JOSÉ TADEU De CHIARA
PROFESSOR DOUTOR DA FACULDADE DE DIREITO DA
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
O Dr. Gabriel Jorge Ferreira honrou-me com a solicitação de parecer a respeito do
Fundo Garantidor de Créditos – FGC, cujo escopo é analisar-lhe a estrutura e
funcionamento para o fim de responder aos seguintes quesitos:
1.
Qual o regime de direito a que se subordina a entidade? Trata-se de entidade que
integra a administração pública? Como se particulariza o regime de sua função no
âmbito do sistema financeiro nacional? E de seu funcionamento?
2.
A vinculação compulsória dos bancos ao FGC implica que ele tem por objetivo
atender ao interesse público? Ainda que de natureza privada [se essa for a solução
do quesito anterior] o seu objetivo não lhe especializa a estrutura e funcionamento
no âmbito das funções da administração pública?
3.
As contribuições das instituições financeiras ao FGC e, de forma geral, as receitas
auferidas pelo FGC constituem recursos que ficam ao alcance do regime de direito
público?
4.
Quais os princípios que devem prevalecer para as decisões sobre a aplicação dos
recursos do FGC em vista de suas funções institucionais? E sobre o seu patrimônio,
(aí considerados os haveres que adquire em razão do cumprimento de seu objetivo
institucional)?
PARECER
O estudo das questões propostas pelo Ilustre Consulente implica a consideração de
distintas matérias, a saber: (i) a estrutura, organização, funções e funcionamento do
FGC; (ii) o sistema financeiro nacional, sua estrutura e funcionamento; (iii) o conceito
de garantia e a noção de risco; (iv) as noções de interesse público e de interesse
geral; (v) os negócios de seguro e de garantia.
A Resolução nº 2.197 de 31/08/1995, do Conselho Monetário Nacional, autorizou a
constituição do FGC como entidade privada sem fins lucrativos destinada a
administrar mecanismo de proteção a titulares de créditos contra instituições
financeiras.
O parágrafo 2º do artigo 1º dessa Resolução estabelece a obrigatória associação à
entidade das instituições financeiras (excetuadas as cooperativas de crédito e as
seções de crédito das cooperativas).
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2
O estatuto social do FGC, como previsto pelo artigo 2º da mesma Resolução, vige pela
redação aprovada como anexo I da Resolução nº 3.251 de 16/12/2004, cujo artigo 2º
dispõe sobre o objeto do Fundo Garantidor de Créditos nos seguintes termos:
O FGC tem por objeto prestar garantia de créditos contra instituições associadas,
referidas no artigo 6º, nas hipóteses de:
I – decretação de intervenção, liquidação extrajudicial ou falência da instituição
associada;
II – reconhecimento, pelo Banco Central do Brasil, do estado de insolvência de
instituição associada que, nos termos da legislação em vigor, não estiver sujeita aos
regimes no inciso I;
III – ocorrência de situações especiais, não enquadráveis nos incisos I e II, mediante
prévio entendimento entre o Banco Central do Brasil e o FGC.
O artigo 5º do Estatuto estabelece o rol dos recursos e sua origem que devem ser
aplicados para o custeio da garantia prestada pelo FGC, ao tempo em que o parágrafo
único do artigo 6º dispõe:
Têm direito à garantia de crédito prestada pelo FGC, observado o disposto no artigo
2º, os depositantes e investidores nas instituições associadas.
Assim dispostas essas questões que diretamente interessam para dar solução aos
quesitos, é preciso que desde logo se passe à análise das situações e dos negócios
jurídicos objeto das Resoluções do Conselho Monetário Nacional e dos que são
engendrados no âmbito do sistema financeiro nacional bem como pelo funcionamento
do FGC.
Sempre o alerta de Vivante:
"è una slealtà scientifica, è un difetto di probità parlare di in istituto per fissarne la
disciplina giuridica senza conoscerlo a fondo nella sua realtà. Se il diritto ha per iscopo
di regolare gli effetti di un istituto, è evidente che lo studio pratico della sua natura
deve precedere quello del diritto".1
1
- TRATTATO DI DIRITTO COMMERCIALE, Milão, 1.929.- Prefácio - 5a ed.
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3
Por isso indispensável para a consecução do trabalho, que se tome preliminarmente
em consideração o funcionamento e o regime de direito a que se submetem as
instituições associadas ao FGC.
I - DO REGIME JURÍDICO A QUE SE SUBMETEM AS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS
1. A disciplina da atividade de intermediação financeira, desde a configuração do
Sistema Financeiro Nacional, definida pela Lei no 4.595, de 31 de dezembro de 1.964,
toma-a como destinada à realização de resultados econômicos que se projetem no
conjunto social.2
Por isso a atividade dos intermediários financeiros [instituições financeiras] é ordenada
de molde a consubstanciar autêntica ferramenta de execução das políticas monetária,
creditícia e cambial implementadas pelo Estado. Aí o que se convencionou designar
intervenção do Estado, o que importa resulte ele, para tanto, dotado de técnicas
destinadas a operacionalizar determinados objetivos.
A adoção das técnicas de intervenção3 reflete-se, destarte, na definição de normas que
assumem caráter diverso daquelas que compõem a ordem pública. E, no quadro
normativo assim instalado que implementa a atuação intervencionista estatal,
emergem vantagens e encargos, seja para os agentes econômicos que se integram --inclusive na condição de beneficiários de créditos --- na estrutura juridicamente
demarcada de determinada atividade ou setor, seja para o próprio Estado, ao qual
incumbe a ordenação interventiva nessa mesma atividade ou setor.
2. Sob tal caráter peculiar às normas que instrumentam as técnicas de intervenção,
apresentam-se, em grande parte, aquelas inseridas nas Leis n os 4.595 de 31 de
dezembro de 1964 e 4.728 de 14 de julho de 1965, que mais diretamente importam
considerar.
2
- Em benefício do conjunto social, em princípio. Considere-se, aí, o
Decreto 370, de 02.05.1890; o Decreto no 14.728, de 16.03.21; o Decreto
no 21.499, de 09.06.32. Da Constituição de 1.946, tome-se o artigo 5o,
XV, "k" e o artigo 149; além disso, a Resolução no 172, de 03.01.1848, do
Conselho de Estado do Império, o Decreto no 575, de 10.01.1849 (artigo
9o) e a Lei no 1.083, de 22.08.1860 --- que poderia ser referida como a
nossa primeira "lei bancária" --- regulamentada pelo Decreto no 2.711, de
19.12.1860.
3
- A referência à intervenção e ao intervencionismo é feita sem penetrar
o inútil e inteiramente inócuo debate a respeito da inconveniência ou
incorreção do uso desses vocábulos. Intervir é atuar em área de outrem:
atuação, do Estado, no domínio econômico, área da titularidade do setor
privado, é intervenção. Atuação do Estado além da esfera do público --isto é, na esfera do privado --- é intervenção. De resto, toda atuação
estatal pode ser descrita como um ato de intervenção na ordem social.
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4
A estrutura do Sistema Financeiro esteve --- como está --- desde a sua instituição, a
serviço das políticas públicas de moeda, crédito e de câmbio. Nela, a definição de
normas que ordenam não apenas a constituição de sociedades com atuação no setor,
mas
também
o
próprio
atuar
desses
agentes
econômicos,
ou
seja,
o
seu
funcionamento operacional.
Assim, o conjunto dos negócios e operações praticados pelas entidades integrantes do
Sistema Financeiro Nacional subordina-se, na medida em que a elas há de estar
adequado, para que se possa realizar, às políticas de moeda, de crédito e de câmbio do
Estado. As diretrizes e exigências dessas políticas compõem o cerne das normas que
ordenam o sistema, normas que se desdobram naquelas emanadas pelos órgãos e
entidades públicas que exercitam capacidade normativa de conjuntura, no magistério
de Eros Roberto Grau.4
O impacto causado pela incidência de tais normas sobre o setor impõe não somente a
reordenação das condições e requisitos sob os quais a exploração da atividade
econômica empreendida pelas entidades integradas no sistema é desenvolvida, mas
também a redefinição dos direitos, deveres e ônus de que gozam e a que se sujeitam
ao empreendê-la, inclusive na configuração interna das modalidades negociais e
operacionais a que se dedicam.
Daí que, paralelamente às limitações que cercam o dinamismo de tais entidades no
mercado, marcadas pelo traço da ordem pública --- e que se expressam na proteção
do consumidor, na tutela da concorrência, na preservação do próprio mercado, enfim -- sujeitam-se, em especial quando operem o crédito, a uma série de deveres e ônus,
a fim de que possam executar os negócios e operações típicos de seu objeto social.
Precisamente aí a sistemática situação jurídica de devedora de créditos financeiros que
as instituições financeiras assumem como pressuposto para desincumbirem a atividade
de intermediação financeira, a qual se completa com a concessão de créditos
[constituição de ativos] de natureza financeira.5
4
- "Capacidade normativa de conjuntura", in Enciclopédia Saraiva do
Direito, volume 13, Saraiva, São Paulo, 1.977, págs. 48/49.
5
Em estudo sob o título “Operações de crédito: disciplina das obrigações”
in RDP nº 49/50 pag. 303/311 – 1979, conceituei “operação de crédito”:
Dessa forma, entendemos por operação de crédito a conjugação sistemática
de negócios jurídicos de natureza cambiária ou contratual, por intermédio
de instituição financeira, pela qual se realiza suprimento de recursos
monetários para instrumentar consumo ou investimento. Entendo, contudo,
que se há de suprimir a locução “por intermédio”, pois que os negócios
que caracterizam a intermediação financeira são por ela diretamente
contratados. Por isso, o enunciado, nesse ponto, passaria a se expressar
da seguinte forma: “...conjugação sistemática de negócios jurídicos, de
natureza cambiária ou contratual, por instituição financeira, ...”
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5
Importa, pois, sublinhar a posição passiva [situação jurídica de devedor] assumida
pelas instituições financeiras para desempenhar sua atividade empresarial. Aí se
situam, podemos afirmar, os
riscos para
o mercado, de forma
genérica e,
especificamente, para os credores, podemos dizer, operacionais das instituições [seus
depositantes, investidores, assim
considerados desde as distintas modalidades
negociais e operacionais que configuram a constituição do crédito financeiro de que
a instituição financeira é devedora].
Ora, ainda que neste ponto não caiba conceituar “risco”, com efeito, de forma geral,
podemos afirmar que se trata, no caso, da exposição à falta de pagamento [por falta
de disponibilidade de recursos (inclusive, mas não necessariamente, por insolvência)
de quantos detenham créditos contra instituições financeiras constituídos pelos
recursos que lhes tenham entregue por depósito ou aplicações financeiras em geral.
Ou seja; trata-se especificamente das relações constituídas no plano operacional do
mercado financeiro, que compõem a estrutura da atividade empresarial das instituições
financeiras.
Isto é: o funcionamento do mercado financeiro implica, sob a perspectiva do público
em geral, a exposição ao risco de a devedora [porque assim há de se situar
inexoravelmente a instituição em relação aos seus depositantes e aplicadores de
recursos financeiros, de forma geral], deixar de honrar o pagamento que lhes seja
devido, segundo o título de crédito ou o contrato que instrumentalizam o negócio, em
qualquer caso, mediante a entrega da quantia em moeda disponível na data do
vencimento, ou à vista, segundo lho exigir o credor, sob a forma de saque ou
movimentação da conta de depósitos, no caso dos depósitos em conta corrente.
Assim, da conjugação de direitos, deveres e ônus que se compõem na ordenação do
Sistema Financeiro Nacional resulta a configuração de um regime jurídico próprio, que
alcança as instituições e particulariza o regime dos negócios que realizam.
3. Esse regime é marcado por peculiaridades que transformam a operacionalização do
Sistema Financeiro em matéria de interesse geral.
Esse interesse geral se justifica
(i), por um lado, porque o sistema financeiro concentra inevitavelmente o conjunto dos
meios de pagamento da sociedade já que operacionaliza todos os fluxos de renda
[concretizados desde a compensação dos cheques, passando pelos mecanismos dos
cartões de crédito ou de débito, até os créditos/débitos para os pagamentos de
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dividendos,
juros,
salários
(esses
não
na
totalidade),
6
entre
outros,
que
operacionalizam e provocam os regulares efeitos de direito peculiares a cada negócio
ou situação jurídica que justifica o correspondente pagamento, que lhes dá causa
(causa de juridicidade)]; e
(ii), por outro, porque as decisões das instituições financeiras, que só por elas
podem ser tomadas, de tornarem-se devedoras ou credoras em razão da atividade
empresarial, tendo por objeto o volume da renda [expressão monetária daqueles
fluxos de pagamentos] constituem a matéria e a substância das políticas monetária e
de
crédito
que
devem
ser
engendradas
pelo
Estado
---
sob
os
comandos
constitucionais, fundamentalmente. Essas políticas, por isso, são levadas a cabo
essencialmente através do sistema financeiro --- e, nele, pelas entidades constituídas
por instituições financeiras, (sujeitas ao regime de direito peculiar à atividade,
independentemente de ser o titular de seu controle societário ou de capital, entidade
pública ou pessoa privada), segundo as decisões que, para desenvolverem sua
atividade empresarial, inexoravelmente tomam (porque essa e sua atividade6) sob os
condicionamentos legais e regulamentares por que se expressam as políticas públicas7,
no quanto atinentes à moeda, ao crédito e ao câmbio.
Isso implica que essas entidades façam as vezes de longa manus do Estado, na
implementação de suas políticas públicas8. Conseqüente, pois, vislumbrar no seu
funcionamento a justificada pressuposição de estarem organizadas e funcionando de
acordo com os desígnios traçados pelo Estado.
Daí porque o exercício da atividade de concedente de crédito [sob as diferentes
modalidades, até de adquirente de títulos da dívida pública], no setor, depende de
prévia autorização pública; o conteúdo das operações, ativas e passivas, que podem
praticar seja normativamente determinado e, ademais, os contratos que celebram
6
- Como, por exemplo, a companhia aérea só desenvolve sua atividade se
as aeronaves transportarem passageiros, portanto, fazendo as decolagens e
aterrissagens que são o elemento indispensável para sua operação
empresarial.
7
- Verificam-se esses condicionamentos, desde o plano geral da indução
para certas modalidades negociais(leasing, crédito direto, abertura de
crédito, por exemplo), a flutuação das taxas de juros, até a determinação
da admissibilidade de prazos e garantias para determinadas operações.
8
- Precisamente neste sentido, JOSÉ SIMÕES PATRÍCIO, Recusa de crédito
bancário, separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito
de Coimbra --- "Estudos em homenagem ao Prof. Dr. Antonio de Arruda
Ferrer Correia" --- Coimbra, 1.988, págs. 21 e 23. A propósito da não
caracterização
da
atividade
bancária
como
serviço
público
vide,
especialmente, págs. 9/15.
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retratem com nitidez a correção das afirmações de RENÉ DAVID
7
9
e de RENÉ SAVATIER
10
: configuram verdadeiros instrumentos de política econômica, transformados menos
em uma livre construção da vontade humana do que em uma contribuição das
atividades humanas, coordenadas pelo Estado, à arquitetura geral da economia
nacional.
4. Assim, o que neste passo importa deixar sublinhado é o fato de que se aplicam ao
Sistema Financeiro Nacional e a suas operações, além das disposições disciplinadoras
dos negócios jurídicos ordinariamente considerados nas leis civil, cambiária, societária
e tributária, entre outras, as que se compõem no conjunto das normas de ordem
pública e, ainda, outras, integradas no quadro das técnicas de intervenção.
5. Dúvida nenhuma resta quanto ao fato de a organização estrutural do Sistema
Financeiro Nacional, na medida em que desenha um esquema formal de atribuições e
competências, dizer com objetivos de ordem pública, mesmo no que respeita à
definição dos agentes que nela se inserem.
Ainda que possa oferecer dificuldade, por certo há que distinguir entre normas de
ordem pública e normas de intervenção por direção 11. Essa distinção é possível, no
momento em que observarmos que aquelas que não se aplicam à generalidade dos
agentes econômicos não são qualificáveis como de ordem pública; ou, em outros
termos: normas que preenchem o conteúdo funcional de uma determinada e específica
situação jurídica não podem ser tidas como tal.
Preenchendo esse conteúdo funcional visualizamos as que ordenam a estrutura das
empresas
que
promovem
a
intermediação
financeira,
a
investidura
de
seus
administradores nos respectivos cargos e a função empreendida pelas instituições
financeiras [e pelas a elas equiparadas] no processo de recepção, mediante captação,
da "matéria prima" moeda, para sua posterior colocação, como "produto final",
9
- Prefácio a Le dirigisme économique et les contracts, de MAGDI SOBHY
KHALIL, LGDJ, Paris, 1.967, pág. VII.
10
- Du Droit Civil au Droit Public, 2a ed., LGDJ, Paris, 1.950, pág. 65.
11
Eros Grau classifica as formas de intervenção do Estado no domínio
econômico distinguindo:* a intervenção por absorção ou participação, que
ocorre quando a organização estatal assume --- parcialmente ou não --- ou
participa do capital de unidade econômica que detém o controle
patrimonial dos meios de produção e troca;* a intervenção por direção,
que se verifica quando a organização estatal passa a exercer pressão
sobre a economia, estabelecendo mecanismos e normas de comportamento
compulsório para os sujeitos da atividade econômica;* a intervenção por
indução, que se manifesta quando a organização estatal passa a manipular
o instrumental de intervenção em consonância e na conformidade das leis
que regem o funcionamento do mercado (A ordem econômica na Constituição
de 1988 (interpretação e crítica), 2a edição, Editora Revista dos
Tribunais, São Paulo, 1.991, págs. 162/163..
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8
modalidade específica de crédito, o crédito operado pelo sistema de intermediação
financeira, o sistema financeiro nacional.
Por isso qualifica-se como atinente à ordem pública, por exemplo, a definição da taxa
máxima de juros pela Lei da Usura [no dobro da taxa legal pelo Decreto-lei no 22.626,
de 7 de abril de 1.933], que, não obstante, não alcança as operações praticadas pelas
instituições financeiras; quanto a estas incide o artigo 4 o, IX da Lei no 4.595/64,
estando vinculadas à definição de taxa de juros pelo Conselho Monetário Nacional
12 13
.
6. Por aí se visualiza o sistema financeiro nacional submetido a normas editadas por
entes que, integrando a administração federal, operacionalizam a intervenção do
Estado no domínio econômico mediante o exercício de capacidade normativa de
conjuntura, por um lado, e, no caso do Banco Central do Brasil, estão investidos da
competência
para
exercer
a
fiscalização
das
instituições
financeiras,
inclusive
preventivamente, o que faz, por exemplo, ao analisar previamente a possibilidade de
certos negócios ou operações que as instituições lhe submetem.
7. Na estrutura sistêmica, assim arquitetada, tal como se apresenta o conjunto das
instituições financeiras e suas atividades, desdobrada do sistema de ordem da
sociedade organizada sob o regime de mercado, aprovisionada por moeda, implica,
desde logo, considerar a segurança, como elemento nuclear para a apreciação,
análise e compreensão da ordem --- o fenômeno que se revela sistematicamente pelo
Direito – nos quadros da atividade de intermediação financeira.
8. Do ponto de vista do sistema de direito, do nosso sistema de direito, a segurança,
como causa final, função mesmo da unidade e ordenação que o erigem como sistema,
destaca-se como um dos vetores fundamentais, máxime quando se cuida do sistema
financeiro. A segurança, função indisputável do Direito, implica salvaguardar o
indivíduo, o sujeito de direito, de incertezas e de instabilidades que, ainda que próprias
da dinâmica da sociedade humana, podem provocar efeitos para além das situações
que as engendram. Como a eventual insuficiência de liquidez de uma instituição que
12
- Trata-se, aí, de tratamento macrojurídico conferido à taxa de juros,
ao passo que o a ela conferido pelo Decreto-lei no 22.626/33 assume
feição microjurídica: Eros Roberto Grau, Elementos de Direito Econômico,
Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1.981, págs. 26 e ss.).
13
A título de ilustração, cabe notar que neste segundo exemplo não há
mera regulação impeditiva da dominação, na dicção de Geraldo Vidigal, do
credor em relação ao devedor, porém ordenação de um processo de
beneficiamento da "matéria prima" moeda, coerente com os desígnios das
políticas monetária e de crédito.
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PROFESSOR DOUTOR DA FACULDADE DE DIREITO DA
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
9
provoca o inadimplemento de outra, sua credora, ou a consecução de modalidade
negocial não vedada, que expõe o público em geral a riscos desconhecidos.14
Nada obstante, há que considerar a segurança no plano geral da ordem social, no
qual diz com a estabilidade das situações e relações (sociais), diz-se de direito, aí o
negócio jurídico, alcançando-as como existentes, desde que constituídas segundo os
requisitos suficientes que o sistema para tanto reconhece, válidas, uma vez que, na
sua constituição,
os elementos exigidos, sobretudo no plano formal, são os
necessários segundo a regra positiva [a lei] e eficazes, umas vez verificados os
fatores legalmente estabelecidos ou admitidos para a situação ou relação.
A segurança no plano da ordem social, na perspectiva da ordem estatal, de forma
pressuposta e geral, enseja a instituição das salvaguardas que visam assegurar ao
sujeito proteção contra infrações que possam comprometer o próprio sistema de
ordem, assim deduzidas pelos princípios, esses sim princípios gerais do sistema de
direito, como o do devido processo legal, da liberdade, da integridade física e
patrimonial, da legalidade, para citar os que são nucleares para a ordem social.15
A segurança como fim do Direito, na dicção de Gustav Radbruch 16, ultrapassa o plano
formal das relações e situações atinentes à certeza dos direitos, alcança o plano da
efetividade dos direitos, protegendo-os, na estrutura constitucional
do Estado
Democrático de Direito. Essa proteção é estampada pelo texto constitucional, em
particular para os ditos direitos e garantias fundamentais, e expandida para situações
e relações que se concretizam no funcionamento da sociedade implicando a segurança
e a proteção constitucionalmente garantidas.
Daí a adoção de regras específicas voltadas desde a proteção da integridade física do
sujeito, enquanto consumidor, até da qualidade de vida. [Segurança, por exemplo,
para o uso da propriedade urbana, segundo o zoneamento que impede ou retarda a
degeneração de áreas residenciais, na proteção dos mananciais, entre outras].
14
Como foi o caso das operações “day trade”, sem qualquer garantia, que
provocaram séria crise no final dos anos 80, no país.
15
Esses que designo como princípios gerais do direito, do nosso direito,
são cardeais e deles decorrem regras de salvaguarda que lhes dão
concreção no plano do direito positivo, como a da concessão do habeas
corpus, do mandado de segurança, da vedação do enriquecimento sem causa,
entre outras. Contrariamente ao que se passou a designar com intensidade
e de forma disseminada nos dias que correm como princípios, sem que
revistam essa natureza, as regras e critérios para sua aplicação que
salvaguardam os princípios gerais responsáveis pela segurança objetivada
por um determinado sistema de ordem.
16
“Ainsi le bien commun, la justice, la sécurité se révèlent comme lês
buts suprêmes du droit.” Le but du droit in “L1Institut Internayional de
Philosophie du Droit et de Sociologie Juridique. Le but du droit:bien
commun, justice, sécurité. Paris: Sirey, 1938, t.#, pág. 48.
JOSÉ TADEU De CHIARA
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10
A perspectiva histórica permite visualizar distintas situações em que a segurança,
como a causa função do sistema de direito, o fim do próprio sistema [ao lado da
justiça], em diferentes perspectivas justificou o regramento de situações engendradas
pelo funcionamento da sociedade.
São ilustrativas a disciplina do loteamento urbano e da venda de lotes a prestação
(Decreto-lei nº 58/37) como regra protetora de quantos assim aplicavam a poupança
e, sem qualquer exigência preventiva da lei para com os empreendedores, ficavam
expostos a riscos de empreendedores inescrupulosos; na mesma ordem de idéias, com
o crescimento do tráfego de veículos automotores, a instituição do seguro obrigatório
desses veículos automotores em favor de vítimas de eventuais acidentes.
Em todos esses casos verifica-se a superação do voluntarismo contratual e do
individualismo no exercício de direitos próprios do direito do liberalismo do século XIX,
pela revelação de interesses gerados pela dinâmica da sociedade, que não se limitam à
bilateralidade própria dos negócios ou situações de que decorrem assim como não se
qualificam como interesses do Estado, isto é, não dizem com o patrimônio público ou a
coisa pública.
A isso Demogue denominou a reformulação do direito (sua re-elaboração), de que nos
dá conta Fábio Konder Comparato17, expressada pela revisão de conceitos e reelaboração de estruturas institucionais e negociais de forma a acolher a tutela
adequada para a peculiaridade da nova realidade inexistente ou despercebida pelos
ideólogos do liberalismo.
9. Nesse quadro destaca-se o aprimoramento das funções públicas e, particularmente,
da administração estatal. No caso em estudo, ao lado das regras de intervenção
editadas pela administração, o tratamento da matéria colhe frontalmente o tema, seja
pela
presença
de
instituições
financeiras
controladas
pelo
Estado
associadas
compulsoriamente ao FGC, porque instituições financeiras, seja pelo próprio FGC, como
entidade cuja organização foi determinada pelo Estado.
Nesse ponto é fundamental tratar do tema da administração pública, objeto de
profunda reformulação no século passado, em sua segunda metade, particularizando-o
em relação ao que se denomina como “administração indireta”, com o propósito de
verificar a situação do FGC relativamente à administração pública.
17
FÁBIO KONDER COMPARATO, Ensaios e pareceres de Direito Empresarial, Forense, Rio de
Janeiro, 1978, págs. 521 e ss.
JOSÉ TADEU De CHIARA
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11
Essa locução, no direito positivo e na doutrina, é tomada como sinônimo de
"administração descentralizada", embora tenham significados distintos.
A descentralização implica a desconcentração de poderes que, para sua consecução
[da descentralização], são transferidos, relativamente à atividade descentralizada, da
autoridade central para a de competência específica. Com efeito, é noção que se
localiza no âmbito da ciência da administração e se origina da necessidade de a
administração pública cumprir seus objetivos com maior eficiência, provendo técnica,
funcional e economicamente recursos com mais racionalidade.
Já a centralização é um sistema de administração cujas funções a ela inerentes são
exercidas por um ente único, composto por dependências que as desempenham [o que
se designa, vulgarmente, como “repartições”]. No caso há, tão somente, distribuição
de atribuições, mas subordinadas à autoridade central do sistema.
A descentralização, por sua vez, enquanto um sistema de administração, implica que
as funções da administração sejam exercidas por vários entes aos quais se atribui
capacidade e competência específicas para a função de cada qual. Tomada sob a
perspectiva funcional, nesse caso se opera a organização de entes dotados de
personalidade jurídica, de pessoas jurídicas organizadas e controladas pelo Estado.
[Adiante a questão da pessoa jurídica é tratada, mas aqui justifica antecipar que
pessoa jurídica é conceito cardeal do ponto de vista operacional para a estrutura e
funcionamento da ordem social sob regime de mercado. Sua utilidade é tanto mais
aguçada quanto clarificada a superação do utópico estado do liberalismo pela realidade
do Estado intervencionista e dirigente, que dele se serve a larga].
Por isso a atribuição de competências implica a organização de entes dotados de
personalidade jurídica própria. Aí a implícita liberdade 18 de administrar de que se
investe o agente descentralizado ao desempenhar as funções de administração.
Assim, enquanto na centralização prevalece um regime formal que restringe a atuação
do administrador, em certas circunstâncias até em dissintonia com a dinâmica social
dos mercados, na descentralização verifica-se maior desenvoltura para as decisões,
“liberdade de administrar”, vez que a personalidade jurídica do ente, sob o regime de
18
O sentido de liberdade, convém sublinhar, é o jurídico, qual de as
decisões do sujeito, inclusive as expressados por seus agentes, se
justificarem em razão do interesse que tem ou legitimamente representa,
segundo o regime de direito que a que se subordinam.
JOSÉ TADEU De CHIARA
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12
direito privado, permite melhor consonância com as exigências e a celeridade das
ações da sociedade.19.
10. Contudo, sob a perspectiva do direito, o exame do tema só se justifica enquanto se
distinga se a atividade é praticada pelo Estado ou por outra pessoa jurídica, pública ou
privada, isto é, por pessoa de direito público ou por pessoa de direito privado.
11. O conceito de descentralização é próprio das análises da administração. De outra
parte, é certo que, para efeito de tratamento jurídico do tema, só há relevância no seu
exame sob a consideração da personalidade jurídica, como pública ou privada, da
pessoa que a desempenha.
Daí que os conceitos de Administração direta e de Administração Indireta
resultam
de critério diverso daqueles de
Administração centralizada
e de
Administração descentralizada. A Administração Direta consiste, pois, no
desempenho pela organização estatal, por si própria, da execução da função
administrativa, seja por meio dos seus órgãos centralizados, seja por intermédio dos
descentralizados, como as autarquias. Já Administração Indireta verifica-se pela
delegação que a organização estatal faz a terceiros [empresas criadas ou cuja criação
foi autorizada pelo setor público, fundações, particulares delegados, contratual ou
compulsoriamente] aquela execução.
Daí decorre, pois, que, justaposta à Administração Direta, [centralizada ou
descentralizada], está a Administração Indireta, que com aquelas --- centralizada e
descentralizada --- não se confunde.
Por isso, não existe coincidência entre descentralização, pertinente ao campo do
conhecimento da administração, e administração indireta, que é conceito jurídico.
Assim pode ser sumariado esse tema: a) ciência da administração: a.1) administração
centralizada; a.2) administração descentralizada; b) direito: b.1) Administração
Direta: - centralizada; - descentralizada; b.2) Administração Indireta.
12. Para perquirir o regime jurídico a que se subordina a atividade tomada pelos
estudos de administração como descentralizada, há que se tomar como juridicamente
se apresenta a entidade que a exercita. Isto porque a descentralização administrativa
tanto pode se dar por pessoa de direito público, sujeita, então, a regime jurídico de
direito público, do que lhe são decorrentes as prerrogativas e sujeições próprias do
poder público; como por pessoa de direito privado, sujeita, pois, ao regime jurídico
de direito privado, a qual [nada obstante estar sob controle do poder público] há de
19
verbete Entidades de Administração Indireta, in Enciclopédia Saraiva do
Direito
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
13
atuar, para efeitos gerais, como os particulares, isto é, despida daquelas
prerrogativas e sujeições.
13. Administração Indireta caracteriza-se, assim, como o exercício da Administração
Pública por intermédio de pessoa jurídica de direito privado. Consiste, pois, na
delegação pelo Estado a pessoas submetidas ao regime de direito privado [empresas
criadas ou cuja criação foi autorizada pelo setor público, fundações, particulares
delegados, contratual ou compulsoriamente] a execução de função administrativa.
Nessa perspectiva a significação de Administração Indireta é ampla, pois que diz com o
desempenho da função administrativa. Abarca, dessa forma, até as sociedades
controladas pelo setor privado, que dão cumprimento de função administrativa, como,
por exemplo, as concessionárias e permissionárias de serviço público.
Da acepção ampla da administração indireta é decorrente indagar o seu significado em
sentido estrito. Podemos afirmar tratar-se de modalidade de Administração Pública
exercida através de pessoa jurídica de direito privado integrada ao patrimônio do
Estado, isto é, sob o controle acionário estatal, [no caso das empresas que adotam a
forma de sociedade por ações] e que assim exerce função da administração.
14. Aplicados os conceitos em relação ao FGC, desde logo se vê que é entidade de
direito privado, sujeita ao regime de direito privado, com a função de atender ao
interesse geral de segurança nas relações jurídicas do mercado financeiro
constituídas entre as instituições como devedoras e, os clientes, como credores. Como
já assinalado, não é de interesse público que se cuida na organização e funcionamento
do FGC, mas de interesse geral, tal como ocorre com a atividade das instituições
financeiras: é atividade de interesse geral. Esse interesse geral abarca um conjunto
de interesses que ultrapassa a bilateralidade dos negócios jurídicos engendrados no
desenvolvimento da atividade de intermediação financeira e caracteriza e permite
vislumbrar categoria de sujeitos de direito, cujo traço comum de quantos a integram é
particularizado
pelos
mesmos
interesses
[segurança,
rentabilidade
e
liquidez]
objetivados quando se tornam credores das instituições financeiras.
Mais que isso: o interesse geral a ser preservado diz com a salvaguarda do sistema de
intermediação financeira, o sistema financeiro nacional, como elemento nuclear para a
operacionalização das políticas monetária, de crédito e cambial.
Assinale-se, ainda, que a segurança almejada, no caso, é pertinente ao plano da
eficácia do negócio jurídico de crédito financeiro contratado pelas instituições
financeiras como devedoras, plano no qual não se vislumbra qualquer função
administrativa, vez que diz com os efeitos de negócios de crédito financeiro que
JOSÉ TADEU De CHIARA
PROFESSOR DOUTOR DA FACULDADE DE DIREITO DA
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
14
envolvem interesses de mercado, plano no qual as relações e situações de direito são
matizadas pela disponibilidade de interesses [distintamente do que se verifica em
relação àquele em que se situam o interesse e a função públicas, caracterizado pela
legalidade estrita].
Por duas vertentes se desdobra a questão da natureza do FGC, em face da
administração pública:
(i) uma que abarca sua organização. Não é entidade que integre a administração
pública, não se identifica no FGC qualquer dos traços e elementos necessários para
o caracterizar como integrante da administração indireta. Sua constituição como
pessoa jurídica associativa, da qual participam compulsoriamente instituições
financeiras [controladas por pessoas privadas e as controladas pelo Estado], no
plano formal, não o qualifica como pessoa jurídica sujeita ao controle estatal;
(ii) outra que se refere à função do FGC. Não desempenha qualquer função
administrativa, ainda que sua organização tenha sido determinada em virtude
de regra legal, não constitui solução de administração, isto é, não se erige como
função administrativa a ser desempenhada de forma descentralizada, eis que sua
função [ser garantidor de créditos] sequer integra a agenda das funções estatais.
Funcionalmente é expressão da intervenção estatal para preservar o mercado
financeiro, este como objeto do interesse geral, sem que integre a coisa pública, o
interesse público ou se caracterize como elemento da ordem pública (consideradas
as colocações a respeito já feitas de forma inaugural e a que adiante retornaremos
nos itens 20 e seguintes).
Portanto, tanto do ponto de vista da ciência da administração, quanto do ponto de
vista jurídico, a entidade não se qualifica como da administração descentralizada, ou
da administração indireta, não se lhe aplicando o regime de direito público, inclusive
em relação às receitas, despesas e patrimônio. Está, pois, submetida ao regime
jurídico de direito privado, sujeito, nada obstante, à supervisão do Banco Central do
Brasil, dado o interesse geral que cerca sua organização e funcionamento.
15. Mas ainda que assim o seja, haveria por alguma forma a sujeição do FGC às regras
do direito público? O que caracteriza o regime de direito público?
Cuida-se, então dos princípios informadores do regime jurídico administrativo,
feição mais acabada, na doutrina, do regime de direito público.
O
regime
jurídico
administrativo
está
estruturado
sobre
os
princípios
da
supremacia e da indisponibilidade do interesse público, do que decorrem as
JOSÉ TADEU De CHIARA
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
15
conseqüências seguintes: (a) posição privilegiada do órgão encarregado de zelar pelo
interesse público e de expressá-lo, nas relações com particulares, e (b) posição de
supremacia do órgão nas mesmas relações.
A respeito da qualidade de pessoa pública, diz CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO:
"... quando se diz que uma pessoa é pública, não se quer dizer nem mais nem menos
que tal centro de convergência de normas, por um lado, atrai as normas de direito
público e por outro que se rege pela mecânica típica daquelas relações. Dito de outra
forma: que por aquele ponto de convergência transitam, circulam, regras de direito
público, gravitando segundo o processo de direito público, dando margem a um regime
determinado, o público"
20
-.
Assim, pessoa de direito público, como anota ainda CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE
MELLO
21
, "é a que se rege por um regime jurídico especial, dito público. Tal regime é
o que resulta da caracterização normativa de determinados interesses como
pertinentes à sociedade e não aos particulares". Essa caracterização consiste na
atribuição de uma disciplina normativa peculiar que, fundamentalmente, se delineia em
função da consagração daqueles dois princípios, o da supremacia do interesse público
sobre o interesse privado e o da indisponibilidade dos interesses públicos.
A incidência dos princípios caracterizadores do regime de direito público sobre a
atividade das pessoas públicas informa e conforma a compostura de suas relações com
terceiros.
No caso, prevalece, como já destacado, o interesse geral que cerca a atividade de
intermediação financeira, sistemicamente organizada pela Lei 4595/64. Aí não se
vislumbra interesse público, mas dever do Estado de salvaguardar o interesse geral,
interesse do público.
O interesse geral que ressalta da verificação da organização e funcionamento do
sistema financeiro nacional, em momento algum configura interesse público, pois que
ali não se encontram os elementos para tanto necessários, como a relação de
pertinência com a administração da coisa pública ou do patrimônio público e, menos
ainda, a supremacia de interesses ou a sua indisponibilidade.
A função intervencionista do Estado, prevista como seu dever, expressada pela
capacidade normativa de conjuntura, como visto, não altera, logicamente, o regime
20
Natureza e Regime Jurídico das Autarquias, ed. Revista dos Tribunais,
São Paulo, 1.969, pág. 243 e segs
21
- Ob. cit., págs. 292 e 294.
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16
dos objetos regulados. Assim toda a disciplina dos vínculos contratuais contida em
normas regulamentares editadas pelo Banco Central, tem o único escopo de
salvaguardar o adequado funcionamento do sistema de intermediação financeira,
cuidando de sua solidez, estabilidade e protegendo o público que com o mesmo se
relaciona juridicamente, sem, entretanto,
que daí se possa extrair, como visto, que
haverá alguma relação de direito público.
Para logo se ratifica a conclusão: o FGC é pessoa jurídica de direito privado, que
garante relações privadas com recursos providos pelos próprios devedores, as
instituições financeiras, sob regime de compulsórias associação e contribuição, em
vista do interesse geral e, não, do Estado, como titular de patrimônio, mas no exercício
de sua função normativa, expressada, de conformidade com a Lei, por órgãos da
administração, que operacionalizam a capacidade normativa de conjuntura.
16. Há ainda que se tomar em conta que entre as instituições associadas ao FGC,
algumas são sociedades de economia mista, como o Banco do Brasil S.A. e uma, a
Caixa Econômica Federal, fundada em 1861, está organizada sob a forma de empresa
pública nos termos do Decreto-Lei nº 759, de 12 de agosto de 1969. Nesses casos, as
contribuições dessas instituições poderiam implicar a sujeição do FGC ao regime de
direito público, em particular sobre a destinação de seus fundos no cumprimento de
sua função associativa.
Desde logo, deixe-se frisado: senão as restrições e privilégios contemplados pela
Constituição e pelas regras legais que específica e particularmente disciplinam a
organização e funcionamento dos chamados “bancos oficiais”, toda a atividade
operacional das instituições financeiras controladas pelo Estado se submete ao regime
ordinário aplicável ao sistema financeiro nacional, aí, inclusive, a compulsória
associação ao FGC.
Contudo, ainda remanesce a questão: o fato de a instituição associada integrar
formalmente
a
administração
indireta
federal
imporia
ao
receptor
das
suas
contribuições compulsórias a mesma sujeição aplicável ao contribuinte.
Antes de prosseguir, a dúvida que assim se apresenta equivaleria a supor que quem
presta serviço profissional para uma igreja, por exemplo, receberia donativo (com as
conseqüências tributárias, correspondentes) ao invés de honorário, ou de pagamento
por obra feita (como um empreiteiro de obras civis, por exemplo), vez que a entidade
pagadora aufere donativos e com o seu produto atende as obrigações contratuais. Ou
de se tratar de donativo o pagamento do preço pela compra de imagem religiosa feita
por um devoto numa loja do ramo. Por óbvio que a negativa se impõe.
JOSÉ TADEU De CHIARA
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
17
Relativamente ao FGC, dissipa a dúvida, a análise, em alguns pontos já antecipada, da
intervenção do estado no domínio econômico.
17.
A presença do Estado no chamado "domínio econômico", área de atuação
preferencial do setor privado leva, especialmente a partir da segunda metade do
século passado, a uma reformulação de paradigmas do direito elaborado com base na
ideologia do liberalismo econômico.
Essa presença, inicialmente afirmada em episódicas medidas de direcionamento do
sistema de produção (experiência que se dá já na segunda década do século XX),
consolida-se na prática de experiências de atividade econômica em sentido estrito 22
(caracterizada pela iniciativa econômica), mercê das quais o Estado passa a participar
dos mercados na qualidade de empreendedor, titular de empresa. A figura do Estado
empresário, ausente na proposta do liberalismo clássico, inova tanto o direito público,
quanto o direito privado.
18.- A detenção, pelo Estado, da totalidade ou de parcelas do capital de sociedades
mercantis inova o direito público, no reconhecimento de uma espécie de bem [direitos
de sócio ou de acionista] destinado à satisfação de interesses que não se qualificam
como de interesse público, eis que não dizem com a função estatal (sob a óptica do
liberalismo), mas satisfazem interesses da coletividade. Os resultados auferidos pelo
exercício da atividade empreendedora, pelo Estado, de atividade econômica em sentido
estrito, diga-se iniciativa econômica, não obstante geradas em negócios de mercado
--- nos quais a disponibilidade de interesses faz regra, o que não se pode conceber na
ortodoxia do direito público --- são integrantes dos balanços públicos.
No quadro do direito privado são praticados negócios jurídicos de mercado mercê dos
quais uma das partes, embora pessoa integrada ao centro de interesses do Estado,
desenvolve iniciativa econômica
dinamizando capitais públicos --- bens públicos,
portanto, sujeitos aos princípios específicos de direito público [ainda que alocados à
prática de operações em regime de mercado].
A propósito a regência do artigo 173, parágrafo 10, inciso II, da nossa Constituição:
“A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia
mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou
comercialização de bens ou prestação de serviços, dispondo sobre:
22
Eros Grau em A ordem econômica na Constituição de 1988 (interpretação e
crítica), 2a edição, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1.991,
págs. 137 e ss., faz a distinção entre atividade econômica em sentido
amplo e atividade econômica em sentido estrito, bem assim para a
distinção entre atividade econômica em sentido estrito e serviço público
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
18
II – a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos
direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários;”
19. A revisão de conceitos fundamentais da ordem do liberalismo, descortinada por
Demogue, como já assinalado, colhe, no panorama da presença do Estado no domínio
econômico, o conceito de direito subjetivo.
A noção de direito subjetivo é nuclear no arcabouço do direito privado deduzido sob a
ideologia do liberalismo, a refletir o individualismo exacerbado do pensamento liberal,
mas que sob o clima da realidade da primeira metade do século passado,
caracterizada, entre outros elementos, pela intervenção estatal, é levada a profunda
revisão em sua estrutura e abrangência, de modo a conformar antes o plano funcional,
no qual os direitos são exercitados; já não se vê o direito subjetivo sob a perspectiva
estática, que projeta, em termos absolutos, sujeitos de direito que quase nenhuma
limitação encontrariam para o exercício de suas "faculdades". À noção da faculdade
como
imanente
do
sujeito
de
direito,
encaminha-se
a
de
situação
jurídica,
comprometida com o funcionamento da ordem social, sujeita a condicionamentos e
limitações determinados pelo sistema de direito.
20.- Importa neste passo considerarmos, na esteira da revisão da noção de direito
subjetivo, a noção de situação jurídica subjetiva e a ela justapor a de situação jurídica
objetiva, seguindo o magistério de Paul Roubier.23
O
sujeito
de
direito
nas
relações
jurídicas
que
integra,
por
sua
decisão,
invariavelmente visa a obtenção de determinado bem ou vantagem, um interesse. A
titularidade jurídica do direito a essa pretensão --- direito = interesse juridicamente
protegido [von IHERING] --- desdobra-se em prerrogativas [poderes e faculdades] e
em um complexo de deveres, ônus e obrigações, relacionado sistematicamente
àquelas; esse entrelaçamento de prerrogativas e complexo de deveres, ônus e
obrigações, conforma a situação jurídica subjetiva.24. Aí se revela o direito subjetivo
23
"Droits Subjectifs et Situations Juridiques", Dalloz, Paris, 1.963
- Vide PAUL ROUBIER, ob. cit., págs. 49 e ss.; diz ele, na página 52:
"... de l'entrecroisement des droits et des devoirs, qui caractérise
l'organisation juridique (...) La situation juridique se présente à nous
comme constituant un complexe de droits et de devoirs; or, c'ést là une
position infiniment plus fréquente que celle de droits existant à l'état
de prérrogatives franches, ou de devoirs auxquels ne correspondait aucun
avantage".
24
JOSÉ TADEU De CHIARA
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
19
como núcleo da situação jurídica: o traço da disponibilidade que implica exercitar o
direito como sua prerrogativa, seu privilégio, transferi-lo, ou pode implicar até a
renúncia do direito; isso conforma o verdadeiro direito subjetivo na dicção de Paul
Roubier. Como núcleo da situação jurídica subjetiva, o sujeito nele se investe por sua
decisão ou situação (direito de herança, ou a organização de pessoa jurídica pelo
Estado, em cumprimento ao mandamento legal para atuar sob o regime da iniciativa
econômica, por exemplo), de conformidade com o sistema de regras positivas.
21. De outra parte, há um conjunto de situações de direito que se constituem sem que
nelas se vislumbre como núcleo o direito subjetivo; ao contrário, são situações em que
o sujeito de direito se investe sem que para tanto nela haja uma prerrogativa ou
vantagem que é o núcleo da noção de situação jurídica subjetiva. Essas, as situações
jurídicas subjetivas, são perseguidas pelos sujeitos, pois o seu núcleo é preenchido
pelas vantagens, prerrogativas e privilégios que, afinal de contas, justificam-se como
autênticos direitos subjetivos, a despeito dos deveres, obrigações e ônus que os
circundam, compondo a situação jurídica subjetiva.
Já as situações jurídicas objetivas são definidas pelas regras positivas e não se
caracterizam pela decisão do sujeito de nelas se investir, mas se constituem a partir de
certos atos ou fatos que implicam a ordem pública. Por isso são caracterizadas não por
direitos subjetivos --- enquanto prerrogativas ou vantagens perseguidas pelos sujeitos
de direito --- mas por deveres que são sancionados pelo direito positivo tendo em
vista a salvaguarda da ordem pública25. Por isso, é de sublinhar que inúmeras vezes
das situações jurídicas subjetivas decorrem situações jurídicas objetivas, qual deveres
que se fundam no exercício das prerrogativas inerentes à situação jurídica subjetiva.
São exemplos, as regras atinentes à proteção do meio ambiente, à qualidade de vida
25
- "Dans les situations juridiques objectives, c'est le droit objectif
qui commande, et ses dispositions impératives ne sont pas établies en vue
de satisfaire aux désirs des particuliers, mais bien à certaines
exigences de l'ordre public." PAUL ROUBIER, ob. cit. pág. 73.
JOSÉ TADEU De CHIARA
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
20
nas cidades contidas nas leis do zoneamento urbano, a utilização da propriedade
fundiária para atender sua função social, entre outras.
Acresçam-se, ainda, os exemplos dos deveres impostos a determinadas situações de
propriedade, como a de controle do capital de companhia (artigo 117 da lei nº 6.404
de 15 de dezembro de 1.976), ou mesmo o dever de alimentos aos descendentes,
inclusive em relação aos adotados.
22. A ordem pública, pois, se define em função dos deveres sancionados e que se
impõem a todos, independentemente do “status” ou atividade a que se dediquem,
inclusive ao próprio Estado. Daí decorre que a ordem pública não se nutre de direitos
reconhecidos, mas por deveres que permitem a salvaguarda da ordem social, no
âmbito da qual os sujeitos de direito exercitam suas prerrogativas ou perseguem as
vantagens das situações jurídicas em que estão ou pretendem se investir.
Essa salvaguarda elimina a possibilidade de decisão dos sujeitos de direito sobre certas
matérias que a ordem jurídica trata como de interesse geral porque pertinente a
elementos por ela considerados básicos para a estrutura da própria ordem conformada
pelo direito positivo. Esse interesse geral diz com situações, cuja preservação é
considerada do interesse do conjunto da sociedade (como o são os alimentos), ou
com
situações
que
interferem
com
a
coletividade
ou
com
um
público
indiscriminado, nesses últimos casos, as regras de proteção ao consumidor. Em
qualquer dos casos não se verifica o interesse público, eis que esse diz com a coisa
pública, em particular com a administração estatal.
São, também, dessa forma, situações jurídicas objetivas as que se apresentam tendo
por fundamento os delitos tipificados pela lei penal, o princípio geral de não causar
prejuízo a outrem ou, como já dissemos, o dever (a obrigatoriedade) da prestação
alimentícia em certas hipóteses que o direito positivo contempla.
Nesses casos, como nos de deveres decorrentes de situações jurídicas subjetivas antes
lembrados, as vítimas dos delitos, os prejudicados pelas infrações civis ou os
JOSÉ TADEU De CHIARA
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
21
alimentados não têm qualquer direito subjetivo, até porque não há como considerar
tais situações como preenchidas em seu conteúdo por alguma prerrogativa ou
privilégio. Ao contrário, verifica-se que em qualquer dessas hipóteses o autor do delito,
da infração ou o prestador dos alimentos situam-se juridicamente na esfera dos
deveres sancionados. Se não cumpridos, implicam o devido processo legal, de
iniciativa, conforme o caso, do prejudicado ou do representante do interesse do público
ou coletivo, ou por provocação da autoridade administrativa que exercita o poder de
polícia.26
23. Segue-se que a verificação dos interesses e, portanto, dos privilégios inerentes ou
decorrentes do direito subjetivo --- núcleo da situação jurídica subjetiva --- e dos
deveres e ônus que os condicionam ou limitam, depende da análise de cada hipótese.
No caso em análise, verifica-se a imposição de associação ao FGC e, por decorrência, a
contribuição financeira em seu favor, por regra regulamentar, pela qual é exercitada a
capacidade normativa de conjuntura legalmente atribuída ao Conselho Monetário
Nacional, Lei nº 4595 de 31/12/1964, pelos artigos 3º, inciso VI, e 4º, inciso VIII, que
dispõem:
“art. 3º A política do Conselho Monetário Nacional objetivará:
.........................................................................................
VI – zelar pela liquidez e solvência das instituições financeiras;
Art. 4º Compete ao Conselho Monetário Nacional, segundo diretrizes estabelecidas pelo
Presidente da República:
VIII – Regular a constituição, funcionamento e fiscalização dos que exercerem
atividades subordinadas a esta Lei, bem como a aplicação das penalidades previstas.”
A primeira questão suscitada refere-se à compulsória associação em face do inciso XX
do artigo 5º da Constituição do Brasil, pelo qual se inclui entre os direitos e deveres
individuais e coletivos o de que “ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a
permanecer associado”.
26
A esse respeito, discorri em minha tese de doutorado “Moeda e Ordem
Jurídica” apresentada na Faculdade de Direito da USP, edição do autor,
São Paulo, 1986, págs. 62 e seguintes.
JOSÉ TADEU De CHIARA
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
24.-
22
A liberdade de associação, contemplada no inciso transcrito, refere-se ao
exercício do direito subjetivo de os sujeitos unirem-se para fins que não impliquem
ilicitude, isto é, contrariedade ao sistema de direito.
Essa salvaguarda protege o cidadão em todas as frentes em que pode atuar e se situar
no corpo social, desde as associações para fins beneficentes, fins políticos, até os
sindicatos.
Nada obstante, é corolário dessa liberdade, a de associação, a de o sujeito de direito
decidir deixar o vínculo associativo. O exame dessa matéria reclama a consideração da
estrutura e funcionamento da associação como negócio nominado e típico e cotejá-lo
com o FGC, ao qual é compulsória a associação das instituições financeiras.
Importa, pois, tomar a associação enquanto negócio típico e nominado e, em vista das
peculiaridades do FGC, averiguar como esse se particulariza.
25. A configuração estrutural dos ajustes associativos está enquadrada na teoria geral
do direito na categoria dos contratos, na exposição de Ascarelli que o classifica como
contrato plurilateral27.
Desde essa perspectiva, distinguem-se os contratos associativos, contratos de
comunhão de escopo,
"communiomem adferunt", dos contratos de intercâmbio,
"dirimunt partes", na lição de Ascarelli, que se refere à precedência dessa diferenciação
atribuindo-a a Grocio no século XVII28. Enquanto esses últimos apresentam a
contraposição de interesses como o elemento nuclear de sua estrutura, aqueles se
caracterizam pela justaposição das partes [admitindo a participação de várias partes,
daí a dicção “contratos plurilaterais” para designá-los] em torno de um objetivo
comum, que justifica a causa final do ajuste.
Essa peculiar configuração dos interesses de partes que confluem para a consecução
de fim comum que deve consultar aos associados, admite, desde logo, que várias
partes, vários centros de interesse venham compor a relação contratual, que dessa
27
28
TULLIO
ASCARELLI,
"PROBLEMAS
DAS
SOCIEDADES
ANÔNIMAS
E
DIREITO
COMPARADO", Saraiva, 2ª edição, São Paulo, 1.969, pág. 255 e seg..
idem, ibidem.
JOSÉ TADEU De CHIARA
PROFESSOR DOUTOR DA FACULDADE DE DIREITO DA
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
23
forma resta aberta ao ingresso de novos associados que se vinculem ao contrato,
segundo os procedimentos legal e contratualmente para tanto previstos.
Dentre as modalidades de contratos associativos, particularizam a associação, ex vi do
artigo 53 do Código Civil, os fins não econômicos que justificam o vínculo entre as
partes justapostas. Ou seja, o interesse juridicamente tutelado não pode consistir em
obter resultado de renda ou acréscimo patrimonial para os associados.
Distingue-se, pois, a associação de outros vínculos associativos, como a sociedade, o
consórcio ou o condomínio, não só pela aferição e justificação da contribuição que
incumbe às partes, pelo pressuposto fim econômico que essas outras estruturas
negociais
apresentam,
mas,
sobretudo,
em
relação
aos
dois
últimos,
pela
personalidade jurídica que toca a ela, associação.
A participação na relação plurilateral da associação, negócio de comunhão de escopo,
sem fins econômicos, revela traços específicos tanto no que tange ao ingresso da
parte, como na configuração da situação jurídica do associado, [na "posição do
associado"]. É pela associação que logra o associado a satisfação de interesse, como
cultural, de lazer, de entretenimento, de caridade, de assistência, entre outros.
No caso, a associação constituída pelas instituições, o FGC, tem o propósito de dar
segurança ao público credor do sistema financeiro, assegurando o pagamento dos
respectivos créditos --- de natureza operacional, como já dito --- até determinados
limites.
Ora, é evidente, desde logo, que a associação assim constituída permite aos seus
associados lograr a vantagem de um mercado financeiro que se apresenta à clientela
com grau elevado de segurança superior, até, ao de outros similares em praças no
exterior.
Nessa perspectiva podemos afirmar que o fim do FGC é destacadamente não
econômico, pois sua organização e funcionamento compuseram o aperfeiçoamento do
sistema
financeiro
do
país,
em
benefício
diretamente
dos
clientes
credores
(operacionais) das instituições associadas, na medida em esse incremento de
JOSÉ TADEU De CHIARA
PROFESSOR DOUTOR DA FACULDADE DE DIREITO DA
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
24
qualidade pelo elemento segurança se traduz em garantia dos seus créditos e, por via
indireta, credibilidade ainda maior do sistema financeiro, no país e no exterior,
alcançando indistintamente as instituições financeiras controladas pelo Estado e as do
setor privado.
O escopo associativo que se configura na organização da pessoa jurídica, no caso,
atende, pois, os associados e, no plano da ordem social, o efeito indireto dessa
associação é o interesse geral que configura a estrutura e o funcionamento do sistema
financeiro nacional, tanto na vertente do mercado financeiro (em que se constituem e
liquidam as relações de crédito\débito), como no quanto importa a ser instrumento
para consecução das políticas monetária, de crédito e de câmbio, tal como exposto no
item 03.
Esse efeito indireto há de ser apreciado, pois.
26. A propósito assim se expressou Mauro Brandão Lopes:
"Há negócio indireto quando as partes recorrem, em determinado caso concreto, a um
contrato típico, nominado, para conseguir, por meio dele, não somente os seus efeitos
normais, mas também fim diverso daquele que decorreria de sua estrutura peculiar.”29
Os negócios jurídicos indiretos configuram-se no plano da eficácia, no qual são
geradores de efeitos não ínsitos na estrutura do instituto de que as partes se servem,
mas resultam de certas estipulações a que se submetem, pelas quais são alcançados
os fins que não são os próprios do negócio típico.
É o caso da propriedade com efeito de garantia, nas hipóteses de financiamento de
importação em que os documentos que acompanham os bens importados indicam o
financiador como o destinatário (adquirente da propriedade) buscando-se, por aí,
obviar o desembaraço aduaneiro e a venda do bem, no inadimplemento do devedor;
da cláusula de retrovenda, mediante a qual se viabiliza financiamento para o
proprietário do bem sob garantia da propriedade para o financiador; ou, ainda, dos
adiantamentos sobre contratos de câmbio que, ajustados no negócio jurídico de
compra e venda de moeda estrangeira, viabilizam autêntico financiamento em favor
dos exportadores.30
29
- in Revista de Direito Mercantil, Nova Série, 1974, 14/146.
- Cabe, ainda, ajuntar as diferentes modalidades de fidúcia mediante as
quais os efeitos de garantia são logrados de forma indireta, como na
alienação fiduciária em garantia ou, mesmo, na adoção com o fim de
nomeação de herdeiro. Há efeitos indiretos que se alcançam mercê da
disciplina do negócio típico de que a parte se vale, como o recurso à
30
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27. Aí o magistério de Ascarelli:
"Em substância, todo negócio é caracterizado por um escopo típico que se destina a
realizar e no qual se identifica precisamente a sua causa econômica e jurídica (por
exemplo, a troca da coisa pelo preço da venda), mas nada impede, no entanto, seja
ele, embora dentro de determinados limites (aqueles que, em substância, resultam dos
chamados elementos essenciais de cada negócio,...), disciplinado pelas partes de modo
tal que não só possa realizar, imediatamente, o escopo que lhe é típico, mas também,
mediatamente, outros objetivos que até adquirem importância predominante na
vontade das partes.
Perante a fixidez da finalidade típica de cada negócio, é a variabilidade dos motivos
que permite a diversidade de configuração deles, e, por conseguinte, a consecução de
finalidades ulteriores."31
28. - Da exposição de Ascarelli segue-se que os efeitos indiretos podem se justapor
aos regulares da estrutura negocial de que se valem as partes. Ou seja, ao lado dos
efeitos colimados pelo negócio jurídico que formalizam, outros decorrem em razão dos
interesses que as partes buscam, alcançados mediante certas estipulações a respeito
de elementos do negócio típico. Nesse particular, nada obsta a autoridade adotar
determinada estrutura jurídica para alcançar determinado fim indiretamente, pelo qual
dê consecução ao seu dever, no caso, de conferir ainda mais segurança ao
funcionamento do mercado financeiro.
Os negócios jurídicos indiretos revestem, pois, a qualidade de provocar conseqüências
para além das ordinariamente verificadas pelas estruturas que os configuram,
permitindo de forma legítima efeitos que seriam próprios a outros negócios jurídicos.
Daí tratar-se de negócio jurídico típico, mas que se revela indireto pelos efeitos que
provoca em ultrapassagem aos regularmente decorrentes de sua configuração básica,
tendo em vista o propósito das partes.
29. A esse respeito, a observação de Ascarelli:
"Estes objetivos ulteriores constituem, sim, juridicamente, apenas "motivos", desde
que se queiram distinguir da "causa"; mas são motivos que se prendem à vontade de
ambas as partes e não às intenções individuais peculiares de cada uma. Por isso,
embora distintos da causa, podem eles, no entanto, ser tidos em conta na apreciação
constituição de renda para alcançar a transmissão da propriedade ex vi do
artigo 809 do Código Civil.
31
TULLIO ASCARELLI, Problemas das Sociedades Anônimas e Direito Comparado,
Saraiva, São Paulo, 2a ed., 1.969, pág. 105 e 106.
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da licitude ou ilicitude do negócio. Veremos que a disciplina do negócio indireto decorre
justamente do fato de estar, ele, em princípio, sujeito à disciplina peculiar do negócio
adotado, ao passo que na aplicação das normas relativas a um determinado efeito
econômico, independentemente do instrumento jurídico adotado para consegui-lo,
cumpre atender aos fins indiretamente visados pelas part es.
Com efeito, nessa apreciação não se deve considerar apenas a causa típica do negócio
em abstrato, mas a função efetivamente visada por ele no caso concreto."(grifado)32
Como já asseverado, a organização do FGC tem fim que ultrapassa o interesse das
partes associadas. Com efeito, o Conselho Monetário Nacional ao editar a Resolução
que autorizou sua criação toma por fundamento seu dever de, como órgão normativo,
assegurar a solvência e liquidez das instituições financeiras. Indispensável o destaque
para a matriz constitucional, no caso, expressa no artigo 192 da Carta, in verbis:
“O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento
equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes
que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis
complementares que disporão, inclusive, sobre participação do capital estrangeiro nas
instituições que o integram.” (grifado)
A locução “servir aos interesses da coletividade” não deixa dúvida sobre a atuação
do sistema financeiro nacional subordinar-se ao interesse geral. Esse interesse da
coletividade por certo se sobrepõe aos interesses individuais de cada empresa
financeira e de cada credor operacional, dizendo com o conjunto de quantos o
integram na situação jurídica de credor ou de devedor, no plano operacional em que
cumpre sua função.
A segurança como causa final da sistemática objetivada pela organização do FGC
constitui, pois, o fim indireto no que respeita à associação como estrutura jurídica
típica. A segurança como elemento predominante quando se cuida da estabilidade do
sistema financeiro nacional [sobreposta à liquidez e à rentabilidade, como já exposto],
na dinâmica do seu funcionamento é nuclear na composição dos ”interesses da
32
TULLIO ASCARELLI, ob. cit. pág. 107 nota 44.
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coletividade“
estabelecido
constitucionalmente
como
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subordinante
para
sua
organização e funcionamento.
O zelo pelos interesses da coletividade incumbe no plano infraconstitucional [lei
4.595/64, recepcionada pela Constituição do Brasil, como a lei complementar do
sistema financeiro nacional] ao Conselho Monetário Nacional e ao Banco Central do
Brasil no desempenho de seus deveres constitucionais e legais. Aí a legitimação
constitucional pelo prevalecimento do fim a ser perpetrado pelo sistema em desapreço
à liberdade de a instituição financeira associar-se ou não ao FGC.
Ou seja: o fim indireto da associação em que se constitui o FGC, qual, o de preservar a
segurança ínsita no interesse coletivo dos credores operacionais do sistema financeiro,
atende o mandamento constitucional enquanto voltado para o sistema financeiro
nacional, sobrepujando as pessoas individualmente consideradas que o compõem.
Essa compulsória associação é, pois, legitimada pelo cumprimento do dever do órgão
normativo e do fiscalizador do sistema financeiro nacional, ao editarem as regras de
intervenção que constitucional e legalmente lhes competem como atribuições de seu
mister jurídico-administrativo, por um lado, e, por outro, configura o ônus que
circunda a situação jurídica subjetiva de quantos, pessoas jurídicas, são admitidos para
desenvolver a atividade de instituição financeira no País.
Isto porque, não é o FGC uma associação restrita ao fim típico de atender os
associados, mas voltada para o seu fim indireto, consubstanciado na causa final que
lhe presidiu a organização e norteia seu funcionamento, de atender os interesses da
coletividade preservando imediatamente a segurança atendida pela liquidez
assegurada
relativamente
aos
créditos
operacionais
devidos
pelas
instituições
financeiras.
O prevalecimento do interesse coletivo, expressão do artigo 192, em face do direito
individual da liberdade de associação e de deixar de associar-se, expressão do artigo
50 inciso XX, ambos da Constituição do Brasil, evidencia a aplicação de um princípio na
situação de direito em que seu peso, o do interesse coletivo, é nitidamente superior ao
do outro princípio, o da liberdade individual de associação. 33
33
- Presta-se a ilustração, o caso do seguro obrigatório de veículos
automotores (DPVAT). A imposição da contratação desse seguro a quantos
sejam proprietários de veículo automotor, desde logo, aparenta ferir a
liberdade de contratar. Todavia, a Lei, atendendo a interesse de ordem
pública (esse é o caso desse seguro), guindou o princípio da segurança da
integridade física do público em geral acima daquele da liberdade de
contratar.
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30. O debate a respeito do prevalecimento de um princípio em face de outro é
iluminado quando se trata de tomá-los relativamente às regras de direito. À exposição
de RONALD DWORKIN34 a respeito das distinções que apartam os princípios das regras
jurídicas
35
vem se reportando, reiteradamente, a doutrina mais recente.
Há, em primeiro lugar, uma distinção lógica apartando princípios e regras jurídicas.
Estas últimas são aplicáveis por completo ou não o são, de modo absoluto. Trata-se de
um tudo ou nada. Desde que os pressupostos de fato aos quais a regra refira --- o
suporte fático hipotético --- se verifiquem, em uma situação concreta, e sendo ela
válida, em qualquer caso há de ser aplicada.
É que as regras não comportam exceções. Já os princípios, não se aplicam automática
e necessariamente quando as condições previstas como suficientes para sua aplicação
se manifestam. A circunstância de serem próprios de um determinado direito não
significa que esse direito jamais autorize a sua desconsideração.
Em segundo lugar, os princípios possuem uma dimensão que não é própria às regras
jurídicas: a dimensão do peso ou importância. Assim, quando se entrecruzam vários
princípios, quem há de resolver o conflito deve levar em conta o peso relativo de cada
um deles. Por isso que, em situações diversas, ora prevalece um, ora prevalece outro
princípio.
As regras não possuem tal dimensão. Não podemos afirmar que uma delas, no interior
do sistema normativo, é mais importante do que outra, de modo que, no caso de
conflito entre ambas, deva prevalecer uma em virtude de seu peso maior. Se duas
regras entram em conflito, uma delas não é válida; verifica-se, então, uma situação de
antinomia jurídica própria
36
.
As regras são aplicações dos princípios; nas regras se dá a concreção dos princípios.
Nisso repousa a sua força. E por isso é que não apenas a interpretação/aplicação das
regras jurídicas, mas a sua própria edição, não podem ser empreendidas sem que se
tome na devida conta os princípios sobre os quais se apóiam, isto é, aos quais
conferem concreção.
34
- Taking rights seriously, fifth impression, Duckworth, London, 1987, págs. 24 e ss.;
35
- A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica) , ob.cit., págs. 107
e ss.
36
- TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR, Introdução ao estudo do Direito, Atlas, São Paulo, 1988,
págs. 184 e ss. e NORBERTO BOBBIO, Teoria dell'Ordinamento Giuridico, Giappichelli Editore,
Torino, 1960, págs. 82 e ss.
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31. A compulsória associação ao FGC não implica contrariedade ao sistema de direito
positivo, pois, por um lado, a causa final da associação justifica a utilização da
estrutura típica e nominada para a consecução do fim de segurança; por outro, a
causa final dessa peculiar associação atende o interesse da coletividade que, como
determina a Constituição, é função do sistema financeiro nacional. Dúvida não há,
pois, sobre não se verificar qualquer inconstitucionalidade, no caso.
32. Na seqüência dessa análise, coloca-se, então, a questão sobre as contribuições das
instituições financeiras associadas ao FGC: como se qualificam perante nosso sistema
de direito.
Primeiramente sendo contribuições, a despeito de já visto não ser o FGC por qualquer
razão, formal ou funcional, entidade da administração pública, poder-se-ia argüir, se
não seriam tais contribuições colhidas pela parafiscalidade.
São designadas como parafiscais, as contribuições que, no magistério de Antonio
Roberto Sampaio Dória, são identificadas pelos traços distintivos que “repousam na
destinação específica de seu produto e, mais característicamente, na delegação de sua
percepção e aplicação a órgãos autárquicos e descentralizados da administração
pública”37.(grifado).
Bem assim o sempre lúcido ensinamento de Geraldo Ataliba:
“Pode-se dizer que – da noção financeira de contribuição – é universal o asserto no
sentido de que se trata de tributo diferente do imposto e da taxa e que, por outro lado,
de seus princípios informadores, fica sendo mais importante o que afasta, de um lado,
a capacidade contributiva (salvo a adoção da hipótese de incidência típica e exclusiva
de imposto) e, doutro, a estrita remunerabilidade ou comutatividade, relativamente à
atuação estatal (traço típico da taxa).
Outro traço essencial da figura da contribuição, que parece ser encampado – pela
universalidade de seu reconhecimento e pela importância, na configuração da entidade
– está na circunstância de relacionar-se com uma especial despesa ou
especial vantagem referidas aos seus sujeitos passivos (contribuintes). Daí as
designações doutrinárias special assessment, contributo speciale, tributo speciale, etc.”
(grifado e destacado)38
37
Discriminação das Rendas Tributárias, Bushatsky, São Paulo, 1972, pág.
194.
38
Hipótese de Incidência Tributária, Malheiros Editores, 5ª ed., 1992,
pág. 171:
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Resta claro que a parafiscalidade sempre se verifica pela atuação estatal [domínio da
administração centralizada ou descentralizada, ou da administração direta ou indireta,
conceitos já detalhadamente expostos], em vista de uma atuação específica. Essa
atuação, contudo, sempre é em prol dos contribuintes: ou seja, impõem-se a
contribuição parafiscal para fazer face a uma especial despesa ou especial vantagem
dos beneficiários dessa atuação. A bem da abrangência no tratamento do tema, aqui
cabe a menção à linha doutrinária que frisa não ser a referibilidade (com o significado
de os contribuintes serem os beneficiários da ação estatal coberta pela contribuição)
elemento essencial à noção da contribuição parafiscal; os que assim pensam fazem
residir na teoria da validação finalística (com o significado de os recursos serem
afetados a uma atividade estatal ou paraestatal específica) a justificação sistêmica
para a instituição da contribuição de caráter parafiscal.39.
Esse debate doutrinário acerca das contribuições parafiscais e de como se caracterizam
nos quadros do direito tributário, nada obstante não afetar o que a seguir se conclui,
[de não ser essa (parafiscalidade) a natureza das contribuições ao FGC], apesar de
autorizadas
opiniões
em
sentido
contrário,
é
solucionado,
sem
dúvida,
pela
referibilidade, [entendida essa não como coincidência absoluta entre os contribuintes e
beneficiários da ação estatal ou paraestatal, mas, como a sempre possível inclusão dos
contribuintes como beneficiários dessa ação]. Por aí é que a justificativa de direito para
essa categoria de exação pode se conter sob os contornos constitucionais e legais.
Contrariamente, a finalidade dos recursos, elemento nuclear para a “teoria da
validação finalística”, se dá no plano da gestão financeira do estado, fora, portanto, do
direito tributário, pois a finalidade não integra a norma de tributação e dá guarida
exemplar e destacada aos interesses fazendários. 40
32. Relativamente às contribuições associativas ao FGC, ao qual são compulsoriamente
associadas as instituições financeiras do País, por qualquer das aproximações, não
revestem natureza parafiscal, portanto natureza tributária, pois:
a) não foi criada uma exação para as instituições financeiras, mas organizada uma
associação compulsória entre instituições financeiras, cuja causa final é constituir-se
num instrumento de segurança para garantir a liquidez dos créditos operacionais, dos
quais as instituições financeiras são devedoras. Por isso, além das contribuições
propriamente
ditas,
constituem
recursos
destinados
ao
cumprimento
do
fim
0
associativo, todos os discriminados no artigo 5 do Estatuto Social do FGC do que é
39
Confira-se a respeito Luciano da Silva Amaro, Curso de Direito
Tributário Brasileiro, Ed.Saraiva, São Paulo, 2007, 13a edição, pág.85.
40
É o entendimento de Sacha Calmon Navarro Coêllho, Curso de Direito
Tributário Brasileiro, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 2007, 9a edição, pág.
458 e seg..
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decorrente que os acréscimos patrimoniais ensejados pelas aplicações de recursos da
entidade também fiquem adstritos ao fim associativo [inclusive e sobretudo para o fim
indireto da associação, a segurança do mercado financeiro para os clientes credores,
como visto];
b) as denominadas contribuições parafiscais se justificam como categoria tributária
[isto é, constituem o crédito tributário em função do poder estatal de tributar, são dele
expressão, como qualquer tributo] e em razão de uma ação estatal ou paraestatal em
benefício dos seus contribuintes. Isso não ocorre no caso, pois não há hipótese de o
FGC pagar crédito, cuja credora seja outra instituição financeira, portanto contribuinte,
associada do FGC;
c) se tomada a finalidade dos recursos como justificativa da exação parafiscal para o
caso, [com o quê, como já assinalado, não concordamos], ainda assim não se
configura essa natureza para as contribuições ao FGC. Isso porque essa finalidade não
se cumpre pelo próprio funcionamento da entidade, mas, apenas, nos casos em que se
concretizem as hipóteses de pagamento da obrigação de garantia (vide itens
seguintes) pelo FGC. Em outras palavras, contrariamente ao que ocorre com
contribuições parafiscais [como as do INSS, da Seguridade Social ou CIDE em que os
recursos são imediatamente aplicados para operacionalizar os fins que justificaram sua
criação], no caso, os recursos carreados ao FGC permanecem como acessórios ao
regular efeito de pagamento das obrigações pelas instituições financeiras devedoras.
Exatamente aí reside a adequação da solução associativa perpetrada pela norma de
intervenção: a adoção da personalidade jurídica (vide item 39, a seguir) para constituir
um patrimônio, não meras receitas, afetado ao fim típico e efeito direto da associação
(e ao indireto, conferir segurança aos credores operacionais das instituições
financeiras).
Para além desses pontos fundamentais, relembre-se, o FGC, como já visto, não integra
por qualquer forma a administração pública e não desempenha qualquer função
pública. Como entidade privada expressa a atuação normativa de intervenção estatal
em atividade sujeita ao regime de direito privado de interesse geral. Daí, ainda mais,
não se configurar por qualquer critério de análise ou fundamento jurídico a hipótese de
contribuição parafiscal.
33. Daí decorre que as contribuições ao FGC devidas pelas instituições financeiras que,
também assim, compõem o seu quadro social, configuram a expressão financeira da
compulsória associação que é o ônus imposto à situação jurídica subjetiva, cujo núcleo
é o “status” de instituição financeira, para perpetrar a segurança, fim maior do
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sistema de direito positivo, da ordem, ao lado da justiça e do bem comum, na lição de
Radbruch ,já citada.
O ônus é o vínculo associativo, do que é decorrente a obrigação de contribuir; por
isso os recursos assim devidos conservam para os contribuintes a natureza de
contribuições associativas. O ônus, exigência que se impõe a determinados sujeitos,
cujo cumprimento assegura a possibilidade do exercício da atividade visada, tem por
efeito, além da obrigação de contribuir, a observância de todas as regras associativas,
envolvendo as instituições nas decisões, segundo as regras estatutárias, que implicam
a segurança perpetrada pelo FGC.
34. Nada obstante o quanto já analisado a respeito das contribuições devidas pelas
instituições financeiras ao FGC, a ele compulsoriamente associadas, é cabível, ainda, a
consideração das prescrições da Lei Complementar n 0 101 de 04 de maio de 2000 que
estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão
fiscal e dá outras providências, em particular da inscrita em seu artigo 28, in verbis:
“Art. 28. Salvo mediante lei específica, não poderão ser utilizados recursos públicos,
inclusive de operações de crédito, para socorrer instituições do Sistema Financeiro
Nacional, ainda que mediante a concessão de empréstimos de recuperação ou
financiamentos para mudança de controle acionário.
§ 1o A prevenção de insolvência e outros riscos ficará a cargo de fundos, e outros
mecanismos, constituídos pelas instituições do Sistema Financeiro Nacional, na forma
da lei.
§ 2o O disposto no caput não proíbe o Banco Central do Brasil de conceder às
instituições financeiras operações de redesconto e de empréstimos de prazo inferior a
trezentos e sessenta dias.”
Sobre não haver em qualquer hipótese a sujeição do FGC ao regime de direito público
e não se caracterizarem as contribuições a ele pagas pelas instituições financeiras,
tanto pelas controladas pelo estado, como pelas submetidas ao controle privado, como
recursos sujeitos ao regime de direito público e das obrigações tributárias, reportamonos ao quanto já exposto.
A Lei de Responsabilidade Fiscal, como é denominada a lei em que se acha a
disposição ora comentada, estabelece regras sobre finanças públicas e traça o regime
aplicável para a gestão dos recursos que assim se caracterizam. Como é entidade
privada o FGC e, bem assim, o regime de direito privado que conforma sua receita e
patrimônio [relembre-se, ainda, a inaplicabilidade de qualquer regra de administração
pública mesmo se considerado o controle estatal de algumas das instituições
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associadas, como já se o disse], não há como logicamente pretender-se a submissão
da entidade ou das operações por ela contratadas segundo os mandamentos
estatutários (aprovados pelo Banco Central do Brasil) aos limites e restrições da
mencionada Lei.
Mas, ainda assim, a bem da clareza, a referência legal à vedação do socorro a
instituições financeiras mediante a utilização de recursos públicos recomenda atenção
ao referir aos recursos obtidos mediante operações de crédito. Essa locução abrange
os recursos que a entidade pública ou as pessoas sujeitas ao regime de direito público
obtêm mediante endividamento que se funda na arrecadação tributária orçada, ou na
cobrança de tarifas ou taxas, e se operacionaliza mediante a captação de recursos no
mercado financeiro, inclusive sob a forma de empréstimo, ou sob outras modalidades
de antecipação de renda legalmente possíveis [como debêntures, antecipação de
receita orçamentária, entre outras].
Nesse sentido, a primorosa lição de Geraldo Ataliba:
"Se
bem
que
---
como
oportunamente
iremos
expor
---
essencialmente
os
empréstimos das pessoas públicas sejam submetidos aos mesmos princípios que
norteiam os empréstimos privados, justifica-se o tratamento jurídico separado de cada
qual.
É inegável que sob a perspectiva financeira --- da ciência das finanças --- a diversidade
é radical. Salientam-no bem os escritores que se ocuparam do assunto, que não é,
aliás, objeto deste trabalho. Se é exato que o 'Estado entra no mercado financeiro,
para obter empréstimos, como qualquer empresa o faz' 41, sob o ângulo jurídico, há
diferenças que importa salientar e ter bem presentes, o que se vai aqui expor.
É que a participação da pessoa pública --- como sujeito passivo da relação de débito -- introduz peculiaridades no instituto, de forma a atribuir-lhe características próprias. A
presença do interesse público, da relação de administração e outros, dão feição típica
ao negócio, informando seu regime jurídico de maneira a extremá-lo do regime
comum.
41
- Bastable C. F., "Public finance", MacMillan, Londres, 3 a ed., 1.903, pág. 359
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34
Destarte, em matéria de princípios, tanto os empréstimos do direito privado quanto os
do público são iguais42. Em tema de regimes específicos, as diferenças se impõem,
distinguindo-os.
A unicidade dos princípios permite as analogias e o tratamento comum de ambas as
hipóteses, até certo ponto. A diversidade de regimes, porém, erige limites à analogia e
obstáculos à comunicação, em muitos casos, de soluções"43.
Do quanto exposto, resta claro que o crédito público está sujeito a regime de direito
discrepante do que conforma os negócios de mútuo entre pessoas de direito privado.
O fato de o tomador dos recursos ser pessoa pública, determina que a relação de
crédito/débito tenha seus efeitos parametrizados pelo regime de direito público.
O negócio de crédito financeiro contratado com pessoa pública, pois: se subordina ao
princípio da supremacia do interesse público [que há de prevalecer em qualquer
circunstância]; caracteriza-se por não resultar de decisão meramente negocial em sua
contratação, mas a compulsória verificação de pressupostos, requisitos e certos
elementos que a Constituição e as normas infraconstitucionais impõem para poder o
Estado socorrer-se do crédito, devendo fazê-lo para consecução do interesse público44.
Precisamente
nesse
ponto
que
o
FGC
se
aparta
das
restrições
da
Lei
de
Responsabilidade Fiscal aplicáveis às finanças públicas, pois por qualquer dos critérios
de análise de sua organização e funcionamento [como já exposto e adiante se
completará] a entidade não se sujeita ao regime de direito pública e nem às regras das
42
- "O crédito público é uma forma de crédito ... sendo por isso regulado pelos mesmos
princípios. Muitos erros se deveram à crença de que o Estado em seus empréstimos estava
emancipado das restrições que a prudência impõe às pessoas privadas ...", Bastable, ob.
cit., pág. 658.
43
- Geraldo Ataliba, "Empréstimos Públicos e seu Regime Jurídico", Revista dos Tribunais,
São Paulo, 1.973, págs. 26 e 27.
44
Quanto
Estado,
liquidar
próprio,
outra, é
à responsabilidade, esta não alcança a esfera patrimonial do
pois que impenhoráveis seus bens. A obrigação de o Estado
seus débitos é passível de ser exigida segundo regime jurídico
no âmbito do qual a intervenção de uma esfera administrativa em
a medida processual extrema.
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35
finanças públicas. Daí decorre que suas aplicações de recursos [que é o objeto da Lei,
nesse ponto] nada tem a ver com o interesse público, repita-se.
Frente à disposição do parágrafo 1 0 do artigo 28 da Lei de Responsabilidade Fiscal
torna-se evidente a não sujeição do FGC às restrições da Lei. A expressa referência a
“outros mecanismos” constituídos pelas instituições integrantes do Sistema Financeiro
Nacional, sem designar a entidade ou sua estrutura jurídica [e corretamente a Lei não
o fez], elimina qualquer possível dúvida a respeito. Nessa perspectiva, insista-se,
dispensa
destacar
que
a
disposição
alcança
todas
as
instituições
financeiras
participantes dos mecanismos criados para prevenção de insolvência e outros riscos,
sem qualquer distinção relativamente ao seu controle [público ou privado], até porque
seria um non sense fazê-lo [como já analisado], vez que as instituições financeiras sob
controle do Estado, expressamente estão submetidas pela Constituição do Brasil ao
regime de direito privado.
Por último, ainda cabe observar que a disposição em apreço vale-se da expressão na
forma da lei, ao referir aos fundos e outros mecanismos. Ora, como já exposto, a
organização do FGC deu-se na forma da Lei 4.595/64, recepcionada pela Constituição
do Brasil, como a lei complementar do sistema financeiro nacional e de conformidade
com as atribuições e competências definidas por aquele diploma legal para o Conselho
Monetário Nacional e para o Banco Central do Brasil. Por isso é evidente que a criação,
organização e funcionamento do FGC cumprem os desígnios da Lei.
II – GARANTIA: OBJETO EXCLUSIVO DO FGC
35. Quando discorremos a respeito do funcionamento do sistema financeiro, coube
destaque para a situação jurídica de devedora das instituições para desempenhar sua
atividade empresarial, do que é decorrente, como assinalado, o risco dos credores para
o cumprimento de seus créditos.
Na dinâmica do funcionamento dos mercados e, mais que isso, na perspectiva de a
atividade do sistema financeiro se compor no âmbito operacional das políticas públicas
da moeda, do crédito e do câmbio, como exposto, bem se vê a abrangência dos efeitos
de eventual inadimplemento de uma instituição financeira para com seus credores
operacionais, pode-se dizer, para com o público em geral, individualizadas as situações
pelos depositantes e aplicadores que com ela contrataram.
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36
A preocupação com essas situações, tantas vezes engendradas ao longo do século
passado, em particular no início dos anos 90, no país, disse com o fenômeno da
“desintermediação” financeira implicando riscos ainda maiores para o público, por um
lado, e, por outro, a perda de eficiência, por mitigação dos fluxos de renda junto ao
sistema financeiro, das políticas públicas operacionalizadas pelo setor [moeda, crédito
e câmbio].
Daí a preocupação, o objetivo de assegurar a solidez das instituições financeiras,
avançar para além das exigências de capital mínimo, limites operacionais, exigências
de prazos mínimos, garantias, entre outros, colhendo o seu funcionamento na
perspectiva de a liquidez ser diretamente assegurada aos depositantes e aplicadores,
no pagamento dos “débitos” operacionais das instituições financeiras, a despeito dos
regimes específicos da intervenção e da liquidação determinados pela Lei nº 6.024/74
e do Decreto-lei 2.381/87, que instituiu o regime de administração especial
temporária.
A
segurança,
nesse
passo,
se
expressa,
então,
pela
garantia
de
liquidez
institucionalmente exigida para o funcionamento do sistema financeiro, provida pelas
próprias instituições, disciplinada por norma de intervenção, consubstanciada pela
Resolução nº 2.197 de 31/08/1.995, que autorizou a constituição do FGC, como já se o
disse.
Nesse ponto, há que perquirir como se apresenta juridicamente a garantia pela qual a
segurança é promovida topicamente para os negócios do sistema financeiro nacional,
em que as instituições figuram como devedoras. A análise dos vínculos obrigacionais
sob o critério dualista permite clarificar a questão.
36. Por esse método torna-se possível distinguir o débito que é próprio ao vínculo
obrigacional, preenchendo-lhe o núcleo, e a responsabilidade, que encerra a relação
de sujeição do patrimônio do devedor ao credor, caso se dê o inadimplemento do
débito.
O método da análise dualista das obrigações permite-nos compreender com adequada
clareza a classificação de DEMOGUE45, que distingue entre obrigações de meio, de
resultado e de garantia. E, de outra parte, exige, quanto às derradeiras, o
delineamento
do
significado
de
garantia,
essencial
ao
conceito
jurídico
responsabilidade.
45
- Fábio Konder Comparato, Ensaios e pareceres de Direito Empresarial,
Forense, Rio de Janeiro, 1978, págs. 521 e ss.
de
JOSÉ TADEU De CHIARA
PROFESSOR DOUTOR DA FACULDADE DE DIREITO DA
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
37
"A relação de obrigação compõe-se de dois liames distintos: o de débito-crédito e o de
responsabilidade-garantia"46.
Débito e responsabilidade compõem, dessa forma, o vínculo obrigacional. Aquele com
o traço subjetivo da vinculação do devedor ao credor; esta, com o traço, objetivo, da
exigibilidade do cumprimento do débito diretamente no patrimônio do devedor.
“A obrigação de garantia é aquela que consiste na eliminação de um risco que pesa
sobre o credor, independentemente de sua concretização, o que obriga a fortiori o
devedor a reparar as conseqüências da realização desse risco.” 47 E citando Pontes de
Miranda, Fábio konder Comparato assinala: é o dever de prestar segurança. Daí a
propriedade e pertinência das ilustrações que se valem nos contratos comutativos, da
obrigação relativa aos vícios redibitórios e da obrigação do alienante em relação à
evicção (quando transmitidas a propriedade, a posse ou o uso).
Distinguem-se dessa função geral de segurança, mas dela não discrepam, apenas
implicando a operacionalidade de sua exigibilidade pelo credor, as garantias
concebidas no plano dos efeitos da obrigação, no nível da responsabilidade --- vale
dizer, da exigibilidade do crédito em relação à esfera patrimonial do próprio devedor,
afetada pela simples constituição do vínculo obrigacional. Nesse plano alinham-se:
(i) as garantias pessoais, que ensejam a ampliação da esfera patrimonial que resta
ao alcance do credor, para ser atingida pelas medidas judiciais de cobrança do crédito;
(ii) as garantias reais, que desde logo permitem a especialização de bens destinados
à penhora para suportar a eventual execução do crédito inadimplido; os bens que
assim ficam sujeitos ao gravame podem estar localizados tanto no patrimônio do
devedor,
quanto
no
de
terceiro
que
presta
a
garantia,
para
assegurar
a
responsabilidade do devedor.
37. Destarte, a obrigação de garantia tem por conteúdo, pois, a eliminação de um
risco, pouco importando o comportamento do devedor, ou mesmo o resultado da ação
para eliminar o risco: ao assumir o risco possível que, se configurado, pode prejudicar
o credor, o devedor da obrigação [de garantia] terá cumprido sua obrigação.
O núcleo da obrigação de garantia que, sublinhe-se, não é acessória, mas autônoma
(como no caso do contrato de seguro), pode implicar a esfera da responsabilidade de
uma obrigação de resultado ou de comportamento, mas de qualquer delas, não será
acessória.
4247
Fábio Konder Comparato, ob.cit. pag.532.
Fábio Konder Comparato, O Seguro de Crédito, Max Limonad, São Paulo, pág. 104.
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38
38. Indispensável a consideração da causa para prosseguir na análise que interessa
para este estudo. A causa [de juridicidade]48 da obrigação de garantia pode consistir
na existência do vínculo obrigacional de resultado ou de garantia, vindo a calhar essa
observação a fim de não se confundir a função acessória do negócio (como ocorre nas
garantias constituídas para assegurar o cumprimento de determinada obrigação) com
a causa que fundamenta a existência do negócio jurídico cujo conteúdo consista numa
obrigação de garantia.
39. No caso vertente, a dicção utilizada, sem compromisso com o regime de direito a
que se submete o FGC e as implicações de seu objetivo social, é a de tratar-se de um
“seguro”, o que transmite conforto para o público em geral. Sabe-se que, se houver o
inadimplemento por parte da instituição financeira, relativamente aos débitos por ela
constituídos
no
desenvolvimento
de
sua
atividade
empresarial
---
como
operacionalização de seu objeto de intermediária financeira --- existe a “cobertura” até
certo valor pelo FGC.
48
- A importância da causa como finalidade do negócio foi percebida no
Direito Romano relativamente aos contratos abstratos e não formais
[stipulatio] em razão dos quais a inexigibilidade da indicação da
finalidade do negócio dava ensejo a situações de manifesta injustiça,
pois que obrigado o devedor em razão tão somente de pronunciado as
palavras rituais, mesmo que enganado pelo credor. [FÁBIO KONDER
COMPARATO, "Ensaios e Pareceres de Direito Empresarial", Forense, Rio de
Janeiro, 1a edição, pág. 396.] Tratava-se, nesse caso, da denominada
causa civilis identificada pelos glosadores na Idade Média, como
fundamento da obrigação: causa de juridicidade dos atos humanos,
explicativa da razão de esses atos serem fontes de obrigação(cf.ANTONIO
JUNQUEIRA DE AZEVEDO, "Negócio Jurídico e Declaração Negocial - Noções
Gerais e Formação da Declaração Negocial" - Ed. A., 1986,pág. 121.)
A exceptio doli mali, do direito pretoriano, permitia ao devedor que
injustificadamente (sem causa) se tivesse obrigado, defender-se da
pretensão do credor. A conditio, também de elaboração pretoriana, por sua
vez, ensejava a possibilidade da repetição do que indevidamente fora
pago, porque iludido o devedor em sua boa fé.
A condictio foi estendida aos negócios translativos da propriedade nos
casos em que não houvesse causa para a traditio da coisa.
"Assim, à condictio ob rem dati ou causa data causa non secuta do direito
clássico, os sistema justinianeu veio acrescentar uma série de outras
condictiones adptadas a diferentes situações: a condictio indebiti para
os casos de repetição do indébito; a condictio ob turpem causam, contra o
que se beneficiou de um enriquecimento imoral em detrimento do tradens; a
condictio ob injuntam causam, para a repetição de juros usurários, e,
finalmente, a condictio sine causa, se o que conservou a coisa, que lhe
foi entregue, estar-se-ia locupletando à custa alheia, como na hipótese
da conservação de um objeto recebido a título de arras, mesmo depois de
pago integralmente o preço da compra e venda."FÁBIO KONDER COMPARATO, ob.
cit. pág. 396 e 397.Distinguem-se, pois, as situações em que a tutela se
refere à causa enquanto fundamento da obrigação, da causa enquanto
finalidade do negócio.
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39
Apesar de razoavelmente assim ficar elucidado para o público em geral, a segurança
que pelo FGC é cumprida, por óbvio que não elucida o regime de direito a que a
entidade e as aplicações de seus recursos se submetem.
Como garantidor dos créditos, o FGC, criado em virtude de norma de intervenção do
Estado no mercado financeiro com vistas à segurança para seu funcionamento, recebe
as contribuições compulsórias das instituições financeiras que a ele são também
compulsoriamente associadas. Daí se segue, que as instituições financeiras, devedoras
que são do público em geral e, especificamente, de quantos sejam depositantes ou
aplicadores em cada uma delas, provêem a garantia dos seus próprios débitos.
Diferentemente do contrato de seguro em que o objeto é dar cobertura aos efeitos
danosos provocados pela superveniência dos riscos cobertos e que, de ordinário, é o
credor quem é a parte contratante, no caso, a obrigação de garantia está estruturada
em razão da constituição de pessoa jurídica, que é garantidora fidejussória dos débitos
operacionais de seus associados, devedores dos beneficiários da garantia.
A situação é em tudo análoga à dos denominados “seguros fidejussórios” em razão dos
quais se estabelece uma obrigação de garantia para quem o presta, cujo risco “é o ato
do próprio segurado, o que vem encontroar a própria natureza do negócio de
seguro”.49 O que desponta ao analisar a garantia prestada pelo FGC é que ele cumpre
sua obrigação, mediante o pagamento da obrigação inadimplida pelo devedor, seu
associado, ou seja, paga débito de outrem, distintamente do que ocorre, por exemplo,
no seguro de crédito em que o pagamento devido pela seguradora é de obrigação
autônoma e visa indenizar, cobrir o prejuízo que o não pagamento do crédito impõe ao
segurado.
Além disso, essa obrigação fidejussória do FGC, acessória à dos débitos de seus
associados para com as respectivas clientelas, está adequada ao regime do Código
Civil, de conformidade com a análise dualista da obrigação que empreendemos, vez
que, mercê da norma de intervenção que a determina, essa garantia é limitada aos
valores definidos pelo FGC e aprovados pelo Banco Central do Brasil, em consonância
com o disposto no artigo 830 do Código Civil [artigo 1.494 do antigo Código de 1916].
Daí que o negócio compulsoriamente concertado pelo FGC, é negócio fidejussório, cuja
obrigação
de
garantia
é
acessória
à
da
instituição
associada,
devedora
dos
depositantes e aplicadores de renda, de forma geral.
49
Fábio Konder Comparato, ob.cit., pág. 103 – citando Donati, “Trattato”,
III, nº 709, pág. 297; Gasperoni, “Assecurazioni di danni”, nº 65,
“Nuovissimo Digesto Italiano”.
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40
Contudo, isso encerra apenas uma das hipóteses em que a segurança é alcançada, de
forma
ampla
perante
credores
operacionais
por
depósitos
ou
aplicações
das
instituições.
A outra senda pela qual pode se operar a garantia, colhe a própria gestão do FGC ao
decidir pela aplicação de seus recursos para preservar a atividade de instituição
associada, para assegurar-lhe a liquidez, seja mediante a aquisição de créditos, seja
por operações vinculadas.
Essa decisão, contudo, além de estar contemplada entre as alternativas para aplicação
de recursos do FGC, por certo há de ser tomada em harmonia com o Banco Central do
Brasil como forma de assegurar a estabilidade para o funcionamento do mercado
financeiro, conferindo-lhe mais segurança.
Ao decidir pela constituição de pessoa jurídica compulsoriamente detida por pessoas
jurídicas de direito privado, (ainda que algumas controladas por pessoas de direito
público), a norma de intervenção do Conselho Monetário Nacional, editada pelo Banco
Central do Brasil, criou a peculiar situação de a obrigação de garantia, obrigação
fidejussória, ser integrada ao sistema financeiro nacional, como instrumento para
conferir-lhe mais segurança em relação ao público depositante ou aplicador de
recursos financeiros, isolando patrimonialmente as contribuições. Cabe, nesse passo,
averiguar como a personalidade jurídica, fruto de contrato associativo, interfere com o
funcionamento da garantia compulsoriamente instituída.
40. O antigo Código Civil dispunha em seu artigo 20 que “as pessoas jurídicas têm
existência distinta da dos seus membros”. O Código Civil em vigor não reeditou essa
disposição, mas tornou ainda mais sublinhado o princípio da independência da pessoa
jurídica em relação aos sócios ou associados ao dispor em seu artigo 50 que:
“Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade,
ou pela confusão patrimonial, pode o juriz decidir, a requerimento da parte, ou do
Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e
determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos
administradores ou sócios da pessoa jurídica”. (grifado)
Vê-se para logo que é pressuposto para o nosso direito o prevalecimento da
personalidade jurídica, cujo deferimento judicial para sua desconsideração exige, nos
termos da Lei, o desvio de finalidade ou confusão patrimonial.
Portanto, é decorrente do conceito de personalidade jurídica a existência de pessoa em
apartado à dos sócios. Ela, a pessoa jurídica, tem sua existência alicerçada nos
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41
elementos e requisitos assim exigidos pelo sistema de direito positivo da praça em que
estiver organizada.
Nesse sentido o magistério de Fábio Konder Comparato:
“A teoria tradicional identifica o conceito de sujeito de direito com o de pessoa e
distingue as pessoas físicas ou naturais das chamadas pessoas jurídicas, consideradas
criações da ordem jurídica. Ora, a pessoa, como “suporte” de deveres e direitos, não é
algo distinto desse complexo de deveres e direitos da mesma forma que uma árvore
não tem tronco, ramos, folhas e flores, mas é o conjunto desses elementos. Assim
também, a pessoa não tem direitos e deveres jurídicos, mas simplesmente é o
complexo desses deveres, é a personificação dessa unidade de deveres, atribuídos ao
mesmo indivíduo ou grupo de indivíduos.
..................................................................
“Há, por conseguinte, na problemática da pessoa jurídica, uma questão de atribuição,
a um grupo de indivíduos, dos efeitos do comportamento de um deles, considerado
órgão ou representante. Questão em tudo análoga à atribuição dos efeitos dos atos do
pai ou tutor ao filho ou ao tutelado, por exemplo.”50
41. Do ponto de vista operacional para o funcionamento da ordem fundada no regime
de mercado, a causa, a causa final [função] para a organização da pessoa jurídica
consiste na especificação de um determinado patrimônio para cumprir determinado
fim. A especificação do patrimônio desde logo traça um limite da responsabilidade dos
sócios e dos resultados que poderão auferir em razão do funcionamento da sociedade.
“A causa, na constituição de sociedades, deve, portanto, ser entendida de modo
genérico e sob uma forma específica. Genericamente, ela equivale à separação
patrimonial, à constituição de um patrimônio autônomo, cujos ativo e passivo não se
confundem com os direitos e obrigações dos sócios. De modo específico, porém, essa
separação patrimonial é estabelecida para a consecução do objeto social, expresso no
contrato ou nos estatutos”.
“..., em qualquer hipótese, essa separação patrimonial – causa do negócio de
sociedade
–
obedece
a
certos
pressupostos
formais
e
substanciais,
como
arquivamento dos atos constitutivos no registro público, ou a pluralidade de sócios”. 51
50
O Poder de Controle na Sociedade Anônima, Ed. Revista dos Tribunais,
São Paulo, 1.977, págs.252, 253.
51
FÁBIO KONDER COMPARATO, ob.cit,. págs. 270 e 271.
o
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42
O FGC, pois, insere-se estruturalmente na perspectiva do mercado financeiro como
exemplar identificação de um patrimônio afeto ao exclusivo fim de ser o garantidor
[não de prestar garantia] dos débitos operacionais das instituições financeiras. E assim
o é em atendimento ao interesse geral que cerca o funcionamento do sistema
financeiro, como antes destacado. O Estado ao determinar-lhe a criação compulsória,
mediante o exercício da capacidade normativa de conjuntura, cumpriu expressamente
o dever previsto pela Lei n.º 4.595 de 31/12/64, artigo 3º, inciso VI, no qual a liquidez
dos débitos das instituições financeiras cumpre papel de destaque.
III – RESPOSTA AOS QUESITOS
42. Com base no quanto exposto, passo a responder aos quesitos formulados:
1
Qual o regime de direito a que se subordina a entidade? Trata-se de entidade que
integra a administração pública? Como se particulariza o regime de sua função no
âmbito do sistema financeiro nacional? E de seu funcionamento?
RESPOSTA: O FGC, como visto sob diferentes aspectos de sua organização e
funcionamento, é entidade de direito privado que não integra direta ou
indiretamente a administração pública, mas cumpre função de segurança no
âmbito de nosso sistema de direito positivo como garantidora fidejussória dos
débitos operacionais das instituições financeiras. Por isso, conformam-lhe a
organização e funcionamento de forma geral as regras do Código Civil em matéria
de pessoa jurídica associativa e, especificamente, as normas editadas pelo
Conselho Monetário Nacional e pelo Banco Central do Brasil como frutos da
intervenção estatal para salvaguardar o interesse geral que cerca o sistema de
intermediação financeira.
2
A vinculação compulsória dos bancos ao FGC implica que ele tem por objetivo
atender ao interesse público? Ainda que de natureza privada [se essa for a solução
do quesito anterior] o seu objetivo não lhe especializa a estrutura e funcionamento
no âmbito das funções da administração pública?
RESPOSTA: Ao longo da exposição ficou bem marcado que a compulsória
vinculação dos bancos como associados do FGC decorre da intervenção estatal por
direção cujo objetivo, a segurança, é implementado mediante a função de
garantidor fidejussório do FGC, dos depósitos e aplicações financeiras de que as
instituições são devedoras. A organização e o funcionamento do FGC são de
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natureza privada, condicionadas pelas regras de intervenção editadas pelo Banco
Central do Brasil. Tanto a organização que implica a associação das instituições
financeiras sujeitas ao regime de direito privado, como o seu funcionamento que
atende o interesse geral que cerca o funcionamento do sistema financeiro, não
expressam interesse público e não se sujeitam ao regime de direito público, como
exposto, em particular nos itens 14 e 15 deste estudo.
3
As contribuições das instituições financeiras ao FGC e, de forma geral, as receitas
auferidas pelo FGC constituem recursos que ficam ao alcance do regime de direito
público?
RESPOSTA: Impõe-se a negativa. Todos os haveres do FGC estão sujeitos às
regras que conformam sua organização e funcionamento, nenhuma, contudo, é
regra de direito público, portanto aplica-se ao caso o regime de direito privado.
4
Quais os princípios que devem prevalecer para as decisões sobre a aplicação dos
recursos do FGC em vista de suas funções institucionais? E sobre o seu patrimônio,
(aí considerados os haveres que adquire em razão do cumprimento de seu objetivo
institucional)?
RESPOSTA: Das diretrizes ordinárias que presidem as decisões sobre as aplicações
de renda e patrimônio --- rentabilidade, segurança e liquidez --- no caso de
entidades associativas, sobretudo em vista da função garantidora do FGC, devem
prevalecer a segurança e a liquidez com ênfase menor para a rentabilidade.
A
destinação dos recursos da titularidade do FGC, nada obstante, dada a justificada
ausência de fins lucrativos como escopo da entidade, deve preferencialmente
atender hipóteses que indiretamente assegurem os fins da entidade, contemplados
no estatuto, como as operações vinculadas ou a compra de ativos de instituições,
para dar suporte de liquidez a instituição associada e, dispensa sublinhar, por aí
também operacionalizar a segurança para o mercado financeiro de forma geral,
mediante o estável e regular funcionamento de instituição financeira.
É o que me parece.
São Paulo, 07 de maio de 2.012.
José Tadeu De Chiara
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O Dr - FGC