MASSAUD MOISÉS
é professor aposentado de
Literatura Portuguesa da
FFLCH-USP e autor, entre
outros, de A Literatura
Portuguesa (Cultrix).
José
Paulo
Paes
MASSAUD MOISÉS
Uma versão abreviada deste artigo foi publicada na Folha de S.
Paulo, de 18 de outubro de 1998.
REVISTA USP, São Paulo, n.42, p. 111-115, junho/agosto 1999
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A
história literária mostra-
dou desse tempo aquilo que era parte in-
nos que há dois tipos de
trínseca do seu caráter, por momentos iden-
escritores: aqueles que,
tificada com uma ideologia, ou antes, com
com a morte, legam uma obra aos azares
um partido político: soube, como poucos,
da fortuna, dentre os quais o rápido esque-
ser um homem solidário com o sofrimento
cimento não é o menos freqüente; e os que,
humano, sem distinção de espécie alguma,
além da obra, deixam uma forte imagem
porque nele a fraternidade era mais um sen-
como seres humanos ou a lembrança de
timento, um impulso nobremente humano,
uma existência repleta de lances dramáti-
que uma regra política para fins de domínio
cos ou pitorescos. A biografia dos primei-
e poder. Não o perturbava que o substrato
ros exibe interesse variável, conforme o
desse gesto permanente de solidariedade
nosso ângulo de visão, mas sempre menor
fosse uma utopia, pois, acima das opções
que o da obra, ao passo que a personalida-
políticas enfeudadas em partidos, havia o
de e a vida dos outros, tanto quanto os seus
desejo entranhado no seu caráter que o mun-
escritos, constituem assunto de permanen-
do fosse um só, governado por um forte
te atualidade. José Paulo Paes inscreve-se
senso de justiça e harmonia, sem as dife-
nitidamente entre os escritores do segun-
renças de cor, religião ou credo político.
do grupo.
Agora que a morte o levou (9 de outu-
sensíveis, que nutrem sentimentos de este-
bro de 1998), podemos ver toda a a sua
sia e desejos de comunicação com o pró-
estatura humana e literária. Quando vivo,
ximo num plano para além dos interesses
a sua medida já era notória para os que a
materiais, escolheu-a sem cálculo, profun-
quisessem contemplar, mas as suas altas e
damente convicto de que por meio dela
incomuns qualidades humanas como que
poderia realizar as suas virtualidades de
nos distraíam a atenção. A proximidade
espírito e concretizar o gesto fraterno na
ofuscava-nos o olhar. Víamos, é certo, uma
direção do próximo. Como poeta, busca-
grandeza a emitir luz capaz de abater as
va algo mais do que a chamada beleza es-
trevas da ignorância, sentíamos que nele
tética: sem a perder jamais de vista, tinha
palpitava uma singular inteligência crítica,
em mira despertar a consciência do leitor
sabíamos que o habitava uma aguçada sen-
para as manifestações da realidade que a
sibilidade, tudo formando um mosaico de
seu ver mereciam corretivo pelas injusti-
linhas harmônicas e coesas. Foi preciso no
ças que comportavam. E solidarizava-se
entanto que a morte o levasse repentina-
com os poetas que estreavam ou ainda
mente, sem aviso, para que tudo isso, e o
buscavam o seu caminho, assim como se
mais que compunha a sua figura de intelec-
irmanara aos poetas que o precederam no
tual multímodo, exibisse a sua dimensão
mesmo afã de construir beleza e avivar
mais definida e mais completa.
consciências, deles recebendo o tom e o
Acionado, na mocidade, por um pensa-
convite para esculpir os seus poemas, sem
mento generoso de comunhão universal,
comprometer jamais a sua independência
cedo descobriu que a sua eficácia estava
e o seu poder de repulsa às várias formas
cercada de não poucas limitações decor-
de injustiça, de absurdo, de ridículo, de
rentes do maquiavelismo político pratica-
falsidade, onde elas se encontrassem.
do por seus companheiros de fé. Mas guar-
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A literatura, espaço de eleição para os
Eis por que o epigrama constituía o seu
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molde predileto: embora espaço breve, con-
que à sua volta pululavam os sinais de
ciso, lapidar, era porém suficiente para que
agressão às fontes vivas da linguagem. O
desse corpo às novidades descobertas no
ensaio longo, a demandar a investigação
cotidiano mais banal, fruto das suas ante-
paciente, ou o artigo de jornal, em que se
nas sensíveis, sintonizadas com todas as
debruçava generosamente sobre a produ-
coisas ao seu redor, ou desentranhadas das
ção corrente, não raro para colocar jubilo-
suas reminiscências biográficas, graças a
samente na vitrine um talento novo que
uma prodigiosa memória, que se manteve
descobria em meio à avalanche de obras
intacta até o fim. É que, se ele nutria senti-
que vinham bater-lhe à porta diariamente,
mentos fraternos pelo próximo e tinha como
mereciam-lhe o mesmo cuidado grave, de
poucos a paixão literária, manifestara des-
artesão feliz com o seu ofício.
de cedo um franco desamor aos esparrama-
A sua mente aberta percorria todos os
mentos, quer nos sentimentos que o movi-
quadrantes do universo literário, o nosso
am, quer na forma ou no conteúdo dos seus
e o alheio, exprimindo pontos de vista ori-
poemas e ensaios. Tratando-se das coisas
ginais e sutis, ou traduzindo obras de im-
lógicas ou do sentimento, no plano do con-
portância capital, desde o Canaã até o
vívio humano, ou no da expressão literária,
Tristram Shandy, ou desde Augusto dos
guardava um respeito quase sagrado – ele
Anjos até Seféris. Fazia-o sempre com a
que se confessava materialista – às verda-
proficiência de um autêntico scholar, que
des simples e resistentes às modas e à cor-
jamais quis ser, não obstante os numero-
rosão do tempo. E se cultivava uma fina e
sos acenos que a Universidade lhe fez ao
característica ironia, era para melhor exer-
longo dos anos. O caso é digno de nota,
citar o seu sentimento do mundo, provo-
pois ele, que se formara em Química para
cando no leitor ou ouvinte a tomada de
ter uma profissão que lhe permitisse a
consciência que liberta, e pondo em ridícu-
sobrevivência diária, era um autodidata
lo as mazelas do dia-a-dia que a seu ver
em tudo o mais, um verdadeiro self made
pediam reparo urgente.
man. Por isso recebera, muito merecida-
Um clássico, em suma, sedento de um
mente, o título de notório saber, que lhe
“admirável mundo novo”, situado não no
permitiria fazer parte de bancas e minis-
além, senão aqui mesmo, para quem o aces-
trar cursos de pós-gradução, sempre com
so ao grego antigo e moderno, aprendido
uma eficiência sem par.
com a paciência de um autêntico clerc,
Note-se ainda que, como poeta, abriu as
franqueou as portas para as línguas menos
janelas para o contato com as crianças, es-
conhecidas entre nós (o holandês, o dina-
crevendo ou vertendo poemas que lhes eram
marquês), além do alemão e do latim,
expressamente destinados, num diálogo
depois de assimilar na juventude os idio-
surpreendente pela identificação com o pú-
mas veiculares. Um raro caso de força de
blico infantil, que lhe retribuía na mesma
vontade e aptidão para o aprendizado e
moeda. Um milagre esse de encontrar uma
manuseio criativo de línguas. Um clássi-
freqüência de onda para falar às crianças,
co, pois, para quem a transparência da lin-
estendendo-lhes o mesmo gesto altruísta
guagem significava a clareza do pensa-
que lançava para os leitores adultos, decer-
mento, num culto ao vernáculo que se fa-
to convicto de que as suas pulsões interio-
zia tanto mais exigente quanto mais sabia
res de poeta consciente eram sempre as
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mesmas, fosse quem fosse o seu
um clichê, mas não encontro palavras mais
interlocutor.
adequadas para traduzir o sentimento que
Tudo isso, que se ergue como um pre-
acomete a todos que o conheceram de per-
cioso legado, indispensável ao melhor co-
to, privando da sua engrandecedora amiza-
nhecimento da nossa cultura, decerto não
de, ou apenas puderam ter dele a imagem
brilharia tanto se não espelhasse as qualida-
brilhante que a sua obra poética, ensaística,
des dum intelectual honesto como poucos,
ou de fino tradutor, projetava.
coerente como raros, ainda quando a vida
lhe parecia ingrata ou o convívio com os
•••
semelhantes não lhe devolvia na mesma
moeda as atitudes de fraterna solidariedade
e de amor incondicional à verdade. As
incontáveis amizades que foi granjeando pela
Convidado por uma editora a “se lem-
vida afora dizem bem do seu companhei-
brar dos sonhos passados, dos planos, dos
rismo sem igual, da sua lealdade tão invulgar
trabalhos. E imaginar os futuros”, José
quanto mais o seu valor podia gerar inveja
Paulo escreveu uma breve autobiografia
ou a competição desenfreada.
que é o autêntico retrato de corpo inteiro
Faz precisamente 40 anos que o conhe-
de um “eu e sua circunstância”, delineado
ci, numa tarde ensolarada, na editora que
praticamente até os últimos dias. Uns frag-
soube em boa hora chamá-lo para coorde-
mentos nos bastarão para testemunhar até
nar o seu projeto de modernização. Traba-
que ponto ia a sua coerência de homem e
lhara até então numa indústria farmacêuti-
de escritor engajado na melhor luta pelo
ca, onde empregara não só os conhecimen-
esclarecimento e emancipação das cons-
tos científicos que lhe poderiam facilitar a
ciências.
ascensão profissional (que sempre recusou),
Quem, Eu?, chama-se o texto, inspira-
como também as suas faculdades huma-
do num velho programa humorístico de
nas, que lhe propiciaram amigos da vida
Lauro Borges e Castro Barbosa, a “PRK30”,
inteira, ainda que sem outra afinidade para
muito apreciado nos idos de 40. E a sua
além do trabalho. Acreditava que, estando
explicação, dada logo à entrada da viagem
mais próximo do livro, poderia dedicar-se
proustiana ao passado em Taquaritinga e
em tempo integral à paixão literária, mas
outras cidades nacionais e estrangeiras, diz
somente com a aposentadoria, volvidos
bem do caráter de José Paulo:
mais de 20 anos, é que encontrou as cir-
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cunstâncias que lhe facultaram dedicar-se
“Quando Vivina de Assis Viana me convi-
inteiramente aos seus poemas, ensaios e
dou para escrever este livro, perguntei-me,
excelentes traduções. A imediata empatia
surpreso: ‘Quem, eu?’. Nunca pensei que
não se alterou no curso dos anos, evidenci-
minha vida fosse interessante a ponto de
ando que as circunstâncias me haviam pro-
merecer uma biografia. Certa ocasião em
porcionado a rara oportunidade de conhe-
que me pediram para falar da minha carrei-
cer não só um intelectual superiormente do-
ra de poeta (se é que a poesia é uma carrei-
tado, mas também um homem especial.
ra), dei à palestra o título de ‘Um poeta
Dizer que o seu desaparecimento cons-
como outro qualquer’. Pois é assim que me
titui uma perda irreparável é, obviamente,
vejo. E, quando penso que alguém da gran-
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deza de Manuel Bandeira se considerava
sível, numa linguagem onde só haja lugar
um poeta menor, que mais posso ser senão
para o essencial, não para os acessórios.
um mínimo poeta?”
Daí a eliminação de tudo quanto cheire a
enfeite, ou ornato, inclusive rima e métri-
Um salto no tempo, e José Paulo leva-
ca, se necessário for. Nunca mais esqueci
nos com ele a Curitiba, onde fazia o curso
essa lição fundamental; disso dá testemu-
de Química, em meio ao convívio com
nho a dicção econômica das dezessete co-
“amigos de mais luzes culturais”, alguns
letâneas de poemas que até hoje publiquei”.
deles poetas. A reminiscência é duma lisura não raro ausente na pena dos biógrafos:
Químico de profissão anos a fio, para
ganhar o pão de cada dia, José Paulo passa-
“Percebi então que é indispensável ao po-
ra mais tarde às lides editoriais, para estar
eta um lastro cultural tão amplo e diversi-
mais próximo da poesia dos seus cuidados,
ficado quanto possível. Só talento não lhe
até um dia se recolher à aconchegante casa
basta. Para que ele possa desenvolver suas
de Santo Amaro, para se dedicar integral-
virtualidades, necessita do estímulo, tanto
mente à paixão que trazia da longínqua
quanto da régua e compasso da cultura. Eles
infância em Taquaritinga. O seu retrato
o incitarão a ampliar o repertório, a técnica
completa-se com um parágrafo em que faz
e a visada de sua poesia, ao mesmo tempo
menção desse retiro de autêntico clerc, onde
em que lhe fornecerão padrões de excelên-
se diria flutuar, como uma brisa de suave
cia para avaliar o nível do seu próprio de-
nostalgia, uma espécie de “aviso do desti-
sempenho. Comparando o que faz com
no”, a premonição de estar vivendo os úl-
aquilo que os grandes poetas fizeram, ele
timos dias de uma vida exemplar:
irá aprendendo a desenvolver o senso de
autocrítica, única bússola capaz de o pôr no
“Passo o dia em meu gabinete de trabalho,
rumo certo. Elogios e censuras alheias ja-
no fundo do quintal. Não um quintal de
mais o farão escrever versos melhores. Para
árvores de frutas e canteiros de verduras,
escrevê-los, ele terá de confiar no seu pró-
o da casa de J. V. [abreviatura dos preno-
prio juízo, corrigindo, mudando, rasgan-
mes do seu avô materno], mas de árvores
do, se necessário, o já-feito, até chegar ao
de flores e canteiros de folhagens cuja vista
melhor de que seja capaz”.
me descansa os olhos e atrai abelhas, borboletas, passarinhos. Rodeado de livros,
O olhar franco lançado para o tempo da
sinto-me no centro do mundo. Com eles
formação reconhece antecessores nas figu-
viajo pela geografia do saber e da imagi-
ras de Manuel Bandeira, Carlos Drummond
nação que tão fielmente cartografam. E
de Andrade, Murilo Mendes, a quem era
nos textos que escrevo, prosa ou verso,
grande a dívida de gratidão:
busco amealhar as pequenas riquezas colhidas vida afora – associações de idéias
“Com esses fundadores da nossa moderni-
suscitadas por um poema, um romance,
dade poética aprendi que poesia é ver as
um ensaio; lembranças de fatos que me to-
coisas do mundo como se fosse pela pri-
caram particularmente; imagens de algum
meira vez e exprimir essa novidade de vi-
sonho que busco fixar antes de dissolve-
são da maneira mais concisa e intensa
pos- rem sua estranheza no ar”.
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José Paulo Paes Massaud Moisés