturou diversas referências (tradicionais e contemporâneas)
conseguindo chamar a atenção do mundo. Culturalmente, a Cena Mangue ressuscitou a
“Manguetown” com inúmeras e diversificadas produções artísticas. Socialmente, o Mangue
mostrou a população que era possível sair daquela realidade de caos urbano e tentar melhorar
a sua situação, enviando e recebendo informações globais através da parabólica fincada na
lama.
63
5. ANÁLISE, RESULTADOS E DISCUSSÃO
5.1 Por que analisar a relação entre Música e Lugar?
A utilização de músicas em análises geográficas é um movimento recente e crescente desde a
década de 1970 com a Revolução da Geografia Cultural, cabe destacar a contribuição da
coleção brasileira - Geografia Cultural- organizada por Zeny Rosendahl e Roberto Lobato
Corrêa no ano de 2009, que possui alguns artigos que tratam da utilização e análise da música
na ciência geográfica. Dois excelentes artigos presentes nessa coleção foram cruciais para a
realização deste trabalho ao fornecerem pistas metodológicas de grande valia, é o caso dos
trabalhos de Lily Kong e seu artigo Música Popular nas Análises Geográficas, e do autor
George Carney e seu artigo Música e Lugar.
Primeiramente, devemos ressaltar que através da música, podemos compreender o caráter e a
identidade dos mais diversos lugares do mundo, e vale ressaltar que
A música também é um meio para as pessoas comunicarem suas experiências
ambientais – tanto as cotidianas como aquelas fora do comum. Por exemplo, muitas
experiências ambientais cotidianas aceitas como verdadeiras, discutidas teórica e
empiricamente mediante noções como “sentido de lugar”, “espaço” e “lugar”,
podem ser enriquecidas com análises de expressões musicais. (KONG, 2009, p.
133).
Observamos que a compreensão do Lugar através da música pode enriquecer a análise
geográfica, pois “da mesma forma que é um meio para comunicar incontáveis experiências, a
música é o resultado da experiência ambiental. Os músicos compõem canções como uma
consequência de suas experiências” (KONG, 2009, p. 133). Além disso, cada Lugar possui
traços que definem sua unicidade em relação a outros (traços físicos, culturais, econômicos,
etc.) e a música auxilia essa definição de Lugar, pois os geógrafos procuram
[...] saber como as pessoas implantaram suas tradições naquele local, por que o
fizeram naquele lugar, o que as sustenta agora e como interagem com outros lugares.
64
É claro que é impossível estudar de uma só vez todos esses aspectos; assim, os
geógrafos tendem a se especializar em determinadas características dos lugares,
como a música. (CARNEY, 2007, p. 126).
Para a geógrafa Lily Kong, a Nova Geografia Cultural propõe que em suas pesquisas sobre o
Lugar, os significados e simbolismos ali contidos sejam analisados e estudados. E com
relação às análises musicais “essa ênfase pode ter o sentido de preocupação tanto com o lugar
simbólico da música na vida social como com os simbolismos utilizados na música” (KONG,
2009, p. 139). Ou seja, ao analisarmos como o conceito de Lugar está retratado nas letras da
banda Chico Science e Nação Zumbi, há uma preocupação em explicar os simbolismos
mencionados pelo letrista e quais as relações existentes entre a vida social da população de
Recife naquele momento histórico com o Lugar simbólico construído
5.2 Por que analisar as letras das canções?
A análise geográfica de letras de músicas não é um estudo isolado e particular, Kong (2009, p.
137, grifo do autor) nos informa que
[...] uma série de estudos geográficos sobre música segue a tradição regional em que
o caráter e a identidade dos lugares são apreendidos a partir de letras, melodia e da
“percepção” geral ou do impacto sensorial da música. [...] Os geógrafos também se
envolveram com a análise temática das letras, para investigar preocupações
ambientais expressas nas músicas. Jarvis (1985) 7, por exemplo, identificou, nas
letras das músicas de rock, diversos temas que envolviam a imagem da cidade.
Através da análise geográfica das letras podemos perceber e entender como os simbolismos
contidos nas letras dialogam com alguns conceitos como lugar, paisagem, região, etc. Para
além da pura análise textual, “os textos musicais devem ser entendidos como diálogos sociais
em andamento, os quais ocorrem em determinadas situações sociais e históricas e refletem
7
Jarvis (1985) realizou uma pesquisa que se debruçava sobre as relações entre Geografia, mídia e cultural
popular.
65
esses cenários” (KONG, 2009, p. 141). Há um cuidado em não se analisar as letras pelas
letras, pois
A análise das letras certamente é uma forma importante de penetrar nos significados
pretendidos pelos produtores. Além disso, as estruturas tonal e estética das canções
populares também devem ser analisadas, pois as palavras são apenas parte do som
total. (KONG, 2009, p. 158).
Um fato importante merece ser destacado aqui: como já mencionado, os estudos brasileiros
em Geopoética têm explorado, preponderantemente, obras literárias, e não há registro de
análises geopoéticas de letras de músicas nacionais; logo, faremos uma análise, por meio de
elementos geopoéticos, sobre como o conceito de Lugar está imerso nas letras da banda Chico
Science e Nação Zumbi, analisando também como o espaço vivido e as experiências do
letrista Chico Science contribuíram para a construção de uma Geopoética da Cena Mangue.
5.3 Análise Geopoética do conceito de Lugar nas letras da banda Chico Science e Nação
Zumbi
Nessa parte do trabalho analisaremos o vínculo existente entre o conceito de Lugar (numa
abordagem Humanista) e as letras da banda Chico Science e Nação Zumbi. Essa análise será
subsidiada através de fatos, vivências e experiências pessoais, do letrista e líder Chico
Science, que foram analisadas em materiais bibliográficos, entrevistas e vídeos sobre Chico e
a Cena Mangue. Não nos prenderemos apenas à análise das letras, pois o exame de material
audiovisual também contribui para o entendimento de simbolismos e identidades no Lugar, já
que através das
[...] entrevistas com os produtores de música, os compositores e letristas [...] podem
ser obtidos insights sobre questões como as motivações para produção e os
contextos em que estas ocorrem, assim como sobre os significados e efeitos
pretendidos. (KONG, 2009, p. 159, grifo do autor).
66
Através dessa ampla análise conseguiremos realizar um estudo sobre a Geopoética contida
nas letras de Chico Science, mas antes de analisarmos as canções, é importante destacar que a
maioria das letras da banda, foram escritas por Chico Science e
[...] tratam de uma série de temáticas. O mais comum são as citações de Recife, do
mangue e dos personagens da cidade, usando ainda uma série de expressões locais
que marcam um reconhecimento imediato por parte do público recifense.
Um aspecto interessante e criativo das letras é a forma de organização das frases e
das imagens sugeridas. [...] O que o ouvinte entende em cada trecho, isoladamente,
pode parecer contraditório, mas é pela reconstrução do sentido nas relações entre
frases e entre elas e o texto completo que se estabelece nível semântico.
Por conta disso, é coerente nas composições o uso do que Jorge Du Peixe, músico e
compositor do grupo, define como “música cinemática”: uma letra que se remete
constantemente a imagens como uma trilha poético-sonora de um filme. (VARGAS,
2007, p. 137, grifo nosso).
Foram feitas análises de cinco músicas da banda Chico Science e Nação Zumbi, todas escritas
por Chico Science; sendo três músicas do primeiro álbum (Da Lama ao Caos, de 1994) e duas
músicas do segundo álbum (Afrociberdelia, de 1996). O primeiro passo foi a transcrição da
letra, o segundo passo foi a exposição das experiências vividas por Chico Science que teriam
contribuído para a elaboração da letra, e o último passo foi a relação da letra e vivência do
letrista com o conceito de Lugar proposto por autores da Geografia de corte “humanista”.
As três primeiras canções a serem analisadas, são: “Da Lama ao Caos”, “A Cidade” e
“Antene-se”. Nesse primeiro álbum, de 1994, percebemos que as letras tratam principalmente
da exaltação da cultura popular e da denúncia da situação caótica da cidade de Recife.
Vejamos a letra de Da Lama ao Caos:
Posso sair daqui para me organizar / Posso sair daqui para desorganizar / Da lama
ao Caos / Do caos à lama/um homem roubado nunca se engana / O sol queimou a
lama do rio / Eu vi um xié andando devagar / Vi um aratu pra lá e pra cá / vi um
caranguejo andando pro sul / Saiu do mangue e virou gabiru / Oh, Josué, eu nunca
vi tamanha desgraça / Quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça / Peguei o
67
balaio, fui na feira roubar tomate e cebola / Ia passando uma véia, pegou a minha
cenoura / Ai, minha véia, deixa a cenoura aqui / Com a barriga vazia / não consigo
dormir / E com o bucho mais cheio comecei a pensar / Que eu me organizando
posso desorganizar / Que eu desorganizando posso me organizar. (CSNZ, 1994)8
A letra de Da lama ao Caos faz parte de um grupo de letras escritas por Chico Science que
tem a intenção de expor situações negativas que aconteciam em Recife; a crítica social
contida nesse grupo de canções é
[...] proveniente da tradição do rap e do punk rock, mas não contendo uma crítica
fácil. Ao contrário, ela vem em citações de personagens e fatos que ilustram a
situação da capital pernambucana (pobreza, crescimento desordenado, destruição do
manguezal, as metáforas do mangue e do caranguejo etc.) (VARGAS, 2007, p. 137
grifo do autor).
Em Da Lama ao Caos, Chico Science nos apresenta três principais aspectos: a miséria de
Recife, a destruição dos mangues recifenses e a necessidade de mudança desse quadro através
das relações de organização/desorganização. Com relação aos simbolismos e neologismos
utilizados na letra, Vargas (2007, p. 146) nos explica que “chié” é um caranguejo de pequeno
porte e que habita as pedras da praia e popularmente também significa um pobre menino de
rua; “aratu” é outro tipo de caranguejo que, no contexto da canção, representa uma pessoa
humilde, que sempre é passada para trás por algum malandro; “gabiru” é um tipo de rato que
vive em ambientes de sujeira, e na canção simboliza os mendigos e moradores de rua. Esses
simbolismos são utilizados para demonstrar que todos eles (chie, aratu e gabiru) deixam o
mangue por conta de sua destruição e aterramento, que aumenta
[...] com os sobrevôos ameaçadores dos urubus e serve de alerta para o chamamento
de Josué de Castro, médico e geógrafo recifense cujos trabalhos foram lidos por
Chico Science e outros e inspiraram parte da proposta do Manguebeat. A
desorganização do manguezal pede a organização do cantor para que desorganize o
processo de destruição. (VARGAS, 2007, p. 147).
8
Áudio da canção disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=W6yCx_42Icc> Acesso em 04 Nov.
2014.
68
Chico Science em matéria veiculada pelo canal MTV BRASIL, contou um pouco da história
de Da Lama ao Caos.
Tive o privilégio de ler Homens e Caranguejos, até me emocionei quando Josué de
Castro falou do ciclo do caranguejo. Num final de semana tinha ensaio da banda,
peguei um ônibus e de casa até o local do ensaio foi quando surgiu a letra de Da
lama ao Caos. Uma das melhores letras que já escrevi. Da Lama ao Caos fala do
nosso sistema caótico de viver, fala dos nossos problemas do dia a dia, da nossa
linguagem cultural, da nossa batida, do nosso ritmo, da nossa brasilidade. A gente
fala desses temas: fome, tecnologia, pobreza. (Chico Science, 1996)
9
Essa crítica social feita por Chico na letra de Da Lama ao Caos, vem ao encontro do conceito
de Lugar proposto por Lívia de Oliveira (2012) para quem os lugares
[...] podem se fazer visíveis por meio de inúmeros meios: rivalidade ou conflito com
outros lugares e manifestações de arte e de arquitetura. Todo lugar adquire
identidade mediante as diversas dimensões espaciais, tais como: localização,
direção, orientação, relação, território, espaciosidade e outras. [...] Em suma, lugar é
um mundo de significados organizados, a um tempo estático e a outro dinâmico; são
caminhos que se tornam lugares significativos. (OLIVEIRA, 2012, p. 12).
A geógrafa humanista também propõe que as dimensões significativas do Lugar,
[...] que na realidade é o sentido que se atribui a este ou àquele (o meu, o seu ou o
nosso lugar), são pensadas em termos geográficos a partir da experiência, do habitar,
do falar e dos ritmos e transformações. É o lugar experienciado como aconchego que
levamos dentro de nós. Ou o lugar consciente do tempo social histórico, recorrente e
mutável, no transcorrer das horas do tempo em um espaço sentido dentro de um
lugar interior ou exterior. (OLIVEIRA, 2012, p. 15).
9
MTV Na Estrada - Chico Science e Nação Zumbi. 1996. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=gPMWpqdRTG8>. Transcrição nossa. Acesso em: 27 out. 2014
69
A letra (e a concepção) de Da Lama ao Caos dialoga com o conceito de Lugar proposto por
Lívia de Oliveira de maneira bastante íntima, pois Chico Science só consegue escrever de
maneira tão detalhada sobre os problemas socioeconômicos urbanos e suas rivalidades, pelo
fato da cidade de Recife ter sido o seu Lugar num tempo histórico específico, quando ele
experimentou e construiu seu mundo vivido. Várias experiências pessoais de Chico Science
no Lugar (Recife) contribuíram de forma significativa para a construção da letra: a leitura do
romance “Homens e Caranguejos”, a situação socioeconômica vivida por Science num Recife
considerado a quarta pior cidade do mundo para se viver, a observação de cenas cotidianas
que confrontavam bairros ricos e periferias pobres criadas a partir do aterramento de
manguezais. Essas vivências eram tão presentes que até mesmo uma viagem a São Paulo
contribuiu para a letra de Da Lama ao Caos, onde seu amigo e ex-empresário da banda Paulo
André relata que
Chico foi a São Paulo visitar um primo e levou uma grana pra trazer um tênis
Adidas e chegando ao centro da cidade manifestou o desejo de comprar o tênis, logo
chegou um cara do lado perguntando: Tu quer Adidas? Chico respondeu que sim e o
rapaz disse o preço, pegou a grana adiantada, mas alertou que Chico não poderia ir
junto, pois o tênis era contrabandeado, Chico ficou esperando o dia todo e o rapaz
não apareceu; por isso Chico escreveu em Da Lama ao Caos: Um homem roubado
nunca se engana. (Paulo André, 2012) 10
Percebemos a importância que as experiências vividas por Chico tiveram para o
desenvolvimento de sua poética.
A segunda música a ser analisada se chama A Cidade. Uma canção que também fez críticas e
é repleto de simbolismos e metáforas.
O sol nasce e ilumina as pedras evoluídas/ Que cresceram com a força de pedreiros
suicidas/ Cavaleiros circulam vigiando as pessoas/ Não importa se são ruins nem
importa se são boas/ A cidade se apresenta centro das ambições/ Para mendigos ou
ricos e outras armações/ Coletivos, automóveis, motos e metrôs/ Trabalhadores,
10
MTV. Especial 15 anos sem Chico Science. 2012. Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?v=sxEsG48W88>. Acesso em: 27 out. 2014.)
70
patrões, policiais, camelôs /A cidade não para a cidade só cresce /O de cima sobe e
o de baixo desce/ A cidade se encontra prostituída por aqueles que a usaram em
busca de saída/ Ilusora de pessoas de outros lugares / A cidade e sua fama vai além
dos mares/ No meio da esperteza internacional/A cidade até que não está tão mal/
Sempre uns com mais e outros com menos/ A cidade não pára, a cidade só cresce/ O
de cima sobe e o de baixo desce/ Eu vou fazer uma embolada, um samba, um
maracatu/ Tudo bem envenenado, bom pra mim e bom pra tu/ Pra gente sair da
lama e enfrentar os urubu/ Num dia de sol Recife acordou/ Com a mesma fedentina
do dia anterior (CSNZ, 1994).11
A letra da canção trata de uma temática urbana caótica e excludente, em que a situação
socioeconômica é desigual (enquanto o rico fica mais rico, o pobre fica mais pobre) e o
crescimento da cidade ocorre de forma descontrolada. As metáforas utilizadas na música são:
“urubus” – alguém tido como inimigo, lembrando que a ave voa sobre a carniça do mangue;
“pedras evoluídas” são os prédios da cidade de Recife; “cavaleiros” são os policiais. Chico
usa a expressão “sair da lama” para motivar as pessoas a saírem de uma situação precária e
enfrentar seus inimigos e/ou situações negativas (os “urubus”) através de uma música
“envenenada”, mostrando que uma forma de vencer toda essa realidade de caos urbanos é
misturar os ritmos tradicionais pernambucanos (coco, maracatu, ciranda) com ritmos pop
mundiais (rock, funk, rap).
Chico Science não conhecia toda a cidade de Recife, mas graças a sua vivência cotidiana ele
conseguiu abstrair vários problemas da cidade e colocar na letra da canção. Tuan nos mostra
que as experiências vividas na cidade são bem diversas, até porque uma cidade possui vários
ambientes físicos e que
[...] nenhuma pessoa pode conhecer bem, senão um pequeno fragmento da cena
urbana total; nem é necessário para ela ter um mapa mental ou imagem da totalidade
da cidade para poder prosperar no seu canto do mundo. No entanto, o habitante da
cidade parece ter uma necessidade psicológica de possuir uma imagem da totalidade
do meio ambiente para localizar o seu próprio bairro. O conhecimento de uma
cidade varia muito de uma pessoa para outra. A maioria das pessoas são capazes de
indicar pelo nome os dois extremos da escala urbana, a cidade como um todo e a rua
11
Áudio da canção disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=UVab41Zn7Yc> Acesso em 04 Nov.
2014.
71
onde moram. Ao contrário, as divisões intermediárias são vagamente concebidas a
ponto de poucas pessoas poderem rapidamente lembrar o nome do seu distrito ou
bairro. Os dois extremos da escala parecem indicar uma tendência humana comum à
de descansar em dois níveis de pensamento altamente discrepantes: grandes
abstrações e respostas específicas. No nível de grande abstração, a imensa
complexidade de uma cidade pode ser resumida ao próprio nome, como no caso de
Roma, ou a um monumento (Torre Eiffel) [...]. No nível das respostas específicas
estão as numerosas imagens e atitudes que a pessoa adquire de seu meio ambiente
próximo, no curso da vida diária. (TUAN, 2012, p. 265).
A cidade como “ilusora de pessoas de outros lugares” pode ser explicada por Carney (2007, p.
135) em estudo que fala sobre a relação das cidades americanas retratadas em letras de
música. Carney avalia que nos Estados Unidos,
Lugares urbanos eram descritos como centros de cultura e locais positivos, atraindo
migrantes de outras regiões do país. Contudo, a imagem de uma cidade como um
lugar começou a mudar nos anos 1950, com problemas como congestionamento,
poluição e crime. [...] Durante as décadas de 1960 e 1970, uma aversão total pelas
cidades se refletia no conteúdo das letras [...]
Uma crítica interessante foi tratada na letra da música: a reputação de Recife no âmbito
internacional. Em meio à sociedade global, Recife não parecia estar numa situação ruim, mas
só quem habitava a cidade sabia de seus problemas e desigualdades. Este fato revela uma
característica do Lugar que vai ao encontro do conceito proposto por Relph, pelo qual
[...] o núcleo do significado de lugar se estende, penso eu, em suas ligações
inextricáveis com o ser, com a nossa própria existência. Lugar é um microcosmo. É
onde cada um de nós se relaciona com o mundo e onde o mundo se relaciona
conosco. O que acontece aqui, neste lugar, é parte de um processo em que o mundo
inteiro está de alguma forma implicado. Isso é muito existencial e ontológico. Mas é
também econômico e social, pois em toda parte estamos presos em maior ou menor
grau nas forças neoliberais e da globalização. (RELPH, 2012, p. 31).
72
Percebemos que a realidade da cidade de Recife faz parte dessa sociedade global e sofre com
isso, pois se torna “ilusora de pessoas de outros lugares”. Vemos que o Lugar (no caso a
cidade de Recife) é um microcosmo que não está isolado do restante do mundo; ao contrário,
ele está inserido numa lógica global socioeconômica e é influente/influenciado com maior ou
menor intensidade. Chico Science estava “antenado” a isso com a “parabólica fincada na
lama”, enviando e recebendo informações, utilizando essa música como uma crítica e alerta
para o povo de Recife repensar e renovar o seu Lugar. Kong (2009) nos apresenta uma linha
de raciocínio que parece resumir a relação da globalização com o viés de crítica e denúncia
promovido pela Cena Mangue, pois
[...] ao mesmo tempo em que as forças da globalização, homogeneização e
mercantilização da cultura invadiram a indústria da música, formas locais de
resistência podem ser analisadas, tanto em termos de produção de sons alternativos
quanto na experiência da música de maneiras diversamente localizadas. O local
pode, então, ser entendido como um produto da “nativização” de recursos globais.
(KONG, 2009, p. 149).
A última música do disco Da Lama ao Caos a ser analisada é Antene-se.
É só uma cabeça equilibrada em cima do corpo/ Escutando o som das vitrolas, que
vem dos mocambos / Entulhados à beira do Capibaribe / Na quarta pior cidade do
mundo / Recife, cidade do mangue / Incrustada na lama dos manguezais / Onde
estão os homens-caranguejos / Minha corda costuma sair de andada / No meio da
rua em cima das pontes/ Procurando antenar boas vibrações / Procurando antenar
boa diversão / Sou, sou, sou, sou mangueboy! / Recife, cidade do mangue / Onde a
lama é insurreição/ Onde estão os homens-caranguejos / Minha corda costuma sair
de andada / No meio da rua em cima das pontes/ É só equilibrar sua cabeça em
cima do corpo / Procure antenar boas vibrações / Procure antenar boa diversão
(CSNZ, 1994).12
Diferentemente das canções anteriores, em Antene-se, além de Chico Science utilizar vários
simbolismos da Cena Mangue, ele injeta ânimo nos “mangueboys” que conviviam com o caos
12
Áudio da canção disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=0Y0KcESaNUw> Acesso em 04 Nov.
2014.
73
de Recife – “quarta pior cidade do mundo”. Ao retratar algumas imagens peculiares de
Recife, como as pontes, os catadores de caranguejo e suas casas construídas sobre a lama
(mocambos), Chico Science exclama que é preciso estar atento e captar boas energias
(procurando antenar boas vibrações através da imagem símbolo da parabólica fincada na
lama) para sair de uma situação caótica, ou seja, a letra é um grito dos mangueboys que
mesmo vivendo numa cidade com péssimas condições de vida, estavam buscando melhorar
essa situação. No verso “minha corda costuma sair de andada”, Chico se coloca como
homem caranguejo que sai com os amigos para se divertir, pois corda significa um
emaranhado de caranguejos amarrados que serão comercializados.
Dois pontos merecem destaque: o orgulho na autoafirmação de ser Mangueboy (no trecho
“Sou, sou, sou, sou mangueboy”), e a proposição de que para superar todos os problemas e
situações negativas vivenciadas naquele momento histórico era necessário (fazendo alusão ao
caranguejo) ter “uma cabeça equilibrada em cima do corpo”, equilíbrio esse não apenas físico,
mas principalmente moral. Através desses aspectos, segundo Chico, a insurreição do homem
caranguejo viria da lama.
Diante desse manifesto motivacional, a fala de Carney (2007, p. 136) vem ao encontro da
temática da letra da música, quando aborda que em várias análises geográficas, observou-se
que
[...] muitas canções foram usadas para implantar um sentido de orgulho estadual ou
providencial por aquele lugar entre seus residentes. [...] A música é uma das
características que contribuem para o desenvolvimento de uma região e
frequentemente é utilizada como um instrumento promocional para as regiões.
Chico ao utilizar em suas letras vários simbolismos, capturados através de sua experiência em
Recife, confirma o que Carney (2007) propôs como característica do Lugar, que
[...] depende da história pessoal que uma pessoa traz para ele. É através dessas
interações que desenvolvemos uma profunda associação psicológica com um lugar
específico. [...] devemos usar nossos olhos e pensar sobre o que vemos em termos de
74
pistas para a cultura de lugares, contextos históricos e locacionais de lugares e
relações de lugares com o meio ambiente físico. (CARNEY, 2007, p. 128).
A diversão levada a sério era uma das principais preocupações da Cena Mangue e foi
retratada na letra de Antene-se. Com relação a esse aspecto de diversão no Lugar, Carney
(2007, p. 129) comenta que os Lugares
[...] fornecem ancoragem emocional para a atividade humana, os lugares são
provedores de experiência na compreensão da paisagem cultural; palcos para
eventos e lembretes de que os seres humanos precisam de espaço para viver,
trabalhar e brincar.
Percebemos que a riqueza simbólica trabalhada por Chico Science na letra de Antene-se, mais
uma vez, foi fruto de relações intrínsecas entre o compositor e o Lugar (Recife). Inferimos
também que através da renovação das experiências com o Lugar, o homem caranguejo
utilizará a lama como possibilidade de realizar sua insurreição.
O segundo disco de Chico Science e Nação Zumbi, intitulado Afrociberdelia, do ano de 1996,
contêm canções que continuam seguindo a temática da Cena Mangue: denúncias dos
problemas de Recife, simbolismos, metáforas e letras que exaltam a cultura recifense. As três
canções a serem analisadas serão: Manguetown e Etnia. Moisés de Melo Neto escreveu vários
artigos e uma Dissertação de Mestrado sobre a Cena Mangue. Ele destaca que nesse segundo
disco, a banda incitava
[...] mais uma vez seu público à ficção e era exemplo de um comportamento, um
estado de espírito: o cidadão esperto queria trabalho, sim, mas com muita diversão,
alimento para todos, aventuras, respeito, felicidade, num Recife mais lúdico e
múltiplo, que respeitasse as diferenças dos seus habitantes. (MELO NETO, 2003, p.
26).
A primeira canção analisada é Manguetown, um cognome dado à cidade de Recife.
75
Estou enfiado na lama/ É um bairro sujo/ Onde os urubus têm casas/ E eu não tenho
asas /Mas estou aqui em minha casa /Onde os urubus têm asas/ Vou pintando
segurando as paredes do mangue do meu quintal/Manguetown/ Andando por entre
os becos/ Andando em coletivos/ Ninguém foge ao cheiro sujo / Da lama da
Manguetown/ Andando por entre os becos/ Andando em coletivos / Ninguém foge à
vida suja dos dias da Manguetown/ Esta noite sairei/ Vou beber com meus amigos e
com as asas que os urubus me deram ao dia / Voarei por toda a periferia/ Vou
sonhando com a mulher que talvez eu possa encontrar/ E ela também vai andar/ Na
lama do meu quintal/ Manguetown/ Fui no mangue catar lixo/ Pegar caranguejo/
Conversar com urubu. (CSNZ, 1996).13
A letra de Manguetown é mais uma que aborda vários problemas da cidade de Recife, como a
sujeira e poluição dos manguezais, que exalam um forte odor por toda a cidade; e a destruição
e aterramento dos mangues pelo crescente processo de urbanização. Novamente Chico utiliza
a metáfora do homem caranguejo que é explorado pelos “urubus”. Mesmo sendo difícil sair
dessa situação de pobreza, Chico proclama aos homens caranguejos que a diversão é uma
fuga para tais situações negativas (vide trecho “Esta noite sairei, vou beber com meus
amigos”), mas que no fim o homem acaba voltando ao mangue para dar continuidade ao ciclo
do caranguejo (trecho “Ninguém foge a vida suja dos dias da Manguetown”). Melo Neto
(2003, p. 44) cita que a música Manguetown conta a história de um “sujeito da periferia, um
excluído, que apropria-se da sua cidade, do seu lugar, reinventando-a numa espécie de ficção,
misto de desenho animado e história em quadrinhos. O mesmo Melo Neto traz uma
abordagem que flerta com a Geopoética ao analisar como a cidade de Recife se torna a
Manguetown; pois para ele
[...] a Manguetown não é simples substituta do ser Recife. Ela tem universo
específico, paralelo. É imagem poética que se liga à realidade por meio de vários
códigos (cibernéticos, psicodélicos, históricos, folclóricos, etc.). A alma da cidade
parece vir antes do pensamento, da criação do movimento Mangue, das
composições, imagens e importância vocal das palavras do movimento, nas quais se
inaugura um novo sentido, e a sonolenta cidade parece acordar para um carnaval
sem data marcada: a arte surge como compromisso dessa alma. (MELO NETO,
2003, p. 17, grifo do autor).
13
Áudio da canção disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=yIjg0mdsqjM> Acesso em 04 Nov.
2014.
76
Através da letra de Manguetown, falaremos sobre um aspecto muito importante da Cena
Mangue para este trabalho: a “corporeidade” – principalmente aquele experimentada por
Chico Science. Sabemos que a corporeidade está presente nas análises da fenomenologia e da
Geografia Humanista, e em Manguetown podemos perceber uma relação íntima entre Lugar e
Corporeidade (vide trecho “Estou enfiado na lama, é um bairro sujo, ninguém foge ao cheiro
sujo, andando por entre os becos, ela também vai andar na lama do meu quintal, pegar
caranguejo”). Como já foi mencionado, Chico Science passou sua infância e parte da
adolescência em mangues, apanhando caranguejos para conseguir uma renda extra e ao
“afundar-se na lama” Chico estabeleceu uma corporeidade com aquele lugar (o mangue) e
veio transmitir essas relações corpóreas na letra de Manguetown. Citando novamente
Chaveiro (2012) e sua abordagem das relações entre Corpo e Lugar, o autor destaca que há
uma relação simbiótica entre eles, onde o corpo é um “guardador” de Lugares e o Lugar é um
“guardador” de relações corporais. As relações corpóreas que ocorrem na insalubridade dos
mangues através de simbolismos apresentados na música Manguetown, são explicadas por
Chaveiro.
Lugares insalubres ou lugares de confinamento, lugares de registro ou lugares
indefesos, por certo proclamam necessariamente desvelos simbólicos e de produção
de sentido em forma de medo, fobias, desmotivações, traumas, egoísmos,
transtornos, etc. Essas peças invisíveis dos lugares agem no que é fundamental no
corpo: contamina sua capacidade de agir, conviver, de potencializar forças no
coletivo. O corpo doente encerra suas dores, esmaece diante de obstáculos pessoais.
(CHAVEIRO, 2012, p. 255).
Deduzimos então que na letra de Manguetown, Chico nos apresenta o simbolismo de um
homem caranguejo que possui uma debilitada corporeidade e tenta sair do mangue, mas é
sempre massacrado e subordinado aos “urubus”.
77
Etnia é uma canção que soa como um hino de orgulho do mangueboy.
Somos todos juntos uma miscigenação/ E não podemos fugir da nossa etnia/ Índios,
brancos, negros e mestiços/ Nada de errado em seus princípios/ O seu e o meu são
iguais/ Corre nas veias sem parar/ Costumes, é folclore, é tradição/ Capoeira que
rasga o chão/ Samba que sai da favela acabada/ É hip hop na minha embolada/ É o
povo na arte/ É arte no povo/ E não o povo na arte/ De quem faz arte com o
povo/Por de trás de algo que se esconde/ Há sempre uma grande mina de
conhecimentos e sentimentos/ Não há mistérios em descobrir/ O que você tem e o
que você gosta/ Não há mistérios em descobrir/ O que você é e o que você faz/
Maracatu psicodélico/ Capoeira da pesada/ Bumba meu rádio/ Berimbau elétrico/
Frevo, samba e cores/ Cores unidas de alegria/ Nada de errado em nossa etnia.
(CSNZ 1996).14
A canção Etnia retrata que por estarmos inseridos num mundo globalizado, não podemos
reproduzir preconceitos contra quaisquer etnias e suas culturas, pois não há “nada de errado
em seus princípios”, já que eles são iguais. Chico direciona uma crítica disfarçada aos
Armoriais, citando que não há problemas em misturar arte contemporânea com arte
tradicional (trecho “É hip hop na minha embolada”) e que a arte do povo deve ser divulgada,
ao contrário do que os Armoriais faziam: utilizavam a arte do povo na arte Armorial sem
promover uma divulgação dos artistas populares. Por isso Chico proclama que o lugar do
povo é na arte, pois a arte pertence ao povo e não às pessoas que se apropriam dela e “fazem
arte com o povo”.
Um ponto importante em Etnia é que a letra promove um o sentimento de orgulho em
pertencer a Recife e de promover uma renovação da cultura local através da proposta Mangue
de misturar ritmos tradicionais com ritmos contemporâneos (trecho “Maracatu psicodélico,
Bumba meu rádio, Berimbau elétrico”). Destacamos que a relação de orgulho analisada a
partir da música também proporciona uma contribuição para a percepção de sentimentos
14
Áudio da canção disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=r49G6PXBhQY> Acesso em 04 Nov.
2014.
78
topofílicos vivenciados pela população de Recife. Carney (2007) explica que as pessoas que
residem em determinados lugares possuem uma forte ligação com a música, pois
Vista externamente, essa associação lugar-música pode servir como um importante
componente na formação da percepção e das imagens que “os de fora” têm do lugar
em questão, não importando se eles realmente estiveram nele ou não. Entre os
residentes, essa associação entre seu lugar e uma música específica pode funcionar
como uma fonte de identidade geográfica, talvez até subcultural, bem como uma
ajuda para favorecer um sentido de orgulho pelo lugar e um sentido de ligação com
ele. (CARNEY, 2007, p. 147).
Mesmo numa realidade de grandes problemas socioeconômicos, Chico demonstra que a
população de Recife pode ter um sentimento topofílico pela cidade, principalmente pelas
mudanças que ocorreram a partir da Cena Mangue (trecho “Nada de errado com nossa
etnia”). Tuan nos explica que
Para aqueles que viveram muitos anos em um lugar, a familiaridade engendra
aceitação e até afeição. [...] Muitas vezes, é difícil saber interpretar “gosto” ou
“afeição” quando são verbalmente expressos. Gostar de um distrito não obriga
necessariamente a pessoa nele permanecer ou ainda predominantemente preferir
suas facilidades e serviços. (TUAN, 2012, p. 297).
Outra marca dessa topofilia motivada pela Cena Mangue e que aparece na música Etnia, está
contida na obra de Mello (2012), para este autor
A música, na verdade, aguça a paixão e o orgulho pelo lugar vivido, seja como
resposta a uma simples menção, seja como decorrência de uma colocação
hiperbólica ou por meio de estereótipos. Acresce, porém, que locais próximos ou
distantes, em diferentes escalas, mesmo não vividos pessoalmente, podem se tornar
lugares concebidos e/ou míticos, a partir dos relatos ou quando cantados, na medida
em que se haveria nesses tipos de interação, realizados por meio de narrativas, certa
relação de intimidade. Nesse caso, as fronteiras afetivas e/ou intelectuais
demarcariam novos lugares [...] (MELLO, 2012, p. 51).
79
Tuan (2012, p. 144) em sua obra Topofilia, nos mostra que “a consciência do passado é um
elemento importante no amor pelo lugar.” Podemos concluir que Chico ao utilizar a cultura
tradicional em contato com a cultura contemporânea e suas próprias experiências vividas
acumuladas desde a infância, revisitou e inseriu em Recife o conceito de Topofilia, pois
Recife em 1996 (lançamento do álbum Afrociberdelia) passava por um momento de
insurreição cultural provocada pela Cena Mangue, onde os artistas utilizavam os elementos da
cidade (não só os aspectos negativos) para criação de arte. Esse sentimento topofílico vem
consolidar uma preocupação da Cena Mangue apresentada no release “Caranguejos com
cérebro”, que era injetar energia na lama e movimentar a cena cultural da cidade. A canção
Etnia tem esse papel de motivar o mangueboy a continuar injetando energia na lama.
Pudemos perceber que a criação da Cena Mangue não poderia acontecer em outro lugar do
mundo, pois só a cidade de Recife reunia as condições físicas (mangues), socioeconômicas
(quarta pior cidade do mundo) e culturais (ritmos como maracatu, embolada, ciranda, coco)
para a fomentação e surgimento de uma Cena cultural tão rica em melodias, simbolismos e
poética. Como Carney (2007) explica, somente
As características únicas de lugares específicos podem oferecer as pré-condições
necessárias a novas ideias musicais. O contexto histórico, ambiental e social de um
lugar, muitas vezes, fornece cenário e inspiração para determinado indivíduo ou
grupo criar música.
A referência a um lugar no título ou letra de uma canção acende uma memória sobre
ele, mas com o tempo os próprios sons musicais podem evocar um sentido de lugar
de uma maneira que talvez só seja igualada, em um nível pessoal [...] Assim, a
música ajuda a criar uma ligação emotiva humana a um lugar particular, seja ele o
lar, a vizinhança, a cidade, o estado, a região ou a nação.
A música específica de um lugar está carregada de sentidos reais e simbólicos que
podem ter significado para seus moradores e até para os não-moradores.
(CARNEY, 2007, p. 138).
80
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através das três etapas de análise das canções: “transcrição”  “argumentação um”
(“representação do artista”)  “argumentação dois” (“correspondência epistemológica”),
concluímos que o conceito de Lugar proposto pela Geografia Humanista, é um forte subsídio
para a definição de uma Geopoética da Cena Mangue, pois nos Lugares descritos por Chico
Science em suas letras, percebemos vários elementos caros à Geografia Humanista e à
Geopoética, tais como: relações subjetivas através da imaginação e da arte; experiências e
mundo vivido do autor; corporeidades, relações afetivas e topofílicas. Identificamos que o
conteúdo das letras musicais de Chico Science e Nação Zumbi veiculam imaginários
perceptivos de Lugar e que as linguagens musicais se ajustam como exemplo potencial de
estudos de Geopoética.
Ao analisarmos como o conceito de Lugar está retratado nas letras da banda Chico Science e
Nação Zumbi, há uma preocupação em explicar os simbolismos mencionados pelo letrista e
quais as relações existentes entre a vida social da população de Recife naquele momento
histórico com o Lugar simbólico construído; essa é uma das várias utilidades das pesquisas
em Geopoética.
Estamos cientes de que a presente pesquisa poderia ser aprofundada em vários aspectos. A
análise e incorporação dos elementos que dão “materialidade” ao lugar “Recife”, bem como a
abordagem e ênfase da perspectiva topofóbica presente nas letras da banda, seriam duas
alternativas enriquecedoras. Pois o discurso de Chico Science é marcado, claramente, pelo
conflito entre relações topofílicas e topofóbicas referentes à cidade.
A definição de Geopoética não é simples e os autores brasileiros não parecem ainda
especialmente preocupados em realizar uma precisa demarcação deste (a nosso juízo) “novo
ramo” da Geografia Humanista. Diante disso, reconhecemos que é um árduo trabalho – a
merecer mais anos de detida investigação – o de abordar este tema (que pode, neste momento,
não estar muito claro ao leitor, dada a ausência daquela delimitação).
No futuro, para o devido aprofundamento do estudo, pretendemos nos aproximar dos
procedimentos metodológicos da Linguística, Semiótica e da Teoria Literária. Sabemos que
81
este trabalho traz apenas uma amostra da potencial riqueza geopoética da Cena Mangue; sem
falar que haveria até mesmo outras cenas artísticas regionais a explorar. Em se tratando de
Recife, em particular, sabe-se que existem inúmeras bandas e expressões de arte que podem
apontar para outros simbolismos interessantes de Lugar.
82
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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