VERSÃO PRELIMINAR
PLANEJAR O DESENVOLVIMENTO PARA QUE “UM
OUTRO MUNDO SEJA POSSÍVEL”
Cândido Grzybowski
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“Um outro mundo é possível se a gente quiser” é o refrão de uma canção inspirada no
Fórum Social Mundial, captando um sentimento comum atravessado na diversidade de
participantes e cantado a plenos pulmões. Quem lá esteve sabe a sinergia que a frase
carrega e a vibração que provoca. É pouco, muito pouco. Mas é revelador do novo
momento em que estamos entrando como humanidade. Voltar a sonhar e construir
utopias é algo revolucionário, se não de realidades ao menos de corações e mentes. Isto
num mundo em que o cinismo, o individualismo e a lei do mais forte teima em voltar a ser
a lei. Mas não! Um outro mundo é possível! Estamos diante de um belo começo. É
reiniciar, é retomar. O caminho precisa ser feito e ele se faz ao andar, como diz o poeta.
A verdade é que estamos em mar aberto, em águas bem revoltas, sem terra á vista. O
momento é de ousadia e coragem. A hora é de olhar longe, planejar o rumo e fazer as
opções estratégicas necessárias. Precisamos sair do sufoco, do estrangulamento.
Retomar ou recriar capacidade de decisão sobre o nosso destino, corrigindo rumos no
percurso do caminho, este é o desafio. Ao menos este é o clamor de uma emergente
cidadania de dimensões planetárias que, como uma onda gigantesca, está crescendo em
oposição ao que aí está.
O contexto mundial é, sem dúvida, de crise e de exacerbação das contradições da
globalização econômico-financeira impulsionada pelas políticas do Consenso de
Washington e legitimada pelo neoliberalismo. Nele avança o unilateralismo do Governo
Bush, usando todo o poder imperial dos EUA, numa tentativa de montar uma ordem
mundial que preserve a posição de domínio dos interesses das grandes corporações e
do capital financeiro, mesmo ao custo de alimentar uma lógica destrutiva de terror e de
guerra. Acentua-se tragicamente a desigualdade social e a destruição ambiental no
planeta. Florescem a xenofobia, a intolerância e os fundamentalismos de todo tipo. Mas
o contexto é, também, de esperança e sonho de liberdade e dignidade humanas, de paz,
de todos direitos humanos, num poderoso movimento de cidadania, que se expande
com novo vigor. As iniciativas e mobilizações da sociedade civil se multiplicam pelo
mundo e encontraram no espaço do Fórum Social Mundial uma forma de convergir e
exprimir sua vontade de mudar o quadro existente, acreditando que outros mundos são
possíveis. Tal despertar da cidadania e, sobretudo, a força de sua diversidade num
internacionalismo de novo tipo, já pode comemorar uma vitória moral e ética sobre o
neoliberalismo. Esta é uma condição fundamental para conquistar corações e mentes e
tornar-se poderosa alavanca de transformação social.
E o Brasil nisto? Não sou especialista, mas tenho uma clara idéia da radicalidade,
mesmo relativamente tardia, com que se aplicaram e ainda se aplicam as políticas
macroeconômicas de corte neoliberal entre nós, bem como dos seus efeitos. Aliás, estas
políticas aprofundaram um divórcio histórico entre economia e sociedade no Brasil.
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Sociólogo, diretor do Ibase.
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Penso que, para entender o Brasil e os desafios que temos, com a mesma atenção que
olhamos os limites e as possibilidades da economia e, na outra ponta, do Estado,
devemos olhar as possibilidades dos limites da sociedade civil brasileira. Vejo aí muita
esperança. Afinal, não é gratuito que o Fórum Social Mundial tenha iniciado no Brasil. A
sociedade civil brasileira vem construindo densidade em termos de organização social,
de propostas e de participação cidadã com impacto para dentro e para fora. Daí se
podem extrair bases para um novo modelo de desenvolvimento, democrático e
sustentável. Nunca é demais lembrar que é nas lutas e contradições presentes na
sociedade civil do Brasil que emerge o PT e Lula, que podem alterar o rumo do
desenvolvimento do país e de sua inserção internacional.
Discutir o “Brasil em Desenvolvimento” é um oportuno desafio neste contexto, nacional
e internacional. Tomo o desenvolvimento – a qualidade do desenvolvimento – como uma
combinação de circunstâncias dadas e de vontade política que se forja para tirar partido
delas. Aí é que o ato de planejar, de querer e acreditar que “um outro mundo é possível”,
é um ato fundamental para outro desenvolvimento. Entro no debate com este espírito,
não escondendo desejos e motivações. A contribuição que faço é de um ativista político,
dirigente de uma organização de cidadania ativa, o Ibase, profundamente engajado no
processo do Fórum Social Mundial. Uso as lentes que o Fórum me dá para pensar as
alternativas em termos de planejar o futuro do Brasil.
1. Superar o divórcio entre economia e sociedade
O que traz de novo o Fórum Social Mundial para a crítica da economia globalizada e
das políticas macroeconômicas que lhe dão suporte? Em termos muito diretos e de
forma sintética, diria que é a radicalidade da visão social. O Fórum Social Mundial põe
em questão a economia como prática, como ciência e, sobretudo, como construção
ideológico-política expressa no neoliberalismo. O social não é um mero chamar a
atenção para o lado esquecido do processo, como fazem as grandes organizações
econômicas multilaterias – OMC, BM. FMI, OCDE. Trata-se de um questionar a primazia
da economia e a estreiteza da política que tudo subordina ao mercado como condição
sine qua non do desenvolvimento.
O Fórum Social Mundial é, antes de tudo, um convite para que voltemos a sonhar e
acreditar na nossa capacidade de constituintes da economia e não como suas
“conseqüências sociais”. Queremos, sim, desenvolvimento econômico, mas como
estratégia de construção de um mundo e uma globalização capaz de garantir o
desenvolvimento humano democrático e sustentável. Um mundo plural e diverso como
somos com nossas diferentes identidades e culturas, mundo includente e solidário para
dar lugar a todos indistintamente, mundo de liberdade e participação cidadã como
condição da afirmação da dignidade humana para todas e todos, mundo democrático e
multipolar. Enfim, frente à homogeneidade dos mercados, à lei do mais forte e ao
pensamento único da globalização econômico-financeira, buscamos um mundo em
permanente construção, fundado na primazia da promoção de todos os direitos
humanos para todos os seres humanos e no acesso solidário, responsável e sustentável
aos recursos naturais de que dispomos como humanidade. Trata-se de algo singelo e
radical: um mundo – ou, no caso, uma economia e um desenvolvimento – de dimensão
humana, para gente, toda gente.
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Na prática, as coisas aparecem invertidas. Ao invés da economia servir à sociedade, é
a sociedade que se vê subjugada pela economia. O divórcio é tão radical que nunca, na
história humana, se produziu tanto, mas de forma totalmente desconectada das
necessidades humanas. Morre-se de fome ainda, no Brasil e no mundo, não por falta de
alimentos, mas pela impossibilidade de acesso a eles. Estamos diante de uma
encruzilhada de civilização e não só de um problema econômico. Pela primeira vez, não
é a escassez o nosso problema, mas o modo de produção e distribuição da abundância.
Ou seja, a desigualdade social, expressa como desigualdade econômica no acesso e
uso dos recursos naturais e dos bens e serviços produzidos, é na verdade um problema
de poder por trás da economia. Não faltam recursos em termos absolutos. Pelo contrário,
está em questão o modo de gestão, de regulação política. A desigualdade, e não mais a
pobreza em si, é o grande e central problema. O maior engodo e risco real é acreditar
que precisamos primeiro crescer economicamente para enfrentar os nossos problemas.
Esta é uma condição necessária, mas totalmente insuficiente. Os níveis de pobreza e
exclusão social que temos – e isto é particularmente evidente no Brasil – não é fruto da
escassez, da falta de crescimento econômico, mas da injustiça social. Portanto, nosso
problema político central na questão do planejamento do desenvolvimento do Brasil é
combater a desigualdade. Sendo direto, diria que temos uma questão de poder desigual
nas diferentes relações, relações que geram e explicam a desigualdade em termos
econômicos e culturais. Um problema de múltiplas e articuladas desigualdades sociais,
étnico-raciais, de gênero, regionais.
A expressão máxima da economia dominante é o seu lado cassino, jogatina mesmo,
onde se acumula riqueza sem nada produzir, simplesmente vivendo de juros de dívidas
públicas criadas e eternamente reproduzidas ou pela especulação pura e simples sobre a
saúde econômica de setores e até povos inteiros. Nada mais absurdo do que ver as
ações de um conglomerado multinacional crescer nas bolsas de valores do mundo pelo
simples anúncio de reestruturação dos seus negócios, com demissões em massa de
trabalhadores. Isto sem falar no cinturão de paraísos fiscais que cercam os principais
centros econômico-financeiros mundiais, onde se lava o dinheiro sujo desta economia do
único direito: o direito dos detentores de dinheiro.
Uma condição preliminar, inegociável de um ponto de vista cidadão, para o
planejamento do desenvolvimento, é questionar a supremacia do direito do dinheiro, do
comércio, das bolsas, dos mercados, sobre todos os outros direitos. Aliás, que direitos
são estes? Nada mais agressivo para a cidadania e a democracia do que nos subjugar
ao mercado, à lógica do poder do capital e do dinheiro. Desmontar, reduzir, flexibilizar
direitos humanos, que levamos tanto tempo e tanto esforço para estabelecer como
nossos princípios e regras sociais, não pode ser aceita como a única via possível para
desenvolver o Brasil. De jeito nenhum podemos aceitar usar o Estado para destruir a sua
capacidade de regular, como se fez na última década no nosso Brasil. Isto é condenar à
morte a democracia como ideal como institucionalidade e como processo de vida em
coletividade. Neste sentido, repolitizar a economia, o desenvolvimento econômico, de
uma perspectiva de radicalização da democracia, é a primeira e fundamental condição
para um planejamento do desenvolvimento. Este é o caminho para reconciliar economia
e sociedade, desenvolvimento e cidadania, nação e povo, entre nós.
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2. Reconstruir e democratizar
desenvolvimento
a
capacidade
do
Estado
de
regular
o
O desenvolvimento é uma condição fundamental para a consolidação da democracia
no Brasil. O desenvolvimento acima de tudo é uma questão de política. A democracia
depende dele e, ao mesmo tempo, o qualifica. A redemocratização, neste sentido, é um
marco e a institucionalidade criada é um bem inestimável para redefinir os rumos do
desenvolvimento do Brasil. Porém, os grandes avanços em termos de institucionalidade
democrática das duas últimas décadas, em particular a Nova Constituição, foram
ameaçados pela adoção das políticas do “Consenso de Washington”, abrindo
inteiramente o país à globalização econômico-financeira sob a égide do livre mercado.
Isto se deu de forma abrupta por Collor e de forma sistemática pelo governo de
F.H.Cardoso. As mudanças que se promoveram foram profundas, sendo o mais
importante a fragilização da capacidade do Brasil em definir o seu próprio rumo. A
abertura e a capitulação diante das forças promotoras da globalização econômicofinanceira ameaçam a democracia por gerar novas contradições e rupturas entre
economia (mercado) e política (Estado), entre economia e sociedade (cidadania).
O fato da globalização entre nós ter sido tão depredadora revela a própria fragilidade
da institucionalidade – as fáceis e múltiplas reformas na nossa Constituição são o
exemplo mais cabal – e do próprio poder estatal democrático conquistado. Aliás, não é
na dinâmica da sociedade civil interna que a nossa democracia sofre limites e ameaças.
A cidadania entre nós foi atropelada pela agenda da globalização neoliberal,
implementada pelos interesses e forças aglutinadas em torno à aliança de centro-direita
que governou o país. Dela emanaram políticas de desmonte do Estado, de flexibilização
dos direitos, de autonomização de instâncias decisórias fundamentais, de prioridade do
direito financeiro e comercial aos direitos humanos e de cidadania. Operou-se uma
verdadeira transferência de poder de decisão sobre os rumos do desenvolvimento
político e econômico para instâncias multilaterais alheias, distantes e nada democráticas,
como o FMI, BM e OMC, quando não uma submissão direta aos que dão as cartas ao
nível de mercados, os grandes bancos e os conglomerados econômico-financeiros. O
mega especulador Soros, por mais que ofenda os nossos brios nacionais, disse uma
grande verdade quando nos lembrou, no ano passado, que quem decide no Brasil são os
mercados e não as brasileiras e os brasileiros. Avançamos, nos últimos anos, por um
caminho extremamente perigoso ao esvaziar a política estatal de sua essência: o poder
de decidir para onde vai o país, o tipo de desenvolvimento que lhe é mais adequado,
dadas as suas possibilidades e limites, para atender as demandas de uma cidadania
emergente. Neste quadro, a política baseada em valores e princípios éticos se reduziu à
boa gestão, a uma administração com responsabilidade..., sobretudo fiscal, segundo os
desejos do mercado.
Sem dúvida, este é um dos principais problemas para o planejamento do
desenvolvimento no Brasil: como reconstruir, desta vez de forma democrática, a
capacidade do Estado de regular o desenvolvimento? A dependência econômica e a
enorme dívida externa são um legado que nos amarram e que vêm de antes da
democracia. Delas, porém, não se pode extrair automaticamente a globalização
econômico-financeira, mesmo que nossos submissos dirigentes aos interesses da banca
internacional tenham dito que este era o único caminho possível. Nunca é demais dizer
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que esta foi uma opção de nossos governantes, significando na prática uma derrota
política aos setores democráticos de ponta em nosso país. O mais incrível nisto tudo é
que a dependência, expressa no descontrole da dívida, foi fator extremamente
importante na corrosão do velho regime autoritário-militar. No entanto, os governantes,
que se elegeram com uma agenda contra a dependência e o tipo de desenvolvimento
selvagem e excludente a ela associado, uma vez no poder acabaram operando uma
conversão, tornando-se adeptos de políticas geradoras de mais dependência. Será que
com Lula será diferente?
O desafio é reconstruir a capacidade do Estado como agente promotor e regulador do
desenvolvimento. A idéia mesmo do planejamento do desenvolvimento só é possível
nestas condições. Mas não se trata de reconstruir um Estado tecnocrático. Isto pode ser
tão ruim como a cegueira do mercado. Não se trata de conceder uma primazia absoluta
ao aparelho de Estado, mas de abri-lo à participação, repolitizá-lo, torná-lo permeável às
contradições que emanam da sociedade, fazendo-o expressão democrática das
diferentes demandas que se gestam na sociedade. O Estado precisa ser capaz de atrair
para si o pacto democrático entre os sujeitos constituintes para o desenvolvimento e, ao
mesmo tempo, em seu nome, ser o promotor das políticas e regulador de relações,
processos e estruturas que o desenvolvimento demanda. Forjar a vontade política para o
desenvolvimento democrático é uma primeira condição neste caminho. Mas nunca a
cidadania será prescindível. Isto nos remete ao ponto seguinte.
3. A participação cidadã qualifica o desenvolvimento
O Fórum Social Mundial, um fato político ao seu modo global, tem na participação
cidadã a sua alma. Sem dúvida, no Fórum se demanda menos mercado. Mas sua
demanda por política não necessariamente é demanda por mais Estado. A demanda por
uma regulação estatal é porque é impossível imaginar cidadania ativa sem instâncias
políticas estatais. Mas cidadania não se subsume ao Estado. Pelo contrário, numa
democracia substantiva, este deriva daquela. A cidadania constitui o Estado. Esta
verdade política elementar precisa ser lembrada sempre. Aliás, grande parte da “crise do
desenvolvimento” deriva do fato do distanciamento entre Estado e cidadania, entre
institucionalidade política representativa e cidadania, entre política estatal e sociedade
civil.
Não cabe, no limitado desta análise, uma reflexão mais detalhada sobre as
contradições embutidas no conceito e prática da sociedade civil. Limitemo-nos a
considerá-la como o espaço da luta, dos conflitos políticos, entre os diferentes sujeitos
sociais constituintes de uma sociedade dada. Não se trata aqui de pensar a realidade
com as categorias formas da democracia liberal, que limita a questão democrática às
formas de constituição e funcionamento dos governos. Trata-se, isto sim, de pensar os
complexos processos que movem por dentro a nossa sociedade e que permitem
qualificá-la como sociedade em situação de construção da democracia como modo de
ser e se desenvolver. Um primeiro aspecto a salientar neste sentido é que democracias
não são produzidas por economias e nem por Estado, apesar destes serem uma
condição necessária das possibilidades históricas de democracia numa sociedade dada.
Democracias para existir precisam, antes de mais nada, de sujeitos sociais seus
portadores e construtores efetivos. Para tanto, é necessário que se criem sujeitos
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históricos que imaginem e desejem a democracia, que se organizem e lutem por ela, que
a constituam, enfim, nas condições econômicas, culturais e políticas existentes. Sem
dúvida, a conquista da democracia e o processo de democratização que daí decorre
implica em mudanças no desenvolvimento da economia e do poder de Estado, maior ou
menor, dependendo da diversidade de sujeitos, da extensão da luta e da correlação de
forças assim obtida. A economia e, particularmente, o Estado são estratégicos como
espaços do avanço e promoção da democracia. Mas quem os empurra e constitui, em
última análise, são os sujeitos sociais. Estes são, na expressão de Gramsci, blocos
históricos que combinam os modos de sua inserção na estrutura social e na diversidade
de relações de que fazem parte, mais a própria consciência e vontade. Por isto, o espaço
de constituição dos sujeitos sociais – a sociedade civil – é por excelência o locus da
democracia.
Uma democracia se mede pelo caráter de suas instituições, pelas relações e pelos
processos que permite moldar em todas as esferas da vida de um país. Substantiva e
radicalmente, um povo vive a democracia se os valores democráticos e a participação
são a base de tudo, tanto das relações de poder estatal, como do acesso aos recursos
que são de todos. As relações entre grupos e classes sociais, entre homens e mulheres,
com idosos e crianças, entre diferentes, com o território e suas riquezas, a produção e a
distribuição de bens e serviços, a vida em coletividade, a criação científica e cultural,
tudo, enfim, que implica em diferença e potencial de disputa constitui, ao mesmo tempo,
o terreno em que opera a democracia. No centro, o confronto de projetos, de modos de
ver, organizar e fazer, tendo como limite os direitos da cidadania. Numa democracia, as
lutas são normais e até necessárias. A grandiosidade da aventura democrática é
acreditar no potencial criador dos conflitos quando portadores de direitos. Ao invés de
buscar se eliminar mutuamente, na democracia os diferentes sujeitos se engajam num
processo de tirar soluções, mesmo temporárias, dos conflitos que os diferenciam, os
opõem ou os aliam, segundo regras e princípios comuns.
O Fórum Social Mundial, com todas as contradições que traz embutidas em si mesmo,
nada mais é que uma reafirmação prática, histórica e política desta verdade democrática
elementar. Por isto o seu impacto no quadro atual, quando a arrogância dos promotores
da globalização neoliberal negava qualquer alternativa que não o livre mercado. O Fórum
radicaliza o primado da política, não a institucional e estatal, mas aquela que exprime o
conflito da cidadania em ação. Apesar de simples como enunciado, aí estão contidas
enormes implicações de não fácil solução. Ainda mais que estamos diante de um enorme
déficit de reflexão política estratégica, uma outra dimensão do estrago feito pela
globalização e pela hegemonia de um pensamento econômico mercantilista.
O certo é que o Fórum Social Mundial repõe as coisas no seu lugar e desperta novas
energias. De meu ponto de vista, um dos aspectos mais positivos e inspiradores para o
debate sobre o desenvolvimento a extrair do Fórum é exatamente a idéia fundante
original: a participação cidadã. Talvez vale a pena lembrar que ao decidirmos levar o
Fórum Social Mundial a Porto Alegre contou muito a idéia do bom governo fundado na
participação. Afinal, Porto Alegre era, então, o símbolo do orçamento participativo. E para
nós, governos e desenvolvimento são uma questão de participação cidadã acima de
tudo.
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Estamos diante do modo de fazer política. No caso, trata-se do modo de planejar, de
definir prioridades, de transformá-las em propostas de desenvolvimento, de como o
Estado vai regular o desenvolvimento. Numa perspectiva de radicalização da
democracia, o desenvolvimento não se mede só pelos resultados, mas antes pelo modo
como se chega a eles. Por isto, o próprio plano deve ser produzido num processo de
concertação política entre os diferentes sujeitos sociais e tornar-se expressão de um
pacto democrático. O necessário saber técnico e econômico requerido pelo processo de
planejamento deve estar a serviço da participação e concertação. Caso contrário, vira
tecnocracia e pode ser tão ruim em sua clarividência como a cegueira do mercado.
A questão da participação parece simples assim anunciada, mas é um enorme desafio
político em termos de planejamento do desenvolvimento. Ela retira ao mercado a
primazia e apela à intervenção estatal, sem dúvida, mas num quadro em que não é o
governo ou, de modo mais amplo, o Estado e seus gestores que moldam o
desenvolvimento e sim a negociação política entre diferentes sujeitos sociais, promotores
e beneficiários do desenvolvimento. O plano de desenvolvimento como concertação traz
embutido em si a incerteza própria de um pacto democrático e, portanto, a necessidade
de permanente negociação política. Na verdade, como parte do processo democrático, o
plano exprime as disputas e os acordos em torno ao projeto de país que queremos.
Este ponto nos remete a outra questão fundamental: a tensão entre democracia
representativa e democracia participativa. É claro que isto não se limita ao planejamento,
mas tem a ver com a essência mesma da democracia. O certo é que a participação
cidadã no sentido em que aqui aponto não se restringe e nem pode ser determinada pela
institucionalidade representativa criada, seja o governo eleito ou o Congresso, seja os
partidos políticos. A demanda da cidadania militante, esta que pressiona e critica as
instâncias constituídas de poder, nacional e internacional, como no Fórum Social
Mundial, é no sentido de democracia direta como constituinte da democracia
representativa. Penso que é bom esclarecer as implicações disto para melhor situar a
proposta de um planejamento democrático do desenvolvimento como aqui o faço.
Em termos simples e diretos, não pode existir democracia como forma de organização
e vida em sociedade sem uma institucionalidade política e um poder constituído na forma
de Estado. Institucionalidade e poder que se fazem pelo voto, pela representação, como
forma de expressão da correlação de forças entre diferentes sujeitos sociais na disputa
democrática de visões e projetos, de recursos coletivos e de formas de regulação de
relações e processos sociais para a garantia dos direitos de cidadania. Mais, uma
precária institucionalidade política democrática é melhor do que nenhuma. A questão é
como, a partir de tal institucionalidade, fazer avançar a democracia, criando até nova
institucionalidade e um poder estatal mais adequado. É bom que se diga que planejar o
desenvolvimento, para além de pensar a economia que desejamos, é também buscar o
tipo de instituições e poder que permitam a sociedade se desenvolver.
Até aqui tudo bem. O problema é que as democracias, em termos institucionais e de
poder, facilmente se transformam em ritos e se formalizam, autonomizando-se das
sociedades que as produzem e até se impondo a elas. Todo poder estatal se vê e,
sobretudo, age como se ele fosse constituinte e não um poder constituído pela cidadania.
O poder e as instituições políticas nas democracias são derivados, com mandato
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delegado. Esta é a sua essência. Mas, na prática, pode se produzir um tal divórcio entre
sistema político, mesmo constituído por eleições livres, e a própria sociedade que
engessa a democracia e limita a participação cidadã. As políticas de ajuste e
reestruturação adotadas em sintonia com a globalização econômico-financeira
dominante, é bom que se diga, contribuíram para um distanciamento e estranhamento
entre a institucionalidade e o poder constituído e as demandas de democracia da
sociedade brasileira.
O Governo Lula se situa neste contexto. Será ele capaz de abrir o poder e a
institucionalidade à participação cidadã? A agenda do desenvolvimento includente,
democrático e sustentável, foi o carro chefe de sua proposta, vitoriosa, nas eleições.
Porém, em termos de políticas governamentais, especialmente as macroeconômicas, até
aqui, pouco mudou. Sinais positivos se notam, sem dúvida, em termos de forjar um
governo mais participativo. É este o sentido da Conselho Econômico e Social, do
CONSEA, das grandes Conferências e Fóruns e, em particular, das Consultas em torno
ao PPA – Plano Plurianual de Desenvolvimento. Mas é para valer? Até que ponto tais
iniciativas podem ao menos influenciar a institucionalidade do poder e sua heterogênea
aliança no Congresso?
4. A sociedade civil brasileira: para além do capital e trabalho
Não cabe entrar aqui numa análise mais aprofundada das formas de participação que
o Governo Lula vem ensaiando. Mas não dá para deixar de assinalar os limites de uma
participação que tende a ser restrita, como concepção e prática, à clássica relação de
empresários e trabalhadores, além de dominantemente paulistas. Estamos diante de
uma estreita visão política de capital e trabalho, a partir de sua função e posição na
estrutura social? Francamente, além de anacrônico e limitado, isto é um reducionismo
inaceitável no trato das demandas de participação da cidadania brasileira. Pior, confundir
sociedade civil com tais relações, importantes sem dúvida mas insuficientes, é não
entender o Brasil em sua complexidade, diversidade e potencialidades.
É bom que se diga que, de qualquer forma, politizar a relação capital e trabalho no
nosso Brasil já é algo alvissareiro, mesmo se limitado democraticamente. Não é demais
lembrar que nossa “burguesia” sempre se comportou de forma nanica em se tratando de
definir um projeto para o país. Sempre confundiu privilégios de posição com direitos e
sua visão não foi além de uma mentalidade predadora de acumular não importa como.
Ameaçada, por mínimo que seja, nunca hesitou em deixar os salvadores autoritários,
manu militari se necessário, vir em seu socorro. No outro lado, a organização autônoma
dos trabalhadores ainda é uma novidade entre nós. Não tem a duração de uma geração.
Sempre foi uma ameaça ao establishment e reprimida violentamente. Mas que fantástica
mudança estamos passando com o fato de um operário, líder de movimentos sindicais,
acabar eleito Presidente da República! Lula não só é expressão de tal processo de
mudanças como trouxe para dentro do poder constituído a própria relação capital e
trabalho.
O problema, em termos de democracia, começa aí. Se é um progresso esta
centralidade política, dada a história do país, ela é, ao mesmo tempo, um limite em
termos de democratização. Afinal, a sociedade brasileira e a cidadania brasileira estão
longe de se restringir aos sujeitos sociais que emanam desta relação. A sociedade civil
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vem decantando uma diversidade de lutas e sujeitos sociais que precisam ser levados
em conta numa perspectiva de radicalização da democracia. Mais, será impossível fazer
avanços substantivos limitando a participação cidadã nas várias instâncias decisórias e
particularmente na questão do pacto pelo desenvolvimento ao binômio capital e trabalho.
O que preocupa é o fato que, até aqui, o Governo Lula parece não ir além em suas
propostas de abertura à participação. Claro, a Consulta feita em torno ao PPA foi mais
ampla que, por exemplo, a composição e os debates travados no Conselho Econômico e
Social. Mas, sinceramente, algo de substantivo esteve em processo de consulta? É
levado em conta pelo “sistema de poder”?
Para bem entender a questão é necessário salientar que não considero a sociedade
civil brasileira essencialmente democrática ou democratizadora. Pelo contrário,
diagnostico o autoritarismo nas relações, a violência no cotidiano, o patriarcalismo e o
machismo, o racismo, a cultura nada democrática dos privilégios acima de direitos, como
elementos constitutivos de nossa cultura civil, do nosso modo de ser. Isto tudo
convivendo, contraditoriamente, com uma fantástica expansão da cultura dos direitos
iguais de cidadania, da solidariedade e participação, de um tecido social organizativo,
construtor de identidades sociais e projetos, sem similar no mundo contemporâneo. Ou
seja, vejo a sociedade civil brasileira prenha de contradições onde a democracia e a
democratização são uma possibilidade real, mas precisam ser ganhas. Neste sentido, da
extensão, diversidade e dinamismo de nossa sociedade civil só dá para extrair as
condições para maiores ou menores avanços democráticos. O que de mais essencial
estamos produzindo com a irrupção de lutas, particularmente dos excluídos em processo
de organização, é a ampliação do espaço público, do espaço dos direitos e da
consciência social sobre eles. É assim que vejo o caso dos sem terra, dos sem teto, dos
loteamentos clandestinos, dos indígenas, dos movimentos negros, das feministas, da
economia solidária, das quebradeiras de coco, dos seringueiros, dos atingidos por
barragens, dos pequenos agricultores, dos catadores de lixo, dos movimentos em defesa
de bens comuns e justiça ambiental, dos profissionais de ensino, dos fiscais, dos
operários, dos sindicalistas, enfim.
O desenvolvimento de nossa sociedade civil opera uma dupla reengenharia social e
política. Primeiro, desprivatiza relações e torna mais públicos certos espaços de vida.
Sempre que se constitui um sujeito social, em que se organiza um grupo, dá-se um salto
de qualidade do privado, familiar, invisível, desorganizado, de fora, seja lá o que for, para
uma identidade pública e uma politização de mais um grupo ou relação social. A segunda
dimensão da reengenharia social e política operada pelo desenvolvimento da sociedade
civil brasileira tem a ver exatamente com esta politização de grupos sociais, relações que
vivem e demandas que fazem. Neste processo emerge a diversidade de sujeitos e lutas
que constituem a sociedade civil e, ao mesmo tempo, se desestatiza a própria política. O
alargamento do espaço público aí embutido é uma radical ampliação do espaço da
cidadania e da política, aproximando-a ao modo de ser dos cidadãos e cidadãs, ao lugar
em que vivem e ao seu cotidiano. Falar em participação cidadã é falar de uma abertura a
tal complexidade da própria cidadania.
Aliás, as múltiplas formas de exclusão e desigualdade social que vivemos e que são o
desafio central para o desenvolvimento humano democrático e sustentável no Brasil
precisam ser vistas para além da relação capital e trabalho. Não só os diferentes sujeitos
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sociais ativos, organizados em associações e movimentos, precisam ser considerados,
como temos todas e todos os invisíveis. Trata-se dos e das que não têm identidade
social nem poder porque simplesmente estão de fora, totalmente desorganizados social
e politicamente. E no nosso Brasil são muitas e muitos os condenados a tal situação de
exclusão da cidadania. Aí é que reside o desafio para a democracia participativa no
Brasil. Será o planejamento capaz de levar em conta tal desafio? Estão nossos gestores
institucionais dispostos a verdadeiramente se abrir à participação da sociedade civil e
implementar os acordos possíveis?
Para melhor situar a amplitude e radicalidade da perspectiva, em termos de
democracia, uso as lentes que me fornece o Fórum Social Mundial. Para mim, o Fórum
Social Mundial não pode ser dissociado da confluência de duas grandes revoluções
culturais em curso, geradoras de consciência social e de filosofias ativas. Defino como
revoluções por inverterem as práticas humanas e o modo como as vemos, interpretamos
e significamos. Mas revoluções ainda em curso, cujo resultado duradouro depende do
maior ou menor engajamento de diferentes atores sociais. De um lado, por força de
movimentos universalistas na sua vocação, como o de mulheres por sua identidade e
igualdade, os movimentos de direitos humanos, os movimentos contra o racismo e a
discriminação, os movimentos de cidadania inclusiva, muitas vezes protagonizados por
migrantes sem pátria neste mundo globalizado, forja-se uma consciência de uma
humanidade comum nunca vista na história. Humanidade deixa de ser conceito abstrato
de especialistas e passa a funcionar como bom senso ético, como referência comum de
conduta, independente de povo, cultura ou religião. Uma tal revolução – anterior à
globalização atual mas, contraditoriamente, muito por ela beneficiada – é portadora de
uma radicalidade que é difícil até de definir. Pela primeira vez, rompem-se as múltiplas
barreiras que levavam a tratar como não igual quem é simples e legitimamente diferente
pela sua condição física, cultura ou opção. A novidade aqui é a ampliação do olhar, mais
inclusivo em termos humanos, e das relações constitutivas dos direitos humanos e de
cidadania. As relações sociais de produção continuam sendo uma base fundamental de
direitos, mas não mais fonte única, exclusiva. As relações humanas, em sua totalidade,
gestam tanto desigualdades de todo tipo como definem direitos comuns, base para
superação destas mesmas desigualdades sociais. É nisto que se funda a idéia de uma
cidadania inclusiva para além das relações capital e trabalho.
De outro lado, estamos vivendo uma radical mudança no modo de perceber e nos
relacionar com o meio ambiente que nos cerca e nos fornece a base da vida. A pujança
dos movimentos em defesa do meio ambiente, por origem e vocação também globais,
nos abre uma tal perspectiva que inverte a ordem das coisas, das percepções e das
prioridades na defesa da vida, da liberdade e da dignidade humanas. Entramos numa era
em que, pela primeira vez, a consciência do planeta como bem comum compartido, dos
seus limites e possibilidades, é uma realidade que vai se impondo até no cotidiano.
Altera-se a perspectiva de nossa relação com os recursos naturais e, portanto, com a
produção, o desenvolvimento, a vida enfim. No lugar de uma visão utilitarista da
natureza, de fonte inesgotável, que bastava apropriar-se, a nossa percepção passa a ser
qualificada com uma fundamental dimensão ética de respeito e valorização, condição de
vida para gerações futuras. Ganha relevância a questão da sustentabilidade dos modos
de organizar-se e produzir.
11
As respostas a esta dupla revolução cultural não necessariamente vão no mesmo
sentido. Há muita fragmentação e respostas fundamentalistas, que negam os princípios
e os valores éticos comuns da humanidade e levam ao isolamento, ao medo à
resistência violenta. Tais respostas são alimentadas pela defesa de privilégios de uma
minoria e pelas desigualdades de todo tipo e em todas as relações humanas. Aliás, o
produtivismo e a acumulação a qualquer preço do modelo dominante de produção e
acesso aos bens e serviços, hoje globalizado, por destruírem a natureza, são a maior
ameaça à sustentabilidade da vida e, portanto, da humanidade e da democracia como
forma de vida social.
Mas há um parâmetro ético que difusamente vai se impondo, definindo o aceitável e o
inaceitável, tanto nas relações humanas como nas relações de homens e mulheres com
a natureza que guarda e sustenta a vida. O Fórum Social Mundial alimenta-se
exatamente do processo que levou tais movimentos a confluir e, juntos, a querer moldar
o que está por nascer como alternativa. É a referência ética comum que torna o Fórum
uma encruzilhada de encontro da diversidade e o leva a produzir propostas múltiplas e
diversas, mas carregadas de humanidade, de democracia e de sustentabilidade. Penso
que esta deveria ser, também, a grande inspiração para, de um ponto de vista da
sociedade civil brasileira, pensar e planejar o desenvolvimento do Brasil.
12
5. Uma inserção soberana nas relações internacionais
Outro vetor a considerar no planejamento e na elaboração de alternativas estratégicas
para a radicalização da democracia é redefinir o modo de inclusão do Brasil no mundo.
Aqui precisamos ser ousados na busca de formas de libertar a economia, o Estado, a
sociedade brasileira, enfim, da ditadura dos mercados mundiais, especialmente do fluxo
de capitais em busca exclusiva de sua própria valorização a qualquer custo, destruindo e
dominando a tudo e a todos. A inclusão econômica na ordem mundial deve obedecer a
uma lógica política, regulada, concertada, de respeito à nossa cultura e possibilidades e
de solidariedade com outros povos. Trata-se de por adiante uma agenda política,
subordinando a economia a ela. Precisamos pensar em formas de participar do poder e
da governança mundial, nas interdependências, nas integrações necessárias a nível
regionais, na afirmação de nossa soberania aceitando condicionalidades que emanam da
universidalidade de direitos e de bens comuns planetários. Planejar o desenvolvimento,
no contexto mundial atual, é de certo modo planejar também a nossa participação na
construção de um sistema multilateral democrático e sustentável. Ao menos as
demandas da emergente cidadania planetária, como expressas no Fórum Social Mundial,
vão no sentido de priorizar a garantia de um sistema mundial em que todos os direitos
humanos alcancem todos os seres humanos, limitando a soberania dos Estados
Nacionais, se for o caso. Trata-se de priorizar a agenda humana mundial, acima da
agenda econômica ditada pelos mercados e grandes corporações e da agenda políticomilitar dos Estados. Como nos situamos diante de tal inversão na ordem das coisas
existentes? Ou será possível, no contexto atual, pensar em democracia substantiva sem
redefinir o significado, o alcance e as implicações em termos estratégicos e políticos da
noção mesma de soberania? Precisamos, sem sombra de dúvida, reafirmar a soberania
cidadã. Mas não podemos esquecer que a própria cidadania se mundializa e que,
portanto, soberania da cidadania não mais se confunde com soberania estatal, de
Estados-Nação.
As sociedades civis vêm se internacionalizando em oposição às economias
globalizadas e aos governos e instituições multilaterais – OMC, BM, FMI – que as
promovem. O Fórum Social Mundial é, em si mesmo, a expressão mais cabal de tal
processo. Esta é uma questão nova e desafiante para a democracia e o
desenvolvimento, pois extrapola os Estados e as economias nacionais. Qualquer
processo de planejamento do desenvolvimento, de uma perspectiva da cidadania, deve
levar em conta esta planetarização das sociedades civis e da própria cidadania, tanto em
concepções, como em termos de demandas e práticas. O que vem ocorrendo é um
complexo processo de resistência global com uma tentativa de construir uma agenda
alternativa de dimensões globais, visando um desenvolvimento democrático e
sustentável, de todos os direitos para todos os seres humanos do planeta.
A globalização dominante assenta-se numa lógica essencialmente antidemocrática, da
supremacia do mercado e dos interesses econômicos sobre os direitos. Por isto, a
questão não é simplesmente democratizar a globalização que aí está, mas antes
construir a cidadania e a democracia global como alternativas a ela. Isto tem enormes
implicações para países concretos e suas estratégias de desenvolvimento, de modo
particular para um país como o Brasil. Como estratégia de inclusão no mundo, não dá
13
para continuar praticando o liberalismo submisso, como bons gestores de receitas
emanadas do Consenso de Washington, buscando atrair capitais voláteis supostamente
capazes de desenvolver a economia local. Mas igualmente não há lugar para estratégias
que emanam do velho nacionalismo, negociando e buscando exclusivamente vantagens
comerciais, mesmo em nome do suposto fortalecimento da cidadania e democracia no
Brasil. É necessário definir estratégias e implementar políticas que exprimam uma
inclusão concertada na economia e no poder global tendo por base princípios e valores
que atendam a demandas de democracia global: Convenções de Direitos Humanos, civis
e políticos, econômicos, sociais e culturais; os Protocolos Internacionais (Kioto e outros);
o Tribunal Penal Internacional e assim por diante.
Uma questão central, à qual o Brasil não pode se furtar, é a reconstrução democrática
do sistema multilateral com centralidade na ONU. O sistema multilateral existente está
em crise, tanto devido à tendência de sobrepor o direito do comércio e dos capitais aos
direitos humanos e todas as outras convenções – como fica patente no lugar central da
OMC na promoção da globalização dominante – como, sobretudo, pelo unilaterlismo da
maior potência econômica e militar, os EUA. A emergente sociedade civil mundial se
defronta aqui com um desafio de monta: ter ousadia e radicalidade para que sobre a
economia e os mercados globalizados e acima da força bruta militar unilateral volte a se
instaurar o primado da paz e dos direitos humanos, respeitando ao menos as
convenções e tratados existentes. No fundo, é isto que a diversidade de redes, coalizões,
campanhas e sujeitos civis, aglutinados em torno ao processo do Fórum Social Mundial,
esperam do Brasil e do Governo Lula. Esta é, sem dúvida, uma questão que deve pesar
na definição de estratégias de desenvolvimento que nos cabe implementar numa
perspectiva de radicalização da democracia, necessariamente articulando o local, o
nacional, como o global e o regional.
6. Planejando as prioridades para um desenvolvimento humano democrático e
sustentável
A reflexão que anima estas notas não procura responder à totalidade de questões que
é preciso considerar – econômico-financeiras, técnicas, infraestruturais, territoriais e
mesmo políticas – no processo de definição de um modelo de desenvolvimento para o
Brasil. Tendo como referência o Fórum Social Mundial e as demandas universalistas que
dele emanam, por força da cidadania e sociedade civil de dimensões planetárias que
nele encontram espaço de expressão, busca-se apontar condicionalidades qualificadoras
do desenvolvimento necessário e possível para o Brasil na atualidade. Em síntese, tratase de planejar o desenvolvimento buscando radicalizar a democracia, traduzindo para a
realidade local e nacional as questões e as perspectivas de desenvolvimento humano,
democrático e sustentável, de uma cidadania mundial. A título de conclusão, resumo as
principais prioridades a considerar.

Um desenvolvimento socialmente includente. Qualquer estratégia de
desenvolvimento humano democrático e sustentável deve ter como prioridade
absoluta a inclusão social, mesmo em detrimento de maiores taxas de crescimento
econômico. Eticamente é inaceitável que alguém fique de fora. A inclusão não se
faz pela economia enquanto tal, mas pela participação, pelo empoderamento
político, estimulando a organização e os movimentos sociais, a construção de
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identidades e projetos. Os excluídos devem tornar-se sujeitos de sua inclusão.
Não se trata de fazer simplesmente para eles, mas sobretudo com eles, com sua
ativa participação. Uma questão chave em termos de cidadania é a segurança de
renda mínima e esta é a questão política fundamental. Não se trata de assistência
social, também necessária, mas de uma concepção de desenvolvimento que parte
da inclusão de todas e todos como sua força promotora. Nos limites e
contradições de nossa democracia, que ainda trata os condenados à exclusão e
pobreza como caso de polícia, é fundamental que se encare a questão da inclusão
social passando pela extensão dos direitos republicanos básicos, onde o próprio
direito à segurança pública não é uma questão menor. Enfim, o desenvolvimento
será socialmente includente se a sua base tiver como referência todas e todos os
brasileiros em sua igualdade de cidadãs e cidadãos.

As desigualdades sociais são o maior limite ao desenvolvimento humano
democrático e sustentável no Brasil. Uma prioridade fundamental na definição de
estratégias de desenvolvimento é a busca de justiça social. Somos o país
campeão em desigualdade e isto é insustentável de uma perspectiva cidadã e
democrática. Mas aqui é fundamental que encaremos a realidade sem
subterfúgios. Por trás da desigualdade de renda se escondem múltiplas
desigualdades que nos negamos a enfrentar. Nossas desigualdades não são
separadas do racismo, do machismo e de diferenças regionais. Não sendo
econômicas em sua determinação, mas essencialmente políticas e culturais, o
planejamento do desenvolvimento deve tratá-las como são e definir estratégias
políticas e culturais adequadas para enfrentá-las. Negar-se a fazê-lo é
desqualificar a própria proposta de desenvolvimento. Ao menos não é isto que se
espera de um governo como o de Lula.

Resgatar e fortalecer numa perspectiva de direitos a economia informal, o trabalho
precário e o trabalho oculto. O planejamento do desenvolvimento não pode dar as
costas a todas as formas de trabalho não reconhecidas no quadro de normas e
regulações contratuais mercantilizadas. Trata-se de inverter a lógica que
segmenta e diferencia, com o único objetivo melhor explorar, acumular e dominar.
O avanço assustador do trabalho precário no limite exclui e limita o
desenvolvimento de uma perspectiva cidadã e democrática. Mas não se trata de
meramente funcionalizar a pobreza, tornando-a útil ao processo econômico
dominante. Trata-se de quebrar a lógica imposta pela flexibilização e destruição de
direitos de trabalho do neoliberalismo. É aqui que o planejamento do
desenvolvimento não pode ficar preso de uma visão estreita das relações capital e
trabalho, como assinalado acima. É preciso buscar a ativa inclusão de outras
formas de trabalho e relações socais. Particular atenção merecem todas as formas
de trabalho oculto, desvalorizadas em termos mercantis, mas fundamentais ao
desenvolvimento humano, como todo o trabalho feminino de produção e
reprodução da vida. Reconhecer direitos de cidadania associados a tais trabalhos
é uma condição indispensável na perspectiva de desenvolvimento aqui esboçada.

A busca de sustentabilidade ambiental como condição do desenvolvimento
humano democrático. Na perspectiva da sociedade civil e da cidadania mundial, os
15
recursos naturais não são uma externalidade no processo desenvolvimento, mas
base da vida e patrimônio coletivo da humanidade. A destruição ambiental está
intimamente associada à injustiça social. Portanto, qualquer estratégia de
desenvolvimento democrático deve definir o acesso e o uso de recursos naturais
de uma perspectiva de direitos e sustentabilidade, atual e futura, e não como
meras vantagens comparativas em termos econômicos. É indispensável que o
desenvolvimento tecnológico seja fundado numa combinação de respeito aos
princípios da sustentabilidade e na busca da justiça social, tratando os recursos
naturais como bens coletivos.

A integração política e cidadã no mundo deve prevalecer à integração econômica.
Não se trata de uma abertura comercial ao gosto do neoliberalismo e nem de dar
as costas ao mundo. Trata-se de buscar formas solidárias e democráticas de
inclusão no mundo, com ativa participação na construção de uma ordem mundial
democrática, como ambiente externo adequado ao desenvolvimento sustentado
do Brasil. Neste sentido, a necessária busca de mercados para a nossa economia
deve submeter-se a estratégias de cooperação e integração política com outros
povos. Precisamos pensar o nosso desenvolvimento tendo como referência
demandas universalistas, éticas e políticas, que estão se impondo no mundo.
Precisamos planejar não só o Brasil que queremos, mas tentando ter como
horizonte o Brasil que a cidadania mundial precisa, terra de compromisso radical
com a liberdade e a dignidade humanas.
Texto elaborado para a mesa Planejando o desenvolvimento em uma sociedade
complexa do seminário “Brasil em Desenvolvimento”, do Instituto de Economia da UFRJ.
Rio, 16.09.03
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Planejar o Desenvolvimento para que