A verdadeira crise estrutural
não é o défice ser de 6 ou 7% do PIB,
mas, antes, o facto
da carga da despesa pública
estar já quase nos 50% do PIB.
A recuperação
da economia portuguesa
Mais uma vez se fala hoje na necessidade de recuperar a economia portuguesa.
Pela quarta vez nos últimos trinta anos democráticos estamos em crise e
precisamos de recuperação. É importante compreender a situação mas, mais do
que isso, entender o problema.
1 A SITUAÇÃO
1.1.
A crise
A crise recente começou no início de 2002 ou, se quisermos ter uma visão um
pouco mais longa, no segundo trimestre de 2000. O PIB trimestral caiu em 9 dos
20 trimestres até ao primeiro de 2005. Mas, por outro lado, não se trata também
de queda drástica. O crescimento acumulado do produto no fim de 2004 era,
desde o início de 2000, de 4,4%, mas negativo (-1,1%) se medido desde o início
de 2002. Assim, a forma mais sugestiva de descrever a evolução recente da
nossa economia é «estagnação».
Nem sempre é esta a imagem que se tem da situação económica. As descrições
correntes são de crise franca, dramática, crónica. Isso deve-se, sobretudo, a dois
factores: primeiro, porque a forma comum de analisar a situação portuguesa é
face ao nível comunitário, e uma estagnação interna traduz-se sempre numa
JOÃO CÉSAR DAS NEVES
PROFESSOR EXTRAORDINÁRIO UCP
O ECONOMISTA | 2005
15
Portugal
queda relativa face aos parceiros; em segundo lugar porque
não tem um mau
o mercado de trabalho dá-se mal com estagnações. Embora
o produto tenha mantido o nível nos últimos quatro anos, a
taxa de desemprego subiu de 3,8% no fim de 2000 para 7,5%
no primeiro trimestre de 2005, e o número de
aparelho produtivo,
desempregados mais do que duplicou de 195 mil para 413
mil pessoas no mesmo período. Mas nada disso impede que
a circustância actual seja de estagnação e não de queda
acelerada.
económico e social.
A causa da situação actual é, em primeiro lugar, um
comportamento cíclico. O nosso país teve um longo período
de crescimento ininterrupto desde meados de 1995 até ao
O drama
fim do século. A economia cresceu um montante acumulado
de mais de 30% de 1991 a 2001. Mas entrou em situação de
flutuação a nível baixo desde então. Já nos acontecera o
mesmo dez anos antes, na viragem da década de 80 para 90.
é a existência
Nessa altura a economia crescera quase 42% de 1984 a 1991,
de uma enorme classe
Existem, no entanto, alguns problemas sérios neste ciclo. Ao
mas estagnou de 1991 a 1994. Isto é normal e não nos deve
alarmar.
comportamento da economia internacional, há que juntar as
importantes questões financeiras, que se manifestam no
défice público e no endividamento do País. A soma dos
de parasitas
défices da balança comercial e de capitais (medida do
desequilíbrio financeiro global do País), que era menor que
2% do PIB na referida recessão de há dez anos, anda agora
bastante acima de 5%. Em 2004 o País teve de pedir
que suga o produto
emprestado ao exterior 5,9% do seu produto. Este problema
exige atenção.
Apesar de todas as preocupações estarem centradas nas
dos demais.
questões cíclicas e orçamentais, os elementos realmente
relevantes para a recuperação estão noutro lado: é a
estrutura que nos deve ocupar. Esses problemas de fundo
estão misturados com os elementos conjunturais, mas têm
natureza diferente. A economia portuguesa precisa de
resolver alguns problemas de fundo se quer conseguir a tão
desejada
recuperação.
São
alguns
desses
que,
esquematicamente, vale a pena considerar brevemente.
1.2.
A estrutura
Em menos de cinquenta anos, na segunda metade deste
século, Portugal passou de uma economia tradicional e
atrasada, para uma estrutura moderna, dinâmica, integrada
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Anuário da Economia Portuguesa
A RECUPERAÇÃO DA ECONOMIA PORTUGUESA | JOÃO CÉSAR DAS NEVES
num espaço desenvolvido e aproximando-se solidamente
do nível dos seus parceiros. Foi muito difícil e ainda falta
muito para fazer, mas apesar das dificuldades externas, das
tolices governativas de décadas de governos, apesar da
descrença e incompreeensão da nossa classe intelectual, os
empresários e trabalhadores venceram o seu atraso
“invencível” e ultrapassaram os obstáculos “intransponíveis”.
Ao analisar esta questão é preciso começar por dizer que,
2 O PROBLEMA
apesar de tudo, Portugal tem, hoje como ontem, uma
estrutura económica equilibrada, dinâmica e competitiva.
2.1.
As duas economias
Não se muda de estrutura facilmente. É verdade que temos
problemas conjunturais, como todos, e de que falaremos
Quando se fala da recuperação da economia portuguesa,
adiante. Mas a primeira coisa a notar é que Portugal tem uma
não é preciso esperar muito para que venha ao de cima a
estrutura económica equilibrada, dinâmica e competitiva.
palavra «produtividade». Portugal tem problemas de
produtividade e por isso não cresce. Ainda para mais porque
Claro que temos bloqueios e atrasos, mas qual é a economia
na produtividade a questão decisiva não é tanto a má fase
que não os tem? Há graves ineficácias na educação, na saúde
da economia mundial ou a perda de algumas quotas na
e na justiça, atrasos na infra-estruturas, carências na
exportação. Portugal enfrenta hoje a nova realidade que a
formação profissional, bloqueios na regulamentação e na
entrada de concorrentes de peso, como a China, cria na
burocracia. Não há aqui qualquer dúvida e são graves
globalização.
lacunas e bloqueios. Tudo isso é verdade e, se os
conseguíssemos eliminar, o nosso crescimento seria mais
Um dos indicadores mais utilizado para medir a
rápido e equilibrado. Mas o notável crescimento das últimas
produtividade de uma economia é o dos «custos de trabalho
décadas foi conseguido apesar desses atrasos.
por unidade produzida». Calculado pela Comissão Europeia,
ele incorpora a dinâmica relativa dos dois elementos
Portugal duplicou o seu nível de vida nos últimos 20 anos,
principais da competitividade: a produtividade laboral e o
um feito que poucos países conseguiram igualar. A taxa de
aumento salarial. Ora estes custos unitários aumentaram em
crescimento média no período desde a nossa adesão é a
Portugal mais do que em qualquer outro dos 15 países da
segunda maior na Europa, a seguir à da Irlanda. Apesar de
União nos últimos dez anos. O crescimento acumulado de
todos os problemas que têm sido referidos, e que são
1985 a 2004 foi acima de 6%, enquanto, por exemplo, os
verdadeiros e reais, o sucesso é evidente.
mesmos custos caíram 5% em Espanha, 15% na Irlanda e 3%
na média dos 15 da União. Isso significa que o nosso país
Isto significa que é muito diferente identificar obstáculos e
declinou mais de 10% relativamente aos parceiros.
decretar falhanços. Todos os sistema têm defeitos e falhas,
mas muitos funcionam razoavelmente apesar disso. A
Este é um comportamento desastroso da nossa
economia portuguesa, 50 anos após o início da sua
competitividade externa. Desastroso e persistente, pois foi
industrialização e 20 anos após a adesão à CEE, mostrou bem
um padrão sustentado ao longo de toda a década, só
que consegue funcionar convenientemente, apesar das sua
interrompido por ligeiras melhorias em 1997, 1998 e 2002,
fortes dificuldades. O problema está em dois aspectos
mas com terríveis perdas em 1995, 2000 e 2003. O
estruturais, aliás ligados entre si, que exigem atenção
comportamento é tão desastroso que se pergunta como foi
imediata.
possível. Pode uma economia aberta, participante num
espaço comercial integrado, suportar um desvio deste
tamanho ao longo de tanto tempo?
A resposta está num facto central, mas pouco referido nestas
discussões: a existência de duas economias dentro da
O ECONOMISTA | 2005
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Apesar da descrença
economia portuguesa. Por um lado existem sectores que
e incompreeensão
sofrem a concorrência externa, os chamados «bens
transaccionáveis». A estes aplica-se a lógica habitual: não
podem aumentar os seus custos sob pena de serem
incapazes de vender no agressivo mercado global. Aí os
da nossa
salários seguem de perto os aumentos da produtividade e
não há desculpas ou facilidades.
Mas
classe intelectual,
existem
produtos
que
são
«não
concorrência externa; os taxistas, professores, bombas de
gasolina e jornais, até as pastelarias e hortelãos não se
preocupam
os empresários
outros
transaccionáveis». Os barbeiros e polícias não temem a
com
as
importações.
Para
esses,
a
competitividade é um chavão, muito repetido mas sem
significado real.
O problema é que todos os sectores concorrem
e trabalhadores
internamente nos mercados de trabalho, de crédito e de
muitas matérias-primas. Isso cria uma terrível pressão sobre
os sectores de bens transaccionáveis, agricultura, pesca,
indústria, turismo, etc. Estes estão, em geral, presos a preços
venceram
internacionais, mas suportam custos internos inflacionados
por aquelas secções da economia que se riem da
competitividade. Não admiram, pois, as dificuldades das
indústrias e as tendências estruturais que se vêm a sentir na
o seu atraso “invencível”
nossa dinâmica nacional.
Aqui caímos, mais uma vez, no magno desequilíbrio das
contas públicas. Porque grande parte dos bens não
e ultrapassaram
transaccionáveis
são,
directa
ou
indirectamente,
condicionados pelo Estado. A esmagadora despesa pública
está dirigida sobretudo aos sectores protegidos da
concorrência, educação, justiça, saúde, etc. Ao propulsionar
os obstáculos
os seus custos, impostos e salários, a política orçamental
“intransponíveis”.
Os sectores transaccionáveis só têm conseguido sobreviver
contribui massivamente para agravar os problemas da
competitividade nacional.
à custa de grande produtividade e um dinamismo que os
mantém acima do marasmo geral. Vista assim, a nossa
competitividade até tem sido muito boa, para conseguir
arrastar os “pesos mortos” que a política lhes impõe.
2.2.
As duas sociedades
O segundo bloqueio é, portanto, o problema do orçamento.
Toda a gente hoje aponta as contas públicas como o
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Anuário da Economia Portuguesa
A RECUPERAÇÃO DA ECONOMIA PORTUGUESA | JOÃO CÉSAR DAS NEVES
obstáculo à recuperação. Mas a verdadeira crise estrutural
Nós sabemos onde é que isto pode acabar, pois já vimos a
não é, como vimos, o défice ser 6 ou 7% do PIB. É a carga da
mesma doença noutros lados. A Grécia, uma das economias
despesa pública estar já quase nos 50% do PIB. O primeiro
mais dinâmicas do pós-guerra, decidiu, depois de entrar na
problema representa uma fuga de poupança, o segundo é
CEE em 1981, acomodar-se a uma atitude de parasitismo.
um bloqueio maciço do progresso. O primeiro problema
Engordaram os grupos de pressão, instalaram-se os
resolve-se com alguma dificuldade, o segundo exige uma
interesses, dominaram os espíritos oportunistas. Os gregos
nova atitude nacional.
depressa se tornaram nos golpistas da Europa, perdendo
todo o dinamismo que os caracterizava. A Grécia é, ainda
Portugal é um país moderado, pacato, equilibrado. Não tem
hoje e apesar da prestação recente, o único grande exemplo
conflitos políticos sérios. Quase 90% do eleitorado vota em
de fiasco na integração europeia.
partidos consensuais nas questões básicas. Mas, talvez por
causa disso,o País vive uma vida política dupla.Cria problemas
Portugal podia ter caído já na mesma armadilha. Mas a
inexistentes, esquece ou empola os reais, atende às tolices das
revolução de 1974 enxotou os antigos parasitas, e a adesão à
franjas extremas. Deste modo, um país pacífico e cordato
CEE em 1986 enxotou os parasitas da revolução. Foram anos
acaba frequentemente por se balançar à beira do abismo.
difíceis, mas de grande êxito. O país ultrapassou a Grécia e foi
apontado como o grande sucesso da integração europeia.
Desde os anos 50, altura em que começou a modernização
Foi esse sucesso que o perdeu, ao fazer aparecer novos
da nossa economia, que o nosso país se sente atrasado e se
parasitas. A Europa mudou muito desde 1995. Nos últimos
esforça por apanhar os parceiros europeus. Aquando da
sete anos, a Grécia curou-se e Portugal apanhou a doença
fundação da EFTA em 1959, com o acordo EFTA-CEE em
grega. O êxito subiu-lhe à cabeça. Deixou de ser “o bom
1972, na adesão à CEE em 1986, com o “mercado único” em
aluno europeu” e apostou na cabulice. Já não se ouve
1992 e a “moeda única” em 1999, sentiu-se sempre a força do
“deixem-nos trabalhar!”; diz-se “exigimos regalias!”. Entretanto,
desafio, que sempre se conseguiu vencer.
a História passa ao lado.
Mas nos últimos anos, após uma integração bem sucedida
Portugal não tem um mau aparelho produtivo, económico e
na Europa, sobreveio uma atitude de complacência e
social. O drama é a existência de uma enorme classe de
repouso. Portugal sentiu-se na posição de gozar dos
parasitas, que suga o produto dos demais. É ela que atrasa a
benefícios. Foi então que apareceu uma miríade de
competitividade e empola o orçamento. A receita de
corporações, interesses organizados e forças políticas que
recuperação, hoje como ontem, é a mesma: trabalho,
pretendiam partilhar o “bolo” que ninguém queria produzir.
imaginação, sacrifício e iniciativa. É preciso sacudir os
Funcionários, médicos, professores, empresários, farmácias,
comodismos paralisantes, enfrentar os habituais bloqueios e
construtoras, televisões, estudantes, agricultores, am-
dominar os interesses instalados. Assim, a economia
bientalistas, um sem-número de categorias sociais lutam
recupera.
><
para serem premiadas com benesses, subsídios, institutos,
subvenções e outros desembolsos.
O efeito não se fez esperar. Os magnos problemas da
educação, da saúde, da justiça, da segurança, da burocracia,
que são os verdadeiros bloqueios do nosso desenvolvimento, nascem todos deste problema.
Além disso, o actual descalabro das finanças públicas é
causado directamente por um feudalismo dos interesses. Os
grupos de pressão empanturraram-se à custa dos dinheiros
públicos, gerando o buraco. Uma parte importante da élite
deixou de produzir e vive à custa do resto do País. Daí a
desaceleração.
O ECONOMISTA | 2005
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