Anais do II Seminário Nacional Literatura e Cultura
Vol. 2, São Cristóvão: GELIC, 2010. ISSN 2175-4128
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POETAS FÁUSTICOS: TRANSGRESSÃO E LIBERDADE
Dalila Maria Cordeiro Machado 1
A apresentação da tese Os tempos fáusticos na lírica do lugar, defendida em março
de 2007, na Universidade Federal da Bahia, transformada em livro a ser publicado pela
EDUFBA, trouxe à tona a existência, na literatura brasileira, de um legado jacente, formado
por três poetas demoníacos, Luiz José Junqueira Freire (1832-1855), Pedro Kilkerry (18851917) e Alberto Luiz Baraúna (1948-1971), denominados como fáusticos, para distingui-los
dos poetas malditos franceses, Baudelaire, Rimbaud, Lautréamont e Mallarmé.
Tais poetas têm em comum, a abordagem do mal em suas obras,, do ponto de vista
cósmico, como uma categoria literária, um caminho para o conhecimento. Ao tomar o mal
como tema, os poetas referidos expõem seu desejo de ruptura, transgressão e liberdade,
elementos que funcionam como mola propulsora da atividade poética. Os poetas fáusticos
diferenciam-se dos poetas malditos no que se refere ao tempo cronológico, pois, ao invés de
surgirem como um surto – os grandes malditos foram quase contemporâneos uns dos
outros –, a pontualidade cronometrada dos poetas fáusticos foi de trinta em trinta anos
A trajetória desses poetas demoníacos na literatura brasileira inicia-se na vertente
aberta, no final do Romantismo brasileiro, por Luiz José Junqueira Freire, poeta nascido em
Salvador, no bairro dos Barris, e monge do Mosteiro de São Bento aos 20 anos. Sua lírica
foi considerada demoníaca pela crítica, por abordar temas interditos, como a orfandade, a
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Doutorado em Letras e Linguística, pós-doutorado em Crítica Textual, Instituto de Letras, Universidade Federal
da Bahia
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bastardia, o homossexualismo, o erotismo, além dos poemas revolucionários que escreveu
contra o sistema político vigente na época e contra o clero, tendo sido ele um monge
republicano em plena monarquia, Junqueira Freire foi um grande transgressor nas letras e
na atitude rebelde, nas denúncias que fez contra a Igreja Católica e contra a monarquia.
É de sua autoria, por exemplo, “O Hino da Cabocla”, que causou grande impacto
quando foi publicado em 1852, não só pela ousadia dos versos libertários, como também
pelo fato de Junqueira Freire ter utilizado, como pseudônimo, o nome de Gregório de Matos
– arquétipo maior de toda a rebeldia na lírica nacional –, para proteger-se de possíveis
represálias da parte do clero e das autoridades monárquicas. No entanto, sabe-se que ele
chegou a confessar que teria gostado de recitar o referido poema do alto de uma janela do
Mosteiro de São Bento, de onde poderia ser ouvido pelo povo na rua, algo que ele não
realizou por saber do perigo ao qual se expunha por se confessar republicano, sendo um
monge beneditino.
O patrimônio literário de Junqueira Freire, morto aos 22 anos, vítima de tuberculose
contraída na infância, ficou aos cuidados de Franklin Dória, o Barão de Loreto, amigo da
família do poeta, que levou o acervo para a Academia Brasileira de Letras. Lá, seus
manuscritos autógrafos foram desaparecendo aos poucos, principalmente os poemas
eróticos, censurados pela crítica como impublicáveis. Muitos desses poemas foram
passados de mão em mão, entre os confrades daquele tempo, que liam com curiosidade,
espanto e preconceito, a poesia erótica do, assim chamado, Monge Menino.
Após sua morte, foram publicadas as obras líricas Inspirações do Claustro e
Contradições Poéticas, ambas sem os prólogos e as notas escritos pelo autor, que só
aparecem nas primeiras edições publicadas em 1865 e 1869. O resgate desse material
elucidativo das reais intenções do poeta, dirigido ao leitor, encontra-se recuperado em Os
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tempos fáusticos na lírica do lugar, que se encontra no prelo, para publicação. Lá também
se encontram recuperadas as mensagens deixadas pelo poeta aos futuros leitores, como o
trecho que se segue:
Estes cantos são meus dias antigos, são minha vida vivida, são todo o meu
passado.
Eu amo todos esses tempos, como um pai ama os esqueletos de seus
filhos, que já não são, mas que forão uns mais bonitos, outros mais feios.
Eu amo todos esses tempos, porque custárão-me suores e sangue.
(FREIRE, 1869, v.2, p. 3-4).
Na Biblioteca Pública Municipal Mário de Andrade, em São Paulo, foi encontrado um
exemplar do livro Elementos de Retórica Nacional (1869), escrito pelo poeta como resultado
da experiência vivida por ele como professor,, pois dava aulas de retórica e eloqüência aos
jovens que iam procurá-lo em sua cela no Mosteiro de São Bento, para ouvir seus
ensinamentos. O prefácio desse livro é de Franklin Dória, o Barão de Loreto, que assim o
apresenta:
O presente compêndio de retórica é de um jovem cujo nome tornou-se já
popular para as letras pátrias; é Junqueira Freire. [E complementa:] O
poeta, como todos os poetas, amava a eloqüência, a primogênita da poesia
e comprazia-se em interpretar os mistérios da arte da palavra a alguns
moços, que iam ouvi-lo de vez em quando na solidão de sua cela, no
Mosteiro de São Bento. (DÓRIA, 1869, p.v-vi).
O que ainda existe do arquivo de Junqueira Freire encontra-se no Centro de
Memória da Academia Brasileira de Letras, à disposição dos pesquisadores.
O poeta Junqueira Freire morreu em 1855, aos 22 anos. Foi enterrado no cemitério
do Mosteiro de São Bento, o qual foi destruído mais tarde no motim provocado por monges
beneditinos. Sua lápide foi destroçada, assim como as outras existentes naquele espaço
cemiterial. Por este motivo, não se sabe onde se encontram seus restos mortais.
Trinta anos após sua morte, nascia um novo poeta fáustico na Bahia, que iria garantir
a permanência do percurso aberto por Junqueira Freire.
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Seu nome: Pedro Kilkerry.
Nascido em 1885, em Santo Antonio de Jesus, cidade do Recôncavo baiano, Pedro
Kilkerry morreu aos 32 anos, em Salvador, no dia 25 de março de 1917, no Hospital Santa
Isabel, em decorrência de uma traqueotomia malfeita. Como foi observado em Os tempos
fáusticos na lírica do lugar (MACHADO, 2007, p.82), a dinâmica do caráter de sua pequena
obra, dispersa e fragmentária, revela uma escrita realizada em tempo mínimo, por um poeta
que teria sua vida interrompida cedo.
Alguns dos poemas de Kilkerry foram publicados em jornais e revistas da época,
como as revistas simbolistas Nova Cruzada e Os Annaes, tendo sido, resgatados. Seu
espólio literário foi reunido por Erthos Albino de Souza, pesquisador sergipano radicado na
Bahia, que o enviou ao escritor Augusto de Campos, em São Paulo, o qual, após pesquisa
exaustiva, publicou o livro Revisão de Kilkerry (1970 e 1985). Neste livro, baseado, também,
nos depoimentos de contemporâneos do poeta, Campos considera Pedro Kilkerry o autor de
uma pequena grande obra, trágica figura de “poeta maldito”, que espera como
Sousândrade, o genial e desconhecido poeta do Romantismo, a revisão do seu processo de
olvido. Para o escritor e pesquisador paulista, a invulnerabilidade ao pieguismo, ao
sentimentalismo, frequentemente confundidos com a poesia pela crítica indígena, era uma
qualidade rara em Kilkerry, poeta avesso ao lirismo lacrimogêneo, próprio da época, a tal
ponto que chegou a ser associado à figura arquetípica de Gregório de Matos, que teria
ressurgido como uma potência oculta na tendência satírica kilkerriana. Todavia, Campos vê
mais do que isto e aponta para um comportamento estético-crítico de Kilkerry que, não
encontrando espaço para desenvolver-se, a não ser na restrita audiência dos amigos, iria
introduzir-se pelos interstícios da poesia e da prosa que escreveu. O poema de Kilkerry, “O
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verme e a estrela”,transformado em música popular brasileira na contemporaneidade, é um
dos exemplos do caráter fáustico do poeta:
Agora sabes que sou verme
Agora sei da tua luz
Se não notei minha epiderme...
É, nunca estrela eu te supus
Mas, se cantar pudesse um verme,
Eu cantaria a tua luz!
(KILKERRY, apud CAMPOS, 1985, p. 145).
Ciente do desejo artístico que lhe estreitava a vida como uma potência criadora,
Pedro Kilkerry contentou-se em ser objetivo, por isso pôde realizar uma pequena grande
obra poética. Apesar da escassa produção encontrada nos jornais e nas revistas literárias
mencionadas, sua lírica efetivamente sobrevive na contemporaneidade e mantém o
continuum do problema, no que se refere ao caráter fáustico existente na senda aberta no
bojo mesmo do Simbolismo brasileiro. Muito antes da Semana de Arte Moderna, em 1922,
Pedro Kilkerry já prenunciava a modernidade, ao afirmar, em 1913, as expressões “Olhos
novos para o novo”, “O verso é livre, vivamo-lo!”
Considerado pela crítica como protomodernista, Pedro Kilkerry não titubeou e o que
escreveu permanece na atualidade, pois sua grande poesia é eterna.
Exatamente 31 após o desaparecimento de Pedro Kilkerry, nascia em Salvador
aquele que iria ser o novo poeta maldito na via aberta das possibilidades fáusticas abordada
na tese referida, ora transformada em livro.
Seu nome: Alberto Luiz Baraúna.
A consolidação da vereda fáustica na literatura brasileira é confirmada pelo poeta
Baraúna, nascido em Salvador em 1948 e morto em 1971, vítima de câncer, na Capital da
Bahia. Seu único livro, Quarenta quase sonetos e uma sextantina hexagonal para viola
d’amore, foi publicado postumamente, em 1975, em Salvador. Nesta obra, o poeta realiza
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uma experiência de viagem, a exemplo da obra de Camões. Mas não relata as conquistas
dos navegadores, como fez o autor de Os Lusíadas, pois seu périplo é outro, de
perplexidade e dor, uma .viagem iniciática, de conquista da sabedoria, e tem seu ponto
culminante no domínio que o poeta tem de si e do ambiente que o rodeia, domínio este
alcançado através da forma superior de conhecimento. A voz poética de Baraúna em toda a
sua poesia realiza a heresia ancestral do revisionismo em relação ao precursor, o Original
Supremo, Luís de Camões. Ao retomar a tradição da literatura portuguesa através da
herança camoniana, o poeta baiano realiza o sentido do Outro, como o sonho de alteridade
que todo poeta deve sonhar (BLOOM, 1991), ele assume a herança poética como débito,
como doença da autoconsciência culpada em relação ao precursor. Neste sentido, Baraúna
é um grande revisionista da lírica de Camões, fato comprovável no discurso poético de
ambos. Na seleção do repertório poético, nas escolhas lexicais, a voz que ecoa é luciferina
e fala a língua portuguesa, porém alterada no tom, pela rebeldia e pela forma desconstrutora
do discurso lírico.
A personificação do mal na poética de Baraúna é um ato de revolta diante da
perspectiva inexorável da morte; sua rebeldia é utilizada no debate contra a anterioridade,
tendo por intuito criar espaço para inserir seu próprio discurso no âmbito das literaturas
contemporâneas. Os poemas e textos em prosa que fazem parte do seu legado literário são
baseados em conhecimentos que incluem a Kabala, Em “Fiat Lúcifer”, poema em que o mal
está personalizado no sujeito lírico, o poeta assim se apresenta:
Sou Lúcifer. Feras brancas
listradas de luz me arrastam
de rastro no azul laminado
pelo céu raso de marcas.
costeio com as asas fechadas
os vidros imensos por sobre
nada, abram as portas
que portas não há que se
fechem ao golpe galope dos
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que sangram e soam com gritos.
(BARAÚNA, 1988, p.16)
No panorama composto pelas obras dos poetas fáusticos aqui mencionados, foi
observado que a abordagem do mal na lírica realizada diz respeito ao desejo de ruptura, de
questionamento do ser total, e se refere, fundamentalmente, à problemática da liberdade. O
discurso construído configura-se em oposição ao bem, mas com o propósito de ressaltá-lo.
Em certo sentido, a arte literária se ocupa em ordenar e clarear visões exaltadas e
perturbadoras do mal, concebidas pela imaginação do homem e ficcionalizadas pelo signo
linguístico, num salto rumo à poesia e à ficção, como um modo de expurgar, da realidade,
pulsões negativas provenientes da condição humana.
O paradigma proposto em Os tempos fáusticos na lírica do lugar, que diz respeito à
possibilidade da construção de um novo cânone na Literatura Brasileira, tem sua
continuidade no pós-doutorado sobre a obra édita e inédita de Alberto Luiz Baraúna,
pesquisa em andamento na Universidade Federal da Bahia, com bolsa da FAPESB.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARAÚNA, Alberto Luiz. Quarenta quase sonetos e uma sextantina hexagonal para
viola d’amore. Capa e ilustração de Calasans Neto. Salvador: Macunaíma, 1975.
BARAÚNA, Alberto Luiz. Fiat Lúcifer. Letra Viva. Jornal de Cultura, Salvador, n. 4, p.16,
mar. 1988.
BLOOM, Harold. A angústia da influência: uma teoria da poesia. Tradução de Arthur
Nestrovski. Rio de janeiro: Imago,1991..
CAMPOS, Augusto de. Revisão de Kilkerry. São Paulo: Brasiliense, 1985.
DÓRIA, Franklin. Introdução. In: FREIRE, Junqueira. Elementos de retórica nacional. Rio
de janeiro: Eduardo & Henrique Laemammert., 1869b, p. v-x.
FREIRE, Luiz José Junqueira. Obra poética. 3. ed. corr. e acresc.com um juízo crítico de
J.M. Pereira da Silva. Rio de janeiro: Garnier, 1869.v.1: Inspirações do Claustro; v.2:
Contradições poéticas.
MACHADO, Dalila. Os tempos fáusticos na lírica do lugar, 163f. Tese (Doutorado em
Teoria da Literatura)-Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007.
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