Anais do 5º Encontro do Celsul, Curitiba-PR, 2003 (958-961)
SITUAÇÃO DE ENSINO DE LÍNGUAS INDÍGENAS NO CONTEXTO ESCOLAR
Maria do Socorro Pimentel da SILVA (UFG)
ABSTRAT: The main goal of this is discuss haw indigenous languages are taught at indigenous schools..
KEYWORDS: indigenous, language, schools, education,
0.Introdução
Nosso objetivo nesta comunicação é discutir sobre o ensino de línguas indígenas nas escolas dos
povos que as falam e a situação de usos dessas línguas na comunidade. Para tanto recorremos ao
levantamento sociolingüístico que estamos fazendo sobre a vida das línguas indígenas brasileiras. As
informações aqui apresentadas foram coletadas durante nossas visitas a algumas escolas indígenas nos
anos de 2001 e 2002 e também durante os cursos para habilitação de magistérios indígenas que temos
ministrados desde 1996 até o corrente ano, nos Estados de Tocantins, Maranhão, Pará, Rondônia, Santa
Catarina e Rio Grande do Sul.
Participam desses cursos os seguintes povos indígenas: Makurap, Jabuti, Tupari, Kanoé, Massaka,
Pacaá-Nova, Kampé, Arikapú, Karipuna, Kwaza, Karitiana, Arara, Gavião, Surui, Kaxarari, Cinta Larga,
Aikana, Uru- Eu-Wa-Wau, Zoro, Amandawa, Tentehar, Urubu-Ka´por, Karajá, Xerente, Krohô,
Kaingang, Xokleng e Mundurukú. Esses povos pertencem a troncos lingüisticos distintos. Muitos deles
pertencem a famílias constituídas apenas por uma língua, como é o caso dos Jabuti. Nesta situação,
segundo Rodrigues (2000), as línguas ficam mais desprotegidas, ou seja, sem alimentação de línguas
parentes.
1.Política de Valorização da Línguas Indígenas e Situação de Ensino
Nos cursos de formação de professores indígenas, temos colocado em debate a importância de uma
política de valorização das línguas no contexto escolar e fora dele. Nossa proposta é que os povos
indígenas adquiram conhecimentos que os ajudem estudar, analisar e documentar seus saberes
lingüísticos e extra-língüísticos. Talvez isso possa contribuir com a sustentabilidade de suas línguas.
Dos povos citados acima, alguns não são mais bilíngües, como, por exemplo, os Canoé. Aliás, não
existe mais uma comunidade Canoé, eles vivem misturados com outros povos nas comunidades destes.
Segundo informações fornecidas pelo professor Fernando Canoé, que não fala mais a língua materna
tradicional de seu povo, há apenas cinco falantes dessa língua. Na mesma situação vivem os Jumas,
também representados por apenas cinco pessoas, que moram com os Uru-Eu-Wau-Wau, povo da mesma
família lingüistica, habitante da região do Alto Jaru, em Rondônia.
A situação sociolingüística dos povos que vivem em Rondônia merece atenção especial. Na
grande maioria, estes povos estão agrupados em comunidades pequenas. A maior população não passa de
2000 pessoas, o que significa dizer que todos eles correm sérios riscos de extinção. O mais triste de tudo
isso é que há pouca documentação das línguas desses povos, ou melhor, de seus saberes, sejam eles no
campo da botânica, da arte, da mitologia ou de outras áreas. Há muitas causos de desaparecimento de
línguas sem que os conhecimentos por elas expressados sejam registrados e sem que seus autores possam
admirar e perceber as riquezas e particularidades de suas línguas, pois muitas delas, sequer tinham um
alfabeto. Como exemplo dessa realidade, citamos os Canoé. Situação semelhante enfrentam os Makurap,
que só em 2001 começaram discutir seu alfabeto no Curso de Formação de Professores indígenas, do qual
participam. O ponto de partida dessa discussão têm sido a sugestão de ortografia, da profª Alcerinda, da
UFPA, apresentada em sua dissertação de mestrado e as nossas discussões em sala de aula sobre a
importância da adoção de uma política de valorização das línguas indígenas.
Em Rondônia, a escola pouco tem contribuído com a manutenção das línguas indígenas, não há
nesse estado uma tradição de uso dessas línguas na escola, onde a de prestígio sempre foi o português,
mesmo em comunidades fluentemente bilíngües, como os Karitiana. Embora a maioria dos professores
dessa etnia saiba ler e escrever na sua língua materna não a usa na escola. Outros, como os Jabuti,
enfrentam a situação de viverem em uma comunidade constituída por vários povos indígenas. Eles sabem
escrever em sua língua, mas não tem material didático escrito nela, como também não sabem que sistema
de ensino adotar na escola em virtude do plurilingüismo de sua comunidade.
A situação sociolingüística e educacional dos povos indígenas de outros estados, pelo menos nos
mencionados aqui, não é diferente da de Rondônia. Os Kaingang, em Santa Catarina, embora contem com
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uma população numerosa, vivem hoje, em decorrência de todo um processo de dominação ideológica,
uma situação de perda de sua língua materna muito mais grave do que pequenas comunidades, como, por
exemplo, os Amandawa, em Rondônia, uma sociedade constituída por mais ou menos 90 pessoas, todas,
no entanto, falam e usam a língua materna em todos os momentos de comunicação. Em Santa Catarina, a
realidade é outra. Embora existam comunidades Kaingang bilíngües, ou seja, falantes de português e de
Kaingang, há aldeias que somente 30% da população fala essa língua, como, por exemplo, a da sede do
Posto Indígena Xapecó.
De maneira geral, o panorama das línguas indígenas é de perda de espaços de uso em suas
comunidades e de desprestígio na escola. Não há uma política verdadeira de ensino das línguas indígenas,
fato facilmente comprovado, basta verificarmos a quantidade e a qualidade do material escrito nessas
línguas.
Outro fato agravante é que o material escrito nas línguas não leva em consideração seus usos pelos
falantes, seus contextos de produção, e, muito menos, o propósito de se escrever nessas línguas. Como
exemplo desse tipo de material didático, citamos a cartilha Arara, de alfabetização, editada neste ano.
Dela, apresentaremos o seguinte trecho:
Lição 2
Lição 2
TOTO ei w
t
to
to
toto
to
to
T
TOTO
toto.....................................................................................................
e ei
E EI
ei ......................................................................................................
Toto ei w Ê ei wîn ahyâ?
Õn ei w
Wat ite pap ei w õam.
Atividades:
Palavras estudadas nesta lição:
Toto..............................................................................................
Ei ...................................................................................................
W Ite pap............................................................................................
Letras estudadas nessa lição: t e e
t........................................................................................................
e..........................................................................................................
Outras palavras com a letra t:
T-ya-õyTá-ûTa-a-t-ma
Na-t
Y-te
P-r-t
Esse tipo de material não desperta na criança interesse para ler na sua língua materna. São trechos
acompanhados de exercícios repetitivos, concebidos numa visão estruturalista de linguagem, desligados
da vida da criança e dos usos da língua na comunidade. Não privilegia nenhum aspecto da língua, seja ele
semântico, sintático, discursivo ou fonológico. A ênfase está na repetição de letras e palavras
descontextualizadas. Além disso, as atividades são de difícil compreensão sobre o que se deve fazer. O
bilingüismo nelas adotado é de cunho civilizador. Todos os comandos das atividades estão em língua
portuguesa, e o que é para ser feito, em língua Arara, reforçando ainda mais o status de língua dominante
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e língua dominada. Essas atitudes lingüísticas desmerecem a língua indígena e a coloca na periferia do
processo escolar, o que contribui cada vez mais com a sua desvalorização, fato que, sem dúvida alguma,
provoca anemia da língua, levando-a à morte, realidade enfrentada hoje por muitas línguas indígenas
brasileiras.
A escrita em línguas indígenas, de maneira significativa, pode ser um fator a favorecer a
sobrevivência desses idiomas, desde que se leve em consideração a realidade social de seus usos. Essa é
uma referência que deve ser observada desde a alfabetização das crianças. Nessa fase, há muitas
atividades de linguagem que podem ser adotadas. Temos oportunidade de trabalhar com palavras
sozinhas, mas não descontextualizadas, mas, sim, com palavras, como afirma Bakhtim (1997), povoadas
de vozes, sentidos, histórias, sentimentos e de relacionamento cultural. Palavras que expressam
conhecimento, portanto, pertencem a um gênero discursivo. Citamos em seguida as atividades 1 e 2, em
língua Karajá, como exemplo do exposto aqui.
1) Lembre-se de seus conhecimentos sobre a classificação dos alimentos por tipos de comidas e
1
ligue corretamente as duas colunas.
Tokera (abóbora)
Waki (milho)
(mel)
Bidi
Adikura (mandioca)
Rekubreke (melancia)
Iweru (tipo de minguau)
Kuru (sembereba)
Hanikede (carne de galinha)
wadò (minha comida, para carne e outros)
watòbò (minha comida, para coisas que se chupam)
wahina (minha comida /massa)
wamona (minha comida/coisas líquidas)
2) Aproveite seu conhecimento e faça, conforme o solicitado, a palavra cruzada a seguir:
1-Habu-ni (Nome de homem)
2- Dexi-my relemyh (material com que se faz dexi)
3 -Byre-my relemyh (material usado na confecção de esteira)
4-Utura nihik ãhu-my rejira (maior peixe que vive no lago)
5-Utura tykydi (peixe de couro)
6-Tikibo iny ròbròmyh (lugar onde se planta)
7-Nawii ura (pássaro branco)
8- Nawii dòò (passaro que serve de alimento)
1
Os enunciados das atividades 1 e 2 apresentados aqui em português, no material didático usado pelos
professores Karajá, eles estão na língua materna desse povo indígena.
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Estes tipos de atividades são completamente diferentes das apresentadas na cartilha dos Arara.
Estão fundamentadas numa perspectiva enunciativo-discursiva, dão ênfase ao processo de interação
verbal e ao enunciado e também aos aspectos semântico e formal. Na atividade 1, trabalha-se a
classificação dos alimentos feita pela sociedade Karajá.observando-se os seguintes tipos: doce, massa,
líquida, carne, etc. A atividade 2 abrange situações de uso da língua Karajá, de acordo com várias áreas
do conhecimento. Essa atividade possibilita aos professores e aos alunos discutirem sobre vários assuntos,
como, por exemplo, o processo de nomeação em Karajá.
Segundo Bakhtin (1997) cada tipo de atividade humana que implica o uso da linguagem
corresponde a enunciados particulares, os gêneros do discurso. Assim sendo, todas as atividades de escrita
em língua materna deve levar em consideração as atividades de produção dos indígenas e os seus fazeres.
Dessa forma, a cultura revitaliza a língua e esta a cultura.
O trabalho com gêneros de discurso é uma oportunidade de lidar com a língua em seus mais
diversos usos autênticos na vida dos falantes, conforme expressa SCHNEUWLY (1999). De acordo com
Bakhtim (1997), os gêneros, como construções históricas, são mais ou menos dominados pelos locutores
nativos de uma língua. Citamos, como exemplo dessa realidade linguística, o diálogo entre duas índias
Karajá artesãs durante a produção de artesanato ou a conversa entre dois pescadores Karajá durante a
pescaria. Já os gêneros mais elaborados pertencentes às esferas especializadas nem sempre são de
domínio de todos. Em muitas comunidades Karajá, os jovens, por várias razões, não estão aprendendo o
saber especializado de sua sociedade, como as músicas. Esta é uma das questões que merece ser mais
bem cuidada pela escola, evidentemente, respeitando as normas cultuais da sociedade.
3.Considerações Finais
Uma política de valorização das línguas indígenas deve fundamentar-se, em primeiro momento,
num compromisso de sobrevivência dos povos indígenas, pois as línguas, como bem afirma
Manipiniktikinya (2000), não têm vida própria, ou seja, se queremos línguas vivas, devemos lutar pela
vida dos povos que as falam. Nesse sentido, vale a pena lembrar o princípio da territorialidade como
condição de sobrevivência dos povos indígenas e, conseqüentemente, de suas línguas e culturas.
Uma política de revitalização e manutenção das línguas indígenas brasileiras, todas em vias de
extinção, umas mais do que outras, precisa estar incluída numa política de garantia do território indígena,
condição básica para a sustentação cultural e econômica desses povos. Um exemplo de projetos de
revitalização de língua e cultura maternas alicerçados na política de sustentabilidade econômica e na
garantia do território citamos o Projeto de Educação e Cultura Indígena Maurehi, que se realiza na
aldeia de Buridina, no município de Aruanã-GO. As conquistas dos índios Karajá dessa comunidade,
desde a implantação do referido projeto, são enormes, entre elas, estão a retomada de grande parte de seu
território, a alegria de viver, a valorização de seu patrimônio cultural como meio para manter os espaços
de uso da língua materna Karajá e também como meio para gerar recursos financeiros necessários para a
sobrevivência da comunidade.
RESUMO: Nosso objetivo neste artigo é discutir sobre ensino de línguas indígenas nas escolas dos povos
que as falam.
PALAVRAS CHAVES: educação; línguas indígenas; revitalização
REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS
BAKHTIM, M. Estética da criação verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997
JÚNIOR, N.G. & ARARA, S. Âk wen wen ‘ ya! Belém, 2002.
MANIPINIKINYA, A.G.S. e HOUGHTON, J. Politicas linguisticas en Colombia. Esbozo de una
problematica. In: As Línguas Amazônicas Hoje:211-228. F. Queixalós & O. Renault-Lescure
(orgs). IRD/ISA/MPEG, São Paulo, 2000.
RODRIGUES, A D. Panorama das línguas indígenas da amazonas. In: As Línguas Amazônicas Hoje: 1527. F. Queixalós & O. Renault-Lescure (orgs). IRD/ISA/MPEG, São Paulo, 2000
SCHNEUWLY,B. e DOLZ, J. Os gêneros escolares – das práticas de linguagem aos objetos de ensino.
Revista Brasileira de Educação 11: 5-6, 1999.
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